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INIBIÇÃO DA FACULDADE DE CONDUZIR
PENA ACESSÓRIA
DIREITO AO TRABALHO
Sumário
(da responsabilidade do Relator) – interpretação dos arts. 69.º, n.º 1, al. a), CP, e 500.º CPP quanto ao modo de execução da inibição de conduzir, e eventual colisão com o direito ao trabalho do art. 58.º CRP, circunscrevendo-se o thema decidendum à possibilidade de um regime “pós-laboral”. – a proibição de conduzir tem conteúdo normativo predeterminado e execução contínua “pelo período de tempo que durar a proibição”, não prevendo a lei cláusulas de “adequação horária” nem fraccionamento administrativo; a entrega/apreensão do título e as comunicações são congruentes com esse modelo. – o AUJ n.º 3/2023, por analogia com o art. 479.º CPP, reafirma a continuidade da execução da inibição e preclude “janelas” de condução no período temporal, como exigência de unidade do sistema penal-processual. – o art. 58.º CRP não confere um direito a conduzir; a restrição resulta de lei, prossegue fins legítimos de prevenção geral e especial e mostra-se adequada e necessária, não podendo o conteúdo da sanção ser “personalizado” por razões laborais. – a personalização horária confundiria conteúdo com medida (art. 71.º CP), com graves custos para a legalidade (art. 29.º, n.º 1, CRP) e igualdade material, e afectando a teleologia preventiva da pena acessória.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
I. RELATÓRIO
1.1. Nos presentes autos de processo sumário (art. 381.º CPP) n.º 944/25.7SILSB.L1, vindos do Juízo Local de Pequena Criminalidade de Lisboa – Juiz 1, foi o arguido AA condenado pela prática, em ...-...-2025, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo art. 292.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 8,50 (total € 510), e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por 3 meses (art. 69.º, n.º 1, al. a), CP), tendo sido determinada a entrega do título de condução nos termos do art. 500.º, n.º 2, CPP e as comunicações legais subsequentes.
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1.2. Inconformado com a decisão proferida o arguido recorreu formulando no termo da motivação as seguintes conclusões: (transcrição) (…) I- Nos presentes autos foi o arguido AA condenado pela prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º, 1, do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 8,50 (oito euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz montante global de € 510,00 (quinhentos e dez euros). II- Mais tendo sido condenando na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 (três) meses, nos termos do artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal se violar tal proibição. III- Ora a presente discordância relativamente à douta sentença “a quo”, tem a ver apenas com a pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 3 meses, mais concretamente com o modo do seu cumprimento, entendendo-se que distribuindo no tempo, para ocasião mais cómoda para o arguido, o cumprimento do período de inibição, como por exemplo entre as 21 horas e as 07 horas de segunda a sexta-feira e entre as 21 horas de sexta-feira e as 07 horas de segunda-feira, se faria justiça mais adequada ao caso concreto, como foi aliás sustentado pela defesa nas suas alegações. IV-Desta forma não ficaria prejudicada a actividade laboral de técnico de manutenção do ora recorrente, que necessita da carta de condução para o seu exercício. V-E a referida sanção acessória não deixaria de ser cumprida em dias seguidos como estabelece a lei, embora com as interrupções temporais referentes ao período de trabalho do condenado, e só para efeitos da jornada laboral do mesmo. VI-Com o que não seriam violados os artigos 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, artigo 500º, nº4, do Código de Processo Penal, nem o artigo 138º, nº4, do Código da Estrada. VII-Nem prejudicadas as exigências de prevenção geral e especial. VIII-Acresce que o arguido confessou integralmente e sem reserva os factos, que estes constituíram um caso isolado como o próprio tribunal reconheceu, e que aquele não tem antecedentes criminais. IX-Ora a sanção acessória de que se recorre, entendida como de cumprimento ininterrupto, viola o Direito ao Trabalho do Recorrente, que é um Direito Fundamental previsto no artigo 58º, da CRP, que o Estado deve assegurar e não prejudicar. X- Pelo que deve ser revogada e substituída por outra que, ponderando e sopesando devidamente as circunstâncias do caso, permita que a pena acessória de inibição de conduzir veículos com motor do ora Recorrente se cumpra entre as 21 horas e as 07 horas de segunda a sexta-feira e entre as 21 horas de sexta-feira e as 07 horas de segunda-feira. (…)
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1.3. O Ministério Público respondeu pugnando pela manutenção da decisão recorrida, por inexistir base legal para fraccionamento horário do conteúdo típico da inibição de conduzir; a decisão — disse — apreciou correctamente o direito e fundamentou a recusa do pedido.
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1.4. Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, Foi emitido parecer do Sr. Procurador Geral Adjunto no sentido da improcedência, sufragando a posição assumida pelo MP da 1ª instância, aquando da resposta ao recurso.
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1.5. Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal e não foi apresentada qualquer resposta.
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1.7. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Determinando-se o objecto do recurso pelas respectivas conclusões (art. 412.º, n.º 1, CPP), cumpre decidir: se a pena acessória de proibição de conduzir, prevista no art. 69.º, n.º 1, al. a), CP, pode ser executada em regime “pós-laboral” com autorização de condução no período diurno de trabalho, sem alteração do respectivo quantum temporal; e, reflexamente, se tal restrição contínua do ius utendi viola o direito ao trabalho (art. 58.º CRP) em termos que imponham quadro judicial do modo de execução.
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2.2. Da sentença recorrida
A sentença recorrida, nos segmentos que ora nos importam, tem o seguinte teor (transcrição): (…) No dia ...-...-2025, pelas 07:48 horas, na via pública, na ..., em frente ao ..., em Lisboa, o arguido conduziu o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-UI-.., com uma TAS de, pelo menos, 1,509 g/l, já deduzido erro máximo admissível, correspondente à taxa registada de 1,64 g/l. Antes de iniciar a condução o arguido ingeriu bebidas alcoólicas de natureza e quantidade não concretamente apuradas. O arguido sabia que ingeriu bebidas alcoólicas suficientes para ultrapassar a taxa de álcool legalmente permitida e que não podia, nessa condição, conduzir veículos a motor. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal. (…)
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2.3. Apreciação do recurso
2.3.1. se a pena acessória de proibição de conduzir, prevista no art. 69.º, n.º 1, al. a), CP, pode ser executada em regime “pós-laboral” com autorização de condução no período diurno de trabalho, sem alteração do respectivo quantum temporal; e, reflexamente, se tal restrição contínua do ius utendi viola o direito ao trabalho (art. 58.º CRP) em termos que imponham quadro judicial do modo de execução
O artigo 69.º, n.º 1, alínea a), CP prevê a proibição de conduzir veículos com motor como consequência penal acessória para determinados crimes rodoviários, com duração entre três meses e três anos, cabendo ao tribunal fixar a medida segundo os critérios do artigo 71.º do CP (Código Penal). O n.º 2 estatui que a proibição abrange a condução de veículos de qualquer categoria. O n.º 8 afasta o desconto de períodos de privação da liberdade na contagem do tempo da inibição. No plano processual, a execução está disciplinada no Livro X do CPP, Título III, capítulo IV: o artigo 499.º regula os trâmites e o artigo 500.º regula a execução da proibição de conduzir, determinando a entrega do título, a comunicação à autoridade administrativa competente e, sobretudo, a exigência de cumprimento “pelo período de tempo que durar a proibição”, o que implica, por natureza, continuidade temporal e indisponibilidade do ius utendi durante toda a duração fixada. A lei não contém qualquer cláusula de “adequação horária” nem remissão para regimes administrativos que admitam fraccionamento.
A jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça reforça este desenho. O Acórdão Uniformizador n.º 3/2023 de 13 de Fevereiro1 fixou que, à contagem da pena acessória de proibição de conduzir, se aplicam, por analogia (artigo 4.º CPP), as regras de contagem da pena de prisão do artigo 479.º CPP, sublinhando expressamente que a execução da inibição é de cumprimento contínuo, sem previsão legal de “cumprimento descontínuo” ou substituição por outra forma que não a entrega/apreensão do título. A afirmação de continuidade não é um mero obiter: é o pressuposto operativo que fundamenta a solução unificadora para a contagem, mostrando que o legislador quis para a pena acessória um regime de execução temporalmente ininterrupto, funcionalmente equiparável ao das penas principais no que toca à continuidade do cumprimento. A leitura do acórdão torna translúcida a impossibilidade de abrir “janelas” de condução no interior do período de inibição, pela razão elementar de que isso esvaziaria o conteúdo útil da sanção e subverteria a unidade do sistema penal-processual que a decisão uniformizadora procura preservar.
A inibição de conduzir, enquanto conteúdo legalmente predeterminado, vale erga omnes e semper durante o período fixado, sem recortes ex post. Esta impossibilidade de “personalizar” o conteúdo da inibição de conduzir é expressão do princípio da legalidade das penas (artigo 29.º, n.º 1, CRP) e constitui argumento decisivo contra qualquer tentativa de criação de regimes “pós-laborais”.
Nestes termos, carece de fundamento legal a pretensão de cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir fora do horário laboral do condenado, acentuando-se o princípio de execução contínua e a incompatibilidade sistémica de autorizações de condução durante a vigência da inibição.
Quanto ao seu plano constitucional diremos:
O direito ao trabalho (artigo 58.º CRP) não consagra um direito a conduzir veículos com motor; o objecto imediato desse direito é a livre escolha de profissão e o acesso ao emprego, não a imunidade a consequências jurídico-penais que, geral e abstractamente, limitam o ius utendi para tutela de bens jurídicos de elevada densidade (vida, integridade física, segurança rodoviária). A restrição que resulta da inibição é prevista por lei (CP/CPP), perspectiva fins legítimos de prevenção geral e especial e é adequada e necessária: neutraliza o risco acrescido de quem demonstrou, pelo crime rodoviário, uma propensão de perigo no exercício da condução; simultaneamente, exprime a vigência da norma na comunidade. Neste quadro, rejeita-se de forma expressa, a invocação do artigo 58.º CRP como fundamento para “customizar” a execução, sendo que não viola os direitos do arguido, designadamente o direito ao trabalho.
A “interrupção diária” não é um modo de execução da pena acessória; é a negação do conteúdo da pena, por reintroduzir, dentro do período sancionatório, o exercício que a pena pretende justamente subtrair. O referido AUJ 3/2023 torna esta leitura incontornável ao ancorar a contagem no regime da pena de prisão, por analogia, precisamente porque ambas partilham o traço definidor da continuidade de execução. Last but not least, invoca-se a situação profissional do condenado, para sustentar que a autorização diurna não prejudica a prevenção. Mas as circunstâncias pessoais são juridicamente relevantes no momento próprio — a determinação da medida (artigo 71.º CP) — e não para remodelar o conteúdo da sanção. O argumento de prevenção sai invertido: autorizar quem foi condenado por crime rodoviário a conduzir no período diurno, precisamente aquele em que mais intensamente se manifesta o risco de circulação e a função exemplar da sanção, atinge a teleologia preventiva da inibição. A igualdade material também sofre: transformar a pena acessória num regime de “licenças horárias” indexadas ao horário de trabalho criaria um tratamento desigual entre condenados em função da ocupação e da agenda, sem base legal e sem justificação constitucionalmente aceitável.
Importa, ainda, neutralizar as formulações retóricas recorrentes nos recursos que pedem a “licença diurna”, em especial a ideia de que “não seriam violados os artigos 69.º CP e 500.º CPP” e que “não se prejudicariam as exigências de prevenção”. In casu, o recorrente propôs exactamente esse esquema, invocando o artigo 138.º, n.º 4, CE, a confissão e a primariedade, e o direito ao trabalho para pedir a execução apenas das 21h às 7h (e fins-de-semana). Esta construção confunde conteúdo e medida: o que a lei comanda é proibir o exercício da condução durante a duração fixada; não há base para “autorizações” nos respectivos períodos temporais, e a invocação do CE é exógena ao regime penal. A ratio de prevenção, geral e especial, é, aliás, explicitamente comprometida se o condenado, cuja condução se mostrou perigosa (TAS superior ao limiar penal), pode continuar a conduzir nos períodos de maior exposição social.
Em suma, a legalidade (artigo 29.º, n.º 1, CRP) impede o juiz de criar um regime de cumprimento não tipificado; a unidade do sistema penal/processual, reforçada pelo AUJ n.º 3/2023, exige continuidade de execução; a finalidade de prevenção da pena acessória — assente em comunicar a censura do ilícito de perigo abstracto e reduzir o risco associado ao conduzir — é contrariada por autorizações intra períodos; o direito ao trabalho não confere um direito a conduzir durante o cumprimento da inibição e encontra limites em bens de maior densidade objectiva e na arquitectura legal das consequências penais; e as soluções operacionais do CPP (entrega, comunicações, contagem) revelam a inutilidade e a disfuncionalidade de qualquer tentativa de “mapear” autorizações diurnas.
Qualquer decisão em sentido diverso incorreria em erro de direito, contrariando o artigo 500.º CPP e o artigo 69.º CP, e afectaria a regularidade processual e executória, por incompatibilidade com o circuito legal de entrega do título, comunicações e fiscalização da inibição.
Termos em que improcede o recurso interposto.
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III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido confirmando a sentença recorrida.
Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a 4 (quatro) unidades de conta (arts. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).
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Lisboa e Tribunal da Relação, 03-11-2025,
Alfredo Costa
João Bártolo
Sofia Rodrigues Processado e revisto pelo relator (artº 94º, nº 2 do CPP).
(O relator escreve de acordo com a antiga ortografia)
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1. Diário da República n.º 31/2023, Série I de 2023-02-13