I. As nulidades previstas no art. 615º do CPC, de forma taxativa, reportam-se a vícios formais do acórdão (errores in procedendo) que não se confundem com eventuais erros de julgamento (errores in iudicando).
II. O inconformismo e desacordo relativamente à apreciação jurídica feita no acórdão de conferência não se confunde com qualquer invalidade formal deste.
Acordam em conferência na 6ª secção do Supremo Tribunal de Justiça:
I. Por acórdão proferido por este Supremo Tribunal de Justiça em 7.10.2025, foi confirmada a decisão singular da relatora de julgar findo o recurso de revista interposto pela Recorrente, e de manter a multa liquidada (e paga).
Veio a Recorrente “Reclamar de reforma do julgado por nulidades”, nos seguintes termos:
56. De tudo quanto antecede, lícito é extrair a seguinte série de conclusões:
1.ª) O Acórdão reclamado aplica a norma conjugada do n.º 2 do artigo 7.º e da linha 7 da Tabela I-B do RCP, implícita mas inequivocamente, com um sentido interpretativo inconstitucional: não pode, nessa medida, proceder;
2.ª) De facto, a argumentação neste aresto expendida em ordem a justificar a omissão de pronúncia expressa sobre essa questão — decisão nula, aliás, por força do n.º 1-c) do artigo 615.º do CPC ― não exclui essa inconstitucionalidade normativa;
3.ª) O Acórdão reclamado aplica, inquestionavelmente, a norma conjugada dos artigos 629.º, n.º 1, 69.º, n.º 2, e 644.º, n.º 1, al. a), do CPC segundo uma interpretação inconstitucional, pelo que não pode, nessa medida, proceder;
4.ª) De facto, a omissão de pronúncia expressa sobre essa questão — implicando a nulidade do julgado, por força do n.º 1-d) do artigo 615.º do CPC ― não exclui a materialidade da inconstitucionalidade normativa apontada;
5.ª) O Acórdão reclamado aplica, inquestionavelmente, a norma conjugada do n.º 1 do artigo 14.º do CIRE e dos n.os 1 e 3 do artigo 671.º do CPC segundo uma dimensão interpretativa inconstitucional: não pode, nessa medida, proceder;
6.ª) Com efeito, a argumentação neste aresto expendida tratando a questão em plano infraconstitucional — decisão nula, aliás, por força do n.º 1-c) do artigo 615.º do CPC ― não exclui a inconstitucionalidade normativa arguida;
7.ª) O Acórdão reclamado aplica, inquestionavelmente, a norma a do n.º 1 do artigo 14.º do CIRE, pré-arguida, no processado já perante o STJ, de materialmente inconstitucional: não pode, nessa medida, proceder;
8.ª) Com efeito, a omissão de pronúncia expressa sobre essa questão — implicando a nulidade do julgado, por força do n.º 1-d) do artigo 615.º do CPC ― não exclui a inconstitucionalidade normativa arguida;
9.ª) O Acórdão reclamado aplica, implícita mas inequivocamente, a norma conjugada do n.º 1 do artigo 1431.º e da al. l) do n.º 1 do artigo 1436.º do CC segundo uma dimensão hermenêutica inconstitucional, pelo que não pode, nessa medida, proceder;
10.ª) Efetivamente, o argumento neste aresto expendido para justificar a decisão de omissão de pronúncia expressa sobre a questão — o de que esta questão-de-direito constitucional não é fundamento autónomo de admissão do recurso de revista: decisão nula, portanto, em virtude do disposto no n.º 1-b) do artigo 615.º do CPC ― não exclui a consumação da inconstitucionalidade arguida;
11.ª) O Acórdão reclamado aplica, implícita mas inequivocamente, o inciso «acórdão [recorrido] em oposição com outro» da norma do n.º 1 do artigo 14.º do CIRE segundo uma dimensão hermenêutica inconstitucional, pelo que não pode, nessa medida, proceder;
12.ª) De facto, a omissão de pronúncia expressa e a pronúncia ininteligível sobre essa questão — implicando a nulidade do julgado, por força dos nºs 1-b) e 1-c) do artigo 615.º do CPC ― não excluem a consumação da inconstitucionalidade normativa arguida;
13.ª) O Acórdão reclamado aplica, implicitamente, a norma conjugada do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 3.º do CIRE interpretada com um sentido pré-arguido de inconstitucional ― aplicado, originalmente, na Sentença apelada ―, pelo que não pode, nessa medida, proceder;
14.ª) Efetivamente, o argumento neste aresto expendido para justificar a decisão de omissão de pronúncia expressa sobre a questão — o de que esta questão-de-direito constitucional não é fundamento autónomo de admissão do recurso de revista: decisão nula, portanto, em virtude do disposto no n.º 1-b) do artigo 615.º do CPC ― não exclui a consumação da inconstitucionalidade arguida;
15.ª) O Acórdão reclamado aplica, implicitamente, a norma conjugada dos n.os 1 e 3 do artigo 3.º e do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE interpretada com um sentido pré-arguido de inconstitucional ― aplicado já na Sentença apelada ―, pelo que não pode, nessa medida, proceder;
16.ª) Efetivamente, o argumento neste aresto expendido para justificar a decisão de omissão de pronúncia expressa sobre a questão — o de que esta questão-de-direito constitucional não é fundamento autónomo de admissão do recurso de revista: decisão nula, portanto, em virtude do disposto no n.º 1-b) do artigo 615.º do CPC ― não exclui a consumação da inconstitucionalidade arguida;
17.ª) O Acórdão reclamado aplica, implicitamente, a norma do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE com um sentido pré-arguido de inconstitucional ― aplicado já desde a Sentença apelada ―, pelo que não pode, nessa medida, proceder;
18.ª) Efetivamente, o argumento neste aresto expendido para justificar a decisão de omissão de pronúncia expressa sobre a questão — o de que esta questão-de-direito constitucional não é fundamento autónomo de admissão do recurso de revista: decisão nula, portanto, em virtude do disposto no n.º 1-b) do artigo 615.º do CPC ― não exclui a consumação da inconstitucionalidade arguida;
57. Por força do estatuído, em conjugação, nos artigos 3.º, n.º 3 e 204.º da CRP, resulta o Acórdão reclamado nulo pleno jure na medida das nove inconstitucionalidades normativo-materiais que lhe vão imputadas.
O Recorrido não respondeu.
II. As nulidades previstas no art. 615º do CPC (aplicáveis aos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça por força do disposto nos arts. 666º e 679º, do CPC) de forma taxativa, reportam-se a vícios formais do acórdão (errores in procedendo) que não se confundem com eventuais erros de julgamento (errores in iudicando).
Como se sumariou no Ac. do STJ de 18.9.2018, P. 108/13.2TBPNH.C1.S1 (José Rainho), em www.dgsi.pt, “I - Não há que confundir entre nulidades de decisão e erros de julgamento (seja em matéria substantiva, seja em matéria processual). As primeiras (errores in procedendo) são vícios de formação ou atividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão, isto é, trata-se de vícios que afetam a regularidade do silogismo judiciário) da peça processual que é a decisão, nada tendo a ver com erros de julgamento (errores in iudicando), seja em matéria de facto seja em matéria de direito.”.
Atentando nas conclusões supra transcritas, bem como na alegação produzida sem a qual as referidas conclusões resultariam pouco claras, facilmente se verifica que, sob a capa de invocadas nulidades, o que está em causa, na maioria das situações, é a discordância da Recorrente quanto à fundamentação da decisão singular e do acórdão de conferência, e não qualquer vício formal deste, traduzindo-se a presente reclamação, maioritariamente, em mero inconformismo com o decidido.
Vejamos.
Conclusões 1ª e 2ª
Relativamente à decisão sobre a multa aplicada nesta instância, escreve a reclamante: “… O Alto Tribunal judicante julga, de facto, que o ato praticado é um recurso? Se não, e não sendo uma reclamação (não se encontra previsto no artigo do RCP citado), é, mesmo assim, tributado? E tributado como se de um recurso se tratasse?! 11. Notoriamente, portanto, acusa o julgado no ACÓRDÃO sobre esta questão menor a nulidade prevista no n.º 1-c) do artigo 615.º do CPC: ininteligibilidade da decisão, por ambiguidade ou obscuridade da respetiva fundamentação.”.
Dispõe o art. 615º, nº 1, al. c), do CPC, que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão, ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, no CPC Anotado, Vol. I, 3ª ed., pág. 794, escrevem que “a decisão judicial é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes”.
No sentido referido, sumaria-se no Ac. do STJ de 2.6.2016, P. 781/11.6TBMTJ.L1.S1 (Fernanda Isabel Pereira), em www.dgsi.pt: “… III - O vício a que se refere a primeira parte da al. c) do n.º 1 do art. 615º do NCPC radica na desarmonia lógica entre motivação fáctico-jurídica e a decisão resultante de os fundamentos inculcarem um determinado sentido decisório e ser proferido outro de sentido oposto ou, pelo menos, diversa. A obscuridade e a ambiguidade mencionadas na segunda parte desse preceito verificam-se, respetivamente, quando alguma passagem da decisão seja ininteligível ou quando se preste a mais do que um sentido”.
Ocorre ambiguidade sempre que certo termo ou frase sejam passíveis de uma pluralidade de sentidos e inexistam meios de, com segurança, determinar o sentido prevalecente, e verifica-se obscuridade sempre que um termo ou uma frase não têm um sentido que seja percetível, determinável.
Ou nos dizeres de Alberto dos Reis, no CPC Anotado, Vol. V, pág. 151, “A sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos.”.
Quer a ambiguidade, quer a obscuridade têm de se projetar na decisão, tornando-a incompreensível, impossibilitando que seja apreciada criticamente por não se alcançarem as razões subjacentes.
Ora, analisando o teor do acórdão de conferência sobre esta matéria, resultam claras as razões pelas quais se concluiu que a liquidação da multa tinha sido corretamente efetuada pela secretaria, não sendo a decisão ininteligível, por ambiguidade ou obscuridade da respetiva fundamentação, não se verificando a nulidade invocada.
O que está em causa é que a reclamante discorda do decidido e faz diferente interpretação dos preceitos legais aplicados.
Tal como discorda do acórdão de conferência na parte em que considerou que a reclamante não fundamentava a inconstitucionalidade invocada, limitando-se à remissão para as normas ou princípios constitucionais que considerava violados, o que não se confunde com a nulidade invocada, de argumentação ambígua e obscura (al. c) do nº 1 do art. 615º do CPC).
Não ocorrem, pois, as nulidades invocadas.
Conclusões 3ª e 4ª
Relativamente à decisão sobre “o segundo recurso de apelação, duplo, integrante do «triplo recurso»”, a reclamante invoca a nulidade do acórdão da conferência, por omissão de pronúncia, por não se ter pronunciado sobre a inconstitucionalidade material invocada na al. vii) das conclusões da reclamação.
As conclusões da reclamação nesta matéria eram do seguinte teor: “v) Na pronúncia sobre o recurso de apelação interposto, julga-se que a única relevância do facto de o Tribunal da Relação conhecer de alguma questão “pela primeira vez” será a de afastar a dupla conforme prevista no artigo 671.º, n.º 3, do CPC, permitindo o recurso de revista (normal), ainda que o acórdão da Relação confirme, sem voto de vencido, a decisão proferida em 1.ª instância, mas que esse preceito não é aplicável neste processo; vi) Contudo, esse sentenciado aplica, implícita mas necessariamente, a norma conjugada dos artigos 629.º, n.º 1, 69.º, n.º 2, e 644.º, n.º 1, al. a), do CPC com o sentido de que o recurso de apelação interposto para o STJ dum acórdão da Relação em que, ineditamente, é conhecida e julgada certa questão-de-direito sobre a qual o Tribunal apelado, invalidamente, omitira por completo pronúncia configura um recurso de segundo grau (ênfase adicionada): vii) É esta norma interpretativa, porém, materialmente inconstitucional, por violação do princípio jusfundamental do processo equitativo, pelo que não pode tal julgado proceder: terá de ser revogado.”.
Efetivamente, no acórdão de conferência nada se referiu quanto à invocada inconstitucionalidade material.
Suprindo tal omissão, cumpre referir, desde logo, que, mais uma vez, tal invocação se limita à alegação da violação de princípio constitucional, sem um mínimo de suporte argumentativo, sem que se concretize o conteúdo e a extensão da interpretação normativa alegadamente inconstitucional (que não resultava dos arts. 18º a 32º da reclamação).
Sempre se dirá, porém, que não ocorre a referida inconstitucionalidade material, por violação do princípio jusfundamental do processo equitativo.
O que se referiu na decisão singular, sufragado pela decisão colegial, foi que o tribunal da Relação não julga “em 1ª instância”, mas, sempre, em recurso, podendo proferir decisão sobre questões que apenas perante ele foram colocadas, ou que conhece ao abrigo do disposto no art. 665º do CPC, como sucedeu no caso.
E do acórdão da Relação, uno, que decide as várias questões colocadas, apenas cabe recurso de revista (e não “apelações”) para o Supremo Tribunal de Justiça.
Dizendo-se em nota de rodapé que “O Supremo Tribunal de Revista 1 não julga “apelações”. Julga recursos ordinários de revista, que serão de acórdãos do Tribunal da Relação, ou, per saltum, de sentenças da 1ª instância, ou extraordinários para uniformização de jurisprudência (arts. 69º, nº 2, 627º, nº 2, 671º, e 644º 2, do CPC).”.
Os recursos são de apelação e de revista, nos termos referidos, não existindo “recurso de “apelação”, em sentido material”.
O acórdão proferido pelo tribunal da Relação é um só, embora possa apreciar várias questões, algumas não anteriormente apreciadas, como referimos supra, sendo o recurso do mesmo interposto de revista, impugnando a decisão (ou segmentos desta), o que pode passar pela impugnação de vários fundamentos que levaram àquela decisão.
Não se alcança, pois, em que medida, a interpretação referida viola o princípio jusfundamental a um processo equitativo, não sendo coartado o direito ao recurso, sem prejuízo das regras de admissibilidade do mesmo.
Não se verifica, pois, a invocada inconstitucionalidade.
Conclusões 5ª a 18ª
Sob a capa de nulidades – não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, de ininteligibilidade da decisão, e de omissão de pronúncia (als. b), c) e d) do nº 1 do art. 615º do CPC) -, na verdade a reclamante insurge-se contra o decidido, repristinando, também, o seu entendimento sobre as inconstitucionalidades invocadas na reclamação para a conferência.
O acórdão de conferência analisou as inconstitucionalidades invocadas, não ocorrendo as invocadas omissões de pronúncia, não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos esgrimidos, mas, apenas, a analisar as questões colocadas.
Como já ensinava Alberto dos Reis, no CPC Anotado, Vol. V, pág. 143, “São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.”.
Por outro lado, o acórdão reclamando, que manteve a decisão singular, não padece das restantes nulidades invocadas, tendo fundamentado a decisão de forma clara, inteligível, também por adesão à decisão singular, especificando as premissas (de facto e de direito) em que assentou, resultando manifesto da alegação da reclamante que o que está em causa é a sua discordância relativamente ao decidido, numa interpretação distinta dos normativos aplicados.
E as inconstitucionalidades assacadas ao acórdão de conferência refletem as inconstitucionalidades já assacadas à decisão singular, que foram analisadas em termos que ora se replicam, não obstante a discordância da reclamante.
Nesta conformidade, a arguição de nulidades invocadas nos termos das als. b), c) e d) do nº 1 do artigo 615º do CPC, são desatendidas, o que se decide, sem necessidade de outros desenvolvimentos ou considerações.
*
II. Pelo exposto, acordam, em conferência, os juízes da 6ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em desatender a arguição de nulidades apresentada pela reclamante.
Custas do incidente pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Notifique.
*
Lisboa, 2025.11.25
Cristina Coelho (Relatora)
Luís Correia de Mendonça
Maria do Rosário Gonçalves
SUMÁRIO (da responsabilidade da relatora):
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1. Manifesto lapso de escrita, pretendendo escrever-se “Supremo Tribunal de Justiça”.↩︎
2. De novo, existe manifesto lapso de escrita, pretendendo escrever-se “678º”, que se reporta ao “Recurso per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça”, sendo certo que não se fez referência à al. a) do nº 1 do art. 644º, como a reclamante refere.↩︎