RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
INADMISSIBILIDADE
Sumário

(da responsabilidade da Relatora)
I. Para que seja excepcionalmente admitido, no quadro normativo previsto pelo nº 2 do artº 75º do RJCOE, aprovado pelo Dec. L. nº 9/2021, de 29.01, recurso de decisão proferida no âmbito de procedimento de natureza contra-ordenacional, tem que sobre a pretensão recursiva poder formular-se juízo de manifesta necessidade para (i). a melhoria da aplicação do direito ou para (ii). a promoção da uniformidade da jurisprudência.
II. Se no requerimento apresentado para os efeitos previstos pelo nº 2 do artº 74º do RGCO, aplicável ex vi do preceituado no artº 79º do RJCOE, que não vise a uniformização de jurisprudência, não se identificar, naquelas que constituem as concretas razões que ditam, na perspectiva do arguido, a admissibilidade excepcional do recurso que pretende ver introduzido, qualquer questão de direito que, por controversa, se apresente carecida de esclarecimento, e com relevância que, ultrapassando a dimensão dos autos, se mostre passível de alavancar solução de aplicação generalizada a casos semelhantes ou de aproximado recorte, com inerente melhoria na aplicação do direito, não é o mesmo de admitir.
III. As razões para a admissibilidade excepcional do recurso hão-de corresponder aos fundamentos do próprio recurso, que desse limite não podem exorbitar, sob pena de, sem que se mostre verificado o condicionalismo previsto pelo nº 1 do artº 75º do RJCOE, se instrumentalizar o acesso permitido, a coberto do nº 2, à finalidade de impugnação ampla e generalizada das decisões.
IV. Ocorrendo esse excesso, e mesmo que o recurso seja de admitir, nunca ficará franqueada a possibilidade de apreciação de questões que, extravasando das razões fundamentadoras da sua excepcionalidade, não tenham com estas correspondência e/ou a elas não se associem consequencialmente.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: ---

I. RELATÓRIO
[1].
Por decisão proferida no âmbito de procedimento de natureza contra-ordenacional que correu termos perante a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica [ASAE], proferiu esta entidade decisão, por via da qual condenou a sociedade ..., com NIPC 514 754 800 e sede no concelho de Oeiras, no pagamento de coima no valor de € 2.000,00, pela prática de infracção p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs 5º do Regulamento (CE) nº 852/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril de 2004, 6º, nº 1, al. b) do Dec. L. nº 113/2006, de 12.06, e 18º, al. b), subalínea ii) do Regime Jurídico das Contraordenações Económicas [RJCOE], aprovado pelo Dec. L. nº 9/2021, de 29.01. ---
Em reacção à decisão administrativa que a visou, apresentou-se a identificada sociedade a dela interpor recurso de impugnação. ---
Remetidos os autos a juízo, foi a impugnação admitida e, realizada audiência de julgamento, proferida, aos ........2025, sentença, que, desatendendo as razões de discordância manifestadas, confirmou, na sua íntegra, a decisão administrativa. ---
[2].
a).
Com essa sentença inconformada, apresentou-se a sociedade a dela interpor recurso para este Tribunal da Relação, que fez anteceder, a título de “Questão Prévia”, de requerimento no qual expôs, nos termos que passam a transcrever-se, as razões que entende fundamentarem, de modo enquadrado na previsão do nº 2 do artº 75º do RJCOE, a sua admissibilidade: ---
A coima aplicada nestes autos é de 2000 EURO, ficando, por força do disposto no n.º 1 do art. 75.º do RJCOE, precludida a possibilidade de à Arguida recorrer a esse Venerando Tribunal. No entanto,
Conforme estatui o n.º 2 do art. 75.º do RJCOE, «para além dos casos enunciados no número anterior, pode o Tribunal da Relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência».
Norma que é decalcada do n.º 2 do artigo 73.º do Regime Geral das Contra-Ordenações.
Conforme defende António Beça Pereira a propósito da correspondente norma constante do Artº 73º/2 do DL 433/82 de 27/10 (RGCO), nestes casos, “para além do recurso propriamente dito, há um requerimento prévio no qual se terão que alegar factos demonstrativos da manifesta necessidade de melhorar a apreciação do direito ou de promover a uniformidade da jurisprudência” (Regime Geral das Contraordenações e Coimas, 10ª edº, 213).
E, neste mesmo sentido, veja-se o Aresto do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, proferido a 11/12/2023 (Proc. n.º 6462/23.0T8SNT.L1-4), segundo o qual «(…) recurso excecional previsto no artº 49º, nº 2, da Lei nº 107/2009, de 14.09 (igual ao art. 73.º, n.º 2 do RGCO e art. 75.º, n.º 2 do RJCOE), pressupõe que, independentemente da indicação desta norma no respetivo requerimento de interposição, o arguido ou o Ministério Público aleguem em concreto as razões da necessidade de melhoria da aplicação do direito e da promoção da uniformidade da jurisprudência» 1 São exemplos o Proc.º 562/17.3T8LSB, Proc.º 1694/16.0T8LSB, Proc.º 131/16.5T8VCT. (disponível em www.dgsi.pt).
Assim, nesta fase prévia não se trata de aquilatar do bem ou mal fundado da decisão recorrida, mas sim da manifesta necessidade de melhorar a aplicação do direito ou de promover a uniformização jurisprudencial.
Da literalidade da norma que exceciona o direito ao recurso decorre a necessidade de alegação e convencimento de que o mesmo é, não só necessário, mas manifestamente necessário quer à melhoria da aplicação do direito, quer à promoção da uniformidade da jurisprudência.
O conceito de manifesta melhoria da aplicação do direito destina-se “a tutelar interesses de ordem pública, da estabilidade da aplicação da lei ou da igualdade dos cidadãos que poderiam ser afetados nos casos em que a decisão não satisfizesse alguma das condições previstas no nº 1” (Abrantes Geraldes, Recursos no Processo de Trabalho, Novo Regime, 2010, 169 e 170).
O Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, em acórdão proferido em 09/12/2010 (Proc. n.º 51/10.7 TTMR.C1) decidiu que “deve entender-se que só se observa a referida manifesta necessidade quando da decisão impugnada se observe um erro jurídico grosseiro, incomum, uma errónea aplicação do direito bem visível, assim não sucedendo perante uma mera discordância quanto à aplicação do direito” (consulado em www.dgsi.pt).
Por sua vez, o Venerando Tribunal da Relação do Porto (Proc. n.º 426/11.4TTBGC.P1), decidiu já que “a admissibilidade de recurso para melhoria da aplicação do direito, nos termos do Artº 49º/2 da Lei 107/2009 de 14/09, depende da existência da manifesta necessidade de prevenir solução jurídica evidentemente grosseira, errada, indigna ou que comporte efeitos particularmente graves” (disponível em www.dgsi.pt).
O mesmo Venerando Tribunal da Relação, em Acórdão proferido a 19/12/2023 (Proc. n.º 21975/22.3T8PRT.P1), concluiu que: «O recurso é “manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito”, nos termos do artigo 49.º, n.º 2, da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, quando da decisão impugnada se observe um erro jurídico grosseiro, incomum, uma errónea aplicação do direito bem visível, não se destinando, pois, a corrigir eventuais erros de julgamento. // II – A “melhoria da aplicação do direito” pressupõe que se esteja perante uma questão “que seja manifestamente complexa, de difícil resolução, na doutrina e na jurisprudência, e cuja subsunção jurídica imponha um importante e detalhado exercício de exegese, com o objetivo de se vir a obter um consenso quanto à provável interpretação das normas à mesma aplicáveis”, ou seja, uma questão que apresente uma dignidade ou importância que extravase o caso concreto» (disponível em www.dgsi.pt).
Volvendo ao caso dos autos, o que está em causa é uma decisão que padece de erro jurídico grosseiro, incomum, uma errónea aplicação do direito bem visível, na medida em que julgou como provado factos respeitantes ao tipo subjetivo do ilícito omissos da decisão administrativa, o que consubstancia numa alteração substancial dos factos ou, para ser mais rigoroso, adita factos para que a conduta da arguida passe a ser qualificada como ilícito contra-ordenacional, quando o não era.
Em concreto, o tribunal deu como provado que “4) O Recorrente sabia, previu e aceitou a realização dos factos ilícitos, na medida em que sabia que estava obrigado a implementar um processo permanente baseado nos princípios do HACCP no seu estabelecimento, optando por não o fazer e conformando-se com o resultado daí adveniente”.
E compulsada a decisão administrativa, este facto não foi provado, nem outro de conteúdo similar (vd. págs. 3 a 7 da decisão administrativa).
Mais grave,
Foi o tribunal ter julgado como provado que: «3) Não se criou um processo que identificasse quaisquer perigos que devam ser evitados, eliminados ou reduzidos para níveis aceitáveis, quais os pontos críticos de controlo na fase ou fases em que o controlo é essencial para evitar ou eliminar um risco ou para o reduzir para níveis aceitáveis, não se estabeleceram limites críticos em pontos críticos de controlo, que separem a aceitabilidade da não aceitabilidade com vista à prevenção, eliminação ou redução dos riscos identificados, não foram estabelecidos ou aplicados processos eficazes de vigilância em pontos críticos de controlo, nem medidas correctivas quando a vigilância indicar que um ponto crítico de controlo não se encontra sob controlo, nem processos, a efectuar regularmente, para verificar que as medidas antes elencadas funcionam eficazmente e elaboração de documentos e registos adequados à natureza e dimensão das empresas, a fim de demonstrar a aplicação eficaz das medidas referidas»
Nada disto vem como provado na decisão administrativa.
Donde,
Conforme decidiu o Venerando Tribunal da Relação do Porto, em Acórdão proferido a 24/02/2021 (Proc. n.º 4701/17.6T9AVR.P2), «É, no entanto, pacífico que uma nova contraordenação carecerá de ser primeiramente apreciada pelo ente administrativo com competência para tanto e que a proibição da “reformatio in pejus” (artigo 72º-A, 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações) não permite uma alteração de factos que implique a aplicação de uma coima maior – e, no limite, que uma situação de facto descrita na decisão administrativa que não integre, verdadeiramente, qualquer contraordenação, possa sofrer uma alteração factual que a faça constituir responsabilidade contraordenacional» (sublinhado e realces nosso – disponível em www.dgsi.pt).
Foi precisamente ao arrepio desta doutrina que o Tribunal a quo decidiu.
Ainda assim, citando o mesmo Acórdão, a situação sub judice pode ser enquadrada na contenda jurisprudencial que «(…) não são unívocas quanto à aplicação do regime do processo penal respeitante à alteração dos factos da acusação, havendo quem sustente que a especificidade do processo contraordenacional não permite aplicar, diretamente e em toda a sua extensão, o disposto nos artigos 379.º e 358.º do Código de Processo Penal; porém, são consensuais ao entender que não pode haver condenação (decisão judicial) por factos diversos do que a arguida havia sido acusada (decisão administrativa), sem que à mesma tenha sido dada a oportunidade de sobre eles se pronunciar.» (ibidem).
Seja por violação do regime da alteração substancial dos factos, seja por ter introduzido novos factos que antes não eram considerandos ilícitos, para passarem a ser, a decisão impugnada merece censura, incorrendo em erro grosseiro, devendo o recurso ser admitido, o que se requer.”. ---
b).
Seguindo-se ao requerimento mencionado na antecedente alínea a motivação do recurso pretendido ver admitido, foram dela extraídas pela arguida sociedade as seguintes conclusões [transcrição]: ---
A) O recurso interposto deve ser admitido, nos termos do n.º 2 do artigo 75.º do RJCOE, uma vez que a decisão recorrida enferma de erro jurídico grosseiro e incomum, ao ter julgado como provados factos respeitantes ao elemento subjetivo do ilícito que não constavam da decisão administrativa, incorrendo em violação do princípio da vinculação do tribunal à matéria de facto aí fixada.
B) O Tribunal a quo alterou substancialmente os factos que integravam a decisão administrativa, aditando novos elementos – factos 3 e 4 - para fundamentar a existência de infração contraordenacional, o que é vedado pelo regime das contraordenações e contraria a proibição da reformatio in pejus consagrada no artigo 72.º-A, n.º 1, do RGCO.
C) Tal decisão revela uma errónea aplicação do direito, traduzindo-se numa decisão manifestamente desconforme com a jurisprudência consolidada dos tribunais superiores, razão pela qual o presente recurso se mostra manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito e à promoção da uniformidade jurisprudencial, nos termos do artigo 75.º, n.º 2, do RJCOE.
D) Verifica-se, pois, a manifesta necessidade de admissão do presente recurso, por estarem em causa questões de relevância jurídica e doutrinária que extravasam o caso concreto, impondo-se a revogação da decisão recorrida e o reconhecimento da nulidade da mesma por violação dos princípios estruturantes do processo contraordenacional.
E) A Recorrente impugna a sentença recorrida por violação do instituto a alteração substancial do factos, ausência de factos subsumíveis ao tipo subjetivo da infração imputada, o que consubstancia a violação, nomeadamente das normas ínsitas nos artigos 1.º, 2.º, 13.º, 18.º, 24.º, 29.º, n.º 10, 32.º, n.º 10 e 202.º, todos da Constituição da República Portuguesa (“CRP”,) 50.º e 58.º, n.º 1, ambos do RGCO, alínea c) do n.º 1 do art. 6.º do Decreto-Lei n.º 113/2006, de 12 de junho, conjugado com a subalínea ii), alínea b) do art. 18.º e com a alínea a) do n.º 1 do art. 19.º, ambos do anexo ao DL n.º 9/2021, de 29/01, por violação do disposto no artigo 5.º do Regulamento (CE) nº 852/2004, de 29/04, e 14.º do Código Penal (“CP”), de harmonia com o preceituado nos arts. 118.º, 126.º 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alíneas a) e b), ambos do Código de Processo Penal (“CPP”), estes últimos aplicáveis ex vi art. 41º, do RGCO e devendo a mesma revogada, com o consequente arquivamento dos autos.
F) O Tribunal a quo incorreu em erro grosseiro ao julgar provada matéria que não constava da decisão administrativa, designadamente os factos descritos nos pontos 3) e 4) da sentença recorrida, o que consubstancia uma alteração substancial dos factos inicialmente imputados à arguida.
G) A introdução desses novos factos — relativos ao tipo objetivo, conhecimento, previsão e aceitação da ilicitude por parte do Recorrente — configurou uma modificação do objeto do processo, traduzindo-se numa imputação inovadora e distinta, sem que ao arguido tivesse sido dada oportunidade de defesa.
H) Tal atuação viola o disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, aplicável ex vi dos artigos 41.º, n.º 1, e 64.º, n.ºs 4 e 5, do Regime Geral das Contraordenações, determinando a nulidade da sentença por condenação com base em factos diversos dos constantes da decisão administrativa
I) Mesmo admitindo alguma flexibilidade na aplicação dos artigos 358.º e 359.º do CPP ao processo contraordenacional, a jurisprudência e a doutrina são unânimes em reconhecer que não pode haver condenação por factos novos sem prévia comunicação e possibilidade de contraditório, sob pena de violação do princípio do direito de defesa.
J) Verifica-se, assim, a violação do artigo 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa, impondo-se a declaração de nulidade da sentença recorrida, porquanto a mesma assenta em factos não constantes da acusação administrativa nem comunicados ao arguido, cerceando-lhe o exercício efetivo do contraditório.
K) Na decisão administrativa apenas se diz que, na determinação da medida da coima, no ponto 2 – Culpa do Agente, “a) arguido(a) sabia, previu e aceitou a realização dos factos ilícitos, na medida em que sabia que estava obrigado(a) a implementar um processo permanente baseado nos princípios do HACCP no seu estabelecimento, optando por não o fazer e conformando-se com o resultado daí adveniente, atuando assim com dolo eventual.”
L) Mas compulsada a Decisão, nenhum facto foi julgado provado que seja suscetível que ser subsumido ao tipo subjetivo, na modalidade de dolo eventual.
M) No tipo subjetivo de ilícito, necessário ao preenchimento do ilícito imputado – dolo eventual -, conceitualizado, na sua formulação mais geral, como conhecimento e vontade referidos a todos os pressupostos do tipo objetivo, e o dolo da culpa, traduzido na consciência, por parte do arguido, de que com a sua conduta sabe que atua contra direito, com consciência da censurabilidade da conduta.
N) O que nos permite, desde já, afirmar uma inegável evidência: a Decisão ora em crise deveria narrar os factos que pretensamente revelam, ou pelo menos indiciam, o alegado dolo do Arguido
O) No caso dos presentes autos, pura e simplesmente não constam os factos constitutivos do elemento subjetivo do tipo – dolo– com que foi praticada a (alegada) infração.
P) O que determina, pois, a nulidade da Decisão por omissão de elementos de facto–dolo – relativamente à prática das alegadas infrações de que vem acusada a Arguida, por força do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea a) do CPP, aplicável ao caso dos presentes autos ex vi artigo 41.º, n.º 1 do RGCO.
Q) Subsidiariamente, e caso assim não se entenda – o que não se concede -, a Acusação proferida no âmbito dos presentes autos seria sempre irregular, vício que se subsume à previsão legal prevista no artigo 123.º, n.º 2 do CPP, ex vi artigo 41.º do RGCO.
R) Decorre do libelo acusatório, que, alegadamente, no dia .../.../2022, a arguida, exibiu um dossiê, no qual não constava o Plano de HACCP. Sucede que,
S) Não se vislumbra que processo em concreto estaria omisso no momento da fiscalização, constando da Acusação de forma genérica e abstrata o que consta no artigo 5.º do citado Regulamento (CE) n.º 852/2004. Isto porque,
T) Flui da acusação a existência de um dossiê com a informação relevante em matéria de HACCP.
U) A sociedade arguida contratou um profissional liberal, Sr. AA, que se apresentou como alguém que conhecia todos os procedimentos legais a implementar num restaurante, mormente o processo de HACCP.
V) Dito de outro modo, face à confiança que o legal representante da sociedade arguida depositou no Sr. AA, não conjeturou a possibilidade de estar a violar qualquer normativo legal como, ademais, deu expressas instruções para que o quadro legislativo em vigor, mormente em matéria de HACCP fosse plenamente cumprido.
W) Flui do n.º 2 do art. 2.º do RGCO que «as pessoas coletivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções». Ora,
X) o Sr. AA garantiu cumprir o quadro legal em vigor, mormente em matéria de HACCP, e o sócio-gerente da sociedade arguida deu ordens no sentido de tal regime ser cumprido, mesmo antes da abertura do estabelecimento, e o incumprimento do Plano HACCP, ou a sua ausência, foi à revelia das ordens do gerente da sociedade arguida.
Y) Donde, Não poderá, neste enquadramento, a sociedade Arguida ser punida, por força do citado n.º 2 do art. 2.º do RGCO.
Z) Sob outra perspetiva, a verificarem-se os factos alegados na douta Acusação, a sociedade Arguida – naturalmente através dos seus órgãos sociais – ignorava que estaria a incumprir a necessidade de implementar um processo permanente baseado nos princípios HACCP.
AA) Dito de outro modo, a Arguida não tinha consciência de que pudesse estar a violar uma qualquer norma de conteúdo impositivo, proibitivo e sancionado como contra-ordenação.
BB) Aliás, foi a primeira e última vez que a Arguida foi autuada nos termos mencionados, relevando especialmente o facto de esta proibição não ser veiculada em ... pelas autoridades públicas, ou mesmo pela própria ASAE, seja através de meios de divulgação em massa, como a comunicação social (e.g. jornais, rádio ou televisão), seja através das redes sociais (e.g. Facebook).
CC) Em momento anterior à autuação, ao sócio-gerente da Arguida foi garantido, pelo Sr. AA, que a empresa estaria a cumprir integralmente a legislação em vigor, mormente a implementação do HACCP.
DD) A Arguida sempre se pautou pelo cumprimento das regras de Direito, não havendo registos de infrações anteriores, só se apercebendo da alegada ilicitude dos factos com a notificação da Acusação.
EE) Com efeito, um dos princípios basilares do Código Penal e do RGCO é o princípio da culpa (não há pena sem culpa e a culpa decide a medida da pena).
FF) Embora o ilícito de mera ordenação social não tenha por base a formulação de uma censura de tipo ético-pessoal, a opção legislativa tem na sua base fazer valer aqui também o princípio da culpabilidade (nulla poena sine culpa), nos termos do qual toda a sanção contraordenacional tem por base uma culpa concreta.
GG) Ora, estando em causa o desconhecimento duma obrigação legal, existe antes de mais um erro sobre a proibição, que exclui o dolo, nos termos do art. 8.º, n.º 2, do citado Regime Geral das Contra-Ordenações, ficando, todavia, ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais, por força do n.º 3. Contudo,
HH) Estando em causa uma contra-ordenação, existindo um erro sobre a proibição, nos termos do art.º 8.º, há necessariamente falta de consciência da ilicitude do facto, nos termos do art. 9.º, mas, se a conduta for punível a título de negligência, como ressalvado no n.º 3 daquela primeira norma, a mesma só se tem por excluída se o erro não for censurável, nos termos do n.º 1 da segunda norma.
II) Sob tais premissas e volvendo ao caso dos autos, decorre da factualidade que a Arguida, exercendo a exploração de um estabelecimento de restauração e bebidas, julgou, genuinamente, que estaria a cumprir a lei, por ter confiando num terceiro, dito profissional, que garantiu esse pleno cumprimento.
JJ) É apodítico reconhecer que a Arguida atuou sem consciência da ilicitude desse facto, o que, à luz do disposto no n.º 1 do art. 9.º do RGCO, exclui a ilicitude do facto, erro que não lhe é censurável.
KK) Consequentemente, deverá a Arguida ser absolvida da infração pela qual vem acusado, arquivando-se os presentes autos.
LL) Subsidiariamente, a sanção de admoestação, no regime contraordenacional, encontra-se prevista no artigo 51.º do RGCO, que dispõe: «1. Quando a reduzida gravidade da infração e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação. 2. A admoestação é proferida por escrito, não podendo o facto voltar a ser apreciado como contra-ordenação»
MM) Tal como decorre do citado artigo 51.º, n.º 1, a aplicação da sanção de admoestação é reservada aos casos em que a gravidade da contraordenação e a culpa do agente sejam reduzidas.
NN) Destarte, a culpa diminuta quer da culpa quer da ilicitude (esta que se exclui), e uma vez que não que o Arguida não retirou qualquer benefício económico da prática da contra-ordenação, que se trata de uma pessoa coletiva de cariz unipessoal, não havendo registos de qualquer infracção anteriormente cometida, justifica-se a aplicação da pena de admoestação.”
*
A peça recursiva ficou concluída com a formulação das seguintes pretensões recursivas [transcrição]: ---
“(…) Nestes termos e nos demais de direito aplicável (…), deverá:
A) O presente recurso ser admitido, e por via dele, declarar a nulidade da sentença recorrida, por violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 10 da CRP e 379.º, n.º 1, alínea b) do CPP; caso assim não se entenda, deverá a Decisão administrativa ser declarada nula:
i. por não conter qualquer descrição de factos e/ou provas que permitam concretizar o título de imputação subjetiva à Arguida, ou, subsidiariamente, para o caso de assim não se entender, deve a Acusação ser declarada irregular, pelos mesmos motivos;
B) deve em qualquer caso, o presente recurso ser julgada procedente, por provada, e a Arguida ser integralmente absolvida da infração que lhe é imputada.
C) Subsidiariamente, na eventualidade de a Arguida ser condenada deverá ser-lhe aplicada uma admoestação.”. ---
c).
Por despacho proferido aos ........2025, o tribunal a quo admitiu o recurso interposto, a que fixou efeito suspensivo, mais determinando a sua subida imediata e nos próprios autos. ---
d).
O Ministério Público junto da 1ª instância apresentou-se a exercer a faculdade de resposta, tanto ao requerimento apresentado para os fins previstos pelo nº 2 do artº 74º do RGCO – aplicável ex vi do preceituado do artº 79º do RJCOE -, particular em que pugnou pela inadmissibilidade excepcional do recurso, como, também, aos fundamentos deste, posicionando-se no sentido da respectiva improcedência, com manutenção da decisão recorrida. ---
[3].
a).
Remetidos os autos a esta instância de recurso, foi dado cumprimento ao disposto no artº 416º do Cód. de Proc. Penal, tendo a Exmª. Srª. Procuradora-Geral Adjunta pugnado pela inadmissibilidade do recurso, por inverificação dos pressupostos previstos pelos nºs 1 e 2 do artº 75º do RJCOE. Prevenindo a eventualidade de não vir a entender-se desse modo, manifestou acompanhar a resposta apresentada em 1ª instância, a cujo teor aderiu. ---
b).
Facultado à recorrente, nos termos previstos pelo nº 2 do artº 417º do Cód. de Proc. Penal, direito de resposta, não fez a mesma dele uso. ---
c).
Colhidos os vistos, realizou-se conferência. ---
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Da ocorrida admissão do recurso pela 1ª instância
Conforme decorre do relatório da presente decisão, ante o recurso interposto pela arguida sociedade, foi pelo tribunal a quo proferido despacho que o admitiu. ---
Sucede, contudo, que, não enquadrando o recurso em presença qualquer dos pressupostos previstos pelo nº 1 do artº 75º do RJCOE, a decisão relativa à sua admissibilidade, aliás, expressamente requerida a coberto do nº 2 da mencionada disposição normativa, é matéria da exclusiva competência deste Tribunal da Relação. ---
Não estando, como não está, o tribunal superior vinculado a decisão proferida pela 1ª instância que admita recurso, conforme emerge do que vai disposto no nº 3 do artº 414º do Cód. de Proc. Penal – aplicável por remissão sucessiva dos artºs 79º do RJCOE e 41º, nº 1 do RGCO -, não é àquela indevida admissão passível de associar-se a produção de quaisquer efeitos. ---
2. Da admissibilidade do recurso pretendido introduzir pela arguida sociedade
Firmada a antecedente premissa, a questão que, a título prévio, se coloca, nos termos do nº 2 do artº 74º do RGCO – aplicável ex vi do preceituado no artº 79º do RJCOE -, é a de saber se deve, ou não, admitir-se a pretensão recursiva formulada por .... ---
E a resposta é, adiantamo-lo já, negativa. ---
Senão vejamos. ---
Subordinado à epígrafe “Decisões Judiciais que admitem recurso”, estabelece-se no artº 75º do RJCOE que: ---
1- Pode recorrer-se para o Tribunal da Relação da sentença ou do despacho judicial quando:
a) For aplicada ao arguido uma coima superior a (euro) 2500;
b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a (euro) 2500 ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d) A impugnação judicial for rejeitada;
e) O tribunal decidir através de despacho, não obstante o recorrente se ter oposto a tal.
2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, pode o Tribunal da Relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
3 - Se a sentença ou o despacho recorrido forem relativos a várias infrações ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infrações ou a algum dos arguidos se verificarem os pressupostos necessários, o recurso é interposto com esses limites.”. ---
Sendo ponto assente que, no caso que nos toma, a admissibilidade do recurso não é equacionável a coberto da previsão do nº 1 do enunciado artº 75º - por não se mostrar verificada qualquer das circunstâncias nele previstas -, o ponto está em saber se é, ou não, de o admitir a coberto da previsão do nº 2. ---
Ora, a respeito dos requisitos que, para os efeitos que nos tomam, se têm por pressupostos para que o recurso seja, excepcionalmente, admitido - com desvio, portanto, face às regras gerais estabelecidas pelo nº 1, cuja inaplicabilidade carece, naturalmente, de verificar-se -, importa assinalar que a pretensão recursiva tem que ter por fundamento a sua manifesta necessidade para: ---
i. A melhoria da aplicação do direito; ou ---
ii. A promoção da uniformidade da jurisprudência. ---
Dos pressupostos estabelecidos para o acesso excepcional à instância recursiva, emerge, desde logo, conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque1, que o “recurso com autorização” – como é comumente designado - só é admissível sobre questões de direito2. ---
Para além disso, e sendo caso de a sua pretendida admissão radicar em necessidade manifesta para melhoria da aplicação do direito, ela afere-se, diz o mesmo autor3, não apenas por a questão relevar no âmbito da causa, mas também, e sobretudo até acrescentamos nós, por se apresentar carecida de esclarecimento e ser passível de abstracção, por permitir “(…) o isolamento de uma ou mais regras gerais aplicáveis a outros casos práticos similares”. –
Como, em convergente sentido, se deixou expresso no acórdão do TRL de 19.05.20224, o recurso é manifestamente necessário para a melhoria do direito “(…) quando esteja em causa uma questão de direito autónoma e que, por ser amplamente controversa na doutrina e na jurisprudência, com relevante aplicação prática, apresente uma dignidade ou importância que extravase o caso concreto, de tal forma que se imponha o seu melhor esclarecimento pela instância superior, com vista a propiciar um contributo qualificado no seu tratamento e aplicação a título imediato e em casos idênticos futuros.”5. ---
Não obstante entendamos que é, rigorosamente, essa a leitura correcta a atribuir ao fundamento de excepcionalidade que vimos de analisar, e seja consensual, na doutrina e na jurisprudência, que não basta o erro de direito - e, menos ainda, mera discordância na sua interpretação e aplicação - para ver franqueado o acesso à instância recursiva, sectores há da jurisprudência que entendem ser o recurso de admitir sempre que se esteja na presença de erro de direito a que assistam os atributos de grosseiro, incomum, flagrante, grave e juridicamente insustentável, que se imponha corrigir por não tolerável pelo ordenamento6. ---
O requerimento a apresentar carece de conter as razões que, em concreto, fundam, na perspectiva do recorrente, a excepcionalidade do recurso, não bastando a invocação genérica das respectivas condições gerais de admissibilidade7. Terá o recorrente, para tanto, que indicar, suportado em doutrina e/ou jurisprudência que convoque, a solução que, tendo sido desconsiderada pelo tribunal, representa uma melhor aplicação do direito. ---
As razões fundamentadoras da excepcionalidade do recurso delimitarão o objecto sobre que recairá o juízo de admissibilidade a formular. ---
Já quando a visada admissão do recurso assentar na sua manifesta necessidade para a promoção da uniformidade da jurisprudência, apenas será de reconhecer a verificação desse enquadramento quando a jurisprudência “(…) se mostre dividida acerca da interpretação e aplicação de um princípio ou de uma regra de direito (…)”8 e a sentença consagre solução jurídica que, nos dizeres de Paulo Pinto de Albuquerque9, “(…) introduza, mantenha ou agrave diferenças dificilmente suportáveis (…) na jurisprudência”. ---
Nessas hipóteses, caberá, também, ao recorrente, como se deixou expresso no acórdão do TRL de 27.06.202310, “(…) indicar a jurisprudência desconforme com a decisão recorrida e os concretos pontos dessa desconformidade, (…), não bastando uma alegação genérica desse fundamento para a admissão do recurso.”. ---
Também com relação ao fundamento de que ora cuidamos, não será de admitir o recurso quando aquilo que se pretende seja a mera correcção de sentença que comporte um qualquer erro de direito. ---
Tecidas, na medida do necessário, as antecedentes considerações, e vertendo ao caso que nos ocupa, uma primeira consideração se nos impõe. ---
E essa é a de que, lido o requerimento, naquelas que constituem as concretas razões que ditam, na perspectiva da arguida sociedade, a admissibilidade excepcional do recurso que pretende ver introduzido, sinaliza-se, e de imediato, que nada aí se contém a respeito da identificação de qualquer questão de direito que, por controversa, se apresente carecida de esclarecimento, e, menos ainda, com relevância que, ultrapassando a dimensão dos autos, se mostre passível de alavancar solução de aplicação generalizada a casos semelhantes ou de aproximado recorte, com inerente melhoria na aplicação do direito. ---
O que, na verdade, se extrai, isso sim, desse requerimento é a discordância expressa pela arguida sociedade – que pretende ver apreciada com a admissão do recurso – relativamente à decisão que a visou, e com a qual, por conseguinte, se manifesta inconformada, por entender que nela foram considerados factos – atinentes aos elementos objectivos e subjectivo típicos da infracção imputada – que, segundo mais diz, não estavam presentes na decisão administrativa, com o que o tribunal de 1ª instância teria procedido a alteração substancial dos factos, que ditou a transformação em típico do que o não era. ---
Pretendido é, portanto, e como bem se vê, não mais do que a correcção da sentença proferida, que a arguida considera contrária à disciplina de direito aplicável, mormente da relativa à alteração/alargamento do objecto do processo. ---
Nessa medida, qualquer correcção que, porventura, se justificasse dessa concreta decisão, nenhum outro efeito produziria senão esse mesmo, não vindo identificada no requerimento que se aprecia qualquer corrente de entendimento que tenha sido acolhida pelo tribunal de 1ª instância e a que se contraponha(m) outra(s), de tal sorte que se afigure possível identificar questão controvertida, cuja resolução se apresente apta a contribuir, para além dos limites do processo, para a melhoria do direito. ---
De assinalar que o elemento jurisprudencial citado pela arguida sociedade, na finalização do seu requerimento, não serve, nem remotamente, o antedito desiderato de permitir a identificação – que, como se viu, se apresenta em falta - de qualquer questão controvertida que se mostre, em vista da melhoria do direito, carecida de esclarecimento. ---
Com efeito, o propósito a que, manifestamente, se apresenta associada a convocação desse elemento é o de reforçar as afirmações que a requerente fez, igualmente, produzir, de que o erro em que o tribunal de 1ª instância teria incorrido é merecedor de qualificação como grosseiro e incomum, sendo ostensiva a sua visibilidade. ---
Ora, como acima vimos, parte da jurisprudência considera que o recurso deve ser admitido quando se esteja na presença de erro com os enunciados atributos de caracterização, constituindo-se, por essa via, válvula destinada a permitir a correcção de decisões flagrantemente erradas. ---
Passe a circunstância de esse entendimento, com todo o respeito que nos merece, ter como inevitável consequência que, nesta fase prévia, se realize exercício que não era suposto, qual seja o de aquilatar do bem ou mal fundado da decisão, e, por inerência, do próprio recurso, não poderemos deixar, para acautelar todas as soluções admissíveis, de assim proceder. ---
É o que faremos de seguida, desde já adiantando, contudo, que a decisão do tribunal de 1ª instância, quanto às matérias que fundam o requerimento sob apreciação, não enferma de qualquer erro e, menos ainda, com os predicados que se lhe pretendem atribuídos. ---
Senão vejamos. ---
Sendo interposto recurso de impugnação de decisão administrativa, como foi o caso, ela converte-se em acusação – cfr. artº 62º, nº 1 do RGCO, aplicável ex vi do artº 79º do RJCOE. ---
A decisão administrativa não constitui, portanto, nem é equiparável a sentença penal, em razão do que não se encontra subordinada aos requisitos de forma previstos pelo artº 374º do Cód. de Proc. Penal – mormente ao de enumeração discriminada dos factos provados e não provados, cfr. nº 2 -, nem, por conseguinte, em caso de inobservância desses requisitos, a qualquer uma das causas de nulidade previstas pelo artº 379º do mesmo diploma legal. ---
A decisão administrativa carece, indiscutivelmente, e conforme decorre do disposto na al. b) do nº 1 do artº 58º do RGCO, aplicável ex vi do artº 79º do RJCOE, de conter a descrição dos factos imputados, não estando, porém, subordinada a regras de ordenação, bastando que essa inclusão se encontre em qualquer parte dela11. ---
Apesar de as decisões administrativas não estarem subordinadas aos requisitos de forma próprios das sentenças penais, é habitual, como sucedeu no caso, que a entidade administrativa, por simpatia metodológica, se socorra de estrutura similar à desse tipo de actos.
Ora, optando a entidade administrativa por seguir o modelo das decisões judiciais, subordinando-as a segmentos diferenciados, deveria, por uma questão de coerência sistemática, aportar a materialidade que considera demonstrada na parte reservada a essa enunciação. ---
Se, porém, o não fizer, nenhuma consequência é disso passível de extrair-se, mormente fracturante da sua validade formal. ---
No caso, e ao contrário do que, em patente desvio da realidade, vem afirmado pela arguida sociedade, a decisão administrativa contém a materialidade que ficou reflectida no ponto 3) da sentença proferida pelo tribunal de 1ª instância, relativa aos elementos objectivos típicos da infracção imputada. ---
No que respeita aos factos pertinentes ao título de imputação subjectiva estão os mesmos, igualmente, presentes na decisão administrativa, ainda que no segmento dela reservado à fundamentação de direito, mais especificamente sob a epígrafe “Da culpa do agente”, sem que disso, como se referiu acima, e reitera, possa extrair-se qualquer consequência. ---
O tribunal de 1ª instância, por seu turno, transpôs a materialidade mencionada no antecedente parágrafo para a decisão que proferiu, na qual se encontra ordenada sob o ponto 4). ---
Do que vem de expor-se, resulta, portanto, que a decisão de que a arguida sociedade pretende interpor recurso não enferma, quanto aos aspectos identificados no requerimento apresentado para os efeitos do nº 2 do artº 74º do RGCO – aplicável ex vi do preceituado no artº 79º do R RJCOE, e que, sendo referentes a imputada violação do princípio da vinculação temática, constituem o limite da apreciação a que se impõe proceder -, de qualquer erro de direito e, menos ainda, que mereça o atributo de grosseiro, incomum, flagrante e grave. ---
É, assim, apodíctico dizer-se, e por exuberância, que não se mostram, no caso, verificados os pressupostos de admissibilidade excepcional do recurso pretendido introduzir, para o que não basta o inconformismo manifestado pela arguida sociedade relativamente ao teor da decisão que a visou, sem qualquer reflexo que permita identificar a necessidade de acesso à instância recursiva, e que carece de ser manifesta, para a melhoria do direito ou a promoção de uniformização da jurisprudência. ---
Para além disso, prevenindo-se o entendimento, mais abrangente, que concede na admissibilidade extraordinária do recurso sempre que se verifique erro incomum, grosseiro, grave e flagrante, também essa hipótese se apresenta, na circunstância, excluída. ---
Sem prejuízo da conclusão que se alcançou já, a permitir antever o desfecho que se impõe, que é o da não admissão do recurso, deixaremos algumas notas complementares. ---
Assim, e para além de a arguida sociedade ter querido ver franqueado o acesso à instância recursiva louvada em razões que não têm correspondência na decisão recorrida, os problemas nunca se ficariam por aí. ---
É que, como se nos afigura evidente, as razões para a admissibilidade excepcional do recurso hão-de corresponder aos fundamentos do próprio recurso, que desse limite não podem exorbitar, sob pena de, sem que se mostre verificado o condicionalismo previsto pelo nº 1 do artº 75º, se instrumentalizar o acesso permitido, a coberto do nº 2, à finalidade de impugnação ampla e generalizada das decisões. ---
Ora, no caso que nos toma, o que se verifica, e de forma ostensiva, pelas conclusões extraídas da motivação do recurso visado introduzir – e que deixámos expostas no relatório da presente decisão, sob as als. b) e c) do ponto [2]. -, é que a arguida sociedade não se limita a pretender ver afectada a regularidade do procedimento e da decisão proferida, no seu culminar, pelo tribunal de 1ª instância, com base nas razões que aportou para ver admitido o recurso e que foram as de introdução de factos pertinentes aos elementos objectivos e subjectivo típicos da infracção contra-ordenacional que lhe foi atribuída, putativamente ausentes na decisão administrativa. ---
Na verdade, manifesta, muito para além disso, pretender ver sindicado o acerto de fundo da decisão que a visou, mormente o julgamento a que se procedeu da matéria de facto, em vista da exclusão de que teria agido com culpa e/ou com conhecimento da ilicitude dos factos - o que, aliás, não é sequer permitido, já que, como deflui dos artºs 41º, 74º, nº 4, 75º, nº 1 do Dec. L. nº 433/82, de 27.10 [RGCO], 79º do RJCOE e 410º, nº 1 do Cód. de Proc. Penal, os poderes do Tribunal da Relação em recurso interposto de decisão proferida no âmbito de procedimento de natureza contra-ordenacional são de revista, estando, portanto, limitados a matéria de direito12-, mais visando, a manter-se a sua condenação, seja corrigida a sanção associada à infracção cometida, com substituição da coima aplicada por admoestação. ---
Portanto, mesmo que o recurso fosse de admitir, nunca ficaria franqueada a apreciação de questões que, extravasando das razões fundamentadoras da sua excepcionalidade, não tenham com estas correspondência e/ou a elas não se associem consequencialmente. ---
Deixadas estas notas, resta, em reforço do que se anunciou já, concluir pela inadmissibilidade do recurso. ---

III. DECISÃO
Pelo exposto, decide-se não admitir o recurso pretendido introduzir, a coberto do nº 2 do artº 75º do RJCOE, pela arguida sociedade. ---
Custas a cargo da recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 UC – cfr. artºs 92º, nºs 1 e 3, 93º, nº 3 do RGCO, 79º do RJCOE e 420º, nº 3 do Cód. de Proc. Penal. ---
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Notifique. ---
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Lisboa, 2025.12.03
(Acórdão integralmente redigido pela relatora, dele primeira signatária, revisto e assinado electronicamente por ela e pelas juízes adjuntas, no canto superior esquerdo da primeira página)
Sofia Rodrigues
Cristina Almeida e Sousa
Rosa Vasconcelos
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1. In “Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2011, pp. 303 e 304, em doutrina que, versando sobre o artº 73º, nº 2 do RGCO, é de considerar extensível à previsão, de idêntico teor, que se contém no artº 75º, nº 2 do RJCOE. ---
2. Num reforço, aliás, do que emerge das disposições conjugadas dos artºs 75º, nº 1 do RGCO e 410º, nº 1 do Cód. de Proc. Penal - aplicáveis por remissão sucessiva dos artºs 41º, nº 1, 74º, nº 4 do primeiro dos referidos diplomas legais e 79º do RJCOE -, que situam os poderes do Tribunal da Relação, no âmbito dos procedimentos de natureza contra-ordenacional, como de mera revista. ---
3. In Ob. e Loc. cit. ---
4. Proferido no âmbito do Proc. nº 1737/21.6T8VCT.G1, com texto disponível in www.dgsi.pt. ---
5. Em idêntico sentido, também, acórdão do TRL de 27.06.2023 [Proc. nº 865/22.5Y5LSB.L1-9], disponível in www.dgsi.pt. ---
6. Assim se considerou, entre outros, nos acórdãos do TRL de 23.11.2022 [Proc. nº 30172/21.4T8LSB.L1-4], do TRG de 27.04.2023 [3456/22.7T8GMR.G1] e do TRE de 12.12.2024 [Proc. nº 4324/22.8T8STB-B.E1], todos disponíveis in www.dgsi.pt. ---
7. Neste sentido, acórdãos do TRL de 22.11.2023 [Proc. nº 6462/23.0T8SNT.L1-4] e do TRG de 27.04.2023 [3456/22.7T8GMR.G1], o último já citado na antecedente nota 6, com indicação da sua fonte, comum à do primeiramente indicado. ---
8. Conforme se deixou expresso no acórdão do TRG de 14.09.2023 [Proc. nº 1589/22.9T8BRG.G1], disponível in www.dgsi.pt. ---
9. Ainda in Ob. e Loc. cit. ---
10. Proferido no âmbito do Proc. nº 865/22.5Y5LSB.L1-9, já citado na antecedente nota 5, com indicação da respectiva fonte. ---
11. Em convergência com as considerações já expostas, vd. acórdão do TRC de 09.01.2019 [Proc. nº 257/18.0T8SRT.C1] disponível in www.dgsi.pt. ---
12. Sem prejuízo, como é evidente, da apreciação, sempre possível, das questões de conhecimento oficioso que obstem à abordagem do mérito, como sucede, nos termos do nº 3 do artº 410º do Cód. de Proc. Penal, com as nulidades insanáveis que afectem a validade do acto, e, ainda, dos vícios previstos pelo nº 2 dessa disposição normativa, que, contudo, respeitam não ao julgamento da causa, mas, outrossim, à própria decisão, que há-de ostentar defeito estrutural, evidenciado à luz dos seus próprios termos, em particular pelo texto que a corporiza, por si só considerado, ou em conjugação com as regras da experiência comum.