PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DESPEJO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
PODERES DA RELAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA IMPUGNAÇÃO
DESCARACTERIZAÇÃO
DUPLA CONFORME
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ERRO DE JULGAMENTO
Sumário


I. A imputação ao tribunal recorrido da violação do regime adjetivo previsto no art. 640.º do CPC, no tocante à apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, descaracteriza a dupla conforme entre as decisões das instâncias, por se inscrever no âmbito do exercício dos poderes conferidos à Relação, não se verificando duas apreciações sucessivas de uma mesma questão de direito.
II. Estando equacionado o modo como a Relação exerceu os poderes de apreciação da impugnação da decisão de facto, no âmbito do artigo 640º do CPC., justifica-se a intervenção do STJ., ao abrigo do nº. 3 do art. 674º do mesmo diploma legal.
III. Os recorrentes devem tomar posição específica sobre os motivos da discordância, indicando e explicitando de forma pormenorizada, individualizada e minuciosa os concretos pontos de facto que se pretendem impugnar, os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa e a decisão que entendam ser a correta, não sendo para o efeito suficiente uma genérica afirmação dessa discordância.

Texto Integral

Acordam na 6ª. Secção do Supremo Tribunal da Justiça

1-Relatório:

Os autores, ora adquirentes habilitados, AA e BB, intentaram ação de despejo contra os réus, CC e DD, peticionando a sua condenação:

A) A reconhecer a resolução do contrato de arrendamento, por falta de pagamento de rendas, operada em março de 2008;

B) A pagar à A. o valor das rendas vencidas e não pagas entre outubro de 2005 e março de 2008, no valor total de € 9.300,00 (nove mil e trezentos euros), acrescido de juros de mora no valor de € 4.644,39 (quatro mil, seiscentos e quarenta e quatro euros e trinta e nove cêntimos) e juros de mora vincendos;

C) A pagar à A. as compensações devidas pela utilização do imóvel entre abril de 2008 e a presente data no montante de € 38.400,00 (trinta e oito mil e quatrocentos euros) acrescida de juros de mora vencidos no valor de € 9.004,21 (nove mil e quatro euros e vinte e um cêntimos) e vincendos até integral pagamento.

D) A restituir o imóvel devoluto de quaisquer pessoas e/ou bens;

ou, em alternativa,

E) Deverá ser decretada a resolução do contrato de arrendamento, por falta de pagamento de rendas e os RR. condenados a reconhecê-la, com todas as consequências legais;

F) E os RR. condenados a pagar as rendas em dívida desde outubro de 2005 até à presente data no valor de € 47.700,00 (quarenta e sete mil e setecentos euros), acrescidas de juros de mora vencidos no montante de € 13.648,60 (treze mil, seiscentos e quarente e oito euros e sessenta cêntimos) e vincendos até integral pagamento;

G) A restituir o imóvel devoluto de quaisquer pessoas e/ou bens.

Para tanto, fundamentam o seu pedido no facto dos RR. terem recebido o locado por transmissão operada pelo falecimento dos anteriores arrendatários, conviventes com o 1.º R.; Com a transmissão do arrendamento foi atualizada a renda, a qual os RR. deixaram de pagar em setembro de 2005 e até aos dias de hoje; Apesar das interpelações, nada mais os RR. pagaram, não tendo, igualmente, entregue o locado.

Os RR. foram citados, tendo apresentado contestação, defendendo-se por exceção – prescrição das rendas e caducidade – e por impugnação.

Prosseguiram os autos para julgamento, vindo a final a ser proferida sentença, com o seguinte teor no seu dispositivo:

«Nestes termos e fundamentos legais invocados julgo a presente ação parcialmente procedente, por provada, e em consequência:

1. Reconheço a resolução do contrato de arrendamento, por falta de pagamento de rendas, operada em junho de 2008;

2. Condeno os RR. a pagar aos AA. as compensações devidas pela utilização do imóvel entre julho de 2008 e a data da entrada da ação em juízo e que se computa em € 42.000 (quarenta e dois mil euros), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento.

3. Condeno os RR. a restituir aos AA. o imóvel devoluto de quaisquer pessoas e/ou bens.

4. Declaro prescritas as rendas devidas entre setembro de 2005 e junho de 2008, por força do disposto no art.º 310.º do CC.

5. Julgo improcedente a exceção de caducidade do direito de ação invocada pelos RR».

Inconformados deduziram os réus, recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa.

No Tribunal da Relação veio a ser proferido acórdão, concluindo a final:

«Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o presente recurso, confirmando a decisão impugnada».

Uma vez mais inconformados, interpuseram os réus, recurso de revista para este STJ., concluindo as suas alegações:

I)Vem o presente recurso interposto do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que, julgou improcedente o recurso de Apelação interposto pelos ora

Recorrentes, e manteve a Sentença recorrida, por considerar não terem os Recorrentes dado cumprimento ao ónus referido no artigo 640.º do C.P.C.;

II) Concluiu o Tribunal da Relação de Lisboa que, estando omissa a análise crítica da valoração da prova, impunha-se a rejeição da impugnação da matéria de facto;

III) O sumário extraído do Acórdão que motiva a presente Revista foi formulado no seguinte sentido: 1- Quando impugna a matéria de facto, o recorrente deve cumprir o ónus a que o artigo 640.º, do código de processo civil, designadamente, deve proceder a uma análise da valoração da prova feita pelo Tribunal de primeira instância que permite ao Tribunal de recurso compreender as suas razões de discordância face ao juízo daquele tribunal. 2- A omissão dessa análise determina a não apreciação da impugnação”;

IV) O Acórdão do Tribunal da Relação apenas acolheu a argumentação dos Recorrentes quanto à alteração da matéria de facto dada como PROVADA no Ponto 12 dos factos provados, impondo, em sequência, que o referido ponto passasse a ter o seguinte teor: “Por carta datada de5 janeiro de 2024,dirigida ao endereço dos réus e ao cabeça de casal por óbito da D. EE, FF comunicou que, tendo tomado desconhecimento do falecimento da D. Rosalina solicitava a devolução da habitação” (sublinhado nosso);

V) O teor dado pelo Tribunal da Relação ao mencionado Ponto 12 da matéria de facto, enferma de erro de escrita, cuja correção se impõe nos termos do disposto no artigo 249.º do Código Civil, devendo o mesmo ter, efetivamente, o seguinte teor: “Por carta datada de 5 janeiro de 2024, dirigida ao endereço dos réus e ao cabeça de casal por óbito da D. EE, FF comunicou que, tendo tomado conhecimento do falecimento da D. Rosalina solicitava a devolução da habitação” (sublinhado nosso);

VI) O Tribunal da Relação de Lisboa rejeitou a impugnação dos Pontos 10, 11, 13, 15 e 16, dos factos provados, bem como, rejeitou a impugnação das alíneas b) e c) dos factos não provados;

VII) Diversamente do pugnado no Aresto em crise, entendem os Recorrentes ter cumprido, totalmente, o ónus a que estavam vinculados quanto à impugnação da matéria de facto especificada no recurso de Apelação;

VIII) Sendo esta a razão do inconformismo dos Recorrentes quanto à Decisão proferida no Acórdão do Tribunal da Relação;

IX) Entendem os Recorrentes que competia ao Tribunal da Relação e Lisboa apreciar, também, a impugnação dos Pontos 10, 11, 13, 15 e 16, dos factos provados, bem como, a impugnação das alíneas b) e c) dos factos não provados, que foi sujeita ao seu escrutínio;

X) O Tribunal da Relação de Lisboa, está investido do poder / dever de modificar a decisão sobre a matéria de facto, nos termos do disposto no artigo 662.º do C.P.C., podendo alterá-la a partir da reapreciação da prova testemunhal extratada nos autos e dos demais elementos que sirvam de base à respetiva decisão;

XI) Os Recorrentes concretizaram na sua Apelação todos os dados probatórios, necessários e suficientes para o efeito;

XII) Os termos em que os Recorrentes formularam a sua Apelação, quanto à especificação dos Pontos da matéria de facto provada e não provada, que pretendiam ver alterada, cumpre rigorosa e cumulativamente, todos os comandos do artigo 640.º do C.P.C., porquanto, indicaram os concretos pontos de facto que consideravam incorretamente julgados; indicaram os concretos meios probatórios, nomeadamente a prova documental e o registo da gravação da prova testemunhal realizada em audiência de discussão e julgamento que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e indicaram expressamente qual a decisão, que no seu entender, deveria ser proferida sobre as questões de facto impugnadas;

XIII) Quanto à impugnação da matéria de facto dada como provada no Ponto 13 dos factos provados, os Recorrentes cumpriram o ónus previsto no artigo 640.º do C.P.C., conforme resulta dos artigos 19 a 34 das alegações produzidas na Apelação;

XIV) Impunha-se, por isso, ao Tribunal da Relação de Lisboa que analisasse os meios de prova que foram efetivamente concretizados quanto a esse ponto discordante da matéria de facto provada, nomeadamente, o depoimento da Testemunha GG, com indicação exata do início e termos da parte em crise, e o documento 12 junto com a petição inicial, para alteração da decisão do facto inserto no Ponto 13 da matéria de facto provada;

XV) O ónus imposto pela alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do C.P.C., mostra-se igualmente cumprido, uma vez que, concretizaram os Recorrentes que o Ponto 13 deveria ser eliminado da matéria de facto provada, o que, necessariamente, equivale à expressão do sentido de decisão que no seu entender deveria ser proferida;

XVI) Quanto à impugnação da matéria de facto dada como provada no Ponto 15 dos factos provados, os Recorrentes cumpriram o ónus previsto no artigo 640.º do C.P.C., conforme resulta dos artigos 35 a 52 das alegações produzidas na Apelação;

XVII) Impunha-se, por isso, ao Tribunal da Relação de Lisboa que analisasse os meios de prova que foram efetivamente concretizados quanto a esse pronto discordante da matéria de facto provada, nomeadamente, as cartas datadas de 21 de maio de 2008 e 17 de março de 2017, para alteração da decisão do facto inserto no Ponto 15 da matéria de facto provada;

XVIII) E foi, também, a respeito da impugnação do Ponto 15 dos factos provados, cumprido o ónus imposto pela alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do C.P.C., uma vez que, concretizaram os Recorrentes que o Ponto 15 deveria ser eliminado da matéria de facto prova, o que, necessariamente, equivale à expressão do sentido de decisão que no seu entender deveria ser proferida;

XIX) Os Recorrentes por via dos artigos 53 a 54 das alegações produzidas na Apelação, para efeitos de impugnação da matéria de facto considerada provada no Ponto 11 dos factos provados, cumpriram igualmente o ónus enunciado no artigo 640.º do C.P.C.;

XX) Ao referirem os Recorrentes que, “da mesma forma e pelos mesmos motivos que vêm supra alegados quanto aos factos provados nos pontos 12, 13 e 15”, - o que fizeram evitando alegacões prolixas e em respeito do princípio da economia processual -, deram cumprimento ao ónus enunciado no artigo 640.º do C.P.C., e consequentemente, deveria o Tribunal da Relação de Lisboa, investido do poder / dever de efetuar a reapreciação da prova que lhe foi indicada, o que não o fez;

XXI) A expressão” da mesma forma e pelos mesmos motivos que vêm supra

alegados quanto aos factos provados nos pontos 12, 13 e 15”, impõe concluir

que, os concretos meios probatórios a reapreciar pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no que respeita à impugnação do Ponto 11 da matéria de facto provada, seriam os mesmo que forma indicados para efeitos de analise e reapreciação dos pontos 12, 13 e 15 da mateia de facto provada, e sob os mesmos fundamentos;

XXII) Indicaram, também, os Recorrentes qual o sentido de decisão que no seu entender deveria ser proferida, uma vez que, referiram que o Ponto 11 deveria ser eliminado da matéria de facto prova;

XXIII) Os Pontos 10 e 16 da matéria de facto provada foram também impugnados pelos Recorrentes, em comprimento dos preceitos enunciados o artigo 640.º do C.P.C., conforme resulta dos pontos 85 a 91 das suas alegações da Apelação;

XXIV) O Tribunal da Relação de Lisboa, eximiu-se, também, da análise da prova indicada (documento 2, junto com o articulado da contestação), que constitui o comprovativo do pagamento das rendas devidas desde setembro de 2017 até à data em que foram os Recorrentes citados para os termos da ação declarativa, mais uma vez, decidindo pela recusa da impugnação interposta em Apelação pelos Recorrentes;

XXV) Quanto à impugnação da matéria provada nos Pontos 10 e 16 (segunda parte) da matéria de facto provada, os Recorrentes deram cumprimento ao ónus imposto pela alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do C.P.C., porquanto, indicaram que deveriam os mesmos ser excluídos da Matéria de Facto Provada, o que expressa, indubitavelmente, aquele que seria o sentido de decisão que no seu entender deveria ser proferida;

XXVI) O Tribunal da Relação de Lisboa, assumiu uma hipervalorização dos requisitos previstos no artigo 640.º do C.P.C., que vai muito para além da pretensão do legislador, ao considerar que os Recorrentes não deram cumprimento aos requisitos de ordem formal previstos na mencionada norma;

XXVII) E ao fazê-lo, eliminou, indevidamente, qualquer possibilidade de verem os Recorrentes modificada a decisão da matéria de facto que impugnaram;

XXVIII) No caso concreto é notório que o Tribunal da Relação de Lisboa não cumpriu, como deveria ter cumprido, os deveres constantes do artigo 662.º do C.P.C., impondo-se, por isso, que seja retomada a apreciação do mérito da decisão no que respeita à impugnação da matéria de facto, na medida em que, não foram efetivamente apreciados os meios de prova indicados pelos Recorrentes, quando, na realidade, os Recorrentes impugnaram, especificadamente, os diversos pontos da matéria de facto dada como provada e da matéria de facto dada como não provada, que pretendiam ver alterada, e indicaram, para além das respostas pretendidas, os meios de prova que, no seu entender, determinam as pretendidas modificações;

XXIX) A Decisão do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, integra violação de direito processual suscetível de constituir fundamento ao presente recurso de Revista, nos termos preceituados no artigo 674º, nº 1, al. b), do C.P.C., porquanto, não foi efetivamente apreciada a impugnação da decisão da matéria de facto, nem reapreciada a prova que foi indicada pelos Recorrentes relativamente aos pontos de facto impugnados;

XXX) Não tendo sido efetivamente apreciada a impugnação da decisão da matéria de facto nem reapreciada a prova que foi indicada pelos Recorrentes

relativamente aos pontos de facto impugnados, os Recorrentes conclamam, por via do presente recurso de Revista, a remessa do processo ao Tribunal da

Relação de Lisboa, que seja, efetivamente, apreciada a impugnação da decisão da matéria de facto suscitada pelos Recorrentes e reapreciada a prova por eles indicada relativamente aos pontos de facto impugnados.

Por seu turno, contra-alegaram os autores:

A) Os Recorrentes vêm interpor recurso ordinário de revista para o Colendo Supremo Tribunal de Justiça, “com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo, nos termos dos artigos 627º, nº 1 e nº 2, 629º, nº 1 e nº 3 alínea a), 631º, nº 1, 637º, nº 1, 671º, 674º, nº 1 alínea b), todos do Código de Processo Civil.”, tendo por objecto o douto Acórdão proferido por esse Tribunal da Relação, que manteve a decisão proferida pelo Tribunal de primeira instância.

B) Este recurso ordinário de revista não é admissível.

C) Com efeito, a norma ínsita no nº 3, alínea a) do artigo 629º, do CPC só admite recurso, independentemente do valor da causa e da sucumbência, nas acções em que se aprecie a validade, a subsistência ou a cessação de contratos de arrendamento, para a Relação.

D) Sendo que, no caso concreto, não se mostra preenchida a salvaguarda prevista na parte inicial do nº 3 do artigo 671º, do mesmo Código, a qual, aliás, se deve considerar como abrangendo apenas os casos previstos no nº 2 do citado artigo 629º, pois só nesses é sempre admissível recurso.

E) Estamos, ademais, diante de um caso de evidente dupla conforme, já que o Acórdão de que se recorre confirmou, sem voto de vencido e com fundamentação essencialmente idêntica, a decisão da primeira instância e, assim sendo, como de facto é, a norma limitativa do nº 3 do artigo 671º torna o presente recurso inadmissível.

F) Acresce que não pode considerar-se (como os recorrentes parecem pretender) que se está diante de violação de regras processuais só verificadas na decisão da segunda instância e que, por isso, se devem considerar subtraídas à dupla conformidade das decisões.

G) Como se salienta no douto Acórdão desse Colendo Tribunal de 02.11.2023, acima citado, também no caso vertente o que temos é a imputação ao Acórdão recorrido de erros que decorrem de argumentos/raciocínios exteriores ao texto do Acórdão ou que não são sequer verdadeiros erros adjetivos/processuais (hoc sensu)”, correspondendo, na verdade, e como já sucedeu no recurso de apelação, a discordâncias dos Recorrentes quanto ao valor probatório reconhecido pelo Tribunal em relação a determinados meios de prova, os quais são, aliás, meios de prova sujeitos à livre apreciação do julgador, traduzindo-se a impugnação da decisão da matéria de facto a mera manifestação de inconsequente inconformismo.

H) Com efeito, não existe no Acórdão recorrido qualquer erro na aplicação da lei processual, que dele se extraia; designadamente (e por que os Recorrentes sequer identificam qualquer dos seus comandos, optando por uma remissão genérica para o artigo 662º, do CPC), após apreciação dos termos da impugnação e analisados os documentos juntos aos autos e ouvidos os depoimentos prestados em julgamento, a Relação: i) não teve quaisquer dúvidas sérias sobre a credibilidade dos depoentes ou sobre o sentido dos seus depoimentos; ii) não teve qualquer dúvida fundada sobre a prova produzida; iii) não identificou como estando em falta quaisquer elementos probatórios que permitissem a alteração da decisão proferida, sobre matéria de facto, pela 1ª instância nem, quanto a esta, identificou qualquer deficiência, obscuridade ou contradição ou sequer descortinou qualquer necessidade de ampliação da matéria de facto; e iv) não identificou qualquer deficiente fundamentação da decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa.

I) Ao presente recurso vem, mal, atribuído efeito suspensivo; efectivamente, como decorre do disposto no artigo 676º, nº 1, do CPC, o recurso de revista só tem efeito suspensivo nas acções sobre o estado das pessoas; o que não é o caso.

J) Sendo certo que o nº 2 do mesmo artigo prevê a possibilidade de à revista ser atribuído efeito suspensivo, deverá entender-se que, para tal, sempre tem o recorrente de requerer, ao interpor o recurso, a fixação de efeito suspensivo quando a execução da decisão lhe cause prejuízo considerável e se ofereça para prestar caução, ficando a atribuição desse efeito condicionada à efetiva prestação da caução no prazo fixado pelo tribunal, à semelhança do previsto no nº 4, do artigo 647º.

K) Nada alegando ou requerendo os Recorrentes a este propósito, jamais ao presente recurso, a ser admitido (no que se não concede), se poderia atribuir efeito suspensivo.

L) Para a eventualidade, que se equaciona ad absurdum, de vir a ser admitido o presente recurso com efeito suspensivo, os Recorridos desde já declaram, nos termos e para os efeitos do artigo 676º, nº 2, in fine, que exigem que os Recorrentes prestem caução.

Sem conceder e por cautela de patrocínio, em resposta à alegação dos Recorrentes:

M) Os Recorrentes vêm impugnar o douto Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, por considerarem que no mesmo: se assumiu uma hipervalorização dos requisitos previstos no artigo 640.º do C.P.C., que vai muito para além da pretensão do legislador, ao considerar que os Recorrentes não deram cumprimento aos requisitos de ordem formal previstos na mencionada norma (conclusão XXVI); a Relação não cumpriu, como deveria ter cumprido, os deveres constantes do artigo 662.º do C.P.C., impondo-se, por isso, que seja retomada a apreciação do mérito da decisão no que respeita à impugnação da matéria de facto, na medida em que, não foram efetivamente apreciados os meios de prova indicados pelos Recorrentes (conclusão XXVIII) e que a decisão recorrida integra violação de direito processual suscetível de constituir fundamento ao presente recurso de Revista, nos termos preceituados no artigo 674º, nº 1, al. b), do C.P.C., porquanto, não foi efetivamente apreciada a impugnação da decisão da matéria de facto, nem reapreciada a prova que foi indicada pelos Recorrentes relativamente aos pontos de facto impugnados (conclusão XXIX).

N) Como resulta da simples leitura do Acórdão recorrido, não lhes assiste razão.

O) O Tribunal da Relação fez consignar que “foram analisados os documentos juntos aos autos e ouvidos os depoimentos prestados em julgamento – pelas partes e pelas testemunhas -, sendo com base nessa apreciação que se decide a impugnação.”

Sendo que, com base nessas consideração e ponderação:

P) Foram analisados detalhadamente os Pontos 7 e 8 da matéria provada e termos da respectiva impugnação tendo concluído, sem qualquer dúvida (como resulta da transcrição supra, que aqui se considera reproduzida) não assistir razão aos apelantes após detalhada apreciação dos depoimentos de parte dos apelantes; do depoimento da testemunha GG; dos documentos juntos com a p.i. sob os nºs 5 a 10 e 12 (analisados à luz das regras de experiência).

Q) Igualmente se mostram analisados os Pontos 10 e 16 (segunda parte) da matéria de facto provada e a impugnação aos mesmos dirigida constante dos nºs 85 a 91 da alegação do recurso de apelação, daqui resultando a patente falta de indicação, “de forma crítica a prova em que o tribunal se deveria basear para decidir de outra forma, limitando-se a afirmar que “os réus efetivamente retomaram o pagamento das rendas, como resulta documentado nos autos”, razão pela qual foi rejeitada - como teria de ser - esta impugnação.

R) Não obstante, considerando a conexão entre esta matéria e a impugnação dirigida às alíneas b) e c) da matéria de facto considerada não provada pela primeira instância, no Acórdão do Tribunal da Relação ainda se fundamenta devidamente ser improcedente a impugnação porquanto “não se mostra cumprido o ónus do artigo 640.º, do Código de Processo Civil, já que nenhum meio de prova foi apontado que releve para fundamentar aquela matéria. É evidentemente irrelevante a declaração de intenções dos réus em julgamento, tanto mais que pretendem pagar o valor de um euro (que vêm depositando), o qual não corresponde sequer ao valor da renda.”

S) A Relação analisou, outrossim, os Pontos 11, 12 e 13 da matéria de facto provada e a impugnação da mesma, tendo: i) alterado a redacção do Ponto 12, em termos que sintetizam o que resulta do Doc. 11 junto com a p.i. (o que não tem qualquer reflexo na decisão); ii) rejeitado a impugnação dos Pontos 11 e 13, por não terem analisado a prova produzida, fazendo depender a impugnação apenas da resposta negativa que entendem dever ser dada aos pontos 12 e 13, relacionados.

T) Basta atentar nos nºs 32 a 34 (relativos ao Ponto 13) e 53 (relativos ao Ponto11) da alegação da apelação para confirmar o bem fundado da desconsideração da impugnação pelo Tribunal da Relação.

U) Finalmente, a relação analisou o Ponto 15 e a impugnação ao mesmo dirigida tendo concluído que a argumentação dos apelantes não consubstancia qualquer análise crítica da prova, antes se traduzindo na exposição de argumentos de natureza jurídica, pelo que não está cumprido o ónus do artigo 640º, do CPC. A leitura dos nºs 35 a 52 da alegação dos apelantes evidencia o bem fundado dessa rejeição.

V) Assim, caso este recurso de revista fosse admissível (e não é!), jamais poderia proceder a pretensão dos Recorrentes, não padecendo o Acórdão do Tribunal da Relação do vício que lhe é apontado, concretamente não existindo violação de qualquer dos comandos do artigo 662º, do CPC.

Foram colhidos os vistos.

2- Cumpre apreciar e decidir:

As conclusões do recurso delimitam o seu objeto, nos termos do disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil.

Da admissibilidade do recurso:

O presente recurso de revista, vem interposto do acórdão do Tribunal da Relação, o qual conheceu do mérito da causa, nos termos do disposto no nº. 1 do art. 671º do CPC., confirmando a decisão de 1ª. Instância.

Importa, no entanto, apurar da admissibilidade do recurso atento o obstáculo da dupla conforme.

Nos termos do disposto no art. 671.º, n.º 3, do CPC, não é admissível revista normal do acórdão que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível.

No presente caso, não houve qualquer voto de vencido, tendo a Relação confirmado a sentença proferida pela 1.ª Instância.

Porém, na situação concreta, importa sublinhar que o objeto do recurso de revista consiste na alegada violação pela Relação do disposto no art. 640.º do CPC., ao não ter sido admitida parte da impugnação da decisão sobre a matéria de facto contida no recurso de apelação, por incumprimento do ónus de alegação previsto naquela disposição legal.

De acordo com o que tem sido a jurisprudência consolidada deste STJ, a imputação ao tribunal recorrido da violação do regime adjetivo previsto no art. 640.º do CPC, no tocante à apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, descaracteriza a dupla conforme entre as decisões das instâncias por se inscrever no âmbito do exercício dos poderes conferidos à Relação, não se verificando duas apreciações sucessivas de uma mesma questão de direito - cfr., entre outros, os acórdãos do STJ proferidos em 27-01-2022, em 15-09-2022, em 14-05-2024, em 09-07-2024, em 17-09-2024 e em 14-11-2024, todos publicados em https://juris.stj.pt/.

Podemos, assim, concluir que não se verifica o obstáculo da dupla conforme, sendo a revista admissível nos termos gerais.

A questão a dirimir consiste em aquilatar, sobre a apreciação da rejeição da impugnação dos pontos, 10, 11, 13, 15 e 16 dos factos provados e das alíneas b) e c) dos factos não provados.

A matéria de facto delineada nas instâncias foi a seguinte:

1. Os AA. são donos e legítimos possuidores do prédio urbano sito na Rua 1, ..., ... Lisboa, destinado a habitação, com cave, rés-do-chão e três andares, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob a ficha ..72 da freguesia de São Sebastião da Pedreira, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ..96, da freguesia de Campolide.

2. Por contrato de arrendamento celebrado na década de 40 do século passado, entre os anteriores proprietários e o falecido avô do Réu, HH, este tomou de arrendamento, para sua habitação, o apartamento correspondente à cave do prédio identificado no número anterior.

3. Mediante o pagamento de uma renda mensal de 250$00 (duzentos e cinquenta escudos).

4. Após a morte de HH, ocorrida em 19.06.1974, o arrendamento transmitiu-se à sua esposa EE.

5. EE veio a falecer em 09.12.2003.

6. Por via do óbito, o contrato de arrendamento transmitiu-se ao neto, aqui réu, que residia no apartamento arrendado com os avós.

7. Transmissão que os anteriores proprietários aceitaram mediante a atualização do valor da renda para a quantia de € 300,00 (trezentos euros) por mês.

8. Com vencimento no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que diz respeito.

9. O Réu pagou as rendas vencidas até setembro de 2005.

10. Desde o último pagamento, ocorrido em agosto de 2005, que o Réu nunca mais procedeu ao pagamento de quaisquer rendas.

11.O Réu foi por várias vezes interpelado pelos anteriores proprietários/senhorios.

12. Por carta datada de 5 de janeiro de 2004, dirigida ao endereço dos réus e ao cabeça de casal por óbito da D. EE, FF comunicou que, tendo tomado conhecimento do falecimento da D. Rosalina solicitava a devolução da habitação (alterado pela Relação).

13. Em 28 de Março de 2005, o Réu foi novamente interpelado para a entrega do imóvel devoluto de pessoas e bens com fundamento na oposição à renovação.

14. Em 30 de Abril de 2005, o R. não entregou o arrendado livre e devoluto de pessoas e bens.

15. Por carta data de 21 de maio de 2008, os senhorios procederam à resolução do contrato com fundamento na falta de pagamento de rendas.

16. A carta foi recebida pelo R. que, todavia, continua a viver no arrendado com a família sem efetuar qualquer pagamento.

17. Após a aquisição do locado pela empresa PRISMA PRINCIPAL UNIPESSOAL LDA. esta apresentou ao Réu CC para assinatura um novo contrato de arrendamento sujeito às seguintes condições:

a) Contrato com início em 1 de setembro de 2018;

b) Com a duração de 1 (um) ano, renovável por iguais períodos de tempo;

c) Mediante a renda mensal de EUR 1,50.

18. Que o R. não aceitou.

Factos julgados não provados:

a) Os filhos da D.ª Benvinda, sempre respeitaram essa vontade da mãe, e nunca exigiram qualquer pagamento de renda aos Réus.

b) Os Réus pretenderam retomar o pagamento das rendas.

c) Os RR. nunca receberam as missivas dos AA.

d) Os Réus informaram à sociedade à data proprietária da decisão, de não assinarem o novo contrato, e que passariam a pagar a renda pelo valor que a mesma era devida, 1,5 €

e) Ao que a Autora respondeu que, não aceitava que os Réus estivessem a ocupar a casa mediante esse irrisório valor de renda.

Vejamos:

Insurgem-se os recorrentes relativamente ao acórdão proferido, dado entenderem terem cumprido os ónus do art. 640.º do CPC., a que estavam obrigados, contrariamente ao entendimento preconizado naquele.

Ora, a competência do Supremo Tribunal de Justiça está circunscrita à matéria de direito, enquanto tribunal de revista, não podendo debruçar-se sobre a matéria de facto, ficando vinculado aos factos fixados pelo Tribunal recorrido, a que aplica definitivamente o regime jurídico tido por adequado, nos termos do nº. 1 do art. 682º. do CPC.

Porém, dispõe o nº. 2 do mesmo preceito, que a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no nº. 3 do artigo 674º do CPC.

E o nº. 3 do art. 674º do CPC., admite a revista com fundamento em ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, permitindo, assim, que se avalie os termos como foram interpretadas e aplicadas as normas que regem os ónus de impugnação previstos no art.º 640º. do mesmo diploma legal.

Com efeito, a intervenção do STJ a nível factual é muito limitada, não podendo sindicar o erro na livre apreciação das provas, exceto nos casos contemplados no nº. 3 do art. 674º do CPC. (cfr., nomeadamente, Acs. do STJ. de 15-12-2020, 15-12-2022, 24-5-2022, in www.dgsi.pt).

Na situação em apreço, está equacionado o modo como a Relação exerceu os poderes conferidos ao abrigo do art. 662º do CPC., no âmbito da apreciação da impugnação da decisão de facto, justificando-se a intervenção do STJ., ao abrigo do nº. 3 do art. 674º do CPC.

A função da 2.ª instância em matéria de facto, impõe a reapreciação das provas, devendo a mesma ser efetuada com base na análise crítica, em que se fundamenta a decisão, através da formação de uma convicção própria, não bastando uma mera apreciação do julgamento efetuado (cfr., entre outros, os acórdãos do STJ de 09-09-2014, de 13-09-2016, de 16-11-2017, disponíveis em www.stj.pt (sumários de acórdãos).

Neste segundo grau de jurisdição, opera-se um verdadeiro recurso de reponderação ou de reexame, sempre que do processo constem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão da matéria de facto em causa, que conduzirá a uma decisão de substituição, uma vez decidido que o novo julgamento feito modifica, altera ou adita a decisão recorrida e com a mesma amplitude de poderes de julgamento que se atribui à 1.ª instância e independente da convicção de 1.ª instância.

Efetivamente, a reapreciação da prova pela Relação tem a mesma amplitude da apreciação da prova pela 1.ª instância, por se encontrar na posse dos mesmos elementos de prova de que se serviu este tribunal, no âmbito do princípio da livre apreciação ou do sistema da prova livre, baseada sempre numa nova, diferente e própria convicção formada pelos seus juízes, e não, simplesmente, na sua aquisição pelo modo exteriorizado pelo tribunal de hierarquia inferior, em termos considerados razoáveis e lógicos, ainda que venha a ter lugar a confirmação do decidido pela 1.ª instância, sob pena de violação de um verdadeiro e efetivo duplo grau de jurisdição, em matéria de facto.

Importa, pois, averiguar se a Relação face à impugnação da matéria de facto operada pelos recorrentes, analisou corretamente a forma como estes a impugnaram, ou seja, se os mesmos cumpriram os ónus que lhes são impostos pelo art. 640º do CPC.

Dispõe este preceito legal que:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 -O disposto nos nºs. 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do nº. 2 do artigo 636º.

Como alude Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª. Ed., a pág. 196-197, «Com o atual CPC., o legislador visou, através do regime previsto no art. 640º, dois objetivos: sanar dúvidas que o anterior preceito ainda suscitava e reforçar o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expressa a decisão alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova».

Os requisitos formais constantes do art. 640º do CPC., têm em vista, garantir uma adequada inteligibilidade do objeto e alcance teleológico da pretensão recursória, de forma a proporcionar o contraditório esclarecido da contraparte e a circunscrever o perímetro do exercício do poder de cognição pelo tribunal de recurso (cfr. Ac. STJ. de 22-3-2018, in www.dgsi.pt).

A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações, como indica Abrantes Geraldes, na obra supra identificada a fls. 201:

a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;

b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados;

c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados;

d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;

e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.

Ora, o descontentamento dos recorrentes incide sobre os pontos 10, 11, 13, 15 e 16 dos factos dados como provados e alíneas b) e c) dos factos dados como não provados.

Escreveu-se no acórdão recorrido:

«Pontos 10 e 16 (segunda parte)

Disse o tribunal de primeira instância sob os pontos 10 e 16 (segunda parte) da matéria de facto:

10. Desde o último pagamento, ocorrido em agosto de 2005, que o Réu nunca mais procedeu ao pagamento de quaisquer rendas.

16. (…) R. que, todavia, continua a viver no arrendado com a família sem efetuar qualquer pagamento.

Entendem os réus que estes factos devem ser substituídos pelo facto:

“Os réus retomaram o pagamento das rendas”.

Não indicam de forma crítica a prova em que o tribunal se deveria basear para decidir de outra forma, limitando-se a afirmar que “os réus efetivamente retomaram o pagamento das rendas, como resulta documentado nos autos”.

Como já referimos, quando impugna a matéria de facto, o recorrente deve proceder a uma análise crítica da valoração da prova feita pelo tribunal a quo, de forma que o tribunal de recurso alcance as razões de discordância do juízo do tribunal de primeira instância.

Não o tendo feito, deve, sem mais, ser rejeitada esta impugnação.

Sem prejuízo, nada está documentado que leve à conclusão de pagamento das rendas pretendida.

Razão pela qual nada há a alterar quanto à referida matéria».

Analisado o descrito, não há reparo a fazer ao Tribunal da Relação, já que, os recorrentes se limitaram de uma forma linear, a impugnar a factualidade, sem a indicação precisa e concisa onde residia a incorreta apreciação, de molde a infirmá-la.

Quanto aos pontos 11 e 13 dos factos provados, escreveu-se no acórdão recorrido, na parte que ora releva:

«O tribunal deu como provado, sob os pontos 11, 12 e 13, o seguinte:

11. O Réu foi por várias vezes interpelado pelos anteriores proprietários/senhorios.

(…)

13. Em 28 de Março de 2005, o Réu foi novamente interpelado para a entrega do imóvel devoluto de pessoas e bens com fundamento na oposição à renovação.

Os apelantes discordam da decisão do tribunal quanto a estes factos, por entenderem que esta matéria não ficou demonstrada.

Em relação ao ponto 13, os apelantes não fazem qualquer análise crítica da prova, limitando-se a declarar que o documento 12 deve ser desatendido.

Em relação ao ponto 11, os apelantes também não analisam a prova produzida, fazendo depender a impugnação deste ponto, apenas da resposta negativa que entendem deve ser dada aos pontos 12 e 13, relacionados.

A falta de cumprimento do ónus do artigo 640.º quanto aos pontos 11 e 13, determina, sem mais, a rejeição da impugnação».

De igual modo, a forma lacunar como os apelantes impugnaram a factualidade em questão, não permite qualquer apreciação.

Com efeito, aludindo apenas que um documento não deve ser atendido, implica que não se indica qual a razão para tal desconsideração, nem a sua relação com a matéria em apreço.

A impugnação da matéria de facto implica um concreto ónus de alegação a cargo dos recorrentes, com especial acuidade em princípios estruturantes, tais como, o da autorresponsabilidade das partes, cooperação, lealdade e boa-fé processuais.

A postura dos recorrentes reside apenas no descontentamento com a apreciação do tribunal, sem exprimir aonde pudesse existir eventual erro no julgamento de facto, ou quais os elementos probatórios em concreto, que conduziriam a diferente desfecho, que não indicaram.

Quanto ao ponto 15 diz o acórdão:

«O tribunal deu como provado o seguinte sob o ponto 15:

15. Por carta data de 21 de maio de 2008, os senhorios procederam à resolução do contrato com fundamento na falta de pagamento de rendas.

Dizem os apelantes que a factualidade provada subverte totalmente a prova que foi produzida nos autos, nomeadamente a prova documental, na medida em que tal facto não podia ser dado como provado, uma vez que anos mais tarde apelantes foram notificados para exercerem direito de preferência.

A argumentação dos apelantes não configura uma análise crítica da prova. Os argumentos apresentados não questionam, nem analisam, o meio de prova. Os apelantes confundem o facto e o respetivo meio de prova com o comportamento da outra parte, de resolver o contrato e, mais tarde, agir como se o contrato estivesse válido. A análise de tal questão reveste natureza jurídica, situando-se no âmbito da aplicação do direito aos factos.

Desta forma, não está cumprido o ónus do artigo 640.º, razão pela qual não pode proceder a impugnação deste facto».

Uma vez mais, não têm razão os recorrentes.

Com efeito, reafirma-se que não foi levada a efeito uma adequada impugnação, ou seja, diremos mesmo que não houve impugnação, pois, o que se denota é uma generalizada discordância com a análise do tribunal, mas sem qualquer suporte.

Assim, sem êxito.

Por último, quanto aos factos não provados b) e c), diz o acórdão recorrido:

«Entendem os apelantes que devem passar a integrar a matéria provada, os pontos b) e c) dos factos não provados, com o seguinte teor:

b) Os Réus pretenderam retomar o pagamento das rendas.

c) Os RR. nunca receberam as missivas dos AA.

Desnecessário é entrar na análise da natureza da matéria pretendida ver provada, porque não se mostra cumprido o ónus do artigo 640.º, do Código de Processo Civil, já que nenhum meio de prova foi apontado que releve para fundamentar aquela matéria. É evidentemente irrelevante a declaração de intenções dos réus em julgamento, tanto mais que pretendem pagar o valor de um euro (que vêm depositando), o qual não corresponde sequer ao valor da renda.

Sem necessidade de argumentos adicionais, improcede a impugnação».

Relativamente a estes factos, a postura dos recorrentes é ainda mais gritante, pois, limitaram-se a um emitir uma constatação, sem qualquer indicação das motivações a tal conducentes.

Tanto a interpretação literal, como sistemática e teleológica do art. 640.º, n.º 1, als.), a) e b), do CPC apontam no sentido de que a indicação dos meios probatórios, destina-se a aferir do eventual erro no julgamento de facto, devendo o recorrente tomar posição especifica sobre os motivos da discordância, indicando e explicitando de forma pormenorizada, individualizada e minuciosa os concretos pontos de facto que se pretendem impugnar, os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa e a decisão que entenda ser a correta, não sendo para o efeito suficiente uma genérica ou exemplificativa afirmação dessa discordância.

A rejeição do recurso pelo incumprimento dos ónus impostos, decorre da consequência da própria conduta processual dos recorrentes.

Assim, constatando-se que o Tribunal da Relação cumpriu os trâmites legais de aplicação das normas de direito adjetivo referentes à apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, atento o não cumprimento do disposto no nº. 1 do art. 640º do CPC., a revista tem de improceder.

Sumário:

- A imputação ao tribunal recorrido da violação do regime adjetivo previsto no art. 640.º do CPC, no tocante à apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, descaracteriza a dupla conforme entre as decisões das instâncias, por se inscrever no âmbito do exercício dos poderes conferidos à Relação, não se verificando duas apreciações sucessivas de uma mesma questão de direito.

- Estando equacionado o modo como a Relação exerceu os poderes de apreciação da impugnação da decisão de facto, no âmbito do artigo 640º do CPC., justifica-se a intervenção do STJ., ao abrigo do nº. 3 do art. 674º do mesmo diploma legal.

- Os recorrentes devem tomar posição específica sobre os motivos da discordância, indicando e explicitando de forma pormenorizada, individualizada e minuciosa os concretos pontos de facto que se pretendem impugnar, os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa e a decisão que entendam ser a correta, não sendo para o efeito suficiente uma genérica afirmação dessa discordância.

3- Decisão:

Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente a revista.

Custas a cargo dos recorrentes, sem prejuízo de apoio judiciário de que beneficiem.

Lisboa, 25-11-2025

Maria do Rosário Gonçalves (Relatora)

Anabela Luna de Carvalho

Luís Correia de Mendonça