ACTO SEXUAL DE RELEVO
CONSUMAÇÃO
FURTO
INTENÇÃO DE APROPRIAÇÃO
Sumário

(da responsabilidade do Relator)
I. O n.º 3, do artigo 163º, do Código Penal, aditado pela Lei n.º 101/2019, de 6 setembro, que procurou respeitar as obrigações assumidas pela assinatura e ratificação, por Portugal, da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, comummente designada de Convenção de Istambul, veio tornar claro que a existência de uma vontade contrária ao ato sexual de relevo é precípua à verificação do constrangimento a que alude o n.º 1, do mesmo preceito;
II. Ato sexual é todo aquele comportamento que, de um ponto de vista predominantemente objetivo e segundo uma compreensão natural, assume uma natureza, conteúdo ou um significado diretamente relacionados com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de determinação sexual de quem sobre ou pratica, sendo de relevo quando o grau de perigosidade da ação para o bem jurídico assume, em função da sua espécie, intensidade ou duração, valor decisivo;
III. O arguido que mantém olhar penetrante com ofendida quando ambos estavam no café, a segue após o fechamento daquele espaço, lhe formula convites reiterados para tomar um copo num sítio que ela ia gostar, o que a mesma recusa, e que, de modo súbito, lhe puxa pelo braço e a acaricia, com movimentos circulares, na coxa direita, pratica um contacto de natureza sexual;
IV. Tal conduta, quer por ser um plus relativamente ao mero toque instantâneo, quer por traduzir uma ação surpresa, que impede a vítima de expressar a sua vontade, reduzindo-a a simples objeto de satisfação do impulso do arguido [coisificação], a quem não a ligava qualquer relação afetiva, atinge o bem jurídico liberdade sexual com um grau de intensidade e gravidade que a permitem caracterizar como consubstanciando um ato sexual de relevo, a enquadrar no crime de coação sexual, p. e p. pelo n.º 2, do artigo 163º, do Código Penal, porque acompanha do meio de constrangimento violência [puxão de braço], e não um mero contacto de natureza sexual, a enquadrar no crime de importunação sexual, p. e p. pelo artigo 170º, do Código Penal;
V. Praticado o ato sexual de relevo, o crime está consumado, dado que, no que concerne ao objeto da ação, a coação sexual é um crime de mera atividade;
VI. A intenção de apropriação configura um elemento subjetivo do tipo de ilícito, que faz do furto um crime intencional, no sentido da intenção de apropriação dever ser vista e valorada como vontade intencional do agente de se comportar, relativamente à coisa móvel, que sabe não ser sua, como sendo seu proprietário, querendo, assim, integrá-la na sua esfera patrimonial ou na de outrem, manifestando assim, em primeiro lugar, uma intenção de (des)apropriar terceiro, mediante um ato de usurpação [animus sibi rem habedi], que não confunde com o dolo da subtração, e se diferencia da motivação do crime, a qual, verificada a intenção de apropriação, se mostra indiferente ao preenchimento do tipo de ilícito do crime de furto;
VII. Verificando-se que o arguido, em momento anterior à prática do crime de coação sexual, já havia sido condenado pela prática de crimes, pelo quais foi condenado em pena de prisão efetiva, que não revela sentido crítico relativamente à sua conduta e demonstra falta de empatia com a vítima, é de afirmar que as exigências de prevenção especial e geral que resultam da prática do crime do crime coação sexual apurado nos autos são elevadas, sendo as mesmas incompatíveis com a suspensão da execução da pena de prisão, quer porque inadequada a prevenir a prática de futuros crimes, quer porque, do ponto de vista da prevenção geral, na sua vertente negativa, tal suspensão da execução não acautela as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico;

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I . Relatório:
1. AA, arguido nos autos, não se conformando com o acórdão proferido, em processo comum da competência do tribunal coletivo, com o nº 322/24.5..., do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada - Juiz 3, que o condenou na pena única de 4 (quatro) e 6 (seis) meses de prisão, pela prática de crime de coação sexual, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 163º, n.º 2 e 23º do Código Penal e pela prática de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203º, n.º 1, do Código Penal, dele interpôs recurso, extraindo da motivação do mesmo as seguintes conclusões [transcrição]:
1. O presente recurso vem interposto do acórdão proferido pelo Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada (J3), que condenou o arguido AA pela prática de um crime de coação sexual, na forma tentada, e de um crime de furto simples, em cúmulo jurídico, na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão;
2. Salvo o devido respeito e elevada consideração, na perspetiva da defesa do arguido, o acórdão recorrido padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP), em virtude de o mesmo, não apurar nem fundamentar factos essenciais à correta subsunção jurídica, designadamente quanto à existência de “ato sexual de relevo” e ao dolo específico do arguido no crime de coação sexual, bem como quanto à intenção de apropriação definitiva no crime de furto.
3. Ademais, o recorrente impugna amplamente a matéria de facto, nos termos do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, especificando:
a) Pontos de facto incorretamente julgados:
Ponto 2 dos factos provados: intenção do arguido de manter relações sexuais e prática de ato sexual de relevo (acariciar a coxa da ofendida);
Ponto 3: agressões físicas e contexto em que ocorreram;
Ponto 4: subtração das botas e intenção de apropriação definitiva;
Ponto 5: nexo de causalidade entre a atuação do arguido e as lesões da ofendida.
b) Concretos meios de prova que impõem decisão diversa:
Declarações do arguido AA (ata de .../.../2025, gravação áudio: 20250515095023_12385025_2890453, entre 00:00:00 e 00:20:23), que negou qualquer intenção sexual e a prática dos factos imputados, referindo que a discussão foi motivada por desentendimentos alheios a qualquer contexto sexual e negando a subtração das botas;
Depoimento da testemunha BB (ata de .../.../2025, gravação áudio: 20250515103600_12385025_2890453, entre 00:00:00 e 00:09:06), que apenas confirmou agressões físicas, não qualquer ato de natureza sexual, e não presenciou a subtração das botas;
Depoimento da testemunha CC (ata de .../.../2025, gravação áudio: 20250515104509_12385025_2890453, entre 00:00:01 e 00:07:22), que atestou o comportamento habitual da ofendida e a ausência de qualquer conduta sexualmente agressiva por parte do arguido;
Depoimento da testemunha DD (ata de .../.../2025, gravação áudio: 20250515105235_12385025_2890453, entre 00:00:01 e 00:04:10), que confirmou nunca ter presenciado comportamentos agressivos ou sexualmente desviantes por parte do arguido;
Ausência de qualquer testemunha que corroborasse a versão da ofendida quanto à existência de ato sexual de relevo ou à intenção de apropriação definitiva das botas.
c) Passagens relevantes da prova gravada:
Declarações do arguido: ata de .../.../2025, gravação áudio: 20250515095023_12385025_2890453, entre 00:00:00 e 00:20:23;
Depoimento de BB: ata de .../.../2025, gravação áudio: 20250515103600_12385025_2890453, entre 00:00:00 e 00:09:06;
Depoimento de CC: ata de .../.../2025, gravação áudio: 20250515104509_12385025_2890453, entre 00:00:01 e 00:07:22;
Depoimento de DD: ata de .../.../2025, gravação áudio: 20250515105235_12385025_2890453, entre 00:00:01 e 00:04:10.
4. Razão pela qual se sustenta que o tribunal a quo violou o princípio in dubio pro reo, ao dar como provados factos essenciais apenas com base no depoimento da ofendida, sem fundamentação crítica suficiente desconsiderando os depoimentos do arguido e das testemunhas, em violação do artigo 127.º do CPP.
5. O acórdão recorrido, outrossim, não fundamentou adequadamente a existência de dolo específico do arguido quanto à intenção de constranger a vítima à prática de ato sexual de relevo, nem quanto à intenção de apropriação definitiva das botas, elementos essenciais para a verificação dos tipos legais dos crimes de coação sexual e de furto simples.
6. Destrate, a decisão recorrida limitou-se a descrever a sequência dos factos, sem explicitar as razões pelas quais considerou credível o depoimento da ofendida em detrimento das demais provas, em violação do dever de fundamentação imposto pelo artigo 374.º, n.º 2, do CPP
7. Por rectas contas, a qualificação jurídica dos factos é incorreta, não se mostrando preenchidos os elementos objetivos e subjetivos dos crimes de coação sexual (na forma tentada) e de furto simples, pelo que o arguido deve ser absolvido de ambos os crimes.
8. Subsidiariamente, caso assim não se entenda, a medida concreta das penas parcelares e da pena única em cúmulo jurídico é manifestamente excessiva e desproporcional, não tendo sido devidamente ponderadas as circunstâncias pessoais do arguido, as exigências de prevenção e a possibilidade de suspensão da execução da pena, em violação dos artigos 40.º, 50.º, 71.º e 77.º do Código Penal.
9. Pelo que salvo melhor opinião, deve ser revogada a decisão recorrida, absolvendo-se o arguido dos crimes imputados, ou, subsidiariamente, reduzindo-se a medida da pena e suspendendo-se a sua execução, por se mostrarem reunidos os pressupostos legais que a tanto assim o impõem, também assim, por reclamarem os critérios de justiça que ao caso concreto são convocados.
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Conclui pugnando pela anulação do acórdão e, no limite, pelo reenvio o processo para novo julgamento; ou, subsidiariamente,
- Substituição do acórdão por outro que altere a matéria de facto anteriormente indicada, e/ou consequentemente seja revista a decisão de direito, absolvendo-se o arguido; ou, assim não se considerando;
- Alteração medida da pena, parcelar e unitária, diminuindo-se a mesma e suspendendo-se a sua execução;
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2. Admitido o recurso, o Ministério Público na 1ª instância, apresentou resposta, que finalizou com as seguintes conclusões [transcrição]:
1. Não tem razão a recorrente quanto impugna a matéria de facto, mais concretamente o ponto 1, 2, 3 e 7, pois o acórdão impugnado não merece qualquer censura, na medida não enferma de omissões, nulidades ou vícios alegados pelo recorrente. A decisão recorrida mostra-se lógica, conforme às regras de experiência comum e é fruto de uma adequada apreciação da prova, segundo o princípio consagrado no artigo 127.º do Código do Processo Penal.
2. O acórdão refere claramente os meios de prova que serviram para o tribunal formar a sua convicção, garantindo que nele se seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não omitindo a fundamentação no sentido da valoração das provas e da razão lógica da condenação do recorrente, não constituindo, portanto, uma decisão ilógica, arbitrária, contraditória ou materialmente violadora das regras da experiência comum.
3. A recorrente limita-se a expor o seu julgamento dos factos, divergente daquele que foi feito pelo Tribunal, e tendo, como se verificou, este formado a sua convicção com provas não proibidas. por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquela que formulou o recorrente.
4. Ao contrário do que defende o recorrente o Tribunal não fez um juízo critico valorativo atentatório dos essenciais princípios da justiça, da legalidade, da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade, da proporcionalidade e do espírito ressocializador ínsito à matriz do nosso estado de direito democrático e às finalidades das penas - “Fins das penas”;
5. Na verdade, o douto acórdão recorrido como já referimos, não merece qualquer censura porque fez correta aplicação do direito à matéria de facto provada, nem violou qualquer disposição legal, pelo que deve ser mantido nos seus precisos termos.
6. A livre apreciação que, se por um lado se afasta de um sistema de prova legal (baseada em regras legais predeterminantes do seu valor), por outro, não admite também uma apreciação fundada apenas na convicção íntima e subjetiva do julgador.
7. Ao contrário do pretende defender a recorrente a livre apreciação da prova significa que o tribunal está vinculado ao dever de perseguir a verdade material do caso concreto que é trazido à sua apreciação, de tal modo que esta, embora livre, há de ser motivada e controlável, quer pelos destinatários da decisão quer pelas instâncias de recurso. Por isso se exige a explicitação do percurso lógico do julgador na decisão sobre a matéria de facto, que está na génese da sua convicção. A consequência deste sistema reflete-se, desde logo, na possibilidade de o tribunal formar a sua convicção na base do depoimento de uma testemunha, em desfavor do testemunho contrário, e fundar a convicção no depoimento de um mero declarante em desfavor de prova testemunhal, esta, em abstrato, com maior dignidade probatória.
8. No caso concreto consideraram-se também as máximas indiciárias, foram valoradas pelo Tribunal recorrido as declarações do recorrente, as prestadas pela ofendida EE, devidamente conjugadas com os depoimentos das testemunhas BB (vizinho de EE), CC (amigo da ofendida, que se encontrava no café no dia em questão) e DD (proprietário de um bar que era frequentado pelo arguido e também pela ofendida).
9. Quanto à prova documental e pericial o Tribunal teve em consideração o auto de denúncia (fls. 12), o relatório de exame médico-legal (fls. 5), as fotografias (64 e 73) e os elementos clínicos (fls. 109) e a fatura junta pelo ....
10. Quanto às declarações do recorrente, cumpre dizer o seguinte o mesmo optou por um discurso marcadamente defensivo, começando, logo no inicio das suas declarações, a justificar a sua ida um café onde nunca foi (“fui pescar para aqueles lados”) e a apelidar a ofendida de mentirosa, drogada e bêbeda, esta apresentou uma versão dos acontecimentos de forma clara e genuína, não empolando os factos e não imputando adjetivos ao arguido, como aquele fez em relação a esta. Aliás, de tal forma o discurso do arguido foi premeditado, que o mesmo, mesmo antes de alguma pergunta ter sido feita, disse que quando viu o rapaz a aproximar-se (que só pode ser a testemunha BB), a ofendida encontrava-se sentada na paragem do autocarro.
11. Já a versão da ofendida é corroborada não só por BB, como pelos elementos clínicos (que demonstram o atendimento na urgência poucas horas após ter estado com o arguido), pelo relatório pericial (que confirma as lesões) e ainda por CC, o qual nos disse que se ofereceu para levar a ofendida a casa por ter reparado na forma como o arguido olhava para aquela, que trajava um vestido curto e botas altas, sem disfarçar os seus intentos (aliás, a testemunha até acrescentou “eu também olho, mas é preciso disfarçar”
12. Além disso, ficou patente na suas declarações que o recorrente mentiu, pois negou ter agredido a ofendida e que foi desmentido pela testemunha BB, num depoimento marcadamente espontâneo e objetivo, disse-nos que saiu de casa para ir buscar tabaco à bomba de gasolina quando viu a sua vizinha EE a levar pontapés do arguido, em frente ao edifício da junta de freguesia, mas optou por não se meter, pois “é pai de família”, deixando transparecer algum preconceito quanto aos hábitos da ofendida defrequentar cafés sozinha. Todavia, após voltar da estação de serviço aqueles continuavam a discutir, motivo pelo qual foi avisar os pais da ofendida. É certo que a ofendida apenas nos falou em socos, e não em pontapés, mas também não ignoramos que o relatório médico-legal conclui pela existência de lesões nas pernas, sendo normal que a ofendida, naquele contexto (ligeiramente embriagada, conforme admitiu, e a tentar defender-se de um ataque de natureza sexual) não se recorde exatamente de tudo. Aliás, BB, mesmo apesar de interpelado por diversas vezes, foi perentório ao explicar o local, as horas e o modo de atuação do arguido, tendo confirmado que tinha plena visibilidade para o local e mostrando consciência de que deveria ter agido de outro modo.
13. Fazendo-se relevar o tipo de depoimento prestado pela testemunha FF, jovem de 16 anos de idade, que após ter sido confrontado com o seu depoimento, admitiu ter comprado ao recorrente, como bem refere o douto acórdão recorrido: sendo certo que, atenta a sua compleição física, e o facto de estar com a mochila da escola atrás, o arguido não poderia deixar de saber que este era menor.
14. É ainda de referir que o recorrente apenas indicou os pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, mas não indica que outras provas poderiam impor decisão diversa, apenas manifesta a sua discordância em relação à valoração da prova feita pelo tribunal recorrido, alegando erro na sua valoração pelo Tribunal recorrido.
15. Contudo, no presente caso, o recorrente, fazendo no corpo da motivação as especificações previstas no artigo 412.º, n.º 3 do Código do Processo Penal, o que fez, realmente, foi uma interpretação alternativa da prova produzida em audiência, o que sendo compreensível, não é relevante como impugnação da matéria de facto, porque, por um lado, isso corresponderia à reapreciação global da prova produzida, o que, como vimos, não é admissível em sede de recurso, e, por outro ainda, porque corresponde à mera contraposição das suas convicções à do tribunal recorrido.
16. Ainda que assim não fosse, o tribunal, na fundamentação da matéria de facto explicou, com clareza e detalhadamente, o caminho lógico que percorreu para dar como provada aquela matéria e esse caminho foi razoável e corresponde a uma das soluções plausíveis (diremos mesmo, a mais plausível), segundo as regras da experiência. Deve, pois, improceder o recurso.
17. Também não vislumbramos na decisão recorrida qualquer dos vícios previstos no artigo 410., n.º 2 do Código do Processo Penal, que são de conhecimento oficioso e têm que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.
18. Da sua análise podemos concluir que nele se seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova. No caso concreto, não aquilatamos a existência de erro quanto à matéria de facto, quer em termos impugnação ampla, quer restrita, sem que se tivesse vislumbrado qualquer irregularidade relevante.
19. Neste caso específico, nem sequer estamos perante uma verdadeira impugnação da matéria de facto, pois o recorrente não cumpriu nenhum dos pressupostos exigidos pelo disposto no artigo 412.º nº 3 do Código do Processo Penal. O recurso deve improceder quanto à impugnação da matéria de facto.
20. E, tendo, como se verificou, formado a sua convicção com provas não proibidas por lei e seguindo todo um processo lógico e de acordo com as regras da experiência comum, prevalece a convicção do tribunal sobre aquela que formula o Recorrente.
21. Por todo o exposto, o douto acórdão recorrido não merece qualquer censura porque fez correta aplicação do direito à matéria de facto provada, nem violou qualquer disposição legal, pelo que deve ser mantido nos seus precisos termos. Em concreto, o tribunal recorrido fixou a matéria de facto, no estrito cumprimento do artigo 374.º, n.º 2 do Código do Processo Penal, ao contrário do que defende o recorrente.
22. Ao contrário do que a recorrente defende, não temos dúvidas que atentos os factos provados, não podem deixar de se dar como preenchidos os elementos típicos integradores do de um crime de coação sexual, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 163º, nº2 e 23º do Código Penal.
23. Pelo não restam dúvidas, que o recorrente praticou os factos e o fez contra a vontade da ofendida, por o ter feito de forma súbita, surpreendendo-a, e sem que existisse qualquer relacionamento íntimo ou amoroso entre ambas, deixando-a com desconforto e desagrado.
24. Verificado o ato sexual de relevo, mediante constrangimento e a atuação dolosa do recorrente avançamos já no sentido de se encontrarem verificados os elementos objetivos e subjetivos do crime de coação sexual p.p. artigo 163º nº1 e 3 do Código Penal. No mesmo sentido entendemos que o recorrente praticou o crime de furto simples.
25. Quanto à determinação da pena concreta a mesma foi feita dentro destes limites legais. A pena concreta não ultrapassou a medida da culpa, e atendeu às exigências da prevenção geral e especial.
26. Pelo exposto consideramos que a pena de 4 anos e 6 meses de prisão ao arguido é justa, adequada e necessária ao crime cometido e à personalidade evidenciada por aquela, pelo que o Tribunal a quo, ao aplicar tal pena, não violou o disposto nos artigos 40.º, 70.º e 71.º, todos do Código Penal,
27. Por fim sempre se dirá que, no caso “sub judice”, a simples censura do facto e a ameaça da prisão, subjacentes à suspensão de execução da pena, não atingem, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição. Portanto, a prognose feita no caso do arguido destes autos, só poderia ser negativa.
28. Face à postura do arguido, refletida nos próprios factos, e bem assim na sua conduta aquando da sua abordagem inicial, quer durante o julgamento, com a não assunção da sua inteira responsabilidade, revelando uma atitude de indiferença e irrelevância do seu papel, denotam que, afinal, existem necessidade de prevenção especial que devem ser acauteladas com firmeza.
29. Assim, entendemos que tal circunstância é também reveladora de que as necessidades de prevenção especial se evidenciam. Caso contrário o Tribunal a quo estava a “branquear” de forma desadequada um comportamento do arguido e com consequência trágicas e com isso se dar um sinal errado de benevolência desproporcionada.
30. Pelo exposto, o recurso não merece provimento.
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3. Nesta Relação, a Sra. Procuradora-Geral Adjunta, quando o processo lhe foi apresentado, nos termos e para os efeitos do artigo 416º do C.P.P, aderiu aos argumentos constantes da resposta do M.P na 1ª instância, no sentido da improcedência do recurso e, em sustentação dessa mesma improcedência, mencionou o decidido pelo acórdão da Relação de Lisboa de 9.3.2023 (processo 220/19.4GAMTA.L1-9 ), que refere: I. Incumbe ao recorrente definir os termos do seu recurso em matéria de facto, delimitando o respetivo objeto, não lhe bastando enunciar a sua pretensão quanto a um determinado resultado final em termos de facto ou de direito, alegando que da prova produzida não resultam provados os factos do tipo legal ou que não se provou o crime, pelo deverá ser absolvido, de tal modo que tivesse de ser o Tribunal Superior oficiosamente a retirar conclusões sobre quais os factos e provas concretas que se ajustariam à pretensão final do recorrente e dentro destas, quais as passagens relevantes, depois de ouvir a prova gravada na íntegra. Assim não cumprindo o legalmente determinado o recurso apresentado neste segmento, este não pode ser conhecido neste segmento;
II- A violação do princípio “in dubio pro reo”, só ocorre quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente – de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido – pela prova em que assenta a convicção, coisa que de forma patente não aconteceu no caso em apreço. Mais se acrescenta que o “in dubio pro reo” constitui decorrência do princípio da presunção da inocência, consagrado no artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, e dá resposta às situações de dúvida quanto à verificação de determinado facto, impondo que o “non liquet” em matéria de prova seja valorado a favor do arguido(…)”.
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4. Foi cumprido o disposto artigo 417º/2 do C.P.P, tendo o arguido apresentado resposta, na qual reafirma o alegado na motivação e conclusões do recurso.
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5. Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foi o recurso presente à Conferência, cumprindo agora decidir.
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II. Fundamentação:
1. Delimitação do objeto do recurso:
Constitui entendimento consolidado que do disposto no n.º 1, do artigo 412º, do CPP, decorre que o âmbito dos recursos é delimitado através das conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [vide Germano marques da silva, in «Curso de Processo Penal», vol. III, 2ª edição, 2000, pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I.ª Série-A, de 28-12-1995 e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt].
Por razões de lógica procedência, haverá que conhecer em primeiro lugar dos vícios que possam determinar a anulação do julgamento, depois, dos que possam implicar a anulação do acórdão recorrido, seguindo-se o conhecimento amplo da matéria de facto, os vícios do artigo 410º, do CPP e, por fim, as diversas questões de direito segundo a ordem de tratamento na decisão recorrida.
Assim, perante as conclusões do recurso e a mencionada procedência lógica, as questões a decidir, são as seguintes.
- Erro de julgamento;
- Vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto;
- Erro de subsunção;
- Excesso da medida da pena;
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2. A decisão recorrida:
Porque pertinente para apreciação das questões enunciadas, procede-se à transcrição dos seguintes segmentos da sentença recorrida:
I. Fundamentação de Facto
1. Factos Provados
Em sede de audiência de julgamento, e com interesse para a causa, provaram-se os seguintes factos:
1. No dia ... de ... de 2024, cerca das 21H00, quando EE se encontrava no interior do café “...” sito na ..., a consumir bebidas alcoólicas com alguns amigos, o arguido AA entrou e saiu várias vezes do estabelecimento, mas olhando de forma incisiva para a ofendida, chegando a meter conversa com a mesma.
2. Quando, cerca das 21H50, a ofendida EE saiu do estabelecimento e seguia pela 1ª ..., foi a mesma seguida pelo arguido AA de perto o qual, a certa altura, e pretendendo manter com a ofendida relações sexuais, agarrou na mesma por um braço e com a outra mão acariciou a ofendida na cocha da perna direita da ofendida, fazendo movimentos circulares.
3. Quando a ofendida EE se opôs à atuação do arguido, empurrando o mesmo, AA desferiu vários socos que atingiram a ofendida na zona da cabeça, atirando a mesma ao solo, caindo a mesma de joelhos.
4. Quando a ofendida EE se encontrava no solo de costas no chão e impedida de reagir, o arguido AA tirou, contra a vontade da ofendida, as botas que esta trazia calçadas, atirou as mesmas para o interior da viatura de matrícula ..-..-UL, após o que abandonou o local com as mesmas.
5. Em consequência da atuação do arguido a ofendida EE sofreu dores nos locais atingidos, nomeadamente na cabeça e região lombar, e três equimoses tipo anelar na face interna do braço esquerdo, escoriação com crosta na face anterior do joelho direito com 3X2 cm e escoriação com crosta com 2X1 cm localizada na zona infrarotuliana da perna esquerda, lesões que demandaram 7 dias para cura sem afetação da capacidade para o trabalho geral e com afetação de 1 dia da capacidade para o trabalho profissional.
6. Em todas as situações acima descritas o arguido AA agiu de modo livre, deliberado e consciente.
7. Utilizou a força para colocar a ofendida numa posição em que não podia reagir à sua atuação, pretendendo lesar com a sua atuação a liberdade sexual da ofendida.
8. Pretendeu fazer suas as botas pertença da ofendida, bem sabendo que as mesmas lhe não pertenciam e que agia contra a vontade da legítima proprietária das mesmas.
9. Sabia o arguido que as suas condutas eram socialmente desvaliosas e criminalmente puníveis.
Do pedido de indemnização civil:
10. EE deu entrada no ... e foi assistida, onde lhe ministraram cuidados de saúde.
11. Tais cuidados de saúde implicaram uma despesa de 122,07€.
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Das condições socioeconómicas do arguido:
12. À data da prática dos factos (... de ... de 2024), AA, de 57 anos, habilitado com o 6.º ano, encontrava-se integrado no agregado familiar constituído pelo ex-cônjuge, GG, (de 54 anos de idade, doméstica), por dois, dos três filhos do casal, HH (de 33 anos de idade, pensionista por invalidez/ invisual), e II (de 27 anos, desempregado), e pelo neto de 10 anos (filho de HH), estudante, num total de 5 elementos. Mantém, no presente, o mesmo quadro familiar.
13. Este núcleo familiar reside, desde há 6 anos, em casa de habitação social, com boas condições de habitabilidade e conforto, em zona conotada com problemáticas sociais e criminais, tais como tráfico e consumo de estupefacientes, beneficiando de um ambiente coeso e protetor.
14. A satisfação das necessidades básicas e as despesas fixas mensais são asseguradas com o valor mensal da pensão de invalidez, e do subsídio de desemprego, de ambos os descendentes, e com recurso aos rendimentos de trabalho, incertos e variáveis, do arguido, resultado de trabalhos na área da construção civil, essencialmente de pinturas, que realiza por conta própria. Despendem mensalmente 120 € com a renda da habitação, a que acrescem os consumos de eletricidade, água, gás e TV cabo, a rondar os 170€ mensais, a que se somam cerca de 500€ para a alimentação, num total a rondar os 800€.
15. O casal contraiu matrimónio há cerca de 34 anos, união da qual resultaram 3 descendentes, todos já maiores, mas, em resultado de um período longo de reclusão (cerca de 5 anos), e dos comportamentos criminais que resultaram na condenação, o cônjuge requereu o divórcio no ano de ..., alegando que não pretendia que os filhos vivenciassem um ambiente desestruturado por influência paterna.
16. Cumprida a pena de prisão, saiu em liberdade em ..., e procurou reaproximar-se do ex-cônjuge requerendo-lhe abrigo, pedido ao qual acedeu. Contudo, terá retomado hábitos de consumo excessivo de bebidas alcoólicas, que se tornou um problema e desencadeador de condutas criminais, promovendo uma segunda rutura familiar, que o levou a residir com um dos irmãos, até voltar a ser condenado e a cumprir pena de prisão.
17. Reconhecendo esta problemática, procurou apoio para cessar a sua dependência do álcool em ..., recorrendo a internamento na ..., reabilitação que saiu frustrada. Não mais procurou apoio médico especializado para debelar a sua problemática aditiva, declarando que almejou, sozinho, e no âmbito da sua última pena de prisão, uma reabilitação.
18. Após cumprimento de nova pena de prisão efetiva, retomou a liberdade a ...-...-2022 e, segundo a ex-cônjuge, por se verificarem alterações positivas nas atitudes e comportamentos do arguido, aceitou recebê-lo de volta no seio do agregado, restabelecendo laços afetivos, e as rotinas de vida quotidiana, com partilha de momentos comuns e divisão de tarefas. É enfatizada uma alteração no padrão de comportamento no arguido, com impacto positivo na vida familiar, circunstância que não parece consolidada.
19. AA é o mais novo de uma fratria de oito, nascido no seio de um agregado familiar de baixa condição social, tendo beneficiado de um ambiente familiar, segundo o próprio, coeso e protetor, ainda que existam referências a hábitos etílicos da figura paterna, com impactos na dinâmica familiar.
20. As necessidades básicas de subsistência eram asseguradas por via dos rendimentos de trabalho da figura paterna, ficando a mãe a cargo das tarefas domésticas e cuidado aos descendentes.
21. O seu percurso escolar foi marcado por problemas de aprendizagem, mas sem evidenciar problemas de comportamento, e foi interrompido aos 13 anos, após completar o 4.º ano, sem adquirir, de forma consistente, as competências básicas de escrita e leitura. Passou a acompanhar o pai nos trabalhos da exploração agropecuária da família, atividade que manteve até aos 20 anos, idade em que cumpriu o serviço militar obrigatório.
22. Permaneceu integrado no agregado de origem até aos 23 anos, idade em que se casou e se autonomizou do agregado de origem. Os pais já faleceram, mantendo convívio com os irmãos, um dos quais lhe concede, recorrentemente, abrigo em sua casa.
23. Quando contraiu matrimónio foi residir, com a esposa, para um imóvel cedido por familiares, passando a desenvolver a sua atividade profissional no ramo da construção civil, maioritariamente sem contrato de trabalho, realizando trabalhos em nome individual, ou em conjunto com um familiar.
24. Manteve-se, maioritariamente, laboralmente ativo, mas registou alguns períodos de desemprego, existindo um último registo no ... que data de ...-...-2022, e que o arguido justifica com as obrigações judiciais a que esteve sujeito. Informou que, ainda que permaneça com elevadas dificuldades a nível da leitura e escrita, concluiu o 2.º ciclo em meio prisional.
25. O arguido descreveu um quotidiano centrado na família, informando que tem por hábito levantar-se cedo, saindo para trabalhar se para tal for requisitado, realizando uma jornada de trabalho até às 17h, altura em que regressa a casa. Tem por hábito frequentar ao final do dia um Café na freguesia de residência, onde convive com os presentes, reconhecendo que pode ingerir uma cerveja e um copo de vinho à refeição, informação confirmada junto do proprietário, que descreve o arguido como um individuo calmo, de fácil trato e que respeita o Outro, frequentando regularmente aquele espaço, onde convive com terceiros, dedicando-se a jogar às cartas e ao dominó.
26. Para além do descrito, tem por hábito ocupar os tempos livres na pesca junto à costa, e no convívio com os netos e familiares.
27. AA aparenta ser um indivíduo autocentrado, com baixas competências pessoais e sociais, com défices de juízo crítico e reduzida empatia pela vítima.
28. Já foi julgado e condenado:
a) Por sentença de .../.../2014, na pena de 75 dias de prisão, substituída por 75 dias de multa, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez a .../.../2014;
b) Por sentença de .../.../2015, na pena de 6 meses e 15 dias de prisão, suspensa por 1 ano, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez a .../.../2015;
c) Por sentença de .../.../2015, na pena de 72 períodos de prisão, pela prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições a .../.../2015;
d) Por sentença de .../.../2015, na pena de 60 períodos de prisão, pela prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições a .../.../2015;
e) Por sentença de .../.../2015, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, pela prática de um crime de desobediência e de um crime de condução em estado de embriaguez a .../.../2015;
Por sentença de .../.../2016, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez a .../.../2014;
g) Por sentença de .../.../2016, na pena de 8 meses de prisão, pela prática de dois crimes de violação de imposições, proibições ou interdições a .../.../2016;
h) Por sentença de .../.../2017, na pena de 1 ano e 1 mês de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes a .../.../2015;
i) Por sentença de .../.../2021, na pena de 5 meses de prisão, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez a .../.../2021;
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2. Factos Não Provados
Com interesse para a boa decisão da causa, não ficou por provar qualquer facto.
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3. Motivação
O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na análise crítica e ponderada de todos os meios de prova produzidos na audiência de discussão e julgamento, valorados na sua globalidade à luz das regras de experiência comum (artigo 127º do Código de Processo Penal).
Foram assim valoradas as declarações prestadas pelo arguido e pela ofendida EE, devidamente conjugadas com os depoimentos das testemunhas BB (vizinho de EE), CC (amigo da ofendida, que se encontrava no café no dia em questão) e DD (proprietário de um bar que era frequentado pelo arguido e também pela ofendida).
Quanto à prova documental e pericial o Tribunal teve em consideração o auto de denúncia (fls. 12), o relatório de exame médico-legal (fls. 5), as fotografias (64 e 73) e os elementos clínicos (fls. 109) e a fatura junta pelo ....
Concretizando, o arguido começou por confirmar ter entrado no café onde estava a ofendida EE, que a mesma falou consigo e que, à hora do fecho, saíram juntos e ficaram ambos na paragem do autocarro a conversar. Todavia, e uma vez que se recusou a ir comprar mortalhas à ofendida, esta começou a insultá-lo, motivo pelo qual entrou no seu carro e se foi embora, nada mais tendo acontecido.
Já a ofendida disse-nos que achou estranho o arguido ter entrado naquele café, pois nunca o tinha visto ali, motivo pelo qual lhe perguntou se a tinha ido vigiar a mando do seu ex-namorado, que era amigo do arguido, sendo que nada mais aconteceu no interior de tal estabelecimento. No entanto, após o café fechar, dirige-se para casa (na direção da ...) e sente alguém a vir atrás de si, sendo que nesse momento o arguido lhe diz que tem o carro à mais frente e convida-a para ir beber um copo, o que recusou, continuando aquele insistir, tendo-a, inclusivamente, acariciado na coxa. Como forma de pôr termo àquela situação, empurrou-o, sendo que o mesmo, desagradado com tal, empurra-a e começa-lhe a dar punhadas, enquanto fica agachada no chão a proteger-se, tendo isto acontecido à porta da junta de freguesia. De seguida, o arguido puxa-a em direção ao carro, momento em que cai para trás e aquele lhe tira as botas (pensa que tal terá acontecido para a força a entrar no carro). De seguida, pega no telemóvel para tirar fotografia à matrícula do carro do arguido e, quando aquele se apercebe que começa a ligar para a Polícia de Segurança Pública, vai-se embora, levando as botas. Mais acrescentou que não viu ninguém no local que a pudesse socorrer, motivo pelo qual foi descalça para casa e, mais tarde, dirige-se ao ... e, posteriormente, à Polícia de Segurança Pública.
Confrontando as declarações do arguido e o depoimento da ofendida, resulta claro que ambos estiveram no interior do café e que saíram ao mesmo tempo e caminharam juntos até à entrada do edifício da junta de freguesia de ....
Contudo, também resulta claro que o arguido nos mentiu, pois, a testemunha BB, num depoimento marcadamente espontâneo e objetivo, disse-nos que saiu de casa para ir buscar tabaco à bomba de gasolina quando viu a sua vizinha EE a levar pontapés do arguido, em frente ao edifício da junta de freguesia, mas optou por não se meter, pois “é pai de família”, deixando transparecer algum preconceito quanto aos hábitos da ofendida de frequentar cafés sozinha. Todavia, após voltar da estação de serviço aqueles continuavam a discutir, motivo pelo qual foi avisar os pais da ofendida. É certo que a ofendida apenas nos falou em socos, e não em pontapés, mas também não ignoramos que o relatório médico-legal conclui pela existência de lesões nas pernas, sendo normal que a ofendida, naquele contexto (ligeiramente embriagada, conforme admitiu, e a tentar defender-se de um ataque de natureza sexual) não se recorde exatamente de tudo. Aliás, BB, mesmo apesar de interpelado por diversas vezes, foi perentório ao explicar o local, as horas e o modo de atuação do arguido, tendo confirmado que tinha plena visibilidade para o local e mostrando consciência de que deveria ter agido de outro modo.
Acresce que, ao contrário do arguido, que optou por um discurso marcadamente defensivo, começando, logo no inicio das suas declarações, a justificar a sua ida a um café onde nunca foi (“fui pescar para aqueles lados”) e a apelidar a ofendida de mentirosa, drogada e bêbeda, esta apresentou uma versão dos acontecimentos de forma clara e genuína, não empolando os factos e não imputando adjetivos ao arguido, como aquele fez em relação a esta. Aliás, de tal forma o discurso do arguido foi premeditado, que o mesmo, mesmo antes de alguma pergunta ter sido feita, disse que quando viu o rapaz a aproximar-se (que só pode ser a testemunha BB), a ofendida encontrava-se sentada na paragem do autocarro.
Já a versão da ofendida é corroborada não só por BB, como pelos elementos clínicos (que demonstram o atendimento na urgência poucas horas após ter estado com o arguido), pelo relatório pericial (que confirma as lesões) e ainda por CC, o qual nos disse que se ofereceu para levar a ofendida a casa por ter reparado na forma como o arguido olhava para aquela, que trajava um vestido curto e botas altas, sem disfarçar os seus intentos (aliás, a testemunha até acrescentou “eu também olho, mas é preciso disfarçar”).
Assim, e conjugando todos estes meios de prova, nenhuma dúvida restou em como a versão que corresponde à verdade é a da ofendida, sendo que aquele, que pretendia efetivamente manter trato sexual com aquela, não tendo reagido bem à rejeição, reagiu com pancadaria e, tendo-se tornado claro que tirou as botas quando a tentou levar para o carro e só se foi embora quando a mesma ligou para a polícia. A esta conclusão não obsta o depoimento de JJ, o qual já viu a ofendida a causar desacatos no seu bar, pois o mesmo não esteve presente na noite em questão e, conforme nos disse CC, bem como o arguido, a ofendida não causou qualquer desacato dentro do café naquela noite.
Em relação aos elementos subjetivos dos factos imputados ao arguido os mesmos decorrem, ainda, da conjugação da factualidade objetiva apurada com as regras da normalidade e da experiência comum do julgador. Quem atua como o arguido atuou, sem qualquer interferência de elemento perturbador da capacidade intelectual e da vontade, não pode deixar de querer atuar como o descrito, de ter consciência da proibição das condutas e de conformar-se com as consequências legais das mesmas, tanto mais que o arguido já foi condenado por crimes de idêntica natureza.
Quanto à situação pessoal e económica do arguido o Tribunal analisou o relatório social e o depoimento de DD, o qual conhece o arguido há dois/três anos, por frequentar o seu bar, nunca o tendo visto a ser incorreto com ninguém.
Por fim, atendeu-se ao certificado de registo criminal do arguido.
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III. Fundamentação de Direito
1. Enquadramento Jurídico
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Do crime de coação sexual (tentada)
Dispõe o artigo 163º, nº1 do Código Penal que quem, sozinho ou acompanhado por outrem, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar ato sexual de relevo é punido com pena de prisão até 5 anos.
O nº2 de tal artigo prevê um agravação da pena quando o agente, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, ato sexual de relevo.
Em resultado das alterações introduzidas em 2015 e 2019 ao artigo 163º do Código Penal, o seu nº 1 abrange o dissentimento e o “consentimento” constrangido, enquanto o n. 2 se reporta ao constrangimento efetuado pela forma nele tipificada, ou seja, por violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir. Acresce que, para efeito do citado preceito legal, de acordo com o seu nº 3, o conceito de constrangimento traduz-se na prática de ato sexual de relevo contra a vontade da vítima, tendo esta que ser demonstrada ao agente (cognoscibilidade da vontade).
Por outro lado, segundo o Prof. Figueiredo Dias ato sexual é todo aquele (…) que de um ponto de vista predominantemente objetivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado diretamente relacionado com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de determinação sexual de quem o sofre ou o pratica (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra, 1999, pág. 447 e ss.)
No caso concreto dos autos apurou-se que, enquanto caminhava junto da ofendida, o arguido começou por convidá-la para ir tomar um copo, o que aquela recusou, insistindo e que, perante as recusas, começou a acariciar-lhe a coxa, sendo que aquela, para por cobro a tal atuação, empurrou-o, tendo o arguido, nessa sequência, desferido socos e, posteriormente, tentando levá-la para junto do seu carro, o que não conseguiu, ficando, inclusive, com as botas daquela na mão.
Ora, tais atos são atos de relevo que limitam a liberdade e autodeterminação sexual da queixosa de forma grave e com uma intensidade objetiva e capacidade de concretização de intuitos e desígnios sexuais visivelmente atentatórios da autodeterminação sexual, sendo que aquele apenas não conseguiu levar os seus intentos avante por aquela ter resistido.
Assim, e porque o arguido agiu com a intenção concretizada de constranger a ofendida à prática de um ato sexual de relevo, violando a liberdade e dignidade sexual da mesma, o que, todavia, não conseguiu, e inexistindo quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, será condenado pela prática de um crime de coação sexual na forma tentada (artigos 163º, nº2 e 23º do Código Penal).
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Do crime de furto simples
Nos termos do artigo 203º, nº 1 do Código Penal, é punido quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa imóvel alheia, sendo tal crime qualificado quando se verifique alguma das circunstâncias do artigo 204º do mesmo código.
A subtração caracteriza-se pela violação da posse exercida pelo lesado e a integração da coisa na esfera patrimonial do agente ou de terceiro, implicando a eliminação do domínio de facto que outrem detinha sobre a coisa, independentemente de tal coisa ficar ou não pacificamente, por mais ou menos tempo, na posse do agente.
Quanto ao conceito de coisa para efeitos penais, reconduz-se o mesmo a toda a substância corpórea, material, suscetível de apreensão, pertencente a alguém e que tenha um determinado valor, mas juridicamente relevante.
Para a consumação deste crime, exige-se, ainda, um dolo específico: a referida ilegítima intenção de apropriação, a qual se traduz na intenção de o agente, contra a vontade do proprietário ou detentor da coisa furtada, de a haver para si ou para outrem, integrando-a na sua esfera patrimonial, o que se verificou nos presentes autos.
Ora, tendo em conta o que temos provado, não restam que o arguido praticou um crime de furto simples ao retirar e levar consigo as botas da ofendida, não podendo deixar de saber que as mesmas não lhe pertenciam e que agiu contra a vontade da legítima proprietária, pelo que, na ausência de causas de exclusão da ilicitude e/ou da culpa, será condenado também pela prática deste crime.
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3. Apreciação das questões enunciadas:
3.1. Do erro de julgamento:
Sustenta o recorrente que os factos 2), 3), 4) e, por inerência lógica, os factos 7) e 8), foram incorretamente julgados.
O recurso amplo ou recurso efetivo da matéria de facto, previsto no artigo 412º, n.os 3, 4 e 6 do CPP impõe que o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da tomada na sentença e/ou as que deviam ser renovadas.
Esta especificação deve fazer-se por referência ao consignado na ata, indicando-se concretamente as passagens em que se funda a impugnação (artigo 412º, n.º 4 do CPP).
Na ausência de consignação na ata do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente,” de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.03.... (AUJ n.º 3/2012).
O incumprimento das formalidades impostas pelo artigo 412º, n.os 3 e 4, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto por esta via ampla.
Mais do que uma penalização decorrente do incumprimento de um ónus, trata-se de uma real impossibilidade de conhecimento decorrente da deficiente interposição do recurso.
Revertendo ao caso concreto, verifica-se que o recorrente cumpriu ónus da impugnação, pelo que o tribunal, dando cumprimento ao n.º 6, do artigo 412º, do CPP, procedeu à audição das passagens indicadas pelo recorrente e, no que concerne ao depoimento da ofendida EE, procedeu à audição integral do seu depoimento.
Note-se que, como reconhece o próprio recorrente, o erro de julgamento não pode ser confundido com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida e a convicção que o tribunal formou.
Neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, estabelecido no artigo 127.º do CPP, de acordo com o qual a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
A impugnação ampla da matéria de facto, em sede de recurso, não visa a realização de um segundo e novo julgamento, com base na audição de gravações e na reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos, que serviram de fundamento à decisão recorrida, como se esta não existisse. O que se visa é uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especificou como incorretamente julgados, cabendo ao tribunal de recurso confrontar o juízo que sobre esses concretos pontos foi realizado pelo tribunal recorrido com a sua própria convicção, determinada pela valoração autónoma das provas indicadas pelo recorrente.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos da matéria de facto impugnados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando, especificadamente, os meios de prova enunciados nessa decisão e as concretas provas indicadas pelo recorrente e por este consideradas como impondo uma decisão diversa da proferida.
Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É esse o sentido da expressão "provas que impõem decisão diversa da recorrida'', constante da alínea b) do n.° 3 do artigo 412.º do CPP. Que consubstancia um ónus imposto ao recorrente, no sentido de ter de demonstrar que as provas produzidas impõem uma decisão diferente da que foi proferida. "Impor" decisão diferente não significa "admitir" uma outra decisão diferente, mas sim que a decisão proferida, face às provas, não é possível ou não é plausível.
A ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem (cf. al. b) do n.º 3, do artigo 412.º do CPP).
Posto isto, verificamos que as provas indicadas pelo recorrente para impor decisão diversa da proferida são as declarações do arguido, da ofendida e de outras testemunhas que depuseram em audiência de julgamento, de cuja conjugação, no entendimento do recorrente, decorre que não se pode extrair intenção do arguido de constranger a ofendida à prática de ato sexual de relevo, bem como não se pode extrair intenção de apropriação das botas.
Sustenta o Recorrente, relativamente ao crime de coação sexual, que o acórdão apresenta um raciocínio circular e conclusivo, afirmando que “quem atua como o arguido atuou, sem qualquer interferência de elemento perturbador da capacidade intelectual e da vontade, não pode deixar de querer atuar como o descrito, de ter consciência da proibição das condutas e de conformar-se com as consequências legais das mesmas”.
Esta afirmação não resulta de uma análise crítica e fundamentada dos factos provados, outrossim, de uma presunção genérica, sem arrimo na prova e sem suporte na matéria de facto; tampouco na motivação da decisão.
Neste mesmo sentido, o tribunal não fundamenta, com base nos factos provados, a existência de dolo específico, nem a perceção do arguido sobre a oposição da vítima, nem a intenção de constranger à prática de ato sexual de relevo.
Vejamos.
Ouvidas, na íntegra, as declarações do arguido e o depoimento da vítima e, parcialmente os depoimentos das testemunhas identificadas no recurso, verifica-se, como vincado pelo coletivo de juízes na motivação da decisão de facto, que a versão da ofendida é corroborada não só por BB, como pelos elementos clínicos (que demonstram o atendimento na urgência poucas horas após ter estado com o arguido), pelo relatório pericial (que confirma as lesões) e ainda por CC, o qual nos disse que se ofereceu para levar a ofendida a casa por ter reparado na forma como o arguido olhava para aquela, que trajava um vestido curto e botas altas, sem disfarçar os seus intentos (aliás, a testemunha até acrescentou “eu também olho, mas é preciso disfarçar”).
Assim, e conjugando todos estes meios de prova, nenhuma dúvida restou em como a versão que corresponde à verdade é a da ofendida, sendo que aquele, que pretendia efetivamente manter trato sexual com aquela, não tendo reagido bem à rejeição, reagiu com pancadaria e, tendo-se tornado claro que tirou as botas quando a tentou levar para o carro e só se foi embora quando a mesma ligou para a polícia.
Com efeito, pese embora a ofendida tenha verbalizado que o arguido, em momento algum, lhe disse diretamente que com ela pretendia manter relações sexuais, também verbalizou que o mesmo, enquanto a seguia e quanto já estavam parados, lhe disse várias vezes para irem tomar um copo a um sítio que ia gostar, o que foi percecionado pela mesma como vontade de o arguido com ela manter relações sexuais, tanto mais que, esses convites reiterados culminaram com o acariciamento da coxa com movimentos circulares.
Também de extrai do depoimento da ofendida que o arguido a puxou por um braço [minuto 24 da gravação] e que, após o ter empurrado, na sequência de aquele lhe colocado a mão da coxa e persistir na intenção de a levar a tomar um copo, aquele lhe deu socos na zona da cabeça, o que provocou o seu desequilíbrio.
É a partir destes factos bases [puxão do braço e murros na cabeça], que o recorrente não põe em causa que se tenham verificado, que o tribunal extrai a inferência que os mesmos tinham como escopo constranger, pela violência, a vítima a suportar o apalpão na perna, acompanhado de movimentos circulares, o que se mostra conforme as normas de comportamento humano extraídas a partir da generalização de casos semelhantes.
Com efeito, os juízos de inferência, assentes em factos-base, devem assentar num raciocínio lógico dedutivo conforme com as regras de vida e de experiência comum – ou seja de normas de comportamento humano extraídas a partir da generalização de casos semelhantes - ou com base em conhecimentos técnicos ou científicos, comummente aceites.
Apesar de se basear em critérios generalizantes, esse juízo de inferência deverá ter em consideração o concreto contexto histórico em que se inserem os factos individualizados, com a concorrência de todas as especificas circunstâncias aí relevantes.
A eficácia do juízo de inferência depende da existência de uma ligação precisa e direta entre a afirmação base e a afirmação consequência, por forma a permitir uma conclusão segura e sólida da probabilidade de ocorrência do facto histórico probando.
Se existe a possibilidade razoável de uma solução alternativa, ou de uma explicação racional e plausível diferente, dever-se-á sempre aplicar a mais favorável ao acusado, de acordo com o princípio in dubio pro reo.
Transpondo estas considerações para o caso concreto, verifica-se que o arguido, seguindo no encalço da vítima, após esta ter saído do café, lhe formulou reiteradamente convite para tomar um copo, no sítio que ia gostar e, perante o facto de a vítima lhe ter dito, reiteradamente que não, lhe puxou o braço e simultaneamente, tocou-lhe na coxa, fazendo acompanhar tal toque de movimentos circulares.
Perante este contexto, ou seja, de negação do convite para tomar um copo, não oferece dúvida razoável, que o puxão do braço teve com escopo constranger a vítima a suportar o toque na coxa, que, nesse mesmo contexto, não pode deixar de ter conotação sexual.
Embora, os murros na cabeça, dado que se seguiram ao empurrão que a vítima desferiu no arguido, ao ver-se puxada por um braço e acariciada, contra sua vontade, na coxa, possam, em tese, fundar a inferência sugerida pelo arguido, ou seja, que foram uma reação ao empurrão e não um ato que visava constranger a vítima, tal juízo de inferência não oferece plausibilidade equivalente ao juízo de inferência no sentido de considerar que o arguido agrediu a ofendida para continuar a forçá-la a manter contacto sexual, sustentada pelo coletivo de juízes.
Com efeito, os atos subsequentes do arguido, que culminaram com a apropriação das botas da vítima por parte do arguido, sugerem que os murros foram preordenados ao constrangimento e não mera reação ao empurrão.
Não estamos, pois, perante duas possibilidades razoáveis de valor equivalente, pelo que não cumpre fazer funcionar o princípio in dúbio por reo.
Por outro lado, pode-se afirmar, para além da dúvida razoável, que a conduta do arguido foi efetuada contra a vontade da mesma, o que não podia deixar de ser cognoscível para a arguido, na medida em que, em momento anterior à prática de tal ato, a ofendida não lhe deu a entender, por palavras ou por gestos concludentes, que consentia que o mesmo tivesse lugar e, além disso, o arguido praticou tal ato de surpresa, o que configura um meio de constrangimento pelas razões que se farão constar aquando da questão do erro de subsunção dos factos ao direito.
Sendo assim, não se pode afirmar que ocorreu erro de julgamento, capaz de conduzir à modificação da matéria de facto pelo Tribunal de recurso, nos termos dos artigos 412º, nº 3 e 431º, alínea b), ambos do Código de Processo Penal, pois o mesmo, no que caso interessa, só poderia ser afirmado no caso de ter ocorrido violação das regras da prova, nomeadamente, insuficiência do facto base dado como provado, para sustentar o juízo de inferência posto em crise pelo recorrente, o que, pelas razões expostas, não sucedeu.
Termos em que, nesta parte, o recurso improcede.
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No que concerne ao crime de furto, também não assiste razão ao arguido no que se refere à ausência de fundamentação do “dolo específico”, pelas razões que passamos a expor.
Da conjugação do disposto nos artigos 13º, 14º e 203º, n.º 1 e 204º, Código Penal, o tipo subjetivo do crime de furto exige o dolo.
O Código Penal não define o dolo do tipo, mas apenas, no seu artigo 14º, cada uma das formas em que ele se analisa.
Não obstante, é a doutrina hoje dominante, a cujo entendimento nos acolhemos, que, na sua formulação mais geral, o dolo pode ser conceitualizado como o conhecimento (representação) e vontade de realização do facto material típico [Figueiredo Dias, com a colaboração de Maria João Antunes; Susana Aires de Sousa; Nuno Brandão e Sónia Fidalgo, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais; A doutrina Geral do Crime, 3ª edição, outubro de 2019, § 4, p. 407], constituído pelos elementos objetivos, naturalísticos ou normativos de uma infração.
Engloba, assim, os elementos:
a) intelectual - a exigência de que o agente conheça as circunstâncias de facto que pertençam ao tipo legal – e;
b) volitivo - a vontade ou desejo de produzir certo resultado ou ato.
O último elemento confere ao dolo três graus distintos, consoante o agente atue: com intenção de realizar o facto ilícito - dolo direto [cf. artigo 14º, n.º 1, do Código Penal]; a realização do facto típico seja consequência necessária, mas não diretamente desejada, da sua conduta - dolo necessário [cf. artigo 14º, n.º 2, do C.P.]; a realização do facto típico seja consequência possível, da sua conduta e, não obstante, o agente atue conformando-se com essa realização - dolo eventual [cf. artigo 14º, n.º3, do C.P.].
Assim sendo, o agente tem de representar que subtrai coisa móvel alheia.
Ao dolo ora em análise, seja na forma direta, necessária ou eventual, tem de estar acoplado ao elemento “ilegítima intenção de apropriação”, isto é, ao primeiro momento lógico em que se tem de verificar uma intencionalidade exclusivamente virada para a (des)apropriação outra se tem de seguir imediatamente no sentido da apropriação [Faria Costa, ob. cit., p. 57, § 54].
A ilegítima intenção de apropriação, segundo Faria Costa [in ob. cit., p. 38, § 32], a cujo entendimento nos acolhemos, configura um elemento subjetivo do tipo de ilícito, que faz do furto um crime intencional, no sentido da intenção de apropriação dever ser vista e valorada como vontade intencional do agente de se comportar, relativamente à coisa móvel, que sabe não ser sua, como sendo seu proprietário, querendo, assim, integrá-la na sua esfera patrimonial ou na de outrem, manifestando assim, em primeiro lugar, uma intenção de (des)apropriar terceiro, mediante um ato de usurpação [animus sibi rem habedi].
Coisa diferente da intenção, é motivação com que o agente perpetra a infração, a qual não exclui a punição (v.g.: mesmo que alguém furte para dar a um pobre, tal conduta não deixa de ser punida pela lei).
Esta intenção é um elemento subjetivo especial do tipo de ilícito e que, segundo este autor, nada tem a ver com a noção de dolo específico ou do dolo que representa este elemento como fazendo parte do tipo subjetivo.
Na mesma linha, Figueiredo Dias, na 3ª edição sua obra Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime [escrita com colaboração de Maria João Antunes; Susana Aires de Sousa; Nuno Brandão e Sónia Fidalgo, página 444, § 58], sustenta que a intenção de apropriação no crime de furto não tem (nem deve) confundir-se com o dolo da subtração [Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 3ª edição (…), página 444, § 58], pois tal intenção de apropriação, assim como como a intenção de enriquecimento ilegítimo no crime de burla e intenção de causar prejuízo, no crime de falsificação, constituem especiais elementos subjetivos, que não se confundem com os elementos pertencentes ao dolo do tipo, pois ainda que se liguem à vontade do agente de realização do tipo, o seu objeto situa-se fora do tipo objetivo de ilícito, não havendo, por isso, na parte que lhe toca, uma correspondência ou congruência entre o tipo objetivo e subjetivo.
Todavia, cumprem a função de individualizar uma espécie de delito, de tal forma que, quando eles faltam, o tipo de ilícito daquela espécie de delito não se encontra verificado [Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 3ª edição (…), página 444, § 58].
Revertendo ao caso dos autos tendo presentes estas considerações, o tribunal fundamentou o mencionado o elemento subjetivo especial do tipo de ilícito, da seguinte forma:
Em relação aos elementos subjetivos dos factos imputados ao arguido os mesmos decorrem, ainda, da conjugação da factualidade objetiva apurada com as regras da normalidade e da experiência comum do julgador. Quem atua como o arguido atuou, sem qualquer interferência de elemento perturbador da capacidade intelectual e da vontade, não pode deixar de querer atuar como o descrito, de ter consciência da proibição das condutas e de conformar-se com as consequências legais das mesmas, tanto mais que o arguido já foi condenado por crimes de idêntica natureza.
Ao remeter para a factualidade objetiva, conjugada com as regras da experiência comum, o tribunal está a sustentar que em face do facto de o arguido ter pegado nas botas da ofendida e colocá-las no seu veículo automóvel, ausentando-se do local, sem que tenha vindo a devolver tais botas, se quis apropriar das mesmas, razão pela fez constar no facto 8) “pretendeu fazer suas as botas pertença da ofendida”, dando, pois, por verificado o referido elemento subjetivo especial do tipo de ilícito, o que se mostra conforme às regras da experiência comum.
Com efeito, o tribunal não tem que se pronunciar sobre um eventual abandono ou a devolução das botas, em momento posterior à apropriação, salvo se tiver sido produzida prova sobre tal abandono ou devolução, o que não foi o caso.
O furto é um crime instantâneo, verifica-se no exato momento que o arguido, de forma intencional, fez suas as botas.
Ainda que o arguido por desinteresse ou medo de ser encontrado na posse das botas, as viesse a abandonar, ou, por arrependimento, as viesse a devolver à ofendida, tal seria irrelevante para a consumação do crime, assumindo apenas relevância para uma eventual atenuação especial da pena por, voluntariamente, ter restituído a coisa subtraída [artigo 206º, n.º 2, do Código Penal].
O agente que subtrai uma carteira com documentos e dinheiro e, posteriormente vem a abandonar a carteira e os documentos, ou a colocar tal carteira e documentos na caixa do correio do dono, para que este possa recuperar tais objetos, não deixa de se apropriar da carteira e dos documentos, na medida em que a apropriação da carteira e documentos é condição necessária para a consumação da intenção de apropriação do dinheiro e, como tal, essa intenção abrange, de forma necessária, a apropriação da carteira e dos documentos.
Da mesma forma, é irrelevante que o arguido tenha agido por impulso, motivado pelo facto de ter sido empurrado pela ofendida, tendo ficado com a botas como forma de punição da mesma.
Como acima ficou dito, intenção não se confunde com motivação.
A conduta do arguido consubstanciada em retirar as botas à ofendida, colocá-las no seu veículo automóvel e afastar-se do local na posse das mesmas, permite a inferência, para além da dúvida razoável, que agiu com vontade intencional de se comportar, relativamente à coisa móvel, que sabe não ser sua, como sendo seu proprietário, querendo, assim, integrá-la na sua esfera patrimonial, ainda que motivado pelo desejo de punição da ofendida.
Quis desapropriá-la de um bem, levando-o consigo, sendo indiferente o motivo porque o fez.
Termos em que, também nesta parte, improcede o recurso.
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2. Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada:
Alega o Recorrente que a sentença recorrida enferma do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no artigo 410º nº 2, alínea a), CPP, o qual existe quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação (e a medida desta) ou a absolvição (existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito.
Existirá insuficiência para a decisão da matéria de facto se houver omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa [neste sentido, entre outros, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.10.2013, Proc. 53/12.9GACUB.S1, 5ª seção, e de 13.11.2013, proc. 33/05.0JBLSB.C1.S2, 3ª secção; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, 2007, Rei dos Livros, pág. 69].
O seu significado prático é o de que a matéria de facto provada, pela sua insuficiência, não permite fundamentar a solução de direito, ou não foi investigada toda a matéria de facto relevante para a decisão e que constituía o objeto do processo, cobrindo assim tanto as situações em que o tribunal recorrido extravasa as premissas da decisão como aquelas em que omite a pronúncia sobre factos de que deveria ter conhecido, aferição que não terá que resultar necessariamente no âmbito da decisão concretamente proferida, antes devendo ser enquadrada no leque das soluções plausíveis de direito, respeitado que seja o âmbito da vinculação temática do tribunal.
Estas afirmações devem ser interpretadas no âmbito daquilo que são os limites objetivos do thema probandum. O âmbito da matéria de facto de pronúncia obrigatória pelo tribunal decorre da conjugação das normas dos artigos 124º, 339º, nº 4, 368º, nº 2 e 374º, nº 2. Assim, serão objeto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis, bem como os factos relevantes para a determinação da responsabilidade civil. Tanto podem ser factos alegados pela acusação como factos alegados pela defesa, ou mesmo factos resultantes da prova produzida em audiência (cf. artigo 339º, nº 4). Têm é que ser factos relevantes para as questões enunciadas nas diversas alíneas do nº 2 do artigo 368º; e, ressalvados os factos atendíveis resultantes da audiência, aí incluídos os que se traduzam numa alteração não substancial devidamente comunicada ou de uma alteração substancial aceite pelos sujeitos processuais, terão que ser factos previamente alegados numa das peças processuais em que podem ser submetidos à apreciação do tribunal. Com efeito, é em função dos factos de pronúncia obrigatória pelo tribunal que se afere o vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão, sendo indiferente que tenham sido considerados provados ou não provados. O que releva é que tenham sido averiguados e que o tribunal sobre eles se tenha pronunciado. Fora deste âmbito, a insuficiência da matéria de facto para a decisão que veio a ser proferida não traduz o vício do art. 410º, nº 2, al. a), mas sim um erro de direito na prolação da decisão por as premissas não consentirem a decisão que veio a ser proferida [Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, 3ª edição Revista, Almedina anotação 4 ao artigo 410º, pp. 1292/1293].
Transpondo as considerações que antecedem para o caso sub judice, procura o recorrente fazer assentar a verificação do vício numa ausência pelo tribunal de qualquer análise ou conclusão sobre aspetos essenciais para a subsunção dos factos ao tipo legal do artigo 163.º, n.º 2, do Código Penal, o mesmo sucedendo relativamente ao crime de furto, p. e p. pelo artigo 203º, n.º 1, do CP.
Com efeito, na perspetiva do recorrente no texto da decisão recorrida, não se apura, outrossim, nem se fundamenta, se o ato praticado pelo arguido (acariciar a coxa) constitui, em si mesmo, um “ato sexual de relevo” à luz da perspetiva do homem médio (não na perspetiva de vítima), tal qual o refere a jurisprudência; nem se o comportamento do arguido foi idóneo a constranger a vítima à prática de tal ato, ou ainda, se se tratou de um contacto físico não consentido, mas destituído da gravidade exigida pelo tipo legal, porquanto não limitador da liberdade e autodeterminação sexual da vitima – menos ainda de forma grave e intensa em ordem a que “à vitima não reste outra alternativa que não a ausência de resistências” (como bem ensina Inês Leite), enquanto elemento essencial para a agravação do tipo legal (n.º 2 do artigo 163.º do CP).
Até porque, tal qual resulta do ponto 3 dos factos provados da decisão recorrida, a ofendida EE, opôs-se à atuação do arguido, empurrando o mesmo.
O texto da decisão recorrida limita-se a descrever a sequência dos factos, sem curar de analisar se, do ponto de vista subjetivo, o arguido agiu com o dolo específico de constranger a vítima à prática de ato sexual de relevo, ou se a sua conduta se ficou por um impulso momentâneo, sem a intenção de atingir o resultado típico.
Já no que se refere ao crime de furto, sustenta o recorrente, que do texto da decisão recorrida resulta como provado que o arguido “tirou, contra a vontade da ofendida, as botas que esta trazia calçadas, atirou as mesmas para o interior da viatura, após o que abandonou o local com as mesmas”.
Contudo, após leitura atenta, não resulta do texto da decisão que o arguido agiu com o dolo específico de apropriação definitiva das botas, elemento essencial do tipo legal do artigo 203.º do Código Penal.
Não resulta da mera leitura do texto da decisão recorrida, se as botas foram efetivamente integradas na esfera patrimonial do arguido, ou, ao invés, se foram abandonadas, devolvidas, ou ainda, se a posse das mesmas resultou de um ato impulsivo no quadro de um altercação, desprovida de intenção de subtração.
Perante o ora exposto e ressalvado o devido respeito, é nosso entendimento que não está em causa o vício previsto na al. a) do nº 2 do artigo 410º do CPP, mas sim, em causa a verificação dos elementos típicos dos crimes de coação sexual e furto, a apreciar no âmbito da subsunção dos factos ao direito aplicável (questão de que conheceremos mais adiante).
Com efeito, como acima ficou exarado é em função dos factos de pronúncia obrigatória pelo tribunal que se afere o vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão, sendo indiferente que tenham sido considerados provados ou não provados. O que releva é que tenham sido averiguados e que o tribunal sobre eles se tenha pronunciado, o que sucedeu, dado que se fizeram constar da sentença todos os factos que já constavam da acusação, procedendo-se, apenas a uma alteração da qualificação jurídica dos mesmos, que foi oportunamente comunicada.
Em conformidade com a comunicada alteração da qualificação jurídica, o tribunal, na subsunção dos factos ao direito, entendeu que os mesmos consubstanciavam os crime de coação sexual, na forma tentada, e um crime de furto, e não um crime de importunação e um crime de roubo de que o arguido se encontrava acusado.
Todo os factos objeto do thema probandum constam do acórdão e o tribunal emitiu pronúncia sobre os mesmos.
Se fez de forma correta, não é questão da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, mas de eventual erro de subsunção, a apreciar em sede própria.
Termos em improcede o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
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3. Do erro de subsunção:
1. Do crime de coação sexual:
Insurge-se o recorrente contra a qualificação jurídica efetuado pelo tribunal coletivo, sustentando que os atos descritos como praticados pelo arguido, não se enquadram definitivamente no conceito de ato sexual de relevo.
Tampouco, o facto provado de a ofendida EE se ter oposto à atuação do arguido, empurrando o mesmo, consente a verificação da agravante do tipo incriminador.
Vejamos.
Para aferir quais os elementos constitutivos do crime de coação sexual, importa ter presentes os seguintes normativos do Código Penal:
Artigo 13.º
Dolo e negligência
Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência;
Artigo 14.º
Dolo
1 - Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, atuar com intenção de o realizar;
2 - Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta;
3 - Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente atuar conformando-se com aquela realização;
Artigo 26.º
Autoria
É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte direta na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução.
Artigo 163º
Coação sexual
1 - Quem, sozinho ou acompanhado por outrem, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar ato sexual de relevo é punido com pena de prisão até 5 anos.
2 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, ato sexual de relevo é punido com pena de prisão de um a oito anos.
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática de ato sexual de relevo contra a vontade cognoscível da vítima.
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática dos atos referidos nas respetivas alíneas a) e b) contra a vontade cognoscível da vítima.
Os normativos acabados de transcrever, revelam que o tipo incriminador de coação sexual [seja na sua forma matricial, seja na forma agravada, seja na forma tentada, seja na forma consumada] foi construído como um delito doloso de ação, o qual, a semelhança de todos os delitos dolosos de ação, apresenta uma estrutura complexa, composta por elementos de natureza objetiva e de natureza subjetiva e com os quais é possível, respetivamente, apreender um tipo objetivo e um tipo subjetivo [Figueiredo Dias - com a colaboração de Maria João Antunes; Susana Aires de Sousa; Nuno Brandão e Sónia Fidalgo -, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais; A doutrina Geral do Crime, 3ª edição, outubro de 2019, p. 329, § 1º], os quais se passam a explicitar nos termos que se seguem.
A) Tipo objetivo de ilícito:
Acolhendo-nos ao ensinamento de Figueiredo Dias [in p. 342, § 20, da obra citada no parágrafo anterior], que se passa a expor com algum desenvolvimento [não por mero capricho de exibição de erudição, mas porque o mesmo é prenhe na revelação de conceitos verdadeiramente operativos, isto é, com grande relevância prática para efeitos de subsunção da factualidade provada ao tipo de crime análise], é possível identificar, no tipo objetivo de ilícito, os seguintes conjuntos de elementos:
- Os que dizem respeito ao autor, pois, vem sendo entendimento pacífico que o autor da ação, apesar da sua natureza “subjetiva” ou “intersubjetiva”, é elemento constitutivo do tipo objetivo de ilícito [vide Figueiredo Dias, in ob. e loc. cit.; Teresa Beleza, in Direito Penal II, pp. 116 e ss.; Henrique Salinas Monteiro, in Comparticipação em Crimes Próprios, Lisboa, Universidade Católica Editora, 1999, p. 11 e José Lobo Moutinho, in Da Unidade à Pluralidade dos Crimes no Direito Penal Português, p. 255];
- Os relativos à conduta, que assumem a função de delimitação ou função negativa de excluir da tipicidade de comportamentos jurídico-penalmente irrelevantes [cf. Figueiredo Dias, in ob. cit., pp. 355/356, §37]. Nos elementos relativos à conduta encontramos a descrição da(s) ação(ões) típica(s) e, nalguns casos, o objeto da ação.
- Os relativos ao bem jurídico [configurado como expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, constituindo um bem em si mesmo, como tal, juridicamente protegido], que não se confundem com os elementos relativos ao objeto da ação, os quais se apresentam como uma manifestação real da noção do mesmo [Figueiredo Dias, in ob., cit., p. 359, § 44 e Maria Felino Rodrigues, in “As incriminações de Perigo e o Juízo de Perigo no Crime de Perigo Concreto”, p. 22, nota 15, em que a autora refere que na doutrina alemã se distingue entre o Tatobjekt (que corresponde ao objeto material do crime/ação), por contraposição ao Rechtsgutsart (que corresponde o bem jurídico-valor, bem jurídico-categoria)].
Analisemos cada um desses conjuntos relativamente ao crime que nos ocupa, começando pelo bem jurídico protegido, dado que uma correta interpretação dos elementos que dizem respeito ao autor e à conduta pressupõe, antes de mais, a determinação do respetivo objeto de tutela [dito de outra forma, o modus aedificandi criminis, reflete a opções do legislador relativamente ao bem jurídico a proteger].
1. Elementos referentes ao bem jurídico protegido:
O bem jurídico protegido pelo crime matricial, previsto no artigo 163º, do Código Penal é a liberdade e autodeterminação sexual, na vertente de autoconformação da vida e da prática sexuais da pessoa: cada pessoa adulta tem o direito de se determinar como quiser em matéria sexual, seja quanto às práticas a que se dedica, seja quanto ao momento ou ao lugar em que a elas se entrega ou ao(s) parceiros), também adulto(s), com quem as partilha – pressuposto que aquelas sejam levadas a cabo em privado e este(s) nelas consinta(m) [nestes exatos termos se expressa Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2ª edição, nótula que antecede o artigo 163º, pp. 711 § 3º de fls. 175., a cujo entendimento nos acolhemos].
Nesta medida, o crime de coação sexual é um crime de dano, ou seja, impõe uma lesão efetiva do bem jurídico liberdade ou autodeterminação sexual [Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo , 3ª edição, p. 360., e Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4º edição atualizada, anotação 7 ao artigo 163º, p. 696].
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2. Elementos referentes ao autor:
O artigo 163º, do Código Penal não atribui à pessoa pressuposta no vocábulo “quem” uma determinada qualidade ou sobre mesma faz recair um dever especial, pelo que pode ser cometido por qualquer pessoa individual [ou sendo a vítima menor, também pessoa coletiva, conforme decorre n.º 2, do artigo 11º, do Código Penal], como tal, consubstancia um crime comum [sobre o conceito de crime comum, por contraposição aos crimes específicos, vide, para maiores desenvolvimentos, Figueiredo Dias, com colaboração de Maria João Antunes; Susana Aires de Sousa; Nuno Brandão e Sónia Fidalgo, in ob., cit., pp. 353/354, § 34º].
Quanto ao conceito de autor, rege o acima transcrito artigo 26º [1ª preposição, a única que nos interessa para o caso que nos ocupa], segundo o qual é autor quem executar o facto, por si mesmo.
Nos delitos dolosos de ação, o direito português consagra, um conceito restritivo de autor, ancorado na chamada teoria do «domínio (funcional) do facto». A ideia central da referida teoria pode traduzir-se, de forma sintética e conclusiva, nos seguintes termos: autor é quem domina o facto, quem dele é “senhor”, quem toma a execução “nas suas próprias mãos”, de tal modo que dele depende decisivamente o se e o como da realização típica [Cf. Figueiredo Dias - com a colaboração de Maria João Antunes; Susana Aires de Sousa; Nuno Brandão e Sónia Fidalgo- , in ob., cit., p. 894, §16º]. Quando é o próprio agente que procede à realização típica, quem leva a cabo o comportamento com o seu próprio corpo estamos no chamado domínio da autoria imediata [Roxin, in “Autoria e Domínio do Facto» com 1ª edição em de 1963, e 7ª edição de 2000, apud Figueiredo Dias, in ob., cit. na nota anterior, § 19, p. 896 e apud Conceição Valdágua, in Início da Tentativa do Coautor, Contributo para a Teoria da Imputação do Facto na Coautoria, 2ª Edição, Lex, Lisboa, 1993. P. 31, 133 e ss. e 145 e ss].
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3. Elementos referentes à conduta:
No que concerne ao crime matricial, previsto no n.º 1, do artigo 163º, o conteúdo da ação é sofrer ou praticar ato sexual de relevo.
A distinção entre sofrer e praticar quer significar apenas a distinção entre um comportamento, do ponto de vista sexual, puramente passivo ou ativo da vítima [Figueiredo Dias, in ob., cit., p. 722].
No que concerne ao elemento típico constranger, em face do disposto no n.º 3, do artigo 163º, o mesmo corresponde a qualquer meio, não previsto no artigo anterior [ou seja, diferente da violência, ameaça grave ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir], empregue para a prática de ato sexual de relevo contra a vontade cognoscível da vítima.
O n.º 3, do artigo 163º, do Código Penal foi aditado pela pela Lei n.º 101/2019, de 6 setembro, que também procedeu a uma reordenação dos números 1 e 2, a qual procurou respeitar as obrigações assumidas pela assinatura e ratificação, por Portugal, da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica7, comummente designada de Convenção de Istambul, a qual, no que concerne à criminalização da coação sexual e da violação, estipula no seu artigo 36.º, o seguinte:
1. As Partes tomarão as medidas legislativas ou outras necessárias para assegurar a criminalização das seguintes condutas intencionais: a) A penetração vaginal, anal ou oral não consentida, de caráter sexual, do corpo de outra pessoa com qualquer parte do corpo ou com um objeto; b) Outros atos de caráter sexual não consentidos com uma pessoa; c) Obrigar outra pessoa a praticar atos de caráter sexual não consentidos com uma terceira pessoa.
2. O consentimento deve ser dado voluntariamente, por vontade livre da pessoa, avaliado no contexto das circunstâncias envolventes;
3. As Partes tomarão as medidas legislativas ou outras necessárias para assegurar que as tais disposições apliquem também a atos cometidos contra atuais ou ex-cônjuges ou parceiros, em conformidade com o direito interno.
A atual redação atual tornou claro que o meio utilizado será objetivamente típico sempre que tiver causado a prática de um ato sexual de relevo em dissintonia com a vontade da vítima. Fica assim, em letra de lei, plasmada uma relação umbilical entre a constrição e (ausência de) vontade a vítima [nestes termos, José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro, in Crimes Sexuais, análise substantiva e processual, Almedina, 2019, pp. 67/68].
O ponto crucial passou a ser a existência de uma vontade contrária ao ato sexual de relevo. Se tal acontecer (e for cognoscível) qualquer que tenha sido a causa (o meio), estamos objetivamente perante uma coação sexual [José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro, in ob., e loc., cit.].
O legislador português adotou, pois, o modelo do constrangimento/dissentimento, uma vez que este último consiste na vontade contrária da vítima à prática daquele ato, o que acaba por representar a totalidade das situações em que verificamos o constrangimento.
Com efeito, uma vez que se a vítima expressou a sua não concordância com aquele ato, esse mesmo ato – dissentido –, a acontecer a partir desse momento é necessariamente constrangido.
Este é o modelo em que impera a ideia de que o “não é não”, devendo ser respeitado.
No sentido apontado Anabela Rodrigues [in A reforma permanente dos crimes sexuais no ordenamento jurídico-penal português”, 2020 in Reformas Penales en la Peninsula Ibérica, A Jangada de Pedra, Agência Estatal, p. 288] para quem, «ao constrangimento bastará apenas o dissentimento da vitima, a prática ou sofrimento de atos de cariz sexual contra vontade da vitima não exigindo violência do agressor (agarrar, bater, empurrar p. ex.), nem a resistência da vítima, exige sim a oposição intima séria desta.». Pensamento este acompanhado por Pedro Caeiro [in “Observações sobre a projetada reforma do regime dos crime sexuais e do crime de violência doméstica”, junho de 2019, publicado in www.parlamento.pt./Actividade Parlamentar/Paginas/DetalheAudicao.aspx?BID=1122563], que acrescenta que «a consagração deste modelo – conhecido na literatura por “no means no” – evidencia a desnecessidade do uso de força ou ameaças para a realização típica, mas impõe às pessoas, em geral, o ónus de comunicar o dissentimento, por qualquer forma objetivamente adequada, de maneira a que o/a destinatário/a interrompa a referida sucessão de atos conducente à prática sexual, pois, a partir desse momento, o prosseguimento dos mesmos integrará já a área de tutela típica».
Em suma, o tipo fundamental fala agora em constrangimento através de qualquer meio, pelo que estamos perante um crime de execução livre.
Ou seja, os meios aptos a suprimir ou limitar a vontade da vítima podem ser verbais, gestuais ou através de qualquer outro meio. O único requisito é que tenha sido causa da vítima se sentir constrangida a praticar ou a sofrer o ato sexual de relevo, nomeadamente submeter-se ao ato sexual de relevo apesar de não ter essa vontade ou de não ter a capacidade para a manifestar de forma livre e esclarecida [José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro, in ob., cit. p. 69].
O uso de violência ou ameaça grave e a colocação da vítima em estado de inconsciência e impossibilidade resistir, previsto no n.º 2, do artigo 163º, consubstanciam tão só meios vinculados que qualificam o ilícito e, como tal, merece uma punição mais grave.
Pese embora, se imponha às pessoas, em geral, o ónus de comunicar o dissentimento, por qualquer forma objetivamente adequada, de maneira a que o/a destinatário/a interrompa a referida sucessão de atos conducente à prática sexual, situações existem que em que tal comunicação não se mostra possível, nomeadamente quando o ato é praticado de surpresa.
Nestes casos, a surpresa pode e deve ser qualificada como constrangimento, nos termos em que se encontra definido na lei, uma vez que «o agente não dá à vítima a oportunidade de se pronunciar sobre eles, em circunstâncias que não permitem admitir que ela não os recusaria» [nestes termos Pedro Caeiro, in ob. cit.].
No mesmo sentido José Mouraz Lopes/Tiago Caiado Milheiro [in ob., cit., p. 73], que referem que a vontade contrária abarca os casos de falta de vontade, de vontade condicionada ou quando nem sequer se dá possibilidade de exprimir a sua vontade, sendo de presumir o seu dissenso (ações surpresa, como por exemplo um apalpão zonas genitais).
Com igual pertinência veja-se Liliana Cristina Correia Gomes [in As alterações de 2019 ao Código Penal em matéria de crimes sexuais: os crimes de Coacção Sexual e Violação, Julgar Online, dezembro de 2020, pág.17.], onde acerca da problemática dos “ataques surpresa”, refere que “deve respeitar-se a rejeição expressa verbalmente ou através de qualquer outro meio comunicativo, porque o cerne da infração penal é a recusa do agente em respeitar o direito à liberdade sexual negativa”.
Por fim, relativamente ao que deva entender-se por ato sexual de relevo, que releva para efeitos típicos, é questão altamente controversa e discutível.
A esse respeito, como evidenciado por Figueiredo Dias [In Comentário Conimbricense (…), 2ª edição, § 8 da anotação ao artigo 163º, pp. 718/721], podem ser defendidas três posições, a saber:
- Posição objetivista, segundo a qual constitui ato sexual típico aquele que, atenta a sua manifestação externa, revela uma conexão com a sexualidade [defendida entre nós por Paulo Pinto de Albuquerque - In Comentário ao Código Penal (…), 4º edição atualizada, UCE, nota prévia ao artigo 163º, anotação n.º 2, p. 695 - e Inês Ferreira Leite, in Pedofilia, Repercussões da Novas Formas de Criminalidade na Teoria Geral da Infração, Coimbra Editora, p. 96];
- Posição subjetivista, que é mais restrita que anterior, porque exige não só a conotação objetivista, como ainda a intenção do agente em despertar ou satisfazer, em si ou em outrem, a excitação sexual, dita também intenção libidinosa [Segundo Figueiredo Dias ob. e loc., cit., esta a posição aparentemente maioritária da jurisprudência portuguesa, na sua anotação ao artigo 163º, mas não concordamos em face da evolução jurisprudencial entretanto ocorrida- cf. infra].
- Posição mista, que defende ser o conceito de ato sexual de relevo integrado tanto pela ação objetivista como subjetivista [Assumida por LACKNER, apud Figueiredo Dias, in ob., e loc., cit.].
Tomando posição, Figueiredo Dias [in ob., cit., pp. 718/719.], sustenta que à interpretação objetivista deve conferir-se prevalência decidida, considerando por via de princípio irrelevante (ressalvada, naturalmente, a exigência de dolo-do-tipo, nele contida a referência sexual do ato) o motivo da atuação do autor. Ato sexual será assim todo aquele comportamento que, de um ponto de vista predominantemente objetivo e segundo uma compreensão natural, assume uma natureza, conteúdo ou um significado diretamente relacionados com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de determinação sexual de quem sobre ou pratica. Em situações excecionais (v.g. exames corporais, fotografias), deverá acrescer uma conotação subjetiva.
Também nós tomamos posição pela conceção objetivista, a que, em situações excecionais, deverá acrescer uma conotação subjetiva.
Por outra banda, à exigência de que o ato se deva considerar de relevo, como salienta Figueiredo Dias, [in ob., cit., pp. 719/720], não se deve atribuir uma função exclusivamente negativa, destinada a excluir do tipo atos considerados insignificantes ou bagatelares, devendo antes considerar-se que a lei impõe ao intérprete que afaste a tipicidade não apenas em atos insignificantes ou bagatelares, mas investigue do seu relevo na perspetiva do bem jurídico protegido (perspetiva positiva), isto é, determinar, de um ponto de vista objetivo, se o ato representa entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima. É pois o grau de perigosidade da ação para o bem jurídico que, em função da sua espécie, intensidade ou duração, assume neste contexto valor decisivo.
Porém, não se acompanha este autor quando sustenta que “ficam excluídos do tipo atos que, embora “pesados” ou em si pessoalmente e socialmente “significantes” por impróprios, desonestos de mau gosto ou despudorados, todavia, pela sua pequena quantidade, ocasionalidade ou instantaneidade, não entravem de forma significativa a livre determinação sexual da vítima. Assim, por ex: um simples beijo ou a sua tentativa, ou um simples toque nas pernas, nos seios ou nas nádegas de outrem, ou mesmo no sexo – diferentemente do que sucederá em regra com o «beijo lingual”, a “carícia insistente”, o “apalpão” – não integrarão em princípio o ato sexual de relevo [in ob., e loc. cit.].
Com efeito, como faz notar Paulo Pinto de Albuquerque [in, ob. cit., anotação 8 ao artigo 163º, p. 696], o toque no sexo e os demais atos referidos por Figueiredo Dias, em função da situação concreto, podem afetar gravemente a liberdade sexual da vítima, que é transformada em objeto de prazer, como se de uma coisa se tratasse e de que pudesse dispor desde que esses atos fossem em “pequena quantidade”, ou “ocasionais” ou “instantâneos”. A vítima não tem que ser objeto do “mau gosto” ou “despudor do agente”.
Em suma, ato sexual de relevo é um ato de natureza, conteúdo ou significado sexual que contende, com a importância, com a liberdade ou a autodeterminação sexual de quem o sofre ou pratica. Se nalguns casos a sua caracterização se torna clara, noutros exige uma cuidada ponderação da situação concreta.
Na análise de cada conduta ter-se-á de tomar em consideração o caráter objetivo do ato, a sua adequação social, o seu reflexo sobre a vítima - no fundo, verificar se foi ou não, na situação concreta, violado o bem jurídico protegido pela norma; para isso, afigura-se essencial aferir do contexto em que o ato foi praticado.
Praticado o ato sexual e sendo o mesmo relevo, o crime está consumado, dado que no que concerne ao objeto da ação, se está perante um crime de mera atividade e não perante o crime de resultado, ou seja, a ação assumida não pressupõe a produção de um determinado resultado, isto é, um evento como consequência da atividade do agente [nesse sentido Figueiredo Dias, ob. cit., p. 356, onde o autor dá como exemplo de crimes de mera atividade precisamente a coação sexual, e Paulo Pinto de Albuquerque, in ob., cit., anotação 7 ao artigo 163º, p. 696].
No que concerne ao tipo subjetivo de ilícito, estamos perante um crime exclusivamente doloso, dado que não está prevista expressamente a sua punição por negligência [cf. artigo 13º, do Código Penal, por referência ao artigo 163º o qual não prevê a punição por negligência].
Quanto à definição de dolo do tipo e a suas modalidades, remete-se para o que ficou dito relativamente ao crime de furto.
Assim, e no que ao caso dos autos concerne, para haver dolo, o agente tem que representar que, constrange a vítima a sofrer ou a praticar ato sexual de relevo contra a sua vontade cognoscível.
Com acima ficou dito, o n.º 3, do artigo 163º, do CP veio introduzir o conceito de vontade cognoscível da vítima, que integra ainda o tipo objetivo do crime [Mouraz Lopes/Tiago Caiado Milheiro, in ob., cit., , pp. 71/72 e Pedro Caeiro, in ob., cit., p. 19], pelo que devem ser descritos todo os atos que permitam concluir pela existência de um ato sexual de relevo contra a vontade da vítima.
Essa cognoscibilidade afere-se pelo padrão do homem médio colocado na posição do agente [Pedro Caeiro, in ob., cit., p. 19], sendo a afirmar a existência de tal cognoscibilidade sempre que resultem provados factos ou circunstâncias que demostrem o conhecimento por parte do agente de que a vítima tem a sua vontade condicionada ou limitada, ou nem sequer está em condições de transmitir a sua vontade real, o que sucede quando a vítima exterioriza verbalmente, por atos ou gestos, comportamento ou qualquer outro meio comunicacional que não se sequer envolver naquele ato sexual de revelo; ou, não exteriorizando, existem fatores, de que o agente tem conhecimento, com aptidão para constranger a vítima; e ainda quando nem sequer se dá possibilidade à vitima de expressar a sua vontade, como sucede em ações surpresa.
Concomitantemente, no plano subjetivo, essa cognoscibilidade implica a representação pelo o agente da existência de dissenso por via de um constrangimento, da existência de um consentimento que não corresponde à vontade livre e esclarecida ou que a vítima não está em condições de exprimir a sua vontade ou, pelo menos, equacionar essa hipóteses e conformar-se como elas [Mouraz Lopes/Tiago Caiado Milheiro, in ob., cit., , pp. 71/72].
Revertendo ao caso concreto, tendo presentes as considerações ora tecidas, verifica-se que se provou que:
1. No dia ... de ... de 2024, cerca das 21H00, quando EE se encontrava no interior do café “...” sito na ..., a consumir bebidas alcoólicas com alguns amigos, o arguido AA entrou e saiu várias vezes do estabelecimento, mas olhando de forma incisiva para a ofendida, chegando a meter conversa com a mesma.
2. Quando, cerca das 21H50, a ofendida EE saiu do estabelecimento e seguia pela 1ª ..., foi a mesma seguida pelo arguido AA de perto o qual, a certa altura, e pretendendo manter com a ofendida relações sexuais, agarrou na mesma por um braço e com a outra mão acariciou a ofendida na cocha da perna direita da ofendida, fazendo movimentos circulares.
3. Quando a ofendida EE se opôs à atuação do arguido, empurrando o mesmo, AA desferiu vários socos que atingiram a ofendida na zona da cabeça, atirando a mesma ao solo, caindo a mesma de joelhos.
4. Quando a ofendida EE se encontrava no solo de costas no chão e impedida de reagir, o arguido AA tirou, contra a vontade da ofendida, as botas que esta trazia calçadas, atirou as mesmas para o interior da viatura de matrícula ..-..-UL, após o que abandonou o local com as mesmas.
Esta factualidade revela, de forma inequívoca, um contacto de natureza sexual, quer no plano da objetividade da conduta, quer no plano da subjetividade da mesma, cuja intencionalidade surge revelada pelos convites reiterados que acompanham o ato.
Com efeito, o olhar incisivo (ou seja, penetrante) do arguido relativamente à ofendida quando esta ainda estava no café, o seguimento da mesma quando o café fechou, seguido de convites reiterados para tomar um copo num sítio que ela ia gostar, em simultaneidade com o ato de acariciar a mão na coxa direita [zona muita próxima dos órgãos genitais externos], fazendo movimento circulares na mesma, traduzem um contexto que evidencia, de forma flagrante, um contacto de natureza sexual.
Considerando que não se tratou de um simples toque instantâneo, mas acompanhado de movimentos circulares, estamos perante um conduta que atinge o bem jurídico liberdade sexual, com um grau de intensidade e gravidade que o permitem caracterizar como sendo de relevo e não como mero contacto de natureza sexual a enquadrar no artigo 170º, do Código Penal [importunação sexual].
Com efeito, os movimentos circulares na zona da coxa, afastam a instantaneidade do mero toque e, nessa medida, traduzem um plus de ofensividade ao bem jurídico liberdade sexual que o tornam em ato sexual de relevo, pois viola a intimidade da vítima, que mediante esse contacto surpresa, se viu reduzida a simples objeto de satisfação do impulso do arguido, a quem não a ligava qualquer relação afetiva ou de outro tipo. Estamos perante aquela “coisificação” da vítima própria dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual.
Mesmo mero toque na coxa, no contexto apurado, já seria suficiente para se considerar ato sexual de relevo, como parece decorrer do entendimento plasmado no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 05.06.2013 [processo n.º 204/10.8TASEI.C1 - Maria Pilar de Oliveira, in https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/8f60bbad90f0a3c080257b91003cf81b?OpenDocument], cujo sumário, na parte relevante, se transcreve “I - É ato sexual de relevo todo o que tenha uma natureza objetiva estritamente relacionada com a atividade sexual, ou seja, que normalmente apenas seja praticado no domínio da sexualidade entre pessoas.
II - Manifestamente, circunscrevem-se nesse domínio os casos traduzidos em acariciar/apalpar nádegas e a parte interior das coxas, atos preliminares do ato sexual final que conduz ao orgasmo.” [negrito e itálico da nossa responsabilidade].
Também Paulo Pinto de Albuquerque, no segmento da sua obra acima transcrito, parece sustentar que o simples toque na coxa é já , em si mesmo, um ato sexual de relevo, pelo que, por argumento à fortiori, o contacto com a coxa em movimento circulares também se traduz em ato sexual de relevo.
Considerando que se tratou de um contacto surpresa, a vítima nem sequer teve possibilidade de expressar a sua vontade, a qual, até pelos acontecimentos imediatamente anteriores [negou o convite do arguido para tomar um copo] e subsequentes [empurrou o arguido], se tem de afirmar com sendo contra tal contacto.
Considerando que a ofendida, antes do contacto sob análise, expressou verbalmente ao arguido que não desejava conviver com o mesmo, ao negar-se às várias insistências para ir tomar o copo, resulta indubitável que o arguido sabia que praticava ato sexual de relevo contra a vontade cognoscível da ofendida.
Tendo arguido, além disso, puxado o braço da vítima, não oferece dúvida que usou de violência física.
A violência que se seguiu à conduta do arguido de colocar a mão na coxa da vítima, efetuando movimentos circulares, isto é dar murros na cabeça da mesma, dada a conexão temporal muito próxima, mantém uma ligação necessária, essencial, com o ato sexual de relevo violento anterior [puxão de braço].
Dito de outra forma, existe uma estreita ligação espacio-temporal entre a prática do puxão do braço e dos murros, que faz com que aquele e estes consubstanciem um só crime decorrente de um só desígnio criminoso
Nas palavras de Figueiredo Dias [in “Direito Penal - Parte Geral”, tomo I, 2ª Ed. p. 989], estamos perante uma “unidade de sentidos de ilicitude típica”.
A conduta do arguido é, pois, enquadrável no n.º 2, do artigo 163º, do Código Penal, tal como sustentado pelo tribunal, à quo, mas não na forma tentada, mas sim da forma consumada.
Com efeito, sendo a coação sexual um crime de mera atividade [cf. supra], o mesmo ficou consumado com a conduta adotada pelo arguido aquando do acariciamento da coxa com movimentos circulares, não se autonomizando, pelas razões acimas expressas, a violência posterior para constranger a vítima à prática de atos semelhantes, inexistindo, pois, o crime de coação sexual tentado afirmado pela primeira instância.
Termos em que, nesta parte, o recurso improcede [o recorrente sustentou a absolvição].
Esta alteração da qualificação jurídica pelo tribunal superior é permitida, sem prejuízo, porém, da proibição da “reformatio in pejus” [AUF, Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ, n.º 4/95], posto é que se dê cumprimento ao disposto 424º, n.º 3, do CPP, o que foi feito.
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2. Do crime de furto:
Tendo improcedido a alteração de factos sustentada pelo recorrente relativamente ao elemento subjetivo do crime de furto, forçoso é concluir, pelas razões que constam do acórdão recorrido, e aqui se dão por reproduzidas, que ao arguido praticou o crime de furto.
Termos em que, também nesta parte, o recurso improcede [o recorrente sustentou a absolvição].
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3.4. Do excesso da medida da pena:
Resulta das motivação do recurso, que o recorrente não se insurge contra a pena parcelar fixada para a prática do crime de furto, ou seja, dez meses, pelo que sendo a mesma proporcional, se mantém.
Tendo sido alterada a qualificação jurídica relativamente ao crime de coação sexual nos termos supra expostos, verifica-se que a moldura abstrata da pena aplicável ao caso dos autos é a prevista no n.º 2, do artigo 163º, do CP, ou seja de um mês a oito anos de prisão.
O tribunal coletivo partiu da moldura prevista no n.º 2, do artigo 163º, especialmente atenuada pela tentativa, ou seja, de um mês a cinco anos e quatro meses de prisão, fixando a pena parcelar em quatro anos de prisão, o que, em face da gravidade do caso, nos parece desproporcional, dado que se tratou de ato isolado, em que a intimidade da vítima não foi atingida de forma muito intensa, considerando que os movimentos circulares na coxa, por alguns segundos, têm uma componente menos invasiva que os toques na genitália externa [monte pubiano e vulva], nas nádegas ou nos seios.
Por outro lado, a violência perpetrada pelo arguido, foi de intensidade média, assim como as lesões causadas na vítima.
Assim sendo, e tudo ponderado, tem-se como adequada a pena de um dois anos e nove meses de prisão para o crime de coação sexual, p. e p. pelo n.º 1, artigo 163º, do Código.
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Determinação da pena única:
Nos termos do artigo 77º, do Código Penal:
1- Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente;
2- A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes;
3 - […]
4 – […]
Da moldura abstrata do concurso:
Face às normas ora transcritas resulta que, no caso dos autos, a moldura penal abstrata aplicável é a seguinte:
- Limite mínimo: dois anos e nove meses;
- Limite máximo: três anos e sete meses;
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C-2) Determinação da pena concreta do concurso:
No que toca à determinação da medida concreta da pena do concurso, verifica-se que a lei elegeu como elementos determinadores da pena conjunta os factos e a personalidade do agente, elementos que devem ser considerados em conjunto.
Acolhendo-nos ao ensinamento de Figueiredo Dias [In Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pp. 290/292], entendemos que a pena conjunta deve ser encontrada, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique, relevando, na avaliação da personalidade do agente sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade, sem esquecer o efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro daquele, sendo que só no caso de tendência criminosa se deverá atribuir à pluriocasionalidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura da pena conjunta.
Adverte no entanto que, em princípio, os fatores de determinação da medida das penas singulares não podem voltar a ser considerados na medida da pena conjunta (dupla valoração), muito embora, «aquilo que à primeira vista possa parecer o mesmo fator concreto, verdadeiramente não o será consoante seja referido a um dos factos singulares ou ao conjunto deles: nesta medida não haverá razão para invocar a proibição de dupla valoração» [Cf. Eduardo Correia no seio da Comissão Revisora do Código Penal– cf. ata já atrás referida].
Daqui que se deva concluir, como concluímos, que com a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respetivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente. Como doutamente diz Figueiredo Dias, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado.
Importante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos [visto que estes, como resultado da vontade e atuação do delinquente, espelham a sua forma de pensar e o seu modo de ser, o seu temperamento, caráter e singularidade, isto é, a sua personalidade], tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso, tendo presente o efeito dissuasor e ressocializador que essa pena irá exercer sobre aquele.
Feitas estas considerações sobre a determinação da medida da pena única ou conjunta, e aplicando-as ao caso concreto, verifica-se que os três crimes foram praticados no mesmo espaço temporal e pelo mesmo motivo, pelo se julga adequado fixar a pena única em três anos de prisão.
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- Da pena de substituição:
Tendo sido fixada uma pena de prisão em medida superior a dois anos e inferior a cinco anos, cumpre ponderar se a pena deve ser substituída pela pena prevista no artigo 50º, do Código Penal [suspensão da execução da pena de prisão], pois as todas as demais penas de substituição previstas na parte geral do Código Penal são inaplicáveis ao caso dos autos [pressupõem a fixação de um pena igual ou inferior a dois anos].
É hoje entendimento largamente dominante que o artigo 50º, do Código Penal impõe ao juiz o dever de fundamentar especificamente quer a concessão, quer a denegação da suspensão, pese embora o n.º 4 do artigo 50º apenas fale em dever de fundamentação no caso de concessão da suspensão. Assim o afirma Figueiredo Dias [In Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 345, § 522], quando refere que "o texto deste comando - sugerindo que a fundamentação (específica, é claro, e que em nada contende com o dever geral de fundamentação de toda e qualquer decisão judicial [...] só se torna necessária quando o tribunal se decida pela suspensão - deve ser interpretado em termos amplos e os únicos corretos. O tribunal, perante a determinação de uma medida da pena de prisão não superior a 3 anos [na data na publicação da obra citada na nota anterior, vigorava a redação que apenas permitia aplicar a pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão não superior a três anos, pelo que, numa interpretação atual, se deve considerar o período de cinco anos], terá sempre de fundamentar especificamente quer a concessão, quer a denegação da suspensão, nomeadamente no que toca ao caráter favorável ou desfavorável da prognose e (eventualmente) às exigências de defesa do ordenamento jurídico. Outro procedimento configuraria um verdadeiro erro de direito, como tal controlável mesmo em revista, por violação, além do mais, do disposto no artigo 71º [atual artigo 70º, do Código Penal].
No mesmo sentido se pronunciou o Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 61/06, de 18 de janeiro [disponível em www.tribunalconstitucional.pt], em que decidiu julgar inconstitucionais as normas dos artigos 50° do Código Penal e 374°, n.º 2, e 375°, n.º 1, do CPP, quando interpretadas no sentido de não imporem a fundamentação da decisão de não suspensão da pena de prisão aplicada em medida não superior a três anos [atualmente cinco anos].
Em cumprimento do específico dever de fundamentação atrás exposto, dir-se-á que é dever do juiz assentar o incontornável «juízo de prognose», favorável ou desfavorável, em bases de facto capazes de o suportarem com alguma firmeza. O que não quer dizer, obviamente, que o juiz tenha de atingir a certeza sobre o desenrolar futuro do comportamento do arguido. É o que salienta Figueiredo Dias, quando refere “que o que está aqui em causa não é qualquer «certeza», mas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda, o tribunal deve encontrar-se disposto a correr certo risco - digamos: fundado e calculado - sobre a manutenção do agente em liberdade” [In Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 344, §521].
Havendo, porém, razões sérias para duvidar da capacidade do agente de não repetir crimes, se for deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada, o que significa que o princípio in dubio pro reo vale só para os factos que estão na base do juízo de probabilidade, mas desta deve o tribunal estar convencido [Jescheck, § 79, I 3, apud Figueiredo Dias, in ob., loc. cit.].
Por outro lado, convém ainda ter na devida conta, que "apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável - à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial e socialização - a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime». Pois “que estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral, sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita - mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade, que ilumina o instituto em análise" [Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, p. 344, § 520].
Aditar-se-á, em remate, que, se é certo que a socialização do arguido deve ser uma preocupação sempre presente na aplicação de qualquer que seja a pena, ela não é o objetivo primeiro nessa delicada tarefa, pois há limites inultrapassáveis que importa observar: a socialização não pode sobrelevar a prevenção.
Na verdade, como discorre Anabela Miranda Rodrigues [in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 12, n.º 2, págs. 182], embora com pressuposto e limite na culpa do agente, o único entendimento consentâneo com as finalidades de aplicação da pena é a tutela de bens jurídicos e, [só] na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade.
Aplicando as considerações ora expendidas ao caso concreto, verifica-se que o arguido, foi condenado:
a) Por sentença de .../.../2014, na pena de 75 dias de prisão, substituída por 75 dias de multa, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez a .../.../2014;
b) Por sentença de .../.../2015, na pena de 6 meses e 15 dias de prisão, suspensa por 1 ano, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez a .../.../2015;
c) Por sentença de .../.../2015, na pena de 72 períodos de prisão, pela prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições a .../.../2015;
d) Por sentença de .../.../2015, na pena de 60 períodos de prisão, pela prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições a .../.../2015;
e) Por sentença de .../.../2015, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, pela prática de um crime de desobediência e de um crime de condução em estado de embriaguez a .../.../2015;
f) Por sentença de .../.../2016, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez a .../.../2014;
g) Por sentença de .../.../2016, na pena de 8 meses de prisão, pela prática de dois crimes de violação de imposições, proibições ou interdições a .../.../2016;
h) Por sentença de .../.../2017, na pena de 1 ano e 1 mês de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes a .../.../2015;
i) Por sentença de .../.../2021, na pena de 5 meses de prisão, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez a .../.../2021;
Teve um percurso de vida marcado pelo consumo excessivo de bebidas alcoólicas, que se tornou um problema e desencadeador de condutas criminais, promovendo duas rutura familiares, que o levou a residir com um dos irmãos, até voltar a ser condenado e a cumprir pena de prisão.
Reconhecendo esta problemática, procurou apoio para cessar a sua dependência do álcool em ..., recorrendo a internamento na ..., reabilitação que saiu frustrada. Não mais procurou apoio médico especializado para debelar a sua problemática aditiva, declarando que almejou, sozinho, e no âmbito da sua última pena de prisão, uma reabilitação.
Após cumprimento de nova pena de prisão efetiva, retomou a liberdade a ...-...-2022 e, segundo a ex- cônjuge, por se verificarem alterações positivas nas atitudes e comportamentos do arguido, aceitou recebê-lo de volta no seio do agregado, restabelecendo laços afetivos, e as rotinas de vida quotidiana, com partilha de momentos comuns e divisão de tarefas. É enfatizada uma alteração no padrão de comportamento no arguido, com impacto positivo na vida familiar, circunstância que não parece consolidada.
AA é o mais novo de uma fratria de oito, nascido no seio de um agregado familiar de baixa condição social, tendo beneficiado de um ambiente familiar, segundo o próprio, coeso e protetor, ainda que existam referências a hábitos etílicos da figura paterna, com impactos na dinâmica familiar.
As necessidades básicas de subsistência eram asseguradas por via dos rendimentos de trabalho da figura paterna, ficando a mãe a cargo das tarefas domésticas e cuidado aos descendentes.
O seu percurso escolar foi marcado por problemas de aprendizagem, mas sem evidenciar problemas de comportamento, e foi interrompido aos 13 anos, após completar o 4.º ano, sem adquirir, de forma consistente, as competências básicas de escrita e leitura. Passou a acompanhar o pai nos trabalhos da exploração agropecuária da família, atividade que manteve até aos 20 anos, idade em que cumpriu o serviço militar obrigatório.
Permaneceu integrado no agregado de origem até aos 23 anos, idade em que se casou e se autonomizou do agregado de origem. Os pais já faleceram, mantendo convívio com os irmãos, um dos quais lhe concede, recorrentemente, abrigo em sua casa.
Quando contraiu matrimónio foi residir, com a esposa, para um imóvel cedido por familiares, passando a desenvolver a sua atividade profissional no ramo da construção civil, maioritariamente sem contrato de trabalho, realizando trabalhos em nome individual, ou em conjunto com um familiar.
Manteve-se, maioritariamente, laboralmente ativo, mas registou alguns períodos de desemprego, existindo um último registo no ... que data de ...-...-2022, e que o arguido justifica com as obrigações judiciais a que esteve sujeito. Informou que, ainda que permaneça com elevadas dificuldades a nível da leitura e escrita, concluiu o 2.º ciclo em meio prisional.
O seu quotidiano é centrado na família, tem por hábito levantar-se cedo, saindo para trabalhar se para tal for requisitado, realizando uma jornada de trabalho até às 17h, altura em que regressa a casa.
Tem por hábito frequentar ao final do dia um Café na freguesia de residência, onde convive com os presentes, reconhecendo que pode ingerir uma cerveja e um copo de vinho à refeição, informação confirmada junto do proprietário, que descreve o arguido como um individuo calmo, de fácil trato e que respeita o Outro, frequentando regularmente aquele espaço, onde convive com terceiros, dedicando-se a jogar às cartas e ao dominó.
Para além do descrito, tem por hábito ocupar os tempos livres na pesca junto à costa, e no convívio com os netos e familiares.
AA aparenta ser um indivíduo autocentrado, com baixas competências pessoais e sociais, com défices de juízo crítico e reduzida empatia pela vítima.
Do que fica transcrito, resulta que o arguido já foi condenado pela prática de vários crimes de condução em estado de embriaguez e violação da proibições, tendo já cumprido pena de prisão efetiva.
É certo que nenhum deles se mostra relacionado com o bem jurídico em causa nos presentes autos, mas a prática de tais crimes revelam uma personalidade incapaz de se deixar motivar por sucessivas condenações, a que acresce o facto de o mesmo apresentar défices de juízo crítico e reduzida empatia pela vítima.
Assim sendo, ao nível das exigências de prevenção geral que o caso dos autos demanda, a pena de substituição suspensão da execução da pena de prisão não se mostra adequada a prevenir a prática de futuros crimes.
No que concerne às exigências de prevenção geral, temos como consolidado que, comunitariamente, os comportamentos sexualmente coercivos são percecionados de forma cada vez menos tolerante, assinaladas que são as graduais alterações ao sistema social de crenças. A ideia de um direito sexual do homem já não encontra adesão à realidade e, por conseguinte, os interesses a salvaguardar são hoje consentâneos com a preservação do bem jurídico liberdade sexual – genericamente, a «liberdade de se relacionar sexualmente ou não e com quem» [Teresa Pizarro Beleza, Sem Sombra de Pecado: O Repensar dos Crimes Sexuais na Revisão do 72].
No plano individual, a violência sexual é associada a inúmeras consequências, quer imediatas, quer a longo prazo, nomeadamente o facto de potenciar a prática de comportamentos de alto risco.
Por isso, são crimes que traduzem um forte sentimento de insegurança e reprovação, que exige uma resposta judicial tendencialmente firme e austera, tendo em vistas finalidades preventivas gerais positiva e negativa.
Assim sendo, as considerações de prevenção geral, sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, obstam à aplicação da pena de substituição suspensão da execução da pena de prisão, pelo que a pena de prisão supra fixada deve ser cumprida de forma efetiva.
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- Da responsabilidade tributária:
O recorrente, dada a procedência parcial, é responsável, pelo pagamento das custas, atento o disposto nos termos do artigo 513º, n.º 1 do Código de Processo Penal (CPP), em conjugação com o artigo 8º, n.º 9 e tabela III d Regulamento das Custas Processuais (RCP); atenta a atividade processual que este processo implicou, fixa-se a taxa de justiça em 4 Unidades de Conta [UC].
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III. Decisão:
Pelo exposto, julga-se parcialmente provido o recurso interposto pelo arguido e, em conformidade, decide-se:
1. Alterar o acórdão:
1. No segmento em que condenou o arguido pela prática de um crime de coação sexual, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 163º, n.º 2 e 23º do Código Penal, condenando-o pela prática de um crime de coação sexual, p. e p. pelo artigo 163º, n.º 2, do Código Penal, na pena parcelar de dois anos e nove meses de prisão;
2. No segmento em que condenou o arguido na pena única de quatro anos de seis meses de prisão, condenando-o na pena única de três anos de prisão;
2. Manter, em tudo o mais, o acórdão recorrido;
3. Condenar o recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 4UC;
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[acórdão elaborado pelo relator em processador de texto informático, integralmente revisto por todos signatários, com aposição de data e assinaturas digitais certificadas- artigo 94º n.os 2 e 3 do CPP].
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Lisboa, 3 de dezembro de 2025
Joaquim Jorge da Cruz
Lara Martins
Francisco Henriques