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ABERTURA DE INSTRUÇÃO
ADMISSIBILIDADE
SEPARAÇÃO DE PROCESSOS
Sumário
(da responsabilidade do Relator) – Finalidade e objecto da instrução: trata-se de controlo judicial do juízo indiciário da acusação/arquivamento, não sucedâneo de julgamento; o RAI deve enunciar razões de facto e de direito que ataquem concretamente a base indiciária, delimitar o thema decidendum e, sendo caso, indicar actos e meios de prova pertinentes. – Separação de processos: o art. 30.º CPP rege por critérios de boa administração e utilidade, sem preclusão faseada; rejeitada a instrução, o pedido instrumental fica prejudicado no respectivo despacho e pode ser suscitado perante o tribunal competente em momento processualmente útil. – Omissão de pronúncia e regime de nulidades: o catálogo do art. 379.º CPP é próprio da sentença e não se estende a despachos; a falta de conhecimento de incidente alheio ao objecto decidido, a existir, qualifica-se como irregularidade do art. 123.º, sendo inaplicável a importação do art. 613.º, n.º 3, CPC por via do art. 4.º CPP. – Critérios a observar para o RAI: cumpre o ónus quem identifica indícios concretos e demonstra a sua insuficiência lógica ou propõe diligências instrutórias idóneas; não cumpre quem oferece mera versão factual contrária ou antecipa julgamento, solução que desvirtua a fase e impõe a rejeição por inadmissibilidade legal.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
I. RELATÓRIO
1.1. No processo instrução número 1340/21.0T9LSB, do Tribunal Central Instrução Criminal, Lisboa - Juiz 9, foi proferido despacho que rejeitou, por inadmissibilidade legal, os requerimentos de abertura de instrução apresentados pelos arguidos AA e BB.
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1.2. Discordando daquele despacho os arguidos AA e BB interpuseram recursos, com as seguintes conclusões:
a) AA (transcrição) (…) I. O arguido requereu a separação do processo pelo crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86°, nº l, alíneas c) e d), por referência aos artigos 2º, nº 1, alíneas p), q) a e) e az) e nº 5, al. g), 3°, nº4, al. a), 2°, nº3, al. p) e 3°, nº l, todos da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, pelos fundamentos constantes de 31 a 49 do requerimento de abertura de instrução; II. A Mm.ª Juiz a quo não proferiu decisão sobre esta pretensão do arguido, no despacho recorrido; III. A pretensão do arguido foi formulada e fundamentada no requerimento de abertura de instrução, tendo o mesmo solicitado o respetivo deferimento, mesmo que não fosse deferida a abertura de instrução; IV. Trata-se de questão de que o Tribunal deveria ter tomado conhecimento, visto que a fase de instrução é a última oportunidade processualmente azada para o arguido requerer a separação de processos antes da fase de julgamento; V. A separação de processos é matéria que se inscreve na área dos direitos fundamentais da defesa, pelo que é ao juiz de instrução que compete decidir sobre a mesma; VI. A pretensão do arguido foi suficientemente fundamentada, baseando-se num pressuposto muito simples: se o arguido não foi acusado de ter ameaçado o ofendido com arma de fogo, a detenção irregular desta arma não deve ser julgada no mesmo processo em que são julgadas as alegadas ameaças; VII. A concomitância de ambas as acusações no presente processo abre a porta a que o juízo do Tribunal sobre as alegadas ameaças seja inevitavelmente inquinado pela imputação do crime de detenção de arma proibida pelo arguido, dando assim acolhimento à tese do Ministério Público; VIII. Sucede, porém, que esta estratégia do Ministério Público põe em causa o princípio da presunção de inocência do ora recorrente, constante do artigo 32.º, n. 2 da Constituição da República Portuguesa; IX. Através desta estratégia, o Ministério Público promove uma violação da inadmissibilidade de presunção de culpa do arguido, que constitui o corolário, no processo penal, do princípio da presunção de inocência do arguido. Ou seja, X. A apreciação da detenção de arma proibida em simultâneo com as alegadas ameaças graves constitui uma verdadeira presunção de culpabilidade do arguido, pois inculca no tribunal a convicção de que o arguido tem intenção de concretizar as alegadas ameaças; XI. A detenção irregular da arma de fogo é um facto meramente instrumental relativamente ao alegado crime de ameaças, o que tanto mais ajuda a considerar verificado o interesse poderoso e atendível de que o artigo 30º, n.º 1, alínea a) do CPPenal faz depender a separação de processos. Pelo exposto, XII. É de concluir pela nulidade do despacho recorrido, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPPenal.
b) BB. (transcrição) (…) A. O arguido vem acusado da alegada prática na forma consumada e em concurso efetivo, de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153º e 155º, nº l, als. a) e c), com referência ao artigo 132º, nº2, al. 1), todos do Código Penal, e de um crime de atentado contra a liberdade de programação e informação, previsto e punido pelo artigo,74º, nº l da Lei nº 27 /2007, de 30 de julho, na versão atualizada dada pela Lei nº74/2020, de 19 de novembro. B. O arguido, não concordando com a decisão, requereu, ao abrigo do artigo 287º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal, a abertura da instrução, junto do Tribunal competente C. O Tribunal a quo proferiu despacho a rejeitar o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido. D. A fundamentação do despacho de rejeição do requerimento de abertura da instrução baseou-se no argumento de que no requerimento de abertura da instrução terá de ser exposto um conjunto de razões que espelhe o desacordo do juízo indiciário que foi consequente na decisão de deduzir acusação, e não uma mera versão ou contraversão factual, ou seja, o arguido terá que, para provar que a decisão de acusar foi errada, pôr em causa o juízo indiciário. E. Concluindo, a final, o despacho recorrido, que o arguido não deu cumprimento no requerimento de abertura da instrução que apresentou ao imperativo legal constante da conjugação dos artigos 287º nº 2 e 288º, nº 4 ambos do Código de Processo Penal no sentido em que tal requerimento de abertura da instrução se limitou a impugnar os factos constantes da acusação, o que seria próprio da fase de julgamento e já não dà instrução. F. Entende o arguido que a decisão de rejeição do requerimento de abertura da instrução, no caso concreto, faz uma incorreta aplicação do artº 287º nºs 2 e 3 do Código de Processo Penal. G. Com efeito, não corresponde à verdade que o requerimento de abertura da instrução em causa se tenha limitado a apresentar uma contraversão dos factos ou uma impugnação dos mesmos. H. Muito pelo contrário, o requerimento de abertura da instrução em causa aceita como verdadeiros todos os factos descritos e que são imputados ao arguido no despacho de acusação. 1. Que aliás se resumem tão só e apenas à publicação de duas publicações pelo arguido nas redes sociais. J. O que o requerimento de abertura da instruçãp vem contestar e colocar em causa são três outras questões completamente distintas da simples impugnação dos factos constantes do despacho acusatório. K. Em primeiro lugar, o fequerimento de abertura da instrução vem contestar o alcance manifestamente excessivo que o despacho de acusação atribui à matéria factual apurada, pugnando no sentido de que o simples facto de os posts em causa terem sido publicados já após a transmissão da reportagem televisiva é fator impeditivo de a publicação dos mesmos poder ter tido como propósito impedir que a aquela transmissão ocorresse e, em consequência, não poderia ter ocorrido a prática pelo arguido do crime de atentado contra a liberdade de programação e informação, previsto e punido pelo artigo 74º, nº l da Lei nº 27 /2007,. de 30 de julho, na versão atualizada dada pela tei nº74/2020, de 19 de novembro. L. Em segundo lugar, o requerimento de abertura da instrução vem questionar a interpretação que o despacho de acusação faz do conteúdo dos próprios posts imputando-lhes a concretização de crimes de ameaça agravada e atentado contra a liberdade de informação, em que os visados seriam o jornalista, CC, a reportagem, "A grande ilusão - 0 ódio saiu do armário", e o canal ... – sem que em parte alguma dos posts venha mencionado seja o nome do jornalista, seja o nome da reportagem, seja o nome do canal televisivo. M. Outros aspetos circunstanciais relacionados com a redação dos posts em causa são igualmente invocados no requerimento de abertura da instrução com vista a demonstrar que é manifestamente incorreto o alcance e interpretação que o despacho de acusação dá ao conteúdo daquelas publicações no sentido de as enquadrar nos crimes de ameaça agravada ou atentado à liberdade de programação e informação, questão que, por economia, remetemos para a leitura do requerimento de abertura da instrução em causa. N. E finalmente o requerimento de abertura da instrução vem colocar uma questão jurídica pertinente relativa à interpretação conjugada dos art2 1532 e 1552, n21, do Código Penal (crime de ameaça agravada), que no despacho de acusação, é feita no sentido de lhe oferecer uma natureza pública (ou seja, não dependente de queixa), mas que o arguido, de forma sustentada, e chamando à colação a melhor jurisprudência, vem demonstrar tratar-se de um crime semipúblico e, em consequência, inexistindo queixa do ofendido nestes autos, como de facto, inexistiu, não poderia ter havido acusação. O. O que se pede ao Juiz da Instrução, no decurso dessa fase processual, é que avalie a correção da análise de prova subjacente à acusação do Ministério Público. A sua opinião sobre tal matéria, emitida em momento anterior ao da decisão instrutória, não é apta a rejeitar a abertura dessa fase processual, por não ter sido essa a opção do legislador. P. Nestes termos, resulta da lei que a finalidade da instrução corresponde a um direito das pessoas afetadas pela decisão do detentor da ação penal de pedir a um juiz que verifique, que demonstre, que confirme, que (ou se) a dita decisão está certa, pois a lei, à semelhança do que se passa em muitos outros países em que vigora o Estado de Direito, reconhece a essas pessoas o direito de verem tal decisão comprovada judicialmente antes de serem submetidas a julgamento ou de verem a sua pretensão punitiva definitivamente arquivada. Q. E é esta atividade que é considerada um direito das pessoas e uma garantia do processo penal, constitucionalmente assegurados, e, portanto, insuscetível de qualquer estreitamento, seja por razões de celeridade processual, seja por razões de interpretação lata de conceitos processuais, seja por quaisquer outras visões do tema. R. E é precisamente por isso, por se tratar de uma garantia, que a lei apenas permite a rejeição do requerimento de abertura da instrução por ser extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução, não se verificando in casu qualquer um desses três fundamentos de rejeição. (…)
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1.3. O MP respondeu a ambos os recursos, pugnando pela sua improcedência com base, em síntese, na natureza contestatória dos RAI (requerimentos de abertura de instrução), alheia às finalidades da instrução, e na inviabilidade de extrair nulidade por omissão de pronúncia de um despacho que se limitou a rejeitar a instrução por inadmissibilidade legal.
O assistente também apresentou resposta, defendendo a manutenção do despacho recorrido e a improcedência das arguições.
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1.4. O Sr. Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência dos recursos, sufragando os argumentos deduzidos pelo MP da 1ª Instância
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1.5. Notificados deste parecer, nos termos e para efeitos do n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal, não foi deduzida qualquer resposta ao parecer.
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1.6. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Atentas as conclusões formuladas pelos arguidos/recorrentes as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
a) AA
Saber se, apesar de a 1.ª instância apenas ter rejeitado a instrução por inadmissibilidade (art. 287.º, n.º 3, CPP), existia ainda assim dever de decidir o pedido de separação e se o regime do art. 379.º, n.º 1, al. c), CPP é aplicável a este despacho
b) BB.
Saber se o requerimento do arguido cumpria o ónus do art. 287.º, n.º 2 do CPP (razões de facto e de direito de discordância quanto ao juízo indiciário), e se, por isso, o despacho que o reputou inapto às finalidades da instrução — e o rejeitou — violou o regime dos arts. 286.º/287.º do CPP.
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2.2. O despacho recorrido, no segmento que nos importa, tem o seguinte teor: (transcrição) (…) Nos presentes autos foi deduzida acusação em Processo Comum Singular contra os arguidos AA e BB. imputando ao primeiro arguido a prática, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153° e 155°, nº l, als. a) e c), com referência ao artigo 132°, n°2, al. 1), todos do Código Penal, de um crime de atentado contra a liberdade de programação e informação, previsto e punido pelo artigo 74°, nº l da Lei nº 27/2007, de 30 de julho, na versão actualizada dada pela Lei nº74/2020, de 19 de novembro, e de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86°, nº l, als. e) e d) por referência aos artigos 2°, nº l, als. p), q) a e) e az) e nºs, al. g), 3°, nº 4, al. a), 2°, nº 3, al. p) e 3°, nº l, todos da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, e pelo segundo arguido a pratica, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153° e 155°, nº l, als. a) e c), com referência ao artigo 132º, nº 2, al. 1), todos do Código Penal e de um crime de atentado contra a liberdade de programação e informação, previsto e punido e pelo artigo 74°, nº l da Lei nº 27/2007, de 30 de julho, na versão actualizada dada pela Lei nº74/2020, de 19 de novembro. Regularmente notificados vieram os arguidos requerer a abertura de instrução, com os fundamentos constantes de fls. 302 a 308, 649 a 658 e 660 a 675 dos autos, que aqui se dão por reproduzidos e, em síntese, apresentando a sua contraversão dos factos. O Tribunal é competente e os arguidos têm legitimidade processual para requerer a abertura de instrução sendo o requerimento de cada um tempestivo. Estabelece o artigo 287º, nº l, al. a) do Código de Processo Penal que "a abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação". Refere o nº 2 do citado preceito que o "requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n. º 3 do artigo 283º". A instrução é uma fase facultativa de algumas formas de processo criminal, cuja abertura depende de requerimento que pode ser formulado apenas por determinados sujeitos processuais e nas circunstâncias legalmente previstas. Conforme refere o artigo 286º do Código de Processo Penal a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito. O âmbito desta discussão é, assim, limitado pelo objectivo que a lei estabelece para esta e discussão. Na fase de instrução está em causa, ao que nos interessa no caso vertente, a comprovação da objectiva legalidade da acusação, pela verificação da reunião de material probatório demonstrativo da existência de crime e do seu autor e pela formulação do juízo de prognose de forte probabilidade de condenação do arguido suspeito. Trata-se, assim, de verificar se se confirma o acerto da decisão de acusar, se a acusação é a decorrência lógica dos elementos recolhidos no inquérito e aí analisados pelo Ministério Público. Tal comprovação só pode realizar-se sob o horizonte do conjunto de razões de facto e de direito de discordância em relação à decisão do Ministério Público, vertidas no requerimento de abertura de instrução apresentado e a sua finalidade é a realização de um juízo sobre se se verificam os pressupostos legais para a submissão, ou não, da causa, ou uma sua parte a julgamento - neste sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29 de Janeiro de 2014, Juíza Desembargadora Relatora, Maria do Carmo Silva Dias, processo 1878/11.8 T AMAI.PI, espelhando o entendimento de Pedro Anjos Frias, na Revista Julgar n.º 19 (Janeiro - Abril de 2013) no artigo intitulado "Um olhar destapado sobre o conceito de inadmissibilidade legal da instrução". Assim, no requerimento de abertura de instrução, terá de ser exposto um conjunto de razões que espelhe o desacerto do juízo indiciário que foi consequente na decisão de deduzir acusação, isto é, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ( ... ), bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito (...), de harmonia com o disposto no artigo 287°, n.º 2 do Código de Processo Penal. Conforme referido no supra citado acórdão a apresentar, v.g., uma mera versão ou contraversão factual - ainda que espelho de uma intenção verosímil alheada do inquérito, do que neste se passou e da decisão com que o mesmo findou obstaculiza-se a concretização da actividade de e comprovação judicial da decisão em acusar cuja materialidade é conformada pelo disposto no artigo 288.º, n. 4 do Código de Processo Penal que, justamente, remete para o supra citado n. 2 do artigo 287.º do mesmo diploma legal. Assim, em resumo, o arguido terá que, para provar que a decisão de acusar foi errada, pôr em causa o juízo indiciário. Não basta, nesta fase, contestar a acusação, sendo necessário atacar os elementos factuais recolhidos no inquérito que fundaram a acusação, ou atacar a validade de tais meios de prova ou a análise que o Ministério Público fez de tais meios de prova. O requerimento, como já referido, não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283°, n.º 3, ais. b) e c), do Código de Processo Penal. Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29/01/2014, relatora Maria do e Carmo Silva Dias, in www.dgsi.pt., (embora em transcrição da decisão recorrida): "não valem como repositórios de razões de discordância aqueles requerimentos oferecidos pelo arguido cujo conteúdo consista ou se limite: - A apresentar uma mera versão ou contraversão factual - ainda que espelho de uma intenção verosímil - totalmente alheada do inquérito, do que neste se passou e da decisão com que o mesmo findou (contestação motivada); -A repetir ou a completar o inquérito; - A negar os factos vertidos na acusação pública, como a sua autoria, participação, etc. (simples contestação); - A invocar factualidade nova trazida para dentro do processo apenas por meio do requerimento para a instrução (aliás, em flagrante violação do principio da lealdade sempre e quando: se garantiu ao arguido a sua audição e este nada disse nesse momento ou posteriormente (i); ou sempre que a existência ou possibilidade de constatação de tal factualidade "'nova" fosse notória a todas as luzes para qualquer decisor no momento do encerramento do inquérito, ou seja, que com ela pudesse e devesse contar (ii); -A pretender antecipar a fase do julgamento, isto é, a pretender realizar na instrução tudo o que é típico (próprio) do julgamento, transformando-a num simulacro de julgamento; - A pretender substituir a ideia matriz da comprovação preordenada à submissão ou não a julgamento do arguido por toda uma outra ideia que se concretize em apreciar se o arguido deve ou não ser condenado pelo crime que lhe é imputado. O objecto da comprovação tem que ser concreta e especificadamente enunciado ou definido no/pelo requerimento do sujeito processual nela interessado, por força da conjugação do nº 2 do artigo 287º com o nº 4 do artigo 288º ambos do Código de Processo Penal. Assim, (...) sem exposição de razões de discordância com a natureza e recortes definidos obstaculiza-se a concretização da actividade de comprovação judicial da decisão em acusar. ". No caso vertente e após análise do requerimento de abertura de instrução apresentado por cada um dos arguidos requerente de instrução e constantes de fls. 649 a 658 e 660 a 675 dos autos considera-se que não foi dado cumprimento ao imperativo legal supra enunciado, porquanto o que cada um dos referidos requerimentos evidencia é a impugnação dos factos constantes da acusação. Ora, a instrução visa a comprovação da decisão de acusar (ao que nos interessa no caso vertente) em ordem a submeter ou não a causa a julgamento e não se confunde, por isso, mesmo com a fase de julgamento nem com a contestação a deduzir em tal fase. Ademais a fase de instrução tem de proporcionar de acordo com o artigo 286° do Código de Processo Penal uma verdadeira alternativa ao Juiz de instrução, ou seja, a alternativa de acordo com as regras legais de submeter ou não a causa a julgamento sendo essa a consequência da comprovação judicial a efectuar. Não sendo esta fase uma antecipação de julgamento, impugnar factos e apresentar uma contraversão alheada da globalidade do inquérito e da decisão que o encerrou é, em bom rigor, contestar a acusação e não uma discordância crítica que se subsuma ao disposto no n.º 2 do artigo 287º do Código de Processo Penal, não reclamando, por isso, a prossecução da actividade judicial de comprovação da decisão, in casu, de acusar. Um requerimento de abertura de instrução nos termos em que foi apresentado por cada um dos arguidos não serve as finalidades da instrução. Servirá, como já referido, as finalidades do julgamento: o arguido impugna os factos e haverá que se fazer prova dos factos descritos na acusação em julgamento, apresenta uma contraversão, pelo que o meio a tanto indicado é a contestação prevista no artigo 315° do Código de Processo Penal. As finalidades da instrução são bem diversas das do julgamento, e o requerimento apresentado por cada um dos arguidos contraria as finalidades desta fase facultativa e de objecto (de)limitado. Recorre-se mais uma vez à decisão recorrida e objecto do referido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29/01/2014, com o qual se concorda: "Assim, se o RAI apresentado pelo arguido não tem aptidão para fundar e firmar as finalidades da instrução, deve ser rejeitado, pois que, o mesmo é dizer, com e em tais condições não pode haver lugar à instrução e esta é legalmente inadmissível (...) Assim se respeitará, de um lado, a natureza da fase de instrução, de outro, a celeridade processual, de outro ainda, a proibição da prática de actos inúteis e, por último, acentuar-se-á o princípio da auto responsabilização do sujeito processual arguido". Assim, e pelos fundamentos expostos, entende-se que o requerimento de abertura de instrução nos termos em que foi apresentado por cada um dos arguidos é legalmente inadmissível. Em face do exposto, rejeito o requerimento de abertura de instrução apresentado nestes autos pelos arguidos AA e BB. com fundamento na sua inadmissibilidade legal, de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 286.º, n. 1 e 287º, n.º 2, a contrario sensu, e nº 3, ambos do Código de Processo Penal. (…)
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3. Decidindo
3.1. Recurso do arguido AA
3.1.1. Saber se, apesar de a 1.ª instância apenas ter rejeitado a instrução por inadmissibilidade (art. 287.º, n.º 3, CPP), existia ainda assim dever de decidir o pedido de separação e se o regime do art. 379.º, n.º 1, al. c), CPP é aplicável a este despacho
O art. 32.º da CRP (Constituição da República Portuguesa) estrutura o processo penal em torno da presunção de inocência e do contraditório, mas não confere um direito fundamental a que todo e qualquer requerimento interlocutório seja conhecido em determinado acto processual; o art. 20.º CRP (tutela jurisdicional efectiva) garante acesso e decisão em prazo razoável, sem impor cronologias rígidas contrárias à economia processual e ao princípio do juiz natural. A fase de instrução é garantia de controlo jurisdicional da decisão de acusar/arquivar (CPP, art. 286.º, n.º 1), não sucedâneo de julgamento nem “janela obrigatória” para resolver incidentes cuja utilidade depende da existência dessa fase. O quadro constitucional exige uma leitura funcional: o JIC conhece do que integra o objecto da instrução; extinta/recusada a sua abertura por inadmissibilidade legal, o respectivo acto decisório não se transforma em plataforma de decisão sobre todos os incidentes imagináveis. A tese do recorrente confunde direitos de defesa com calendarização obrigatória de incidentes, produzindo um direito subjectivo à oportunidade. A resposta do MP no processo sublinhou precisamente que a instrução não pode ter “como fim único a decisão sobre separação”, por não se inserir nas suas finalidades (cfr. art. 287.º do CPP).
A instrução visa comprovar judicialmente a decisão de acusar/arquivar (CPP, art. 286.º, n.º 1). O RAI (requerimento de abertura de Instrução) do arguido deve conter razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação (art. 287.º, n.º 2). A lei permite rejeição por inadmissibilidade legal (art. 287.º, n.º 3) quando o requerimento não serve as finalidades da fase — v.g., in casu, quando configura mera “contestação” (reserva da fase de julgamento). No caso, o despacho recorrido rejeitou os RAI (requerimento de abertura de Instrução) de ambos os arguidos nessa base, invocando jurisprudência que legitima a rejeição quando não há ataque minimamente estruturado ao juízo indiciário. Isto delimita o objecto do acto decisório: conhecer da admissibilidade da instrução. Não cabe, nesse mesmo acto e após a rejeição, decidir incidentes cuja utilidade dependia, na própria formulação do recorrente, do prosseguimento da instrução (“ainda que não fosse deferida a instrução” — pedido apresentado, mas ligado ao iter instrutório).
O art. 30.º do CPP (Código de Processo Penal) estabelece que o tribunal “faz cessar a conexão” (separação) a requerimento do MP, arguido, assistente ou lesado, com critério de boa administração da justiça, incluindo o “interesse poderoso e atendível”. A competência funcional para decidir varia com a fase e o juiz competente nessa fase (art. 268.º, n.º 1, al. f) do CPP). Nada no art. 30.º do CPP (Código de Processo Penal) fixa a instrução como momento preclusivo: a separação pode ser conhecida na fase própria por quem dirige a tramitação (JIC enquanto exista instrução; juiz de julgamento uma vez remetidos os autos ao tribunal de julgamento). O argumento do recorrente de que a instrução seria a “última oportunidade processualmente azada” não tem cobertura normativa: é afirmação conclusiva, não regra de preclusão. O próprio texto recursório reconhece tratar-se de matéria instrumental — apreciação que, por natureza, é tipicamente situada na proximidade do julgamento, quando o juiz do julgamento domina a arquitectura probatória e a economia do processo.
O processo penal conhece um regime taxativo de nulidades (CPP, arts. 118.º–123.º). As nulidades da sentença (CPP, art. 379.º) têm sede própria e pressupõem um acto decisório da natureza da Sentença — i.e., que conheça de mérito com os requisitos do art. 374.º do CPP (Código de Processo Penal). A extensão por analogia do catálogo do art. 379.º a despachos interlocutórios afronta o princípio da legalidade processual e o carácter taxativo dos vícios; onde o legislador quis prever nulidades de despachos, fê-lo expressamente (v.g., arts. 120.º e 121.º do CPP (Código de Processo Penal)) e, para o mais, opera a disciplina das irregularidades (art. 123.º). A tentativa recursória de “importar” o art. 379.º do CPP via art. 4.º do CPP mais artº. 613.º, n.º 3 do CPC carece de fundamentação legal: a remissão subsidiária do CPC só ocorre “em tudo o que não for especialmente regulado”, e aqui há regulação especial penal; além disso, a transposição ampliativa de nulidades em desfavor da certeza processual é conceptualmente restrita.
A nulidade por omissão de pronúncia, mesmo na sua base natural (sentença), requer a verificação cumulativa de: (a) existência de questão juridicamente relevante submetida à apreciação; (b) dever de a apreciar no acto decisório em causa; (c) omissão total (não simples discordância quanto ao sentido). Ora, no caso, decidido que “não há lugar a instrução” por inadmissibilidade legal, o acto decisório ficou limitado a esse thema decidendum. O pedido de separação — embora articulado no RAI — não condicionava o juízo de admissibilidade; a sua utilidade foi desenhada pelo próprio recorrente para um cenário em que a instrução viesse a existir. Logo, faltou o requisito (b): não havia dever de apreciar no mesmo acto uma pretensão instrumental prejudicada pela rejeição. Daqui não emerge qualquer omissão.
Uma vez rejeitado o RAI (requerimento de abertura de Instrução) por inadmissibilidade legal, cessa a necessidade e a própria possibilidade jurídica de desenvolvimento de actos instrutórios; o JIC expende, com esse despacho, o seu poder de direcção na fase. A separação pedida pode ser de novo colocada ao tribunal competente quando os autos prossigam para julgamento. Falar em “dever residual” do JIC para decidir algo que já não serve a fase recusada equivaleria a transformar o despacho de rejeição em despacho instrumental que arrasta incidentes avulsos desconexos do objecto decidido. A economia do CPP (Código de Processo Penal) rejeita actos inúteis e reafirma a natureza instrumental das decisões interlocutórias.
O recurso insiste que a instrução é a “última oportunidade processualmente azada” para requerer separação antes do julgamento. Não há, porém, qualquer dispositivo que estabeleça tal preclusão; o art. 30.º CPP não delimita janelas estanques por fase, e deve ser visto na separação uma ferramenta de gestão da conexão em função da boa administração da justiça. A utilidade da separação é típica do momento em que se perspectiva a audiência e a ordenação da prova, tarefa do juiz de julgamento. O próprio texto do recurso revela que o pedido de separação foi colocado em posição subsidiária à abertura de instrução (“ainda que assim não se entenda”), confirmando que a sua ligação orgânica era ao eventual desenvolvimento da fase instrutória. Daí não nasce preclusão, mas antes prejudicialidade: rejeitada a instrução, fica prejudicada a apreciação naquele acto.
O art. 379.º, n.º 1, al. c) do CPP, diz respeito à sentença (CRP 32.º mais CPP 374.º/379.º). Não se confunde sentença com despacho que rejeita a instrução por inadmissibilidade legal; não há decisão de mérito, não há julgamento de factos, não há estruturação de “questões” nos termos do art. 374.º do CPP (Código de Processo Penal). É, pois, de rejeitar a expansão do 379.º a actos que não são sentença, em concordância à taxatividade (arts. 118.º–123.º) e para evitar “nulidades por contágio”. A tese recursória, que invoca o 613.º, n.º 3, CPC (aplicável ex vi art. 4.º CPP) para erguer um suposto “princípio geral de dever de pronúncia sancionado com nulidade” é, além de circular, errática: a cominação processual em processo penal não se constrói por transposição automática de regras civis onde o legislador penal já tipificou.
Admitindo por mera hipótese que o não conhecimento imediato do pedido de separação fosse censurável, tal vício nunca teria a natureza de “nulidade da sentença” (inaplicável), mas, no limite, a de irregularidade (CPP, art. 123.º), dependente de arguição tempestiva “logo que o interessado dela tenha conhecimento” e a sanar por falta de arguição. No caso, a arguição foi feita no próprio recurso; ainda assim, a prevalência da utilidade processual imporia que, ao invés de anular um despacho correcto na sua ratio, este Tribunal ad quem, se entendesse necessário, remetesse a questão para decisão autónoma pela 1.ª instância ou pelo tribunal de julgamento, sem tocar na rejeição do RAI (requerimento de abertura de Instrução). É, porém, a leitura menos exigente: o direito aplicável não impõe sequer conhecer de tal irregularidade quando o incidente ficou prejudicado.
As garantias de defesa não se fragilizam por a separação não ter sido conhecida no mesmo acto que rejeitou o RAI (requerimento de abertura de Instrução). Primeiro, porque o arguido conserva a faculdade de suscitar a questão perante o tribunal competente em momento útil (designadamente, no despacho saneador do julgamento, quando o juiz pondera organização e conexão). Segundo, porque a alegada “contaminação” valorativa é risco que o ordenamento enfrenta com outras ferramentas: delimitação do objecto de prova, separação de julgamentos por razões probatórias quando pertinente, estruturação do processo em fases, regime de prova por conexão. Terceiro, porque a tutela jurisdicional efectiva não confere direito a um “tempo” específico de decisão, antes a uma decisão adequada e útil.
O despacho recorrido cingiu-se à admissibilidade dos RAI: examinou a finalidade legal da instrução, confrontou o teor dos requerimentos com essa finalidade e, ante a natureza “contestatória” dos mesmos, rejeitou-os por inadmissibilidade legal. Nada na estrutura ou dispositivo implicava dever de decidir mais além. Exigir que o JIC, depois de negar a abertura de uma fase, passe a decidir um incidente desenhado para essa fase é exigir que pratique um acto hipotético, inútil e potencialmente gerador de decisões contraditórias nas fases subsequentes. Daí que a imputação de omissão, como vício, falhe.
Conclui-se que: a) não existia dever jurídico de o JIC decidir, no mesmo acto que rejeitou a instrução por inadmissibilidade legal (CPP, art. 287.º, n.º 3), o pedido de separação; b) a não apreciação, nesse contexto, não constitui nulidade do art. 379.º, n.º 1, al. c), inaplicável a despachos; c) ainda que se entendesse existir censurabilidade, o vício seria, tout au plus, irregular (CPP, art. 123.º), sem aptidão para anular o despacho; d) a separação pode e deve ser submetida ao tribunal competente em momento processualmente útil, sem prejuízo das garantias de defesa.
O recurso é, pois, improcedente
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3.2. Recurso do arguido BB
3.2.1. Saber se o requerimento do arguido cumpria o ónus do art. 287.º, n.º 2 do CPP (razões de facto e de direito de discordância quanto ao juízo indiciário), e se, por isso, o despacho que o reputou inapto às finalidades da instrução — e o rejeitou — violou o regime dos arts. 286.º/287.º do CPP.
A instrução tem por finalidade “a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar” (CPP, art. 286.º, n.º 1). O n.º 2 do art. 287.º fixa o conteúdo mínimo do RAI (requerimento de abertura de Instrução): razões de facto e de direito de discordância face à acusação; quando requerido pelo arguido, deve também delimitar o objecto a comprovar e, se for caso disso, indicar actos de instrução e meios de prova (art. 288.º, n.º 4).
O RAI (requerimento de abertura de Instrução) não é “contestação” nem reedição de julgamento; exige impugnação crítica do juízo indiciário, não mera contraversão factual. Assim, se o RAI (requerimento de abertura de Instrução) não tem aptidão para servir as finalidades da fase, deve ser rejeitado por inadmissibilidade legal, sob pena de se praticarem actos inúteis e desvirtuar a economia processual. O texto decisório sublinha que “não basta contestar”, sendo “necessário atacar os elementos factuais recolhidos no inquérito (…) ou a análise que o MP fez desses meios de prova”.
O despacho, após recapitular a finalidade da instrução, enuncia que os requerimentos “impugnam os factos constantes da acusação”, apresentando “contraversões” alheadas do inquérito e da decisão que o encerrou; logo, “servirão ao julgamento”, não à instrução. Por isso, “com tais condições não pode haver lugar à instrução e esta é legalmente inadmissível”, aplicando os arts. 286.º, n.º 1, e 287.º, n.º 2 (a contrario), e n.º 3.
“Razões de facto e de direito” não significam manifesto de mérito; significam crítica ao juízo indiciário da acusação: apontar lacunas, contradições, insuficiências de inferência ou erros de qualificação com base no acervo indiciário. Do ponto de vista metodológico, a discordância crítica: i) identifica os concretos indícios que não suportam os elementos típicos; ii) explica por que a inferência (v.g. dolo) é não-conclusiva à luz de máximas de experiência; iii) delimita o objecto a comprovar e, se necessário, propõe actos de instrução pertinentes. A “contestação” limita-se a recontar factos de forma alternativa, a retirar conclusões próprias, ou a clamar por reavaliação ampla da prova para absolvição — tarefas reservadas ao julgamento. O despacho recorrido assenta precisamente nesta distinção, que a resposta do MP e do assistente igualmente sublinham ao qualificar os RAI como “meros articulados contestatórios, sem densidade crítica indiciária”.
O arguido afirma ter: (a) questionado o dolo (“quis e conseguiu” como chavão acusatório); (b) invocado a cronologia dos “posts” (após a reportagem); (c) salientado a ausência de nome do jornalista/peça/meio; (d) suscitado a natureza público/semi-pública das ameaças. Porém, a sua própria narrativa revela que estas são afirmações conclusivas sobre prova e qualificação — sem sustentação em “indícios concretos” do inquérito que seriam logicamente insuficientes — e sem enunciação de actos de instrução dirigidos a suprir uma específica dúvida indiciária. O RAI (requerimento de abertura de Instrução) não reconstrói a base indiciária, não individualiza meios de prova a infirmar e não delimita um objecto de comprovação autónomo; pede, em substância, um reexame global (“contestação”) do mérito da acusação. É precisamente esta insuficiência que a decisão recorrida assinala.
Dizer que a acusação usou o chavão “quis e conseguiu” não basta; o referido n.º 2 do artº. 287º do CPP reclama que se identifique a cadeia indiciária de onde o MP infere o dolo e que se mostre, com base em experiência/ciência, a sua insuficiência. O despacho recorrido recorda que “é necessário atacar os elementos factuais recolhidos no inquérito (…) ou a análise que o MP fez desses meios de prova”; o RAI não o faz: não aponta, p. ex., contradições entre depoimentos, falhas de causalidade entre publicações e efeitos, ou contextos que inviabilizem a inferência. A discordância apresentada é típica de debate probatório em audiência, não de impugnação indiciária da instrução. Daí a qualificação como “contestação” e a rejeição por inadmissibilidade.
Argumentar que os “posts” são posteriores à reportagem e não a impediram, ou que não referem nomes, é ainda disputar tipicidade/teleologia do crime, não apontar uma falha indiciária intrínseca (v.g., inexistem indícios A, B, C; ou eles são logicamente inadequados). O referido n.º 2 não se cumpre com a invocação de teses absolutórias; cumpre-se com a demonstração de que os indícios recolhidos não suportam os elementos típicos, ou com a proposta de actos de instrução para clarificar zonas cinzentas. A resposta do assistente nota, justamente, que os RAI “nada atacam concretamente” na base probatória da acusação, limitando-se a repetir posições de mérito (“não integra”, “não visou impedir”), próprias da fase de julgamento.
Mesmo admitindo que o RAI (requerimento de abertura de Instrução) suscitou uma questão jurídico-material relevante (natureza pública/semi-pública), isso, isoladamente, não basta para cumprir o referido n.º 2 quando o requerimento não fundamenta a crítica indiciária e não delimita um objecto de comprovação. O despacho não tinha de “resolver o mérito” para aferir a aptidão do RAI (requerimento de abertura de Instrução): a verificação do ónus é prévia e funcional. A resposta do assistente sublinha que os requerimentos eram mera contestação disfarçada, sem densidade crítica e rebateu a leitura do recorrente; mas, para o tema presente, basta constatar que o RAI não estruturou a impugnação do juízo indiciário nos termos exigidos. A idoneidade instrutória estava, pois, ausente.
É recorrente a retórica de que a instrução é “garantia” e, portanto, de acesso amplo. A resposta é dupla: (i) é garantia instrumental de controlo, não julgamento paralelo; (ii) o legislador condiciona o exercício ao cumprimento de ónus mínimos, sob pena de actos inúteis. A resposta do assistente e do MP reconduzem o tema à letra do 287.º, n.º 3 do CPP: a fase não é absoluta e admite rejeição quando o requerimento não serve as suas finalidades. O despacho recorrido alinha com esta lógica.
O texto recursório refere a fundamentação da discordância quanto à apreciação da matéria factual e das ilações de direito. Porém, a forma como o faz é sintomática de “contestação”: invoca insuficiência de prova de dolo, discute tipicidade e cronologia, mas não mostra porque os indícios X, Y, Z não sustentam os elementos típicos A, B, C; não identifica fragilidades da base indiciária; não propõe actos instrutórios específicos para clarificar um ponto decisivo (v.g., ouvir testemunha que infirmaria um nexo causal). A exigência de que o RAI (requerimento de abertura de Instrução) delimite o objecto a comprovar não é mera retórica: protege o juiz de instrução do desvio para julgamento antecipado.
Cumpre o ónus quem: (i) identifica os pontos indiciários nucleares da acusação e mostra a sua insuficiência/incoerência; (ii) sustenta a crítica em máximas de experiência ou regras científicas; (iii) delimita objecto e, se necessário, pede diligências pertinentes; (iv) não convida a uma reapreciação global da prova. Incumpre quem: (a) reescreve os factos sem atacar a base indiciária; (b) formula teses absolutórias sem crítica metódica; (c) usa a instrução como “julgamento”. À luz destes critérios, o RAI (requerimento de abertura de Instrução) do arguido situa-se em outro quadro processual, como referenciado pela 1.ª instância. Não há, pois, violação dos arts. 286.º/287.º do CPP no despacho recorrido.
Conclui-se que o RAI é inadmissível por incumprimento do art. 287.º, n.º 2 do CPP, mantendo-se integralmente o despacho recorrido.
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IV – DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento aos recursos interpostos pelos arguidos e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
Fixo de taxa de justiça a cargo de cada um dos arguidos/recorrentes a quantia de 4 Ucs.
Lisboa e Tribunal da Relação, 03-12-2025,
Alfredo Costa
João Bártolo
Cristina Almeida e Sousa Processado e revisto pelo relator (artº 94º, nº 2 do CPP).
O relator escreve de acordo com a anterior grafia