Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
DEPOIMENTO INDIRECTO
TESTEMUNHA
ARGUIDO
VALORAÇÃO
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
CONCEITO
Sumário
I – Embora existam três perspectivas diferentes em relação a esta questão, é sustentável a tese de que resulta da interpretação conjugada dos artigos 129º, nº 1 e 128º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal, que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indiretos das testemunhas que relatam conversas com um arguido, ainda que este chamado a depor exerça o direito ao silêncio, interpretação que se considera não atingir de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido, o que nos afasta da valoração de prova proibida. II – A maioria da jurisprudência nacional vem manifestando a aceitação destes depoimentos indiretos. III – O princípio “in dubio pro reo” estabelece que, na decisão de factos incertos, a dúvida favorece o arguido, o que constitui um princípio de prova que vigora em geral, isto é, quando a lei, através de uma presunção, não estabelece o contrário.
Texto Integral
Processo nº 355/23.9GAMLD.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo de Competência Genérica da Mealhada
Recorrente: AA
Referência documento citius nº 138532086 sentença
Acordam, em conferência, os juízes da 4ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto.
I - RELATÓRIO
1. No dia 5 de maio 2025, sob a referência citius à margem identificada foi proferida sentença no Tribunal de 1ª instância, à margem identificado que terminou com o seguinte dispositivo:
“V. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se:
A) Condenar o arguido AA na pena única de 2 (anos) e 9 (nove) meses de prisão, correspondente às seguintes penas parcelares do concurso:
i. pela prática do crime de furto qualificado previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 1, alíneas b) e f), ambos do Código Penal, a pena de 2 anos de prisão;
ii. pela prática de um crime de coacção agravada na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, n.º 2, alínea a), 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), 154.º, n.ºs 1 e 2, e 155.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal, uma pena de 1 ano e 6 meses de prisão;
B) Condenar o arguido no pagamento das custas do processo, cuja taxa de justiça se fixa em 3 Unidades de Conta, nos termos do disposto nos artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e do artigo 8.º, n.º 9, e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.
2. Inconformado com a sua condenação, o arguido interpôs recurso da sentença, concluindo a respetiva motivação com as seguintes
“CONCLUSÕES
1. Com o presente recurso pretende o recorrente que seja feita uma sindicância da matéria de facto julgada provada e bem assim, no que respeita à matéria de direito, que seja apreciada a medida das penas parcelares e da pena única aplicada.
2. Assim, o recorrente indica como concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (art. 412º n.º 3 alínea a) do CPP), os seguintes: Ponto 2, 4, 5, 6 e 7.
3. Os depoimentos das testemunhas BB, CC, DD e as declarações do arguido AA, impõem decisão diversa no que tange à condenação do recorrente como autor material de um crime de furto qualificado.
4. Não tendo sido produzida uma prova que fosse que o recorrente tivesse sido o autor de um crime de furto qualificado, foi o recorrente condenado pela prática desse ilícito.
5. Ninguém consegue colocar o arguido nas circunstâncias de tempo e de espaço onde ocorreu a prática de tal ilícito.
6. Inexiste igualmente qualquer outra prova directa que permita concluir da forma que o tribunal injustamente e inadequadamente concluiu.
7. A prova indirecta ou indiciária de per si ou desacompanhada de alguma forma material tende a conduzir a desfechos aberrantes como sucedeu nos presentes.
8. A condenação do recorrente enquanto autor material de um crime de coacção agravada na forma tentada conquanto admissível é desajustada por inflacionada ou insuflada no seu quantum, se levarmos em linha de conta as regras e o teor do art. 73º do CP.
9. As verbalizações levadas a cabo pelo arguido conquanto infelizes e inaceitáveis foram proferidas num quadro de nervosismo exacerbado e profunda angústia, não deixando de ter sido despoletadas pelo facto do queixoso lhe ter feito uma imputação falsa num quadro em que o recorrente estava debilitado por ter perdido o seu pai em data recente.
10. A contundência com que o arguido foi condenado em relação a esta pena parcelar como que contaminou a pena única que na escolha do seu quantum padece das mesmas enfermidades que a pena parcelar referida.
11. Enfermidades ou adiposidades que importa revogar e reverter.
12. Com o teor do relatório social, sobretudo nas suas conclusões, a suspensão da execução da pena de prisão com regime de prova teria de ter sido uma realidade e uma inevitabilidade.
13. Também a circunstância do recorrente estar perfeitamente integrado em termos familiares, sociais e laborais e o teor do ponto …da matéria de facto dada como provada tornavam a suspensão da execução da pena imperativa.
14. O facto de o requerente possuir um CRC vasto pelo número de averbamentos não é impeditivo para efectuar um juízo de prognose favorável no sentido de que a censura do facto acompanhada da ameaça da execução da pena são aqui e agora factores decisivos e determinantes para que o recorrente trilhe sem intermitências os caminhos da normatividade abstendo-se da prática de ilícitos.
15. Este juízo de prognose a efectuar pelo tribunal tem de ser feito com uma contemporaneidade com a elaboração da sentença, e não como foi nos presentes autos, em que claramente se retroagiu no tempo, à pessoa que o recorrente era ao tempo da última condenação, há dez anos atrás, com as necessidades de prevenção especial então existentes, que foram esbatidas e removidas com o decurso do tempo e pelo acréscimo de maturidade que o mesmo tempo aportou para a pessoa e personalidade do recorrente.
Normas violadas: art. 203, 204 do CP
art. 73º do CP
art. 50º e 53º do CP
art. 32º e 205º da CRP
Termos em que e nos melhores de Direito que V. Ex. suprirão, deve o presente recurso ser considerado provido, alterando-se a decisão proferida nos termos constantes da Motivação, assim sendo feita Justiça.
Mais requer se proceda a audiência onde deve ser ponderado o levado às conclusões.
*
3. O recurso foi liminarmente admitido no tribunal “a quo”, subindo imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
4. O Ministério Público, em 1º instância, apresentou resposta à motivação do recurso, concluindo pela sua improcedência, essencialmente, sustentando
“CONCLUSÕES:
1. O Arguido AA foi condenado por douta Sentença de 05 de maio de 2025 na pena única de 2 (anos) e 9 (nove) meses de prisão, correspondente às seguintes penas parcelares do concurso:
i. pela prática do crime de furto qualificado previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 1, alíneas b) e f), ambos do Código Penal, a pena de 2 anos de prisão;
ii. pela prática de um crime de coação agravada na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, n.º 2, alínea a), 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), 154.º, n.ºs 1 e 2, e 155.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal, uma pena de 1 ano e 6 meses de prisão.
2. Não se conformando com a sua condenação, dela interpôs recurso o Recorrente, aduzindo em suma que não foi corretamente valorada a prova produzida em sede de audiência de julgamento.
3. Pelo que, entende o Recorrente que, face à prova produzida foram indevidamente dados como provados os factos 2, 4, 5, 6, e 7 da matéria de facto dada como provada.
4. Os considerandos explanados pelo recorrente sobre o que deveria ou não ter sido dado como provado, fundam-se na sua própria valoração das provas produzidas, pelo que, cremos, não podem proceder em detrimento da convicção crítica, isenta, imparcial e objetiva que presidiu à apreciação e valoração da prova feita pelo Tribunal.
5. Em processo penal o “princípio da livre apreciação da prova”, significa que «a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente». Em matéria de apreciação da prova intervém sempre uma componente subjetiva, com especial relevância no que concerne à credibilidade da prova pessoal.
6. A livre convicção do julgador, sendo pessoal, é motivada em elementos que a tornem credível na base das regras da experiência, da lógica e da razoabilidade.
7. O Recorrente impugna a matéria de facto dada como provada na douta Sentença do Tribunal a quo referindo que deveria ser absolvido pela prática do crime de furto qualificado pelo qual deveio condenado.
8. Refere o Recorrente que não foi produzida qualquer prova que o mesmo tenha sido o autor do crime de furto qualificado pelo qual foi condenado, sendo que tal conclusão não poderá ser extraída da inquirição das testemunhas BB, CC e de EE porquanto ninguém consegue colocar o arguido nas circunstâncias de tempo e de espaço onde ocorreu a prática de tal ilícito, inexistindo qualquer outra prova direta que permita concluir pela autoria do crime de furto.
9. De facto, da inquirição de BB e CC (sendo que a referência a EE se deverá a lapso de escrita, antes se querendo dizer DD) não se extrai que os mesmos tenham presenciado o furto.
10. Contudo, importa não só atentar nas inquirições de FF e CC como também na inquirição de FF que relatou não ter mantido com o arguido qualquer prévia combinação no sentido de este se deslocar à Mealhada no dia em causa nos autos, confirmando, contudo, que o arguido lhe relatou que negociava velharias e que, quando saísse, havia de entrar em contacto consigo, por causa de um trator e de um Mercedes antigo, mas que antes da saída do arguido do estabelecimento prisional ocorreu um desentendimento pelo que não voltaram a falar do assunto.
11. Daqui se extrai que a vinda do arguido à Mealhada supostamente, como refere, para contactar FF, não se afigura credível porquanto não terão voltado a falar do assunto de venda daqueles objetos.
12. Como assim, da inquirição de FF não se extrai a confirmação quanto à versão trazida aos autos pelo arguido como justificação para a sua presença na Mealhada no dia e hora em que ocorreu o furto.
13. GG prestou um testemunho isento e que mereceu credibilidade. Relatou que, após ter constatado a existência de câmaras de vigilância no local fez «bluff» e telefonou ao arguido dizendo-lhe que o mesmo tinha aparecido nas câmaras de vigilância e, tendo sido questionado pelo arguido sobre se alguém da Câmara tinha visto as filmagens, colocou o telemóvel em alta voz, tendo a conversa sido ouvida por HH, II e JJ, altura em que o arguido terá dito que ia levar-lhe os seus pertences.
14. HH, na sessão de 06.02.2025 – gravação disponível no sistema digital media studio, no citius – ref.ª 20250206143000_4355776_28, relatou que na primeira chamada, no comboio, ouviu o arguido dizer ao ofendido que sabia quem tinha sido o autor do furto e que ia devolver a este os seus bens.
15. Atentando nas declarações do arguido que, em sede de julgamento confirmou a sua presença no local e data dos factos, o mesmo refere que se deslocou de Portalegre à Mealhada, com destino à Figueira da Foz, tendo efetuado uma paragem na Mealhada com o objetivo de negociar com FF.
16. Ora, por um lado, conforme resultou da própria inquirição de FF que, embora tenha confirmado que falou com o arguido sobre a venda de bens, adiantou que, quando ainda o arguido se encontrava recluso se desentenderam, pelo que não é credível que o arguido tenha ido à Mealhada para negociar o trator com FF, inclusivamente, sem antes saber se o mesmo lá se encontrava.
17. Por outro lado, também não é credível que o arguido se tenha deslocado de Portalegre para a Figueira da Foz, passando por Coimbra, e efetuado um desvio apenas para tentar encontrar uma pessoa, que nem sabia se encontraria.
18. Atentas declarações do ofendido e da inquirição de HH extrai-se que o arguido confirmou a sua presença na Mealhada, no local dos factos e no momento em que os mesmos foram praticados e que confirmou que devolveria os pertences ao ofendido.
19. Embora não exista prova direta do furto, ou seja, não existindo vestígios lofoscópicos ou até prova testemunhal, o relatado supra, e enquanto prova indireta, permite concluir, sem que seja de convocar o princípio in dúbio pro reo, pela condenação do arguido.
20. Em processo penal o “princípio da livre apreciação da prova”, significa que «a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».
21. Em matéria de apreciação da prova intervém sempre uma componente subjetiva, com especial relevância no que concerne à credibilidade da prova pessoal, o que se revela por força da imediação na produção dessa prova.
22. Conforme se lê no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 02.03.2017, Processo n.º 696/13.3PDCSC.L1 -9 «[o] juiz não tem que aceitar ou recusar cada um dos depoimentos na globalidade, cabendo-lhe a difícil tarefa de dilucidar em cada um deles o que lhe merece crédito. - Ac. Rel. Porto, de 2009-06-17 (Rec. n° 229/06.8TAMBR.P1, rel. Borges Martins, in www.dgsi.pt).».
23. Realça-se que, no caso sub judice, nem o Tribunal a quo considerou a existência de qualquer dúvida razoável, nem, em nosso entender, tal não se colhe do texto da decisão ora em crise, pelo que nenhum apontamento há a efetuar neste particular.
24. Pelo que deverá ser julgada improcedente a argumentação aduzida pelo Recorrente.
25. Deverá improceder o recurso, nesta parte, inexistindo, salvo melhor opinião, qualquer erro de julgamento ao terem sido dados como provados os factos 2, 4, 5, 6 e 7 da matéria de facto dada como provada.
26. Refere, ainda, o Recorrente que a pena aplicada quanto ao crime de coação agravada na forma tentada, pela qual foi o arguido condenado é desproporcional, porquanto, proferiu as expressões em causa, «num quadro de nervosismo exacerbado e profunda angústia».
27. A punição em um ano e seis meses de prisão ficou aquém do limite máximo da pena que são três anos e quatro meses, o que se considera justo e adequado, considerando, não só as finalidades de prevenção geral como especial no cotejo com os factos dados como provados e, sobretudo o teor do Certificado do Registo Criminal do Arguido, que atuou em período de liberdade condicional.
28. O arguido averba no seu Certificado do Registo Criminal, dezassete condenações, sendo a última por factos ocorridos em 2015, tendo sido aplicada ao arguido uma pena única de 9 anos de prisão efetiva, pela prática de crime de homicídio qualificado na forma tentada.
29. Neste ensejo não se verifica, salvo melhor entendimento, que a pena aplicada devesse ser especialmente atenuada, mesmo considerando que o arguido proferiu as expressões em causa num contexto em que se viu confrontado com a possibilidade de uma denúncia.
30. Ademais, o Tribunal a quo ponderou de forma efetiva a substituição da pena de prisão, concluindo pela impossibilidade da sua suspensão.
31. Não é possível fazer um juízo de prognose favorável de que a simples censura expressa na condenação e a simples ameaça de execução da pena de prisão aplicada sejam suficientes do ponto de vista da prevenção especial na pena de concurso aplicada.
32. Pelo que, bem andou o Tribunal a quo ao ter aplicado a pena que aplicou, não concluindo pela suspensão da sua execução.
33. Nenhum reparo há, salvo melhor entendimento, a aduzir à decisão recorrida quanto à pena e à medida concreta da pena aplicada.
34. A determinação da medida concreta da pena, foi feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, considerando que o dolo é direto e as exigências de prevenção especial atendendo ao teor do certificado do registo criminal do arguido.
35. Não violou o Tribunal a quo qualquer norma ou, bem assim, quaisquer princípios jurídico-penais e/ou constitucionais nem ocorreu, outrossim, qualquer erro na valoração da prova.
Pelo exposto, entendemos não caber razão ao Recorrente, devendo manter-se na íntegra a Douta Sentença ora recorrida, a qual foi exarada em harmonia com as normas legais, não se verificando a violação de quaisquer preceitos ou princípios jurídico-penais.
Termos em que Vossas Excelências farão a habitual JUSTIÇA!
5. Nesta Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto colocou o seu visto nos termos do nº2, do artigo 416º, do C.P.P. uma vez que o recorrente requereu a realização de audiência, nos termos do art.º 411º, nº 5 do citado diploma.
6. Foram colhidos os vistos legais realizou-se a audiência de discussão e julgamento como requerido pelo recorrente.
7. Definição do âmbito do recurso
Para definir o âmbito do recurso, a doutrina (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V). e a jurisprudência (como de forma uniforme têm decidido todos os tribunais superiores portugueses, nos acórdãos, entre muitos, do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1. S1.) são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A função do tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à apreciação do tribunal ad quem, mediante a formulação de um juízo de mérito.
Atento o teor do relatório atrás produzido, importa decidir as questões substanciais a seguir concretizadas – sem prejuízo de outras de conhecimento oficioso -, que sintetizam as conclusões do recorrente, constituindo, assim, o seu thema decidendum enunciadas nas conclusões:
- impugnação da matéria de facto, (ampla) nos pontos 2, 4, 5, 6, 7, e 10 constantes do elenco dos factos provados e que deveriam transitar para o elenco dos factos não provados, por se impor decisão diversa, (412º, nº 3 a) do CPP) havendo de se concluir pela absolvição do recorrente por falta de prova, da autoria dos crimes de furto qualificado p. e p. pelos artigos 203º, 204, nº 1 b) e f);
- a medida da pena aplicada pela prática do crime de coação, agravada, tentada é desajustada, por inflacionada ou insuflada no seu quantum, ponderado que seja o artigo 73º, do Código Penal, o que contaminou a pena única que no seu quantum padece da mesma enfermidade, cuja revogação peticiona, pugnando pela suspensão da pena, nos termos do artigo 50º, do Código Penal.
A sentença violou o disposto nos artigos 203º, 204, nº 1 b) e f);73 e 50, todos do Código Penal e 32 e 205º, da Constituição da República Portuguesa.
*
II – OS FACTOS PROCESSUAIS RELEVANTES
Perante as questões suscitadas no recurso torna-se essencial, para a devida apreciação do seu mérito, recordar a fundamentação em matéria de facto vertida na decisão recorrida:
II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
II.1 Factos provados
Da acusação
1) O ofendido GG (doravante GG) iniciou, em agosto de 2023, trabalhos de jardinagem na Câmara Municipal ... ao abrigo de um protocolo existente com o estabelecimento prisional, onde se encontrava.
2) Em data não concretamente apurada, mas anterior ao dia 4 de outubro de 2023, o arguido, AA, formulou um plano que consistia em dirigir-se ao estaleiro da Câmara Municipal ..., local que conhecia posto que ali também já havia trabalhado, concretamente ao cacifo de GG e dali retirar os objetos que viesse a encontrar.
3) No dia 04 de outubro de 2023, cerca das 09h20 quando GG chegou ao estaleiro da Câmara Municipal ..., na Avenida ..., na Mealhada, colocou a sua mochila, que continha no seu interior um fio de ouro grosso, com uma libra em ouro, uma placa em ouro com o rosto de Cristo, um anel em ouro e um relógio dourado da marca ECO, no interior do cacifo e fechou-o.
4) No período compreendido entre as 09h20 e as 12h00 do dia 4 de outubro de 2023, o arguido, na execução do plano que havia delineado, dirigiu-se àquele estaleiro, na Mealhada, abriu a porta principal e, de seguida dirigiu-se ao cacifo onde GG havia colocado a sua mochila e os bens descritos em 2., abriu-o, e, de seguida, retirou do seu interior o fio de ouro, com uma libra em ouro e uma placa de ouro com o rosto de Cristo, o anel em ouro e o relógio dourado da marca ECO, objetos que, de seguida, o arguido levou consigo, fazendo-os seus.
5) Objetos, pertença de GG, que o arguido AA retirou do interior daquele cacifo no valor de, pelo menos, 4.000,00€ (quatro mil euros), que transportou consigo, abandonando, de seguida, o local, fazendo-os seus.
6) No dia 09 de outubro de 2023, GG telefonou do seu telemóvel para o telemóvel do arguido com o número ... para se certificar que o arguido lhe entregaria aqueles objetos (o fio de ouro, com uma libra em ouro e uma placa de outro com o rosto de Cristo, o anel em ouro e o relógio dourado da marca ECO).
7) No decurso da conversa, com o telemóvel em alta voz, entretanto interveio BB que estava ao lado de GG e que disse ao arguido que GG iria apresentar queixa.
8) Nesse momento, o arguido disse, em tom de voz alto e sério «se ele apresentar queixa, arranco-lhe a cabeça, os meus filhos vão ter com a família dele», referindo-se a GG.
9) Expressões que GG ouviu.
10) O arguido agiu de forma livre, voluntária, deliberada e conscientemente, com o propósito, alcançado, de introduzir-se naquele estaleiro que se encontrava fechado, e onde sabia não poder entrar, e dali dirigir-se ao cacifo do ofendido, que sabia fechado e que abriu e dali retirar os objetos que viesse a encontrar, designadamente todos os que lhe permitissem, no imediato, a realização de dinheiro, e de integrar no seu património os objetos acima descritos, fazendo-os seus, bem sabendo que não lhe pertenciam, que agia contra a vontade e sem o consentimento do legítimo dono de tais objetos, sabendo que com a sua conduta lhe causava prejuízo patrimonial, o que fez, quis e conseguiu.
11) As expressões descritas em 8. devido às circunstâncias de modo como foram proferidas pretenderam fazer crer que o arguido estava disposto, a, no futuro (mais tarde, naquele dia ou nos dias ou semanas seguintes) atentar contra a vida e integridade física de GG, bem como causaram inquietação e medo, ficando, este, com receio que o arguido de facto cumprisse o que tinha dito e atentasse contra a integridade física e vida daquele, o que fez quis e conseguiu.
12) Perante a insistência e a agressividade manifestadas pelo arguido, GG passou a recear que, no seguimento do afirmado e na concretização de tais propósitos, o arguido o viesse a agredir corporalmente ou atentar contra a sua vida a qualquer momento e em qualquer local onde o encontrasse, causando-lhe dores, lesões e ferimentos passíveis de pôr em perigo a sua integridade física ou até a sua vida.
13) O arguido ao assim proceder, agiu de forma deliberada, livre, voluntária e conscientemente, querendo provocar medo ao ofendido, levando-o a temer pela sua vida, com a intenção de o determinar a não apresentar queixa crime junto das autoridades competentes para a receber.
14) O arguido agiu sempre em todas as descritas circunstâncias de forma livre, deliberada, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as descritas condutas eram e são proibidas e punidas por lei penal e que incorria em responsabilidade criminal.
Mais se provou que
15) À data dos factos em apreço nos presentes autos, o arguido integrava o seu próprio agregado familiar, constituído pelo próprio, pela companheira KK e pelo filho LL, de 20 anos.
16) À data dos factos em apreço nos presentes autos, o referido agregado residia numa habitação que construíram clandestinamente num terreno que lhes foi cedido gratuitamente pela Câmara Municipal ..., localizada no limite urbano da cidade, possuindo as infraestruturas básicas necessárias e condições de habitabilidade, verbalizando o arguido a perspectiva de, após a melhoria das condições económicas, proceder à legalização da habitação.
17) O arguido é o segundo mais novo de seis irmãos, sendo que há proximidade familiar entre os membros, mas também fragilidades na sua dinâmica.
18) Aos 22 anos, o arguido autonomizou-se do agregado de origem e constituiu relação em união de facto com a actual companheira, tendo três filhos do sexo masculino, verbalizando que os dois filhos mais novos são ambos doentes crónicos (hemofílicos).
19) O arguido caracteriza a relação intrafamiliar como positiva.
20) No domínio profissional, a intervenção do arguido é pouco expressiva.
21) O arguido apoiou o progenitor na venda de antiguidades, após terminar período escolar, e posteriormente, já com o seu próprio agregado constituído, passou a dedicar-se autonomamente à venda de antiguidades, onde prioritariamente se tem ocupado, não lhe sendo conhecidos outros desempenhos ou competências profissionais.
22) O arguido verbalizou que, actualmente, não apresenta problemáticas aditivas e referiu que há aproximadamente dez anos que toma medicação regular devido a uma obstrução vascular.
23) O agregado familiar recebe cerca de € 570,00 mensais, a título de Rendimento Social de Inserção.
24) O grupo familiar do arguido sempre dependeu de apoios estatais.
25) Do relatório social junto aos autos, a DGRSP fez constar, sobre o arguido, além do mais, o seguinte: “Embora funcionando num contexto étnico específico, cujas regras e hábitos nem sempre são compatíveis com os normativos sociais e jurídicos vigentes, não se verificam localmente (quer junto dos locais, quer dos Órgãos de Polícia Criminal) indicadores de alarmismo social ou de particular desajustamento comportamental.”
26) O arguido, no que concerne ao envolvimento no presente processo, assume uma postura de desresponsabilização e vitimização.
27) Os anteriores contactos com o sistema de justiça não tiveram repercussões sobre a sua postura pessoal.
28) A vivência do arguido é caracterizada pela fragilidade, inconsistência e manutenção de hábitos de vida específicos de cariz étnico, os quais nem sempre são coincidentes com a envolvente social e com os normativos vigentes.
29) A DGRSP identifica no arguido, como factores de risco e áreas com necessidade de intervenção, a fragilidade de actividade laboral ou ocupacional estruturada e o percurso criminal.
30) A DGRSP entende que a vinculação à família nuclear e alargada, dando continuidade às responsabilidades parentais, são aspectos que se podem constituir factores de protecção.
31) Do relatório social junto aos autos, a DGRSP fez constar, sobre o arguido, além do mais, o seguinte: “Face ao exposto, consideramos que em caso de condenação, o arguido reúne condições para uma medida de execução na comunidade em regime probatório, assente num plano com intervenção técnica estruturada ao nível das competências sociais, no sentido de valorizar a vivência em sociedade e o respeito pelas normas sociojurídicas.”
32) Em sede de audiência de julgamento, o arguido verbalizou que, com a actividade de venda de velharias, aufere cerca de € 250,00 mensais, para além do Rendimento Social de Inserção.
33) Do relatório social junto aos autos, a DGRSP fez constar que o arguido “frequentou o ensino na idade própria, abandonando o percurso escolar, por dificuldades de aprendizagem, após o 4.º ano de escolaridade.”
34) Em sede de audiência de julgamento, o arguido verbalizou que tem o 12.º ano de escolaridade.
35) Da sentença de 20.09.2023, que, com efeitos imediatos e até 17.11.2027, concedeu ao arguido a liberdade condicional, no âmbito do processo n.º …, consta, além do mais o seguinte:
“1) O recluso AA, preso no estabelecimento prisional 1..., cumpre sucessivamente uma pena única de nove anos de prisão resultante de cúmulo jurídico efectuado no Processo n.º …, do Juízo Central Cível e Criminal de Portalegre - J3, pela prática de um crime de homicídio na forma tentada, um crime de ofensa à integridade física qualificado, um crime de abuso de confiança, um crime de falsificação de documento e um crime de burla qualificada; e a pena residual de um ano, quatro meses e quinze dias de prisão, por revogação da liberdade condicional, à ordem do Processo …, do extinto 1 ° Juízo do Tribunal Judicial de Portalegre, pela prática de um crime de roubo qualificado.
2) De acordo com a liquidação efectuada, o cumprimento do meio das penas foi atingido em 9 de Setembro de 2022, o cumprimento de dois terços das penas ocorrerá em 1/06/2024, o cumprimento de cinco sextos em 17/05/2026, terminando o cumprimento das penas em 17/11/2027.
3) AA tem 5 irmãos, sendo gémeo de um deles.
4) Os seus progenitores sempre se dedicaram à compra e venda de antiguidades.
5) Integrou o sistema de ensino na idade normal, tendo abandonado os estudos aos 10 anos, com a 4ª classe completa, consequência da vida itinerante da família que se deslocava frequentemente para exercer a atividade comercial em diversas localidades.
6) Mais tarde, em meio prisional, obteve a equivalência ao 6º ano de escolaridade através do processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC).
7) A nível laboral, o arguido regista um percurso dedicado ao negócio de antiguidades, atividade que manteve após constituir agregado próprio.
8) Aos 22 anos de idade, AA iniciou união de facto, com MM, tendo o casal fixado residência em Portalegre, sendo que desta relação nasceram três filhos.
9) Em meio livre continua a contar com o apoio da companheira e dos três filhos do casal, existindo total disponibilidade para o acolher e apoiar quando regressar à liberdade. Conta ainda com o apoio da família alargada, nomeadamente dos progenitores, também residentes em Portalegre.
10) O respetivo agregado ocupa moradia no centro de Portalegre.
11) O agregado familiar do condenado sobrevive do Rendimento Social de Inserção, no valor mensal de 370€, a que acresce a pensão social do filho LL, de 19 anos, por motivo de saúde (doença hemofílica).
12) O arguido sofre de problema de saúde ao nível da obstrução vascular, beneficiando de acompanhamento médico e tomando medicação adequada.
13) O condenado tem antecedentes criminais e anterior reclusão.
14) No exterior pretende retomar a anterior atividade por conta própria, na transação de antiguidades.
15) No EP ... onde esteve antes de vir para o EP 1..., o condenado frequentou e concluiu, com assiduidade, o 12º ano, tendo terminado o curso de formação profissional de pintor da construção civil, naquele EP. Trabalhou ainda como faxina.
16) No EP 1..., onde deu entrada a 12.07.2021, trabalhou na cozinha, tendo posteriormente trabalhado como faxina dos serviços administrativos, onde permaneceu até passar a estar em RAE e ter começado a trabalhar na CM... em 03/07/2023, com bom desempenho.
17) Em reclusão o recluso vem mantendo um comportamento adaptada, não registando a prática de qualquer infracção disciplinar.
18) Beneficia de medidas de flexibilização da pena, desde 24/03/2022, sem registo de qualquer anomalia.
19) O recluso tem vindo a efectuar um percurso de maior interiorização da censurabilidade da sua conduta, assumindo os crimes cometidos e manifestando propósitos de não voltar a delinquir.”
36) O arguido consentiu na prestação de trabalho a favor da comunidade/serviço de interesse público.
37) O arguido consentiu na aplicação do regime de vigilância electrónica.
38) O arguido consentiu em submeter-se a consulta médica e a eventual tratamento que seja prescrito para problema de que eventualmente possa padecer.
39) Não obstante a intenção do arguido referida em 13), o ofendido GG, efectivamente, apresentou queixa, quer pela subtracção dos bens referidos em 3), quer pela prolação da expressão referida em 8).
40) Do seu certificado de registo criminal constam as seguintes condenações:
a) pela prática de um crime de ofensa a funcionário e de um crime ameaça, em pena única de 120 dias de multa, por decisão de 22.05.1995, no âmbito do processo comum n.º …, que correu termos no Tribunal Judicial de Portalegre;
b) pela prática, em 19.09.1995, de um crime de receptação, em pena de 40 dias de multa, por decisão de 15.11.1996, no âmbito do processo comum n.º …, que correu termos no Tribunal de Círculo de Portalegre;
c) pela prática, em 24.06.1997, de um crime de desobediência, em pena de 90 dias de multa, por decisão de 23.03.1999, no âmbito do processo comum n.º …, que correu termos no Tribunal Judicial de Portalegre, declarado extinto, o procedimento criminal, por amnistia, em 25.05.1999;
d) pela prática, em 06.03.1995, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, em pena de 50 dias de multa, por decisão transitada em 15.11.1999, no âmbito do processo comum n.º …, que correu termos no Tribunal Judicial de Portalegre;
e) pela prática, em 07.2000, de um crime de desobediência, em pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, por decisão transitada em 12.06.2001, no âmbito do processo comum singular n.º …, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre;
f) pela prática, em 01.10.1999, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário e de um crime de dano, em pena única de 1 ano e 7 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, por decisão transitada em 25.09.2001, no âmbito do processo comum colectivo n.º …, que correu termos no Tribunal Judicial de Portalegre;
g) pela prática, em 09.03.2001, de um crime de injúria agravada e de um crime de ameaça, em pena única de 100 dias de multa, por decisão transitada em 12.12.2001, no âmbito do processo comum n.º …, que correu termos no Tribunal Judicial de Portalegre;
h) pela prática, em 27.20.2000, de um crime de desobediência, em pena de 4 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 18 meses, por decisão transitada em 11.01.2002, no âmbito do processo comum singular n.º …, que correu termos no Tribunal Judicial de Portalegre;
i) pela prática, em 27.20.2000, de um crime de desobediência, em pena de 4 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 18 meses, por decisão transitada em 11.01.2002, no âmbito do processo comum singular n.º …, que correu termos no Tribunal Judicial de Portalegre;
j) por acórdão cumulatório transitado em 18.03.2002, no âmbito do processo n.º …, na pena única de 2 anos e 4 meses de prisão efectiva e na pena de 100 dias de multa;
k) pela prática, em 03.10.2000, de um crime de emissão de cheque sem provisão e de um crime de burla qualificada, em pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, por decisão transitada em 09.04.2003, no âmbito do processo comum singular n.º …, que correu termos nas Varas de Competência Mista da Comarca da Vila Nova de Gaia;
l) pela prática, em 04.04.2001, de um crime de emissão de cheque sem provisão, em pena de 10 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos, por decisão transitada em 04.02.2004, no âmbito do processo comum singular n.º …, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria;
m) pela prática, em 04.01.2010, de um crime de roubo qualificado, em pena de 4 anos e 6 meses de prisão efectiva, por decisão transitada em 07.05.2012, no âmbito do processo comum colectivo n.º …, que correu termos no Tribunal Judicial de Portalegre;
n) pela prática, em 03.06.2013, de um crime de desobediência, em pena de 80 dias de multa, por decisão transitada em 29.03.2016, no âmbito do processo comum n.º …, que correu termos no Juízo Local Criminal de Portalegre;
o) pela prática, em 16.07.2013, de um crime de homicídio na forma tentada, em pena de 5 anos de prisão efectiva, por decisão transitada em 18.04.2017, no âmbito do processo comum colectivo n.º … que correu termos no Juízo Central Cível e Criminal de Portalegre – J3;
p) pela prática, em 14.06.2014, de um crime de burla qualificada, em pena de 3 anos e 10 meses de prisão efectiva, por decisão transitada em 17.02.2017, no âmbito do processo comum colectivo n.º …, que correu termos no Juízo Central Criminal de Viana do Castelo – J1;
q) pela prática, em 09.10.2015, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, em pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com sujeição a deveres, por decisão transitada em 26.04.2017, no âmbito do processo sumaríssimo n.º …, que correu termos no Juízo Local Criminal de Portalegre;
r) pela prática, em 03.03.2015 e em 17.03.2015, de um crime de abuso de confiança e de um crime de falsificação de boletins, actas ou documentos, em pena de 2 anos e 1 mês de prisão efectiva, por decisão transitada em 24.05.2018, no âmbito do processo comum singular n.º …, que correu termos no Juízo Local Criminal de Portalegre;
s) por acórdão cumulatório transitado em 05.04.2019, que abrange os processos referidos em o), p), q) e r), na pena única de 9 anos de prisão efectiva, tendo-lhe sido concedida liberdade condicional com efeitos reportados a 06.10.2023 e até 17.11.2027.
*
II.2. Factos não provados
Com relevo para a decisão da causa, não ficaram por provar quaisquer factos.
*
II.3. Motivação
A convicção do tribunal estribou-se na análise conjugada das declarações prestadas em sede de audiência de julgamento com o teor de todos os documentos juntos aos autos, sempre coadjuvada pelas regras da experiência comum, as quais permitem que de um facto conhecido se extraia um facto desconhecido, por a verificação empírica de tal sequência ser de tal modo reiterada no normal acontecer, que só poderia essa inferência ser contrariada, com razoabilidade e lógica, por um facto absolutamente excepcional, se e quando produzida prova com a segurança que tal excepcionalidade necessariamente exige.
Concretizando.
Desde logo, a convicção do Tribunal assentou, quanto à globalidade da factualidade provada e não provada, na prova documental junta aos autos, designadamente, auto de notícia de fls. 3, fotografia de fls. 40 e documento (sentença do TEP de Coimbra) junto na sessão de audiência de julgamento de 09.10.2024; conjugada, tal prova documental, com as declarações prestadas pelo arguido e com a prova testemunhal produzida, tudo nos termos que infra melhor veremos.
O arguido, assumindo uma postura de vitimização, prestou declarações que o tribunal entende terem sido comprometidas com um desfecho da causa que lhe fosse favorável, não merecendo, em particular quanto à negação dos factos que lhe são desfavoráveis, credibilidade, pelos motivos que passam a expor-se.
Começou por confirmar o facto 1), explicando que trabalhava com o ofendido GG, a quem o arguido chama NN, e com outras pessoas, havendo boas relações entre todos. Mais disse que, em certa ocasião, o ofendido lhe telefonou (a si, arguido), a dizer que lhe tinham roubado o ouro, sendo que, duas ou três horas depois, o ofendido voltou a telefonar-lhe, informando quando é que o roubo tinha ocorrido, tendo o arguido admitido que tinha ali estado nesse dia, tendo, então, o ofendido afirmado que tinha sido o arguido o autor de tal roubo.
Nessa sequência, o arguido confessou que disse ao ofendido que o mataria, caso apresentasse queixa de si (“se fores para a justiça”), mais afirmando que também disse que se mataria a si próprio e que ficariam “os dois deitados na relva”. Ou seja, pese embora não com a concreta expressão constante da acusação – a qual resultou provada, de qualquer modo, em face da prova testemunhal produzida, como infra melhor veremos –, consigna-se, desde já, que o arguido, alegando que perdeu a cabeça, confessou que dirigiu ao ofendido uma ameaça de morte, com o objectivo de o constranger a não apresentar queixa contra si (pela suposta prática do furto).
Concretizando os factos em apreço, o arguido relatou que saiu do estabelecimento prisional em 20.09.2023 e que, no dia 04.10.2023, no período da manhã, antes das 12h00 e talvez por volta das 10h30 [dia e horário do furto do ouro], voltou à Mealhada, tendo vindo de Portalegre (onde reside), acompanhado da sua mulher. Disse que esteve junto do estaleiro da Câmara Municipal – onde se encontram os cacifos dos reclusos que prestavam os trabalhos ao serviço do protocolo referido em 1) –, mas que não chegou a entrar no referido estaleiro. Afirmou que o motivo da ida a esse local foi encontrar um funcionário da Câmara que se chama FF [FF, posteriormente ouvido como testemunha nos presentes autos], mais afirmando, o arguido, que saiu do carro e, uma vez que não viu o carro do referido FF nas imediações do estaleiro, acabou por ir-se embora, sem ter chegado a entrar no estaleiro. Afirmou que tal negócio consistiria na compra, pelo arguido, de um tractor e de um carro Mercedes antigo (tendo referido que se dedica ao negócio de venda de velharias), negócio esse que tinha sido previamente falado e que, por o arguido não ter encontrado o referido FF naquele dia 04.10.2023, nunca chegou a concretizar-se.
Perguntado quanto ao motivo pelo qual, se tivesse vindo de Portalegre à Mealhada [cerca de 200 km de distância e mais de 2h00 de viagem de carro] apenas para falar com o aludido funcionário FF, não teria telefonado previamente para a Câmara Municipal ... para confirmar a presença da pessoa com quem vinha encontrar-se, o arguido, laconicamente, respondeu que não o fez por saber que aquele [o mencionado FF] se encontra naquele local todos os dias.
Note-se que, posteriormente a estas declarações, o arguido foi questionado pelo seu Ilustre Mandatário se, quando se deslocou à Mealhada, naquele dia de 04.10.2023, não tinha feito a viagem também para aproveitar uma vinda à Figueira da Foz para visitar uma afilhada, tendo o arguido respondido que sim e tendo dito que igualmente aproveitou para ir também a Coimbra, ter com uma sobrinha, com quem almoçou. Não pode o tribunal deixar de sublinhar que a explicação espontânea que o arguido ofereceu para ter vindo de Portalegre à Mealhada, no mesmo dia do furto, foi – unicamente – a de que pretendia vir negociar com o referido FF, sendo que, mesmo confrontado com a inverosimilhança de ter feito tal viagem sem previamente se assegurar de que a pessoa que procurava estaria de facto na Mealhada, apenas disse, como se viu, que o fez por saber que o mesmo se encontrava nesta localidade [rectius, junto ao estaleiro da Câmara], todos os dias.
Recapitulando: o arguido, espontaneamente, indicou como o único motivo para ter percorrido cerca de 200 km, entre Portalegre e a Mealhada, uma tentativa de encontro com uma pessoa que o arguido, obviamente, não poderia garantir que estaria naquele local (estaleiro da Câmara), pessoa essa que, note-se, o arguido não se esforçou minimamente por procurar, após ter constatado que o respectivo carro não se encontrava junto ao estaleiro, de imediato abandonando o local, tendo, claro está, de percorrer mais 200 km, de Mealhada a Portalegre, num total de 400 km, percorridos em vão, com todos os custos de tempo e dinheiro que isso implica. Foi apenas depois de ter sido interpelado pelo seu Ilustre Mandatário que o arguido se lembrou de mencionar outros motivos (visita de familiares na zona) justificativos para a viagem de Portalegre à Mealhada (e, pois, da Mealhada a Portalegre), na manhã de dia 04.10.2023, dia e horário em que ocorreu o furto objecto dos autos.
Refira-se que, obviamente, a implausibilidade da versão trazida pelo arguido não se prende com a implausibilidade da eventual existência de quaisquer prévias conversações ou (putativas intenções de) negociações entre o arguido e o referido FF (que, como veremos infra, até foram, em parte, confirmadas por esta testemunha, por referência a data anterior à saída em liberdade do arguido). Com efeito, é natural que o arguido as tenha referido por haver um fundo de verdade (isto é, em tempos, terá sido efectivamente alvitrada a possibilidade, entre o arguido e FF, de um dia poderem vir a fazer negócio). Sucede que, entende o tribunal, o arguido terá feito, isso sim, um aproveitamento impróprio daquelas conversações/putativas intenções de negociações, usando-as como justificação para a sua presença no local e dia dos factos (quando na verdade ficou bem claro que o arguido, após ter chegado à Mealhada, não se preocupou realmente – longe disso – em encontrar o suposto co-negociante FF).
Mais, a implausibilidade da explicação oferecida pelo arguido para justificar a sua presença no local e data dos factos – reveladora de uma aparente extrema facilidade e até leviandade em realizar a viagem Portalegre-Mealhada – é tanto maior se considerarmos que, logo na primeira sessão da audiência de julgamento, o arguido requereu a continuação do seu julgamento na sua ausência (cfr. artigo 334.º, n.º 2, do Código de Processo Penal), com a justificação da considerável distância entre Portalegre e a Mealhada (requerimento que foi deferido – cfr. acta de 09.10.2024).
Aqui chegados, será de colocar uma muito legítima dúvida: porque é que o arguido teria admitido que se deslocou ao local dos factos, no próprio dia em que eles ocorreram? Será porque não tinha nada a esconder? Não. Como infra veremos, aquando da análise do depoimento do ofendido, este fez bluff junto arguido e disse que sabia que tinha sido ele a furtar-lhe os bens, sendo que o arguido, nesse seguimento, supondo que a sua presença no local, data e hora do furto tivesse ficado registada em vídeo, admitiu-a e, após, não lhe restou senão tentar apontar uma justificação para essa presença (o que fez invocando as supostas negociações com FF).
O arguido mais confirmou que conhece os objectos em ouro que foram furtados, uma vez que os via diariamente a serem usados pelo ofendido, sabendo também que este os deixava todos os dias, durante a manhã, no cacifo do estaleiro da Câmara.
Narrou que todos os reclusos que ali trabalhavam costumavam deixar na fechadura a chave de cada um dos seus cacifos e disse também que era habitual estarem na zona do estaleiro, onde estavam os cacifos, muitas pessoas, para além dos próprios reclusos (como, por exemplo, as namoradas destes).
A testemunha BB, assistente operacional na Câmara Municipal ..., prestou um depoimento desinteressado e relatou que os reclusos vinham do estabelecimento prisional 1..., de comboio, para a Mealhada [ao abrigo do protocolo referido em 1)], e que, quando chegavam ao parque da cidade, era esta testemunha, funcionária da Câmara, que lhes distribuía as funções, pelo que conhece os objectos furtados, por ter visto o ofendido a usá-los, antes do furto.
Mais relatou que os cacifos onde os reclusos deixavam os seus pertences se situavam num armazém/estaleiro, cujo acesso implicava a passagem por dois portões, que, por regra, ficavam fechados no trinco, pelo que qualquer pessoa ali poderia aceder.
Esta testemunha narrou também, de forma clara, que ouviu uma chamada, em alta voz, entre o arguido e o ofendido, na qual o arguido disse ao ofendido que lhe arrancaria a cabeça e que faria mal também à sua família. Peremptoriamente, esta testemunha afirmou ter sido esta a expressão usada pelo arguido e não aqueloutra, enunciada por este (de que mataria o ofendido e a si próprio, ficando os dois estendidos na relva).
Perguntada, a testemunha disse que o arguido negou a prática do furto e disse ter sido confirmado pelo Sr. FF que teria havido negociações entre este e o arguido (mas não uma concreta combinação).
Por fim, perguntada, a testemunha disse que, a si, o arguido nunca lhe furtou nada.
A testemunha FF, jardineiro a exercer funções na Câmara Municipal ..., disse conhecer o arguido por terem trabalhado juntos, tendo boas relações, e crê o tribunal que prestou um depoimento sincero e credível.
Afirmou, desde logo, que, no dia dos factos, chegou ao trabalho pelas 11h00 ou 11h30, não tendo presenciado qualquer furto.
Questionado sobre se o arguido teria vindo à Mealhada, nessa altura, para falar consigo, a testemunha respondeu que não sabe [isto é, não havia nenhuma combinação para aquele dia e hora]. Concretizando, explicou que, ainda durante a reclusão, o arguido lhe contou que negociava velharias e que, quando saísse, havia de entrar em contacto consigo (com a testemunha), por causa de um tractor e de um Mercedes antigo, mas que, uma vez que, antes da saída do arguido do estabelecimento prisional, houve uma espécie de desentendimento, nunca mais falaram. Perguntada, a testemunha disse que, aquando desse desentendimento, o arguido nunca disse que jamais faria negócios consigo.
Aqui chegados, o tribunal entende ser de referir que o depoimento desta testemunha FF não confirmou, evidentemente, a versão trazida aos autos pelo arguido. Na verdade, corroborou a conclusão que o tribunal extraiu das declarações do arguido: isto é, de que terá havido alguma(s) conversação(ões) entre o arguido e FF, no sentido de poder eventualmente vir a ser celebrado um negócio, argumento esse que o arguido usou para justificar a sua vinda ao local do furto, pretendendo fazer crer que o facto de essa vinda ter ocorrido no preciso dia e horário do furto foi uma mera coincidência.
A testemunha OO, assistente operacional da Câmara Municipal ..., disse conhecer o arguido por terem trabalhado juntos, tendo boas relações, e crê o tribunal que prestou um depoimento desinteressado.
Esta testemunha relatou que os reclusos costumavam deixar os seus pertences nos cacifos, num local ao qual apenas tinham acesso os reclusos e os funcionários da Câmara. Perguntado se costumavam andar por ali também outras pessoas, que não os reclusos e os funcionários (como, por exemplo, amigos, namoradas), a testemunha respondeu negativamente, dizendo, de qualquer modo, que era possível que isso acontecesse, uma vez que os portões ficavam fechados apenas no trinco. Questionado quanto ao autor do furto, disse apenas que ouviu dizer que o arguido a assumiu num telefonema, telefonema a que, porém, esta testemunha não assistiu.
A testemunha PP, que esteve em reclusão juntamente com o arguido, prestando trabalhos na Mealhada com ele, ao abrigo do mesmo protocolo, prestou um depoimento seguro e imparcial.
Contou que o ofendido costumava deixar os seus bens no cacifo e que, no dia em que foram furtados, o viu alterado. Mais contou que, uns dias após, assistiu a um telefonema, feito do ofendido para o arguido, em que o arguido, por um lado, negou a autoria do furto e, por outro, ameaçou o ofendido de que o mataria a ele e à sua família (do ofendido), admitindo que a expressão possa ter sido relacionada com arrancar-lhes a cabeça.
Questionada, esta testemunha negou que alguma vez tenha visto mulheres, designadamente namoradas do ofendido, a frequentar a zona do estaleiro/dos cacifos.
Quanto à testemunha GG, ofendido nos autos, sublinha-se, desde logo, que, pese embora a posição interessada nos autos, prestou um depoimento que se nos afigurou sincero, imparcial, coerente e credível.
O ofendido começou por esclarecer que mantinha boas relações com o arguido, juntamente com o qual esteve recluso e trabalhou na Mealhada, ao abrigo do mesmo protocolo.
De forma clara e segura, o ofendido relatou que, no âmbito do referido protocolo com a Câmara Municipal ..., era sempre destacado para trabalhar na rua, enquanto que o arguido ficava sempre no parque da cidade [local no se situava o estaleiro com os cacifos], porque dizia que não conseguia andar a trabalhar.
O ofendido disse que, após o furto, se dirigiu às escolas nas imediações, com intenção de apurar se tinham visto alguém desconhecido (que pudesse ser suspeito do furto) e, nessa altura, constatou que ali existiam câmaras de videovigilância.
Mais narrou que, nessa sequência, na sexta-feira seguinte à ocorrência do furto, telefonou para o arguido e, fazendo bluff, disse-lhe que tinha visto uma filmagem das câmaras e que tinha constatado que tinha sido o arguido o autor do furto. Então, contou que o arguido, de seguida, perguntou ao ofendido se alguém da Câmara Municipal tinha visto tais filmagens, pelo que o ofendido, percebendo o rumo da conversa, colocou telemóvel em alta voz, para que pudesse ser ouvido também pelos demais reclusos presentes (tendo o ofendido referido os nomes daqueles que estariam perto de si: HH, PP, II, JJ). Relatou que o arguido, de seguida, nesse telefonema, disse ao ofendido “alguém está a ouvir? Olha, eu sou um homem muito doente e vou aí levar-te os teus pertences na segunda-feira”, mais tendo o arguido dito que, apesar disso, não tinha sido ele a furtar os bens, pelo que, questionado pelo ofendido sobre como é que, então, estariam na sua posse, o arguido respondeu “Não vamos falar mais nisso, eu depois explico”.
O ofendido relatou que, na segunda-feira seguinte [isto é, dia 09.10.2023], voltou a telefonar ao arguido e que, aquando deste telefonema, além dos demais reclusos, estavam também presentes, a ouvir o telefonema, em alta voz, os funcionários da Câmara BB e FF. Afirmou o ofendido que, neste telefonema, o arguido disse, afinal, que o motivo da ida à Mealhada tinha sido um negócio com o referido FF. Ora, nessa sequência, BB perguntou a FF se aquilo era verdade e, tendo este respondido que não, que não havia combinado nada com o arguido naquele dia, a aludida BB acabou por também tomar a palavra no telefonema em causa, dizendo ao arguido que também estava a ouvir a conversa, tendo sido nesse momento que o arguido disse que arrancava a cabeça ao ofendido e mandava os seus filhos matar toda a família do ofendido. Perguntado, afirmou o ofendido, clara e expressamente, que foi esta a exacta expressão usada pelo arguido.
O ofendido esclareceu ainda que é verdade que o arguido dizia que vendia velharias e que o referido FF chegou a falar-lhe num tractor, mais esclarecendo, porém, que este (FF) também havia comentado que não queria fazer negócios com pessoas da etnia do arguido, porque já havia sido enganado uma vez. Foi, pois, refutada, mais uma vez, a versão trazida pelo arguido, no sentido de que a sua vinda à Mealhada, no dia em que desapareceram os pertences do ofendido, teve como motivo uma efectiva combinação/negócio com FF.
O ofendido explicou que os bens que lhe foram furtados – e que descreveu como sendo um fio de ouro com uma cara de Cristo e uma meia libra, um anel de ouro e um relógio da marca Eco (em conformidade com o descrito em 3)) – lhe haviam sido deixados pelo seu pai (que já morreu), mais dizendo que ele próprio (ofendido) havia mandado avaliar o fio de ouro, a que foi atribuído o valor de cerca de € 5.000,00. Disse também que deixou esses bens no cacifo, onde ficava também a chave, no estaleiro/armazém da Câmara – o que o arguido sabia –, sendo que foram apenas os seus pertences que foram furtados.
Por fim, o ofendido disse que as únicas pessoas que frequentavam o estaleiro (onde se encontravam os cacifos) eram os reclusos e os funcionários da Câmara.
A testemunha HH, que esteve em reclusão juntamente com o arguido, prestando trabalhos na Mealhada com ele, ao abrigo do mesmo protocolo, prestou um depoimento credível e desinteressado.
Relatou que ouviu duas chamadas telefónicas, em alta voz, havidas entre ofendido e arguido (uma no comboio e outra no estaleiro). Contou que na primeira chamada, no comboio, ouviu o arguido dizer ao ofendido que sabia quem tinha sido o autor do furto e que ia devolver a este os seus bens, sendo que, na chamada seguinte, no estaleiro, ouviu o arguido dizer que, afinal, não ia devolver quaisquer bens e que não tinha sido ele a furtá-los.
Mais contou que, nesta última chamada, ouviu o arguido dizer que ia matar o ofendido e a sua família (filhos), dizendo esta testemunha que o arguido nunca disse que se mataria a seguir.
O depoimento desta testemunha foi, pois, absolutamente coincidente com o prestado pelo ofendido, sendo, uma vez mais, infirmada a versão dos factos que o arguido trouxe aos autos.
A testemunha DD esteve em reclusão juntamente com o arguido, prestando, por vezes, trabalhos na Mealhada com ele, ao abrigo do mesmo protocolo.
Confirmou que os bens em ouro do ofendido eram deixados todos os dias no cacifo, circunstância de que o arguido tinha conhecimento, sendo que o furto ocorreu numa quarta-feira, que admite que possa ter de Outubro de 2023.
Disse também que nunca viu qualquer namorada do ofendido na zona do estaleiro e, no mais, não apresentou qualquer conhecimento directo dos factos, tendo dito que não ouviu o teor de qualquer telefonema relativo a este furto.
A testemunha CC esteve em reclusão juntamente com o arguido, prestando trabalhos na Mealhada com ele, ao abrigo do mesmo protocolo, e prestou um depoimento pouco preciso.
Contou que o ofendido deixava no cacifo o seu fio e anel em ouro, bem como um relógio, sendo que, no dia do furto, havia deixado lá a chave, tendo dado pela falta desses bens, quando regressaram ao estaleiro.
Depois, fazendo alguma aparente confusão entre chamadas em alta voz e chamadas gravadas, disse que só ouviu um telefonema entre ofendido e arguido, tendo apenas ouvido que este negou ter sido ele quem roubou os bens em causa. No mais, apenas sabia que o ofendido lhe disse que o arguido o ameaçou, não tendo conhecimento directo desta factualidade.
Vejamos, então.
Aqui chegados, esmiuçados que estão as declarações e os depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, importa, antes de mais, quanto à factualidade que resultou provada, proceder a um esclarecimento.
É certo que ninguém presenciou o arguido dirigir-se ao cacifo do ofendido e a, dali, retirar os seus pertences, designadamente as suas peças em ouro, conforme descrito no ponto 4) dos factos provados.
Será que, por isso, se impõe que seja convocado o princípio in dubio pro reo?
Apreciemos.
Os depoimentos prestados por todas as testemunhas desenrolaram-se de modo pelo menos genericamente coerente entre si, no que toca, além do mais, à factualidade que resultou provada, sendo de sublinhar que nenhuma das testemunhas interesse directo nesta causa (com efeito, mesmo o ofendido não deduziu pedido de indemnização civil).
No essencial, tais depoimentos apenas se mostram contrariados pelas declarações do arguido, o qual, como se disse acima, não mereceu credibilidade por parte do tribunal.
Isto dito, temos que:
- o arguido sabia que, diariamente, o ofendido colocava os seus pertences, e concretamente os pertences em ouro, num cacifo, num estaleiro, local ao qual também sabia que podia ter acesso, sem necessidade de qualquer chave;
- durante cerca de dois meses (entre Agosto e Outubro de 2023), tais pertences foram, diariamente, deixados nesse cacifo;
- em fim de Setembro de 2023, o arguido saiu em liberdade condicional e regressou à sua morada, em Portalegre;
- na manhã de 4 de Outubro de 2023, entre as 9h20 e as 12h00, os pertences em ouro e o relógio do ofendido foram furtados daquele referido cacifo;
- o ofendido, após o furto e após ter conhecimento de que nas imediações do estaleiro havia câmaras de videovigilância, telefonou ao arguido e, fazendo bluff, disse que sabia que tinha sido ele a furtar-lhe os bens, sendo que o arguido, nesse seguimento, supondo que a sua presença no local, data e hora do furto tivesse ficado registada em vídeo, admitiu-a;
- ou seja, na manhã de 4 de Outubro de 2023, pelas 10h30, o arguido veio de Portalegre à Mealhada, percorrendo cerca de 200 km, em mais de 2h00 de viagem de carro, alegando, de forma inverosímil, que o fez para negociar com uma pessoa, com a qual não tinha qualquer combinação/marcação, muito menos para aquele concreto dia, e sem que previamente tenha sequer tentado certificar-se de que tal pessoa se encontraria no local em causa, nessa manhã;
- o arguido, uma vez mais sem qualquer plausibilidade, alegou que saiu do seu carro e, não vendo, junto ao supra referido estaleiro, o carro da pessoa que procurava, de imediato se foi embora, não tendo sequer procurado informar-se quanto à localização dessa pessoa com quem supostamente iria negociar, ou seja, que de imediato passou a fazer o caminho inverso (de mais 200 km e de outras 2h00 de viagem), sendo que só após ser interpelado pelo seu Ilustre Mandatário é que se lembrou de referir que, afinal, também tinha aproveitado para visitar familiares residentes na zona;
- o momento em que o arguido admite que esteve junto ao local do furto (estaleiro) cabe precisamente na janela horária de cerca de 2h30, em que esse furto ocorreu;
- ainda que se admitisse que o único motivo para o arguido ter vindo ao estaleiro na Mealhada, no dia dos factos, fosse encontrar FF (ou até visitar familiares) – o que, como vimos, não se admite –, tal circunstância, de qualquer modo, não serviria, obviamente, para, per se, infirmar a convicção de que o arguido é o autor do furto (evidentemente, o arguido poderia ter-se dirigido ao estaleiro com uma determinada intenção e, deparando-se, por exemplo, com um local sem testemunhas, poderia ter, apenas naquele momento, decidido furtar os pertences do ofendido);
- o ofendido, de modo absolutamente credível (e de resto corroborado também pela testemunha HH, não havendo qualquer testemunha que expressamente infirme este relato do ofendido), relatou que, dois dias após o furto, o arguido lhe disse que lhe ia devolver os bens, apesar de não assumir a autoria do furto (note-se que o arguido até poderia, por exemplo, não ter agido sozinho e tratar-se de uma situação de co-autoria), sendo que, no entanto, não apresentou qualquer justificação para que os bens estivessem na sua posse ou pelo menos lhe estivesse acessíveis (por exemplo, não invocou qualquer situação de suposta receptação).
Ou seja, para além da credibilidade que, como dissemos já, mereceram os depoimentos prestados pelo ofendido e pela demais prova testemunhal, ao contrário das declarações do arguido, existem outros elementos probatórios (relatados, até, pelo próprio arguido), como acabámos de ver, que indubitavelmente confortam aqueles.
Ora, a verdade é que o Tribunal, para dar como provados determinados factos, nem sempre pode apenas basear-se na prova directa, ou seja, por exemplo, em relatos presenciais dos factos em causa.
Com efeito, o Tribunal pode – e deve, sempre que necessário – recorrer ainda à denominada pela doutrina de “prova indiciária ou indirecta”.1 (1Por todos, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09.05.2012, processo n.º 347/10.8PATNV.C1, disponível em www.dgsi.pt
Esta refere-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio das regras da experiência, extrair uma ilação quanto ao tema da prova. (2, 3 - Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Volume II, Verbo, página 96. 3 Citando Tolda Pinto (“A tramitação do Processo Penal”, Coimbra Editora, página 644 e seguintes, nota 782 “São dois os elementos da prova indiciária: em primeiro lugar, o indício que será todo o facto certo e provado com virtualidade para dar a conhecer outro facto que com ele está relacionado (DELAPLANE define-o como todo o resto, vestígio, circunstância e, em geral, todo o facto conhecido, ou melhor devidamente comprovado, susceptível de levar, por via da inferência ao conhecimento de outro facto desconhecido). O indício constitui a premissa menor do silogismo que, associado a um princípio empírico ou a uma regra da experiência, vai permitir alcançar uma convicção sobre o facto a provar. Este elemento de prova requer em primeiro lugar que o indício esteja plenamente demonstrado, nomeadamente através de prova directa (v. g. prova testemunhal no sentido de que o arguido detinha em seu poder objecto furtado ou no sentido de que no local foi deixado um rasto de travagem de dezenas de metros)”.
Continuando, “em segundo lugar é necessária a existência da presunção que é a inferência que obtida do indício permite demonstrar um facto distinto. A presunção é a conclusão do silogismo construído sobre uma premissa maior: a lei baseada na experiência, na ciência ou no sentido comum que apoiada no indício – premissa menor – permite a conclusão sobre o facto a demonstrar. A inferência realizada deve apoiar-se numa lei geral e constante e permite passar do estado de ignorância sobre a existência de um facto para a certeza, ultrapassando os estados e dúvida e probabilidade. A prova indiciária realizar-se-á para tanto através de três operações. Em primeiro lugar, a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento, faz despoletar no raciocínio do julgador uma regra da experiência ou da ciência que permite, num terceiro momento, inferir outro facto que será o facto sob julgamento.”)
É “legítimo o recurso à prova por presunção”, enquanto aquela que, “partindo de determinado facto, chega por mera dedução lógica à demonstração da realidade de um outro facto”, consistindo a presunção “na dedução, na inferência, no raciocínio lógico por meio do qual se parte de um facto certo, provado ou conhecido e se chega a um facto desconhecido”. 4 (Simas Santos / Leal Henriques, “Código de Processo Penal anotado”, I Volume, Rei dos Livros, pág. 684).
Esta prova reveste-se de grande importância prática, pois, como já referimos, muitos factos são insusceptíveis de prova directa, sendo que “as presunções naturais, judiciais ou de facto são aquelas que se fundam nas regras da experiência, nos ensinamentos aurido através da observação empírica dos factos. É nesse saber de experiência feito que mergulham as suas raízes as presunções continuamente usadas pelo juiz na apreciação de muitas situações de facto. (5 Antunes Varela / J. Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, página 502).
Por fim, neste conspecto, e citando um aresto que limpidamente expõe o nosso entendimento quanto a casos como o dos autos, diremos que, na verdade, “a prova necessária à formulação de um juízo de convicção nada tem a ver nem reside na quantidade dos meios de prova produzidos nem na sua natureza (directa ou indiciária), mas sim com sua qualidade, isto é, com a sua veracidade e autenticidade. De acordo com a doutrina nacional que é pacífica neste particular, o juiz é livre de formar a sua convicção na base de depoimento de um (só) declarante em desfavor de testemunhos contrários (…) cuja indagação, diga-se desde já, só é possível mediante a aquisição de uma impressão pessoal dos meios de prova, com destaque, obviamente, para a prova por declarações”.6 (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04.05.2005, processo n.º 1314/05, disponível em www.dgsi.pt, no qual se afirma também, além do mais, que, precisamente por isso, “o tribunal de recurso, ao reapreciar a prova por declarações, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido”.
No mesmo sentido, por todos, Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal I”, pág. 207; e Eduardo Correia, “Processo Criminal – Lições ao 5.º Ano Jurídico de 1953-54”, pág. 165). (Sublinhado nosso.)
Uma nota, por fim, para a concreta expressão da ameaça/coacção, constante do facto 8) da acusação, que não coincide exactamente com a da confissão do arguido e que resultou provada porque (para além da confissão do arguido, relatando uma expressão diferente) foi, naqueles termos descritos em 8), referida, quer pelo ofendido, quer pelas testemunhas BB, PP e HH.
Em face de tudo quanto se expôs, ao Tribunal não restaram dúvidas de que, efectivamente, os factos ocorreram conforme descrito em 1) a 9).
No que tange à prova dos elementos subjectivos – 10) a 14) –, isto é, dos factos relativos ao juízo formulado com que o arguido agiu e ao conhecimento e vontade com que actuou, bem como quanto à consciência da ilicitude da conduta em causa, tal juízo, foi – para além da confissão do arguido quanto ao ponto 13) – extraído dos factos objectivos, analisados à luz das regras da experiência comum e das regras da lógica e do normal acontecer, atentas as circunstâncias do caso concreto.
É consabido que tal factualidade, que é de ordem psicológica – ainda que também normativa –, se afigura de difícil objectivação, em termos de racionalidade do processo de apreensão da realidade. Todavia, a convicção alcançada resulta de uma análise global das condutas levadas a cabo pelo arguido, tendo em conta as regras da normalidade do acontecer, sendo certo, aliás, que tais condutas são comummente tidas como penalmente proibidas, tanto mais que estamos no domínio do chamado “direito penal de justiça” (ou primário), que, no caso concreto, ademais, toca à protecção de bens jurídicos cuja consciência se encontra perfeitamente solidificada na comunidade.
As condições pessoais do arguido e os consentimentos por este prestados – factos 15) a 38) – resultaram provados em face das declarações prestadas por este, conjugadas com o teor do relatório social junto aos autos em 09.09.2024 e com o teor do documento (sentença do TEP de Coimbra) junto na sessão de audiência de julgamento de 09.10.2024.
O facto 39) resultou provado em face do auto de notícia de fls. 3 e do auto de fls. 7.
Quanto aos antecedentes criminais do arguido – facto 40) –, o Tribunal tomou em consideração o teor do certificado de registo criminal, junto aos autos sob a referência 16720361 do citius.
*
Consigna-se que os restantes factos foram considerados irrelevantes, conclusivos, repetidos ou de direito.
*
III – FUNDAMENTAÇÃO
Tendo em conta a natureza das questões submetidas no recurso, importa respeitar as regras da precedência lógica a que estão submetidas as decisões judiciais (artigo 608º, nº 1 do Código de Processo Civil, “ex vi” do artigo 4º do Código de Processo Penal).
3.1- Da impugnação da matéria de facto provada.
Alega o recorrente que foram incorretamente julgados como provados os factos constantes dos pontos 2, 4, 5, 6, 7 e 10, e que deveriam passar para o elenco dos factos não provados, porque não traduzem o que resultou da prova direta ou indireta produzida, em audiência de discussão e julgamento, havendo de se concluir de facto e de direito, pela absolvição do recorrente da prática em autoria material de um furto qualificado, p. e p. pelo artigo 203º, 204º, nº 1, alíneas b) e f) ambos do Código Penal.
Entende o recorrente que a matéria de facto assinalada foi mal julgada, invocando a verificação de erro na valoração das declarações e depoimentos dos intervenientes com a demais prova produzida em audiência de discussão e julgamento relativa ao crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 203º, 204º, nº 1, alíneas b) e f) ambos do Código Penal.
Os poderes de cognição deste tribunal abrangem a matéria de facto e de direito, nos termos do disposto no artigo 428.º do Código Processo Penal, mas a existência de duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação da prova pelo juiz.
O princípio da livre apreciação da prova tem consagração no artigo 127º, do C.P.P nos seguintes termos “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”
Por isso, embora o Tribunal da Relação tenha poderes de intromissão em aspetos fácticos (art.º 428º e 431º/b) do C.P. P), não pode sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto.
A sindicância da matéria de facto, chamada impugnação ampla, baseada no art.º 412º, n.ºs 3, 4 e 6, do CPP, é uma das duas vias de sindicar a matéria de facto em processo penal e tem na sua base a consideração de que o tribunal a quo efetuou uma incorreta apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento.
Em primeiro lugar impõe-se salientar que a sindicância da matéria de facto na impugnação ampla pressupõe o cumprimento do chamado “ónus de especificação”, traduzido na necessidade imperiosa de a reapreciação ser restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam.
Havendo gravação das provas, a especificação das provas deve ser feita com referência ao que consta da ata, com indicação concreta das passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.ºs 4 e 6 do art.º 412º, do CPP).
Importa assinalar, que, a reponderação da matéria de facto por este tribunal superior não constitui um novo julgamento, mas apenas numa “intervenção cirúrgica” ou um “remedio jurídico” restrita à indagação e correção de erros in judicando ou in procedendo, apontados pelo recorrente e, ainda assim, terá de ser parcimoniosa, em respeito do princípio da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação (vide Ac. do STJ de 17.02.2005, www.dgsi.pt processo 04P4324).
Não basta, portanto, ao recorrente formular genericamente a sua discordância quanto ao julgamento da matéria de facto e apontar o sentido que deve ser dado à prova.
De facto, esta impugnação da matéria de facto não pode ser confundida com a simples discordância na apreciação da prova realizada pelo tribunal, dentro do espaço da livre apreciação da prova previsto no artigo 127º do CPP, de acordo, portanto, com as regras de experiência e livre convicção do julgador.
Tal liberdade não é discricionária - bem o sabemos -, estando intimamente ligada ao dever de apreciar a prova com base em critérios de motivação objetivos e terá de ser sempre orientada pelo dever de perseguir a verdade material.
Assim, o princípio da livre apreciação da prova encerra em si duas ideias: numa dimensão positiva, traduzida na inexistência de critérios legais pré-determinados no valor a atribuir à prova e, numa dimensão negativa, traduzida na ideia de que não é permitida uma apreciação discricionária ou arbitrária da prova produzida.
A livre convicção do julgador terá de ser pessoal, mas também objetivável, motivável, com base em critérios de valoração racionais, lógicos e entendíveis pela comunidade pública.
Adotados estes critérios, a verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável resultará do convencimento do julgador, de acordo com a sua consciência e convicção, com base em regras técnicas e de experiência.
Seguindo tais critérios de apreciação da prova, nada obsta a que o juiz, para formar a sua convicção, valorize particularmente o depoimento de uma testemunha, em detrimento de testemunhos contrários, tenham, ou não, ligações, ou ausência delas, com o arguido.
Como corolário do que se deixou dito, de acordo com a jurisprudência mais avalizada, a convicção do julgador só pode ser modificada pelo tribunal de recurso quando violar os seus momentos estritamente vinculados (obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova) ou quando viole, de forma manifesta, as regras de experiência comum, o princípio da presunção de inocência ou o principio in dubio pro reo.
Acresce, o facto de ao tribunal de segunda instância só ser possível alterar o decidido pela primeira instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do n.º 3 do citado artigo 412º) isto é, não basta ser de admitir uma decisão diversa, (cf. a respeito das formas e limites da impugnação da matéria de facto vide Ac. do STJ de 12.06.2008, in www.dgsi.pt processo 07P4375).
Como se refere no Ac. do TRE, de 01.04.2019, “Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de factos impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente”.
Por isso, impor-se-á a necessidade de alterar a matéria de facto quando a convicção do julgador se mostrar contrária às regras de experiência ou às regras da lógica ou aos conhecimentos científicos tidos por adquiridos, (cf. Ac. do STJ de 25/03/1998, in BMJ 475/502 e Ac. RL, de 10/10/2007, in www.dgsi.pt, processo 8428/2007-3, e o Ac. do STJ de 20/11/2008, in www.dgsi.pt, processo 08P3269,).
Temos de atentar que na formação da convicção do juiz não intervêm apenas fatores verbais racionalmente demonstráveis, como ainda a desenvoltura do depoimento, a comunicação gestual, o refazer do itinerário cognitivo, as certezas e as inseguranças reveladas nos comportamentos durante e depois da resposta, os gestos, movimentos e toda uma série de circunstâncias insusceptíveis de captação por um registo áudio que vão sendo captados pelo julgador, (cf. acórdão da RG de 16/05/2016, no proc. 732/11.8JABRG.G1).
O que importa é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique “os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado. Havendo que salientar que quando o tribunal recorrido forme a sua convicção em provas não proibidas e sendo esta a convicção a sindicar se correta, é a que importa e prevalece sobre a convicção formulada pelo recorrente
No recurso interposto o arguido elenca os factos provados, acima transcritos que, a seu ver, deveriam ter sido dados como não provados, indicando, onde assenta essa sua discordância, por falta de prova direta, não podendo com a prova produzida alcançar-se a prova daqueles factos, que deveriam ser levados ao elenco dos factos não provados.
Normalmente, os erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado ou não provado um facto com base em presunção judicial erradamente aplicada.
O recorrente cumpriu no seu recurso de forma suficiente os ónus processuais inerentes à impugnação ampla da matéria de facto, art.º 412º, nº 3, do C.P.P. ainda que não impugne ponto por ponto, mas alcança-se que nega a autoria dos factos, criticando as passagens que indica dos depoimentos e declarações por referência aos factos 2, 4, 5, 6, 7 e 10 que pretende que transitem para o elenco dos factos não provados.
Destarte, procedeu o tribunal de recurso à audição da prova gravada nas passagens concretas indicadas das declarações do arguido, AA, e das testemunhas designadamente GG, CC, DD, HH, GG e BB bem como toda a demais que se julgou pertinente para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, nos termos do disposto no nº 6, do artigo 412º, do C.P.P.
O recorrente alega inexistir prova dos pontos:
- 2 como o teor “Em data não concretamente apurada, mas anterior ao dia 4 de outubro de 2023, o arguido, AA, formulou um plano que consistia em dirigir-se ao estaleiro da Câmara Municipal ..., local que conhecia posto que ali também já havia trabalhado, concretamente ao cacifo de GG e dali retirar os objetos que viesse a encontrar.” E do ponto 4 com o seguinte teor “No período compreendido entre as 09h20 e as 12h00 do dia 4 de outubro de 2023, o arguido, na execução do plano que havia delineado, dirigiu-se àquele estaleiro, na Mealhada, abriu a porta principal e, de seguida dirigiu-se ao cacifo onde GG havia colocado a sua mochila e os bens descritos em 2., abriu-o, e, de seguida, retirou do seu interior o fio de ouro, com uma libra em ouro e uma placa de ouro com o rosto de Cristo, o anel em ouro e o relógio dourado da marca ECO, objetos que, de seguida, o arguido levou consigo, fazendo-os seus”. Do ponto 5 com o seguinte teor “Objetos, pertença de GG, que o arguido AA retirou do interior daquele cacifo no valor de, pelo menos, 4.000,00€ (quatro mil euros), que transportou consigo, abandonando, de seguida, o local, fazendo-os seus. Do ponto 6 com seguinte teor “No dia 09 de outubro de 2023, GG telefonou do seu telemóvel para o telemóvel do arguido com o número ... para se certificar que o arguido lhe entregaria aqueles objetos (o fio de ouro, com uma libra em ouro e uma placa de outro com o rosto de Cristo, o anel em ouro e o relógio dourado da marca ECO). Do ponto 7 com o seguinte teor “No decurso da conversa, com o telemóvel em alta voz, entretanto interveio BB que estava ao lado de GG e que disse ao arguido que GG iria apresentar queixa”. Do ponto 10 com o seguinte teor “O arguido agiu de forma livre, voluntária, deliberada e conscientemente, com o propósito, alcançado, de introduzir-se naquele estaleiro que se encontrava fechado, e onde sabia não poder entrar, e dali dirigir-se ao cacifo do ofendido, que sabia fechado e que abriu e dali retirar os objetos que viesse a encontrar, designadamente todos os que lhe permitissem, no imediato, a realização de dinheiro, e de integrar no seu património os objetos acima descritos, fazendo-os seus, bem sabendo que não lhe pertenciam, que agia contra a vontade e sem o consentimento do legítimo dono de tais objetos, sabendo que com a sua conduta lhe causava prejuízo patrimonial, o que fez, quis e conseguiu.
Razão para tais factos deverem ser levados ao elenco dos factos não provados.
O arguido esteve recluso no estabelecimento prisional 1... até 20.09.2023 e conhecia dali o ofendido, GG, tendo sido companheiro de trabalho daquele, em trabalhos de jardinagem na Câmara Municipal ..., onde trabalharam ao abrigo de um protocolo, existente.
O recorrente conhecia os objetos furtados ao ofendido, por estes os usar, bem como sabia que este os guardava no seu cacifo do armazém da Câmara e que os reclusos deixavam a chave no cacifo.
O recorrente reconheceu que no dia 4 de outubro de 2023 entre as 9h30 e 12horas (data do furto dos objetos do ofendido e quando já estava em liberdade condicional) esteve na Mealhada perto do armazém da Câmara Municipal ..., com a companheira onde se localizam os cacifos.
O recorrente sustentou nunca se ter aproximado dos cacifos, pois veio fazer negócio de velharias com FF (um trator e um automóvel velho).
Todavia, como não viu a viatura daquele FF estacionada, foi embora para Coimbra e de seguida para a Figueira da Foz, para almoçar com uma sobrinha, “afilhada” em visita à família, na medida em que há poucos dias tinha sido restituído à liberdade.
Mais reconheceu o arguido que ninguém sabia da sua deslocação à Mealhada e presença próximo do local do furto, em 4.10.2023, o que admitiu num telefonema ao ofendido GG que o acusou de ser o autor do furto do seu ouro, o que negou.
E é verdade, que o tribunal recorrido não atribuiu credibilidade às declarações do arguido na medida em que nega a autoria do furto qualificado que lhe está imputado, o que fez no uso do princípio da livre apreciação da prova e convicção entendendo, no que agora interessa, que o arguido, “espontaneamente, indicou como o único motivo para ter percorrido cerca de 200 km, entre Portalegre e a Mealhada, uma tentativa de encontro com uma pessoa que o arguido, obviamente, não poderia garantir que estaria naquele local (estaleiro da Câmara), pessoa essa que, note-se, o arguido não se esforçou minimamente por procurar, após ter constatado que o respectivo carro não se encontrava junto ao estaleiro, de imediato abandonando o local, tendo, claro está, de percorrer mais 200 km, de Mealhada a Portalegre, num total de 400 km, percorridos em vão, com todos os custos de tempo e dinheiro que isso implica. Foi apenas depois de ter sido interpelado pelo seu Ilustre Mandatário que o arguido se lembrou de mencionar outros motivos (visita de familiares na zona) justificativos para a viagem de Portalegre à Mealhada (e, pois, da Mealhada a Portalegre), na manhã de dia 04.10.2023, dia e horário em que ocorreu o furto objecto dos autos.
Refira-se que, obviamente, a implausibilidade da versão trazida pelo arguido não se prende com a implausibilidade da eventual existência de quaisquer prévias conversações ou (putativas intenções de) negociações entre o arguido e o referido FF (que, como veremos infra, até foram, em parte, confirmadas por esta testemunha, por referência a data anterior à saída em liberdade do arguido). Com efeito, é natural que o arguido as tenha referido por haver um fundo de verdade (isto é, em tempos, terá sido efectivamente alvitrada a possibilidade, entre o arguido e FF, de um dia poderem vir a fazer negócio). Sucede que, entende o tribunal, o arguido terá feito, isso sim, um aproveitamento impróprio daquelas conversações/putativas intenções de negociações, usando-as como justificação para a sua presença no local e dia dos factos (quando na verdade ficou bem claro que o arguido, após ter chegado à Mealhada, não se preocupou realmente – longe disso – em encontrar o suposto co-negociante FF).
Mais, a implausibilidade da explicação oferecida pelo arguido para justificar a sua presença no local e data dos factos – reveladora de uma aparente extrema facilidade e até leviandade em realizar a viagem Portalegre-Mealhada – é tanto maior se considerarmos que, logo na primeira sessão da audiência de julgamento, o arguido requereu a continuação do seu julgamento na sua ausência (cfr. artigo 334.º, n.º 2, do Código de Processo Penal), com a justificação da considerável distância entre Portalegre e a Mealhada (requerimento que foi deferido – cfr. acta de 09.10.2024).
Aqui chegados, será de colocar uma muito legítima dúvida: porque é que o arguido teria admitido que se deslocou ao local dos factos, no próprio dia em que eles ocorreram? Será porque não tinha nada a esconder? Não. Como infra veremos, aquando da análise do depoimento do ofendido, este fez bluff junto arguido e disse que sabia que tinha sido ele a furtar-lhe os bens, sendo que o arguido, nesse seguimento, supondo que a sua presença no local, data e hora do furto tivesse ficado registada em vídeo, admitiu-a e, após, não lhe restou senão tentar apontar uma justificação para essa presença (o que fez invocando as supostas negociações com FF); e ainda se socorreu da prova indireta e por presunção, para dar como provados os factos 2, 4, 5, 6, 7 e 10, pois como prova direta temos a fotografia dos objetos furtados, pois os depoimentos do ofendido GG e de HH é do que ouviu dizer ao arguido.
A respeito das declarações do arguido sobre os factos que lhe são imputados, havemos de distinguir, se ele negar os factos, a apreciação destas declarações é submetida à livre apreciação da prova e livre convicção do julgador; no caso de o arguido confessar os factos- caso em que pode ser livre e sem reservas para os crimes punidos com prisão até 5 anos, nos termos do artigo 344º, nº 2, do CPP pena que funciona como limite à livre apreciação da prova; por fim caso o arguido exerça o direito ao silêncio, havemos de ponderar ser este um verdadeiro limite à livre apreciação da prova e convicção do julgador, na medida em que este nunca pode desfavorecer o arguido nos termos dos artigos 61º, nº 1 c) e 343º e 345º todos do CPP.
No caso, estando em causa a negação pelo arguido dos factos imputados respeitantes à autoria do furto, do ouro do ofendido, ficaram as suas declarações submetidas à livre apreciação da prova e livre convicção do julgador, tendo por via da aplicação deste princípio e de acordo com a análise critica das mesmas o julgador retirado fiabilidade ao por aquele declarado, por inverosímil, o que não nos merece reparo.
No entanto, havemos de atentar se a falta de verossimilhança ou até a mentira do arguido se revela bastante para uma decisão de afirmação positiva da autoria dos factos relativos ao crime de furto, na medida em que a autoria do furto pelo arguido, se haverá de afirmar apenas quando o julgador se tenha convencido da verdade dos factos depois de ter efetuado uma operação racional, lógica, de acordo com as regras da experiência comum, máximas da experiência, conhecimentos científicos, e com respeito aos limites da liberdade valorativa da prova que lhe permita objetivar a convicção de foram clara, suficiente e para além de qualquer dúvida razoável, de modo a ser sindicável com base numa presunção judicial corretamente aplicada.
Pois não temos dúvidas que viola a presunção da inocência a condenação do arguido com base apenas na circunstância de ter mentido em audiência de discussão e julgamento, designadamente sobre os motivos que o levaram à Mealhada e imediação do armazém, no interior do qual fica o cacifo onde o ofendido deixou os objetos furtados (vide neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 5ª edição atualizada, I vol. pág. 521, a respeito da condenação do arguido que mente quanto ao seu paradeiro aquando do crime).
Revela-se o recorrente contra a fiabilidade da versão, que cataloga de “fantasiosa” de GG, que através de um putativo “bluff” teria levado o arguido a comprometer-se à entrega dos objetos furtados, (o que o arguido nega), indicando diversas testemunhas como tendo ouvido tal compromisso, e todos negaram com exceção da testemunha HH.
O recorrente alegou ser sabedor da inexistência de qualquer camara de vigilância, que pudesse registar a sua presença junto do armazém da Câmara Municipal ..., pois ali tinha trabalhado até há pouco tempo, convocando a sua idade e não ser néscio para admitir uma coisa que não fez.
O Tribunal recorrido por sua vez atribuiu fiabilidade ao relato do ofendido GG, que teve por sincero, imparcial, coerente e credível, o qual no essencial procedeu do seguinte modo “na sexta-feira seguinte à ocorrência do furto, telefonou para o arguido e, fazendo bluff, disse-lhe que tinha visto uma filmagem das câmaras e que tinha constatado que tinha sido o arguido o autor do furto. Então, contou que o arguido, de seguida, perguntou ao ofendido se alguém da Câmara Municipal tinha visto tais filmagens, pelo que o ofendido, percebendo o rumo da conversa, colocou telemóvel em alta voz, para que pudesse ser ouvido também pelos demais reclusos presentes (tendo o ofendido referido os nomes daqueles que estariam perto de si: HH, PP, II, JJ). Relatou que o arguido, de seguida, nesse telefonema, disse ao ofendido “alguém está a ouvir? Olha, eu sou um homem muito doente e vou aí levar-te os teus pertences na segunda-feira”, mais tendo o arguido dito que, apesar disso, não tinha sido ele a furtar os bens, pelo que, questionado pelo ofendido sobre como é que, então, estariam na sua posse, o arguido respondeu “Não vamos falar mais nisso, eu depois explico”.
“(…) na segunda-feira seguinte [isto é, dia 09.10.2023], voltou a telefonar ao arguido e que, aquando deste telefonema, além dos demais reclusos, estavam também presentes, a ouvir o telefonema, em alta voz, os funcionários da Câmara BB e FF. Afirmou o ofendido que, neste telefonema, o arguido disse, afinal, que o motivo da ida à Mealhada tinha sido um negócio com o referido FF”.
Nesta conversa última o arguido negando a autoria dos factos não se dispunha a entregar os pertences ao ofendido.
De igual modo atribuiu fiabilidade ao relato da testemunha HH, que esteve em reclusão com o arguido e com o ofendido, e que sustentou ter ouvido as duas chamadas uma no comboio e outra no estaleiro, e que na primeira ouviu o arguido dizer ao ofendido que sabia quem tinha sido o autor do furto e que lhe ia devolver os bens, na chamada seguinte, ouviu-o dizer que não ia devolver quaisquer bens e que não tinha sido ele a furtá-los.
Todas as demais testemunhas ouvidas em audiência de discussão e julgamento negaram ter ouvido o arguido assumir o compromisso de entregar os objetos furtados ou a autoria do crime, desde logo a BB, (funcionário da CM...) FF, (funcionário da CM...) PP, (funcionário da CM...) DD (ex-recluso) CC (ex-recluso).
Ninguém presenciou o arguido a deslocar-se ao cacifo do ofendido e dali retirar e levar, fazendo seus, os objectos de ouro ali deixados, contra a vontade do seu dono. Inexistem exames lofoscópicos, gravações de videovigilância que coloquem o arguido a praticar o furto.
A primeira questão que se coloca é como valorar o testemunho de ouvir dizer ao arguido? E sendo admissível esse testemunho em que normativo se funda, desde logo no artigo 129º, do C.P.P ou noutra norma?
De facto, quer o testemunho do ofendido GG, quer da testemunha HH têm por fonte o arguido, mais concretamente o que terão ouvido dizer ao arguido, num contexto extraprocessual (de “como se comprometia a entregar os objetos furtados ao ofendido”).
Neste caso, qualquer das testemunhas não tendo percecionado quaisquer dos factos objeto da prova, que narraram ao processo, invocaram o arguido como fonte desse relato, razão pela qual estes depoimentos haverão de ter-se como depoimentos indiretos, colocando-se assim a questão de saber se esses testemunhos de ouvir dizer, são suscetíveis de valoração e, em caso afirmativo, se essa admissibilidade se funda no disposto no art. 129.º ou se, pelo contrário, se deverá ser outra a via normativa que a sustente.
Existem três perspetivas diferentes em relação a esta questão. Enquanto a perspetiva de cariz doutrinal sustenta ser de rejeitar, pura e simplesmente a possibilidade de valoração do relato feito por estas testemunhas com base no ouvir dizer ao arguido, (posição sustentada por Paulo Pinto de Albuquerque, em Comentário ao Código de Processo Penal, 5º edição Vol. 1, a págs. 533) as outras duas perspetivas são a favor da admissibilidade de valoração dessa prova, (cf. pela não inconstitucionalidade da valoração de depoimento de ouvir dizer ao arguido, Ac. do TC n.º 440/1999), mas que divergem a respeito do seu fundamento normativo, pois para uns continua a valer o artigo 129º, do C.P.P. (Ac. do TRE de 25-02-2014 proc 1267-11.4TATSTE.E1) enquanto para outros a base normativa para viabilizar a valoração dos depoimentos indiretos terá que ser outra (Carlos Adérito Teixeira, “Depoimento indirecto e arguido”, p. 158 e ss., Paulo Dá Mesquita, A Prova do Crime…, p. 582 e ss., e Santos Cabral, CPP Comentado, Art. 129.º).
A maioria da jurisprudência nacional vem manifestando a aceitação destes depoimentos indiretos.
Ora, a tese que rejeita a possibilidade de valoração do depoimento indireto, tendo como fonte o arguido, e como tal a aplicabilidade a este do artigo 129º, do C.P.P ainda que tal revelação tenha acontecido à margem do processo e até uma altura, em que o (agora) arguido não tinha essa qualidade, sustenta-se na natureza excecional do artigo 129º, o qual não foi pensado nem desenhado para estes casos, razão da necessidade de recurso à analogia para que lhes pudesse ser estendido, o que implicaria um sacrifício constitucionalmente ilegítimo do princípio da imediação e do artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa - (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, em Comentário ao Código de Processo Penal, 5º edição Vol. 1, a págs. 533, ponto 3, comentário ao artigo 129º, com Inês Godinho; Damião da Cunha, 1997:438 que assinala que “não parece aceitável testemunhas do que se ouviu dizer a um sujeito processual, pois, quanto a este, decisivas são as declarações prestadas na audiência de julgamento”; nesta linha ainda se assinala que “testemunho do que se ouviu dizer ao arguido não pode converter essas suas declarações em meio de prova testemunhal, uma vez que o meio de prova declarações de arguido tem uma regulação específica e por a tal se opor o regime de impedimentos constante do art. 133.º/1”, cf. Costa Pinto, “Depoimento Indirecto…, p. 1081).
Não acompanhamos este entendimento, pois não está em causa a valoração da conversão de um depoimento testemunhal num depoimento de arguido, através da colocação na sua boca de um relato extraprocessual. O que está em causa é a possibilidade de valoração do depoimento testemunhal indireto propriamente dito, que se dá o caso de ter como fonte de conhecimento o arguido, daí ter natureza indireta. E nessa medida, será pela análise desse depoimento em si, que o mesmo deve ser valorado.
Para quem entende ainda ser de aplicar o artigo 129º, sustenta que não se deve distinguir o depoimento de ouvir dizer ao arguido do testemunho de ouvir dizer a uma testemunha, com respeito pelo princípio do contraditório e da imediação.
A compressão da imediação é a mesma, seja a fonte do testemunho de ouvir dizer uma testemunha ou o arguido.
O exercício do contraditório direto sobre a fonte, não serão menores no caso de se tratar de arguido, ressalvada a situação de julgamento na ausência ou quando falte à audiência em que o testemunho indireto seja prestado, doutro modo o arguido toma logo conhecimento do depoimento, ou dele é posto ao corrente, ficando ciente que é a fonte de informação da testemunha.
Por estas razões, mostra-se justificado ser de admitir a valoração do testemunho indireto prestado pela testemunha tendo o arguido como sua fonte.
A valoração do depoimento indireto coloca o Tribunal numa situação probatória particularmente difícil, desde logo nas situações em que a decisão sobre a matéria de facto estiver dependente essencialmente dele.
Uma vez que concluímos pela admissibilidade da valoração do testemunho indireto este há-de ser sujeito ao princípio da livre apreciação da prova, (artigo 127º do C.P.P.). No entanto, o exame critico haverá de revelar-se intenso e cuidadoso, atentas as dificuldades dos princípios da imediação, do contraditório e do seu valor probatório reduzido, já que tendencialmente este, por si só será insuficiente para formar o convencimento do decisor, sobre a matéria de facto a que se reporta.
No caso dos autores que entendem ser de aplicar o regime do artigo 129º, nº 1, do C.P.P. ao testemunho de ouvir dizer tendo o arguido como fonte, o arguido há-de estar presente nas ocasiões – sessões de julgamento- em que tais testemunhas deponham, para querendo, exercer em plenitude o contraditório ou exercer o direito ao silêncio (para mais desenvolvimentos por perfilhar esta interpretação vide ac. TRE 25.02.2014, proc. 1267/11.4TATSTRE.E1)
Perante a situação entendemos como Santos Cabral, Código de Processo Penal, comentário, 2014, pág. 490 posição que perfilhamos e que seguiremos de perto, que face ao estatuto de arguido, não é expectável que este sirva de “garante”, (quer preste declarações ou exerça o direito ao silêncio) no que concerne à razão de ciência e credibilidade da testemunha de lhe ouvir dizer; nem que se estabeleça uma imediação efetiva da prova (já que este meio de prova não é desinteressado); nem que se observe sem fazer-de-conta o princípio do contraditório.
Por conseguinte, o artigo 129º, do C.P.P. temos para nós inaplicável, quer sob o ponto de vista jurídico quer sob o ponto de vista operativo, atenta a inadmissibilidade de o arguido funcionar como “testemunha-fonte” relativamente a quem alguém diz ter ouvido certas afirmações. O depoimento desta testemunha ficará subordinado ao princípio da livre apreciação da prova, art.º 127º, uma vez que do artigo 125º, - sobre a legalidade da prova- não resulta ser esta prova proibida (já que a norma de condicionamento legal, o artigo 129º, é inaplicável) valendo aqui a posição do Ac. do TC 440/99 nos termos do qual “o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indiretos de testemunhas, que relatam conversas tidas com um coarguido.”
Em face da interpretação que perfilhamos, haverá de se concluir resultar da interpretação conjugada do artigo 129º, nº 1 e 128 nº 1, ambos do C.P.P. que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indiretos das testemunhas, que relatam conversas com um arguido, ainda que este chamado a depor exerça o direito ao silêncio, e, ainda porque tal interpretação não atinge de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido (ob. citada a pág. 491).
Nesta sequência veio o tribunal recorrido sustentado no depoimento do ofendido GG e da testemunha HH, a decidir com fundamento na circunstância de o arguido se ter comprometido a entregar os objectos, a estabelecer a autoria e culpabilidade do recorrente pela prática do crime de furto qualificado que lhe estava imputado na acusação, o que só pode ter resultado de uma presunção judicial, na medida em que comprometer-se a entregar bens furtados, é compaginável com diversas possibilidades, autoria, coautoria, do furto, autoria da recetação, ou mero conhecimento de quem foi o seu autor que lhe está próximo.
Enquanto a prova direta refere-se aos factos “probandos”, ao tema da prova, é aquela que não carece da intervenção de uma regra da experiência comum, como ocorre na prova testemunhal. Aqui, quando uma testemunha perceciona, através dos seus sentidos, o facto, a sua representação fica retido na sua memória, como se fosse uma fotografia ou gravação. Por isso, quando a testemunha relata, por suas palavras, a representação do facto que guardou na sua memória, o julgador ao percecionar o relato, não faz intervir qualquer regra da experiência comum, nem procede a qualquer explicação, capta apenas o seu depoimento. A prova indiciária refere-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova [v. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, tomo II, pág.82].
Uma vez que a prova indiciária, é uma atividade intelectual de inferência, realizada pelo julgador, finalizada a produção de prova, partindo de um indicio ou conjunto de indícios, chega a uma afirmação consequência, distinta da primeira, através de um enlace causal e lógico existente entre ambos, integrado pelas máximas de experiência e regras da lógica, pois neste tipo de prova intervém, mais do que em qualquer outra, a lógica do juiz. (cf. Conselheiro Santos Cabral, in “Prova indiciária e as novas formas de criminalidade”, in Revista Julgar, n.º 17, Maio-Agosto 2012, pp. 13-33, que iremos seguir de perto).
Com efeito, através da prova indiciária visa-se obter, partindo de proposições de facto comprovadas, novas proposições de factos, através das regras críticas da experiência e da lógica. E este processo, obviamente, exige um processo de atividade intelectual lógico de raciocínio do Julgador, distinto do da denominada prova direta.
Destarte, para que o juízo de inferência resulte em verdade convincente (isto é, sustente um juízo condenatório) é necessário que i) a base indiciária, plenamente reconhecida mediante prova direta, seja constituída por uma pluralidade de indícios, ii) que não percam força creditória pela presença de outros possíveis contra indícios que neutralizem a sua eficácia probatória e iii) e que a argumentação sobre que assente a conclusão probatória resulte inteiramente razoável face a critérios lógicos do discernimento humano (cf. Ac. do Tribunal Superior Espanhol n.º 190/2006, de 1 de março) de igual modo o mesmo Tribunal no Ac. 392/2006, de 6 de abril, assinalou que exige-se como requisito formal que, na sentença se explicite o raciocínio através do qual, partindo dos indícios, se chegou à convicção da verificação do facto, punível, e da participação do acusado no mesmo. Essa explicitação, que pode ser sucinta ou enxuta, é imprescindível no caso de prova indiciária, precisamente para possibilitar o controlo, em sede de recurso, da racionalidade da inferência. Importante é ainda, de acordo com o mesmo aresto, que se verifique que dos factos-base comprovados flua, como conclusão natural, o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso e direto, segundo as regras do critério humano.
Assim, a prova indireta funda-se em presunções naturais, ou seja, ilações que, com base nas regras da experiência, se retiram de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido. «Como se escreveu em acórdão do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Esposende (Proc. nº 871/08.2GAEPS) “um indício revela, com tanto mais segurança o facto probando, quanto menos consinta a ilação de factos diferentes. Quando um facto não possa ser atribuído senão a uma causa – facto indiciante –, o indício diz-se necessário e o seu valor probatório aproxima-se do da prova direta. Quando o facto pode ser atribuído a várias causas, a prova de um facto que constitui uma destas causas prováveis é também somente um indício provável ou possível. Para dar consistência à prova será necessário afastar toda a espécie de condicionamento possível do facto probando menos uma. A prova só se obterá, assim, excluindo hipóteses eventuais divergentes, conciliáveis com a existência do facto indiciante”.(…) Diferente seria se se verificasse a confluência duma pluralidade de dados indiciários. Na falta da chamada «prova direta», a prova indiciária requer, em princípio, uma pluralidade de dados indiciários plenamente provados ou absolutamente credíveis. Exceciona-se o caso da existência do referido «indício necessário» em que basta um só pelo seu especial valor.» - acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, proferido em 9/9/2013, proc.n.º4/09.8JABRG.G1, in www.dgsi.pt.
A teoria dos indícios, reduz-se á teoria das probabilidades e a prova indiciária resulta do concurso de vários factos, que demonstram a existência de um terceiro que é precisamente aquele que se pretende averiguar.
Note-se que, a concorrência de vários indícios numa mesma direção, partindo de pontos diferentes, aumenta as probabilidades de cada um deles dar azo a uma nova probabilidade que resulta da união de todas.
Não podemos olvidar que, na dinâmica das forças da natureza e, entre elas, das atividades humanas existe uma tendência constante, para a repetição dos mesmos fenómenos, chama-se a isto normalidade ou princípio da normalidade, que é o fundamento de toda a presunção abstrata.
Ao princípio da normalidade, encontra-se ligado outro princípio fundamental que é o princípio da causalidade, que se enuncia da seguinte forma: as mesmas causas produzem sempre os mesmos efeitos e tem justificação na existência de leis mais ou menos imutáveis que regulam de maneira uniforme o desenvolvimento do universo.
O princípio da causalidade significa, formalmente, que a todo o efeito precede uma causa determinada, ou seja, quando nos encontramos face a um efeito podemos presumir a presença da sua causa normal.
Dito por outra forma, aceite uma causa, normalmente deve produzir-se um determinado efeito e, na inversa, aceite um efeito deve considerar-se como verificada uma determinada causa. O princípio da normalidade, fundamenta a eleição da concreta causa produtora do efeito, para a hipótese de se apresentarem como abstratamente possíveis várias causas.
Presunções judiciais são as que, assentando no simples raciocínio de quem julga, decorrem das máximas da experiência, dos juízos correntes de probabilidade, dos princípios da lógica ou dos próprios dados da intuição humana – art.º 349º e 351º do Código Civil - (Cf. P. Lima e A. Varela, in Código Civil Anot. I Vol., 4ª Ed., p. 312), e o recurso a estas presunções é perfeitamente constitucional (cf. acórdão do TC n.º 391/2015, de 12/08/2015 “na prova por utilização de presunção judicial, a qual pode sempre ser infirmada por contraprova, na passagem do facto conhecido para a prova do facto desconhecido, intervêm juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitem fundadamente afirmar, segundo as regras da normalidade, que determinado facto, que não está diretamente provado é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido”.) e legítima em processo penal podendo, inclusivamente, os Tribunais da Relação, quando tenha sido impugnada a matéria de facto, fazer uso dessas presunções, para dar como provados, ou como não provados, factos que o não vinham da 1ª instância.
Mas o recurso a presunções tem regras ou condições em que operam.
No caso em análise os únicos factos base são: o conhecimento que o arguido tinha do local onde diariamente o ofendido guardava os seus pertences, objetos de ouro, num cacifo, no estaleiro, da CM Mealhada e como sabia como aceder ao mesmo sem necessidade de qualquer chave; de durante cerca de dois meses (entre agosto a outubro de 2023), tais pertences foram, diariamente, deixados nesse cacifo; de em fim de Setembro de 2023, o arguido saiu em liberdade condicional e regressou à sua morada, em Portalegre; de na manhã de 4 de Outubro de 2023, entre as 9h20 e as 12h00, os pertences em ouro e o relógio do ofendido foram furtados daquele referido cacifo; de ofendido, após o furto e após ter conhecimento de que nas imediações do estaleiro havia câmaras de videovigilância, telefonou ao arguido e, fazendo bluff, disse que sabia que tinha sido ele a furtar-lhe os bens, sendo que o arguido, nesse seguimento, supondo que a sua presença no local, data e hora do furto tivesse ficado registada em vídeo, admitiu a sua presença nas imediações do estaleiro e ainda que não tivesse assumido ter sido ele a furtar os objetos comprometeu-se na segunda feira seguinte entrega-los ao ofendido.
Ora entre os factos base e os factos adquiridos, isto é, “que o arguido formulou um plano que consistia em dirigir-se ao estaleiro da Câmara Municipal ..., concretamente ao cacifo de GG e dali retirar os objetos que viesse a encontrar; No período compreendido entre as 09h20 e as 12h00 do dia 4 de outubro de 2023, o arguido, na execução do plano que havia delineado, dirigiu-se àquele estaleiro, na Mealhada, abriu a porta principal e, de seguida dirigiu-se ao cacifo onde GG havia colocado a sua mochila e os bens descritos em 2., abriu-o, e, de seguida, retirou do seu interior o fio de ouro, com uma libra em ouro e uma placa de ouro com o rosto de Cristo, o anel em ouro e o relógio dourado da marca ECO, objetos que, de seguida, o arguido levou consigo, fazendo-os seus; O arguido agiu de forma livre, voluntária, deliberada e conscientemente, com o propósito, alcançado, de introduzir-se naquele estaleiro que se encontrava fechado, e onde sabia não poder entrar, e dali dirigir-se ao cacifo do ofendido, que sabia fechado e que abriu e dali retirar os objetos que viesse a encontrar, designadamente todos os que lhe permitissem, no imediato, a realização de dinheiro, e de integrar no seu património os objetos acima descritos, fazendo-os seus, bem sabendo que não lhe pertenciam, que agia contra a vontade e sem o consentimento do legítimo dono de tais objetos, sabendo que com a sua conduta lhe causava prejuízo patrimonial, o que fez, quis e conseguiu; há uma solução de continuidade que torna aqueles e estes longínqua.
Nem sequer se sabe se foi o arguido que foi aos cacifos e dali subtraiu os objetos do ofendido fazendo-os seus, pois este facto foi inferido do facto base que é ter-se comprometido a entregar os objetos na segunda-feira seguinte.
Para além disso, ainda que não se dê credibilidade ao arguido há várias hipóteses consistentes que permitem pôr em causa o resultado atingido.
Desde logo a intervenção de terceiros (o arguido não esteve sozinho na Mealhada o local é próximo de escola, e todos os reclusos e funcionários sabiam e conheciam as circunstâncias em que os objetos eram usados e guardados pelo ofendido e tinham acesso aos mesmos) na execução de tal furto na medida em que o compromisso de entrega dos objetos pode não ter na sua origem a subtração e apropriação, mas na proximidade com o autor do furto ou com a recetação.
Isto é, aquela afirmação não denuncia a existência de um só facto, isto é, ele só pode comprometer-se a entregar os objetos por os ter subtraído e feito seus, mas outras e várias possibilidades de factos.
Assim, subsistindo mais do que uma causa provável para o arguido produzir aquela afirmação, não é possível formular o juízo de certeza que permitiria que, por presunção judicial, (que deve ser grave, precisa e concordante) se dessem tais factos (adquiridos) como provados.
É o que resulta do princípio in dubio pro reo, que se configura, basicamente, como uma regra de decisão: produzida a prova e efetuada a sua valoração, quando o resultado for a dúvida, razoável e insuperável, sobre a realidade dos factos, ou seja, subsistindo, no espírito do julgador, uma dúvida positiva e invencível sobre a verificação, ou não, de determinado facto o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.
Por outras palavras, a dúvida sobre a matéria da acusação ou da suspeita não pode virar-se contra o arguido, não pode prejudicá-lo, antes favorece-o (in dubio pro reo,). O Tribunal apenas poderá tomar uma decisão de condenação do arguido, quando, da audiência de discussão e julgamento, resultar a existência de prova, que racionalmente possa considerar-se suficientemente ponderosa para desvirtuar aquele princípio de onde se parte. Prova que, deverá ser produzida na observância de garantias e na forma processualmente estipuladas (isto é não é qualquer prova) para se ter por infirmada a inocência do arguido. De forma lapidar, o princípio in dúbio pro reo, dirige-se ao juiz e significa que, em caso de dúvida, o arguido deve ser absolvido.
A respeito das possibilidades de aplicação do princípio in dubio pro reo, ver Ac. do STJ de 27/05/2009, in www.gde.mj.pt, Proc. 09P0484, do qual citamos: “…O princípio in dubio pro reo funda-se constitucionalmente no princípio da presunção da inocência até ao trânsito em julgado da sentença condenatória – artigo 32º, nº 2, da CRP - impondo este que qualquer non liquet na questão da prova seja valorado a favor do arguido, apresentando-se aquele, na fase de decisão, como corolário daquela presunção – acórdão do Tribunal Constitucional nº 533/98, DR, II Série, de 25-02-1999.
O princípio in dubio pro reo estabelece que, na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, é um princípio de prova que vigora em geral, isto é, quando a lei, através de uma presunção, não estabelece o contrário.
A respeito do princípio in dubio pro reo, também se pronunciou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-03-2009, proc. n.º 07P1769), dando nota que este “tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto, quer seja nos pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer seja nos factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa. Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo”.
A violação deste princípio tem sempre que ser aferida em concreto, porque só em concreto pode acontecer que no final da produção da prova no tribunal permaneça alguma dúvida importante e séria sobre o acto externo e a culpabilidade do arguido. Tal aferição não pode ser feita em abstrato, dizendo-se que a admissão deste ou daquele tipo de prova viola este princípio.
Não vislumbramos na decisão recorrida, quer na matéria de facto dada como provada, quer na sua fundamentação, que, ao fazer esta opção fáctica, o tribunal recorrido tenha tido qualquer hesitação quanto à valoração da prova, tal como não fixou qualquer facto que a pudesse pôr em questão, ou seja, não teve qualquer dúvida, mas entendemos que devia ter tido, dada a referida inoperância da prova por presunção.
Assim, por aplicação deste princípio, daremos como não provada tal matéria de facto.
Importa consignar que concordamos com o tribunal recorrido na falta de credibilidade da versão do arguido, mas isso não chega para a sua condenação pelo crime de furto qualificado ou até por recetação, cujo dolo não integra o objeto do processo, de modo que agora não é possível.
No que respeita aos factos 6 e 7, não está em causa a primeira conversa, mas a que teve lugar na segunda-feira, onde o arguido nega a autoria dos factos bem assim como a entrega dos objetos, por não os ter furtado, pelo que, nestes nada haverá de ser alterado.
Procede a modificação dos factos 2, 4, 5 e 10 neste segmento do recurso do recorrente, ficando com o mesmo teor os factos 6 e 7 neste segmento implicando a absolvição do arguido recorrente da prática em autoria material de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, 204º, nº .1 b) e f) ambos do Código Penal.
a) Alteramos a matéria de facto, passando os factos impugnados a ter a seguinte configuração:
Factos Provados
2. (…)
4 (…)
5. (…)
6) No dia 09 de outubro de 2023, GG telefonou do seu telemóvel para o telemóvel do arguido com o número ... para se certificar que o arguido lhe entregaria aqueles objetos (o fio de ouro, com uma libra em ouro e uma placa de outro com o rosto de Cristo, o anel em ouro e o relógio dourado da marca ECO).
7) No decurso da conversa, com o telemóvel em alta voz, entretanto interveio BB que estava ao lado de GG e que disse ao arguido que GG iria apresentar queixa.
10 (…)
Factos não provados
a- Em data não concretamente apurada, mas anterior ao dia 4 de outubro de 2023, o arguido, AA, formulou um plano que consistia em dirigir-se ao estaleiro da Câmara Municipal ..., local que conhecia posto que ali também já havia trabalhado, concretamente ao cacifo de GG e dali retirar os objetos que viesse a encontrar.
b-No período compreendido entre as 09h20 e as 12h00 do dia 4 de outubro de 2023, o arguido, na execução do plano que havia delineado, dirigiu-se àquele estaleiro, na Mealhada, abriu a porta principal e, de seguida dirigiu-se ao cacifo onde GG havia colocado a sua mochila e os bens descritos em 2., abriu-o, e, de seguida, retirou do seu interior o fio de ouro, com uma libra em ouro e uma placa de ouro com o rosto de Cristo, o anel em ouro e o relógio dourado da marca ECO, objetos que, de seguida, o arguido levou consigo, fazendo-os seus.
c- Objetos, pertença de GG, que o arguido AA retirou do interior daquele cacifo no valor de, pelo menos, 4.000,00€ (quatro mil euros), que transportou consigo, abandonando, de seguida, o local, fazendo-os seus.
d- O arguido agiu de forma livre, voluntária, deliberada e conscientemente, com o propósito, alcançado, de introduzir-se naquele estaleiro que se encontrava fechado, e onde sabia não poder entrar, e dali dirigir-se ao cacifo do ofendido, que sabia fechado e que abriu e dali retirar os objetos que viesse a encontrar, designadamente todos os que lhe permitissem, no imediato, a realização de dinheiro, e de integrar no seu património os objetos acima descritos, fazendo-os seus, bem sabendo que não lhe pertenciam, que agia contra a vontade e sem o consentimento do legítimo dono de tais objetos, sabendo que com a sua conduta lhe causava prejuízo patrimonial, o que fez, quis e conseguiu.
3.2 O recorrente requer a revogação da pena parcelar aplicada ao crime de coação agravada na forma tentada, que reputa revelar-se desajustada por inflacionada no seu quantum, se levarmos em conta o artigo 73º, do Código Penal, pois a expressão foi proferida em estado de ira, nervosismos e angustia, por estar a ser alvo de uma imputação falsa pelo ofendido num quadro em que estava debilitado por ter perdido o pai, em data recente e estar há pouco tempo em liberdade condicional.
A contundência desta pena parcelar refletiu-se na pena única aplicada, que foi efetiva pois desatendeu ao relatório social, ao não ter suspendido a pena com regime de prova, por não atender que o recorrente se encontra integrado em termos familiares, sociais e laborais, sopesando antes o certificado de registo criminal onde a ultima condenação se reporta a 2015, violando, assim, o juízo de contemporaneidade que se deve reportar à data da sentença, o que torna imperativa a suspensão da pena com regime de prova.
Mostra-se assim fundamentado o recurso na violação do artigo 71º, 73º e 50º, todos do Código Penal.
Ponderemos, que prescreve o artigo 40.º do CP, sobre as finalidades das penas, que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”, devendo a sua determinação ser feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, de acordo com o disposto no artigo 71.º, do mesmo diploma.
Como se tem reiteradamente afirmado, encontra este regime os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), segundo o qual “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
Assim, a restrição do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da CRP), submete-se, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há-de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos – adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva.
A projeção destes princípios no modelo de determinação da pena justifica-se pelas necessidades de proteção dos bens jurídicos tutelados pelas normas incriminadoras violadas (finalidade de prevenção geral) e de ressocialização (finalidade de prevenção especial), em conformidade com um critério de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto praticado, avaliada, em concreto, por fatores ou circunstâncias relacionadas com este e com a personalidade do agente, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele (artigos 40.º e 71.º, n.º 1, do CP).
Como se tem reafirmado, para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o citado artigo 71.º, n.º 2, considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente, os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo – indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) –, os fatores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – fatores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto). Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes por via da prevenção geral, traduzida na necessidade de proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança da comunidade na norma violada, e de prevenção especial, que permitam fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento de novos crimes no futuro e, assim, avaliar das necessidades de socialização. Incluem-se aqui o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e)], com destaque para os antecedentes criminais) e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente, a que se referem as circunstâncias das alíneas e) e f), adquire particular relevo para determinação da medida da pena em vista das exigências de prevenção especial (sobre estes pontos, para melhor aproximação metodológica na determinação do sentido e alcance da previsão do artigo 71.º do CP, cf. Anabela Miranda Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os Critérios da Culpa e da Prevenção, Coimbra Editora, 2014, em particular pp. 475, 481, 547, 563, 566 e 574, e Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 3.ª reimp., 2011, pp. 232-357).
Há que, como se acentuou, ponderar as exigências antinómicas de prevenção geral e de prevenção especial, em particular as necessidades de prevenção especial de socialização “que vão determinar, em último termo, a medida da pena”, seu “critério decisivo”, com referência à data da sua aplicação (assim, acentuando estes pontos, Figueiredo Dias, ob. cit., §309, p. 231, §334, p. 244, §344, p. 249), tendo em conta as circunstâncias a que se refere o artigo 71.º, do CP, nomeadamente, as condições pessoais do agente e a sua situação económica e a conduta anterior e posterior ao facto, especialmente quando esta tenha em vista a reparação das consequências do crime, que relevam por esta via.
A determinação da pena, realizada em função da culpa e das exigências de prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização, de harmonia com o disposto com os artigos citados - 40.º e 71.º -, deve, no caso concreto, corresponder às necessidades de tutela do bem jurídico em causa e às exigências sociais decorrentes daquela lesão, sem esquecer que deve ser preservada a dignidade humana do delinquente.
Revisitando a sentença recorrida acima transcrita no que se refere aos factos consignou para a determinação das consequências jurídicas “Nos termos do artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
Culpa e prevenção constituem, pois, o binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena. Ou seja, “[a]través do requisito de que sejam levadas em conta as exigências da prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu às finalidades da pena. Através do requisito de que seja levada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime – ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente – limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção.
A culpa constitui o pressuposto-fundamento da validade da pena e tem, ainda, por função estabelecer o limite máximo da pena concreta.
Assim, a fixação da pena concreta a aplicar é, pois, realizada em função da culpa do agente, já que não há pena sem culpa e a que a medida da pena não pode ultrapassar a da culpa, como dispõe o artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal, e das exigências de prevenção geral e especial.
Para esta operação o tribunal terá de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra o agente, considerando nomeadamente as alíneas do artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal.
Atentemos ao caso sub judice. (…) Quanto ao crime de coacção agravada na forma tentada, nos termos dos artigos 22.º, n.º 2, alínea a), 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), 131.º, 154.º, n.ºs 1 e 2, e 155.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal, a moldura da pena de prisão situa-se entre 1 (um) mês e 3 (três) anos e 4 (quatro) meses.
Cumpre, então, retirar da matéria de facto provada os factores relevantes para a determinação da pena concreta.
Antes de mais, quanto às exigências de prevenção geral relativas ao crime de furto, valem aqui as considerações supra expendidas a propósito da escolha da pena, as quais, aliás, se aplicam também, “mutatis mutandis”, ao crime de coacção agravada, atenta a disseminação deste tipo de comportamentos (embora menor do que quanto ao crime de furto).
Tendo dali feito constar que: considera-se que estamos diante de um crime que apresenta exigências de prevenção geral elevadas, atendendo à crescente insegurança que se vem sentindo no nosso país e que tem alertado a comunidade para a cada vez maior necessidade de prevenção da ocorrência de crimes contra o património.
Efectivamente, atentando na praxis dos tribunais, constatamos que se mostram generalizadas condutas como as em causa dos autos, porquanto, atenta a situação de grave instabilidade social e económica, à escala nacional e mundial, tem-se verificado um aumento relevante da prática destes ilícitos, importando, pois, sancionar de forma exigente condutas como as ora em causa.
Tem que se considerar ainda as necessidades de prevenção especial.
Adiantamos, desde já, que as mesmas se nos afiguram muitíssimo elevadas.
O arguido não se encontra profissionalmente inserido, pelo menos com consistência (aliás, consta do relatório social e resultou provado que, “no domínio profissional, a intervenção do arguido é pouco expressiva”).
Quanto à postura em sede de audiência de julgamento, foi de vitimização, não tendo confessado integralmente os factos, mas tendo, ainda assim, feito uma confissão parcial, o que, não sendo muito relevante, dado o tipo de prova existente (como o arguido bem sabia, havia várias testemunhas que tinham ouvido, nesse segundo telefonema, a expressão que o arguido dirigiu ao ofendido), não revela verdadeira auto-responsabilização pelos seus actos.
O arguido tem dezassete condenações criminais, tendo cometido:
- um crime de ofensa a funcionário;
- dois crimes de ameaça;
- um crime de receptação;
- cinco crimes de desobediência;
- um crime de condução de veículo em estado de embriaguez
- um crime de resistência e coacção sobre funcionário;
- um crime de dano;
- um crime de injúria agravada;
- dois crimes de emissão de cheque sem provisão;
- dois crimes de burla qualificada;
- um crime de roubo qualificado;
- um crime de homicídio na forma tentada;
- um crime de ofensa à integridade física qualificada;
- um crime de abuso de confiança; e
- um crime de falsificação de boletins, actas ou documentos.
Pela prática de tais crimes, o arguido foi condenado em:
- seis penas de multa;
- sete penas de prisão suspensas na sua execução;
- quatro penas de prisão efectiva.
Os factos da última condenação ocorreram em 2015, sendo que, por acórdão cumulatório transitado em 05.04.2019, foi aplicada ao arguido uma pena única de 9 anos de prisão efectiva.
Tal conduta demonstra absoluto desrespeito por parte do arguido pelas anteriores sanções criminais que lhe foram aplicadas, o que revela uma atitude completamente desafiadora relativamente às penas que lhe foram anteriormente impostas, atitude essa que se traduz na prática de novos crimes.
Tal atitude, aliás, resulta espelhada, de forma clamorosa, no facto de o arguido ter cometido os crimes ora em apreço durante um período de liberdade condicional que lhe havia sido concedida – aliás, cerca de apenas duas semanas após ter-lhe sido concedida a liberdade condicional –, conforme resulta da factualidade provada.
Importa ainda atender ao facto de o arguido não se encontrar consistentemente empregado, o que, naturalmente, agrava as exigências de prevenção especial, na medida em que a integração profissional, se estável e consistente, configura, amiúde, um factor dissuasor da prática de crimes.
Quanto à ilicitude dos factos, a mesma é elevada, não só porque o arguido levou a cabo duas condutas criminosas, mas também porque o fez durante um período de liberdade condicional que lhe havia sido concedida, conforme resulta da factualidade provada.
O arguido não se encontra profissionalmente inserido, pelo menos de modo consistente.
O arguido, pese embora a confissão parcial, como vimos acima, não revelou, de todo, uma postura de responsabilização pela sua actuação.
O dolo é directo.
Sublinha-se, porque é evidentemente determinante, que o arguido tem os antecedentes criminais a que acima se aludiu – tendo dezassete condenações averbadas no seu certificado de registo criminal, tendo praticado diversos crimes de muito diferente natureza e tendo sido condenado em, além do mais, quatro penas de prisão efectiva, sendo que os crimes dos presentes autos foram praticados cerca de duas semanas após o início do período de liberdade condicional que lhe havia sido concedida.
Pelo exposto, afigura-se justo e adequado aplicar ao arguido
- pela prática de um crime de coacção agravada na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, n.º 2, alínea a), 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), 154.º, n.ºs 1 e 2, e 155.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal, uma pena de 1 ano e 6 meses de prisão;
(…)
Nos termos do artigo 154º, nº 1 e 155º, nº 1 a) e 131, todos do Código Penal (doravante C.P.) a pena abstrata pela prática do crime de coação agravada situa-se entre 1 ano e 5 anos, acontece que como o comportamento se ficou pela tentativa, a qual é punida pelo nº 2, do artigo 154º, nº 2, do C. P. a pena será especialmente atenuada, por via dos artigos 22º, e 23º nº 2, e 73º, al. a) e b) todos do C. P. sendo o limite máximo reduzido de 1/3, (5x12=60 meses:1/3=a 20 meses; 60-20 meses = a 40 meses= a 3 anos e 4 meses; e o limite mínimo se inferior ou igual a 3 anos é reduzido ao mínimo legal, 1 mês de prisão).
No caso a moldura penal abstrata do crime de coação agravada tentado, nos termos nos termos dos artigos 22.º, n.º 2, alínea a), 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), 131.º, 154.º, n.ºs 1 e 2, e 155.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal, a moldura da pena de prisão situa-se entre 1 (um) mês e 3 (três) anos e 4 (quatro) meses.
O recorrente foi condenado na pena concreta de 1 ano e 6 meses de prisão.
O recorrente sufraga que a pena é excessiva porque as verbalizações proferidas pelo arguido foram-no num quadro de nervosismo perfeitamente legitimo e compreensível, pois falamos de alguém que que há meia dúzia de dias tinha saído em liberdade condicional e que é ameaçada por outra pessoa com a apresentação de uma queixa crime por factos nos quais não se revê, pois não os cometeu e que não pode deixar de despoletar uma ira contida, estribada no receio de ver hipotecada ou até possivelmente revogada, uma medida de flexibilização do cumprimento de uma pena de prisão que o recorrente fez por merecer.
Nos termos do artigo 72º, n.º 1 do Código Penal, «O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.»
E dispõe tal artigo no seu n.º 2 que:
«Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes: a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência; b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida; c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados; d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.»
O princípio que regula a aplicação deste instituto é a diminuição acentuada não só da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena, e consequentemente das exigências de prevenção.
As circunstâncias previstas no n.º 2 não têm o efeito automático de desencadear o efeito atenuativo especial, mas apenas quando da sua presença se poder concluir que a «imagem global do facto», resultante da atuação da ou das circunstâncias, se apresente tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respetivo.
A atenuação especial da pena só em casos extraordinários ou excecionais pode ter lugar: para a generalidade dos casos, para os casos «normais», lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios .
Ora, vistos os factos provados e a fundamentação de facto da sentença, não vemos como concluir que estejamos perante um caso extraordinário.
Com efeito, a ilicitude do facto, não se mostra diminuída em si mesma tendo em conta a concreta conduta assumida pelo arguido de dobrar a vontade do ofendido por via de ameaça contra a vida.
Por outro lado, a culpa do arguido é elevada, agiu com dolo direto, revelando uma personalidade desvaliosa, que se revela nos seus antecedentes criminais, reportando-se o último crime a 2015, havendo sido cumuladas penas por crimes anteriores de homicídio tentado e ofensas à integridade física qualificada, para além de crimes de burla, abuso de confiança e falsificação, por isso igualmente englobando crimes contra as pessoas, numa pena única de 9 anos de prisão, que está a cumprir sucessivamente com outra pena encontrando-se na data em liberdade condicional aquando dos factos deste processo, apenas há dias.
Finalmente se é certo que o arguido confessou parcialmente os factos, também decorre que existiam várias testemunhas do segundo telefonema, o que lhe retira relevância. Assim, não vemos como se possa desencadear o efeito atenuativo pretendido, pois nada há de extraordinário, no sentido de fazer funcionar a atenuação especial com estes fundamentos e sair da moldura penal atenuada pela tentativa, para o crime em causa.
Concluindo, não há fundamento para fazer funcionar o instituto da atenuação especial da pena, como pretende o recorrente por aplicação do artigo 72º, do C.P.
Por outro lado, não se mostra alegado não terem sido sopesados na sentença recorrida os fatores aludidos no artigo 71º, do Código Penal, até por não serem de sopesar atentas as necessidades de prevenção especial e geral que se revelam no caso e assinaladas na sentença recorrida e que neste particular não nos merece censura até por ter fixado a pena concreta abaixo do meio da moldura penal abstrata cominada para o crime, (e que seria de 1 ano e 8 meses).
Cumpre assinalar que a atividade jurisdicional de escolha e determinação concreta da pena não corresponde a uma ciência exata, sendo certo que além de uma certa margem de prudente arbítrio na fixação concreta da pena, também em matéria de aplicação da pena o recurso mantém a sua natureza de remédio jurídico, não envolvendo um novo julgamento.
O tribunal de recurso só alteraria as penas aplicadas, se as operações de escolha da sua espécie e de determinação da sua medida concreta, levadas a cabo pelo Tribunal de primeira instância, revelarem incorreções no processo de interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais vigentes em matéria de aplicação de reações criminais.
Uma vez que o Tribunal de recurso não decide como se o fizesse “ex novo”, como se não existisse uma decisão condenatória prévia, e é preciso ter sempre em atenção que o Tribunal recorrido mantém incólume, a sua margem de atuação e de livre apreciação, por ser esta uma componente, essencial, do ato de julgar.
A sindicabilidade da medida concreta da pena em via de recurso, abrange, pois, exclusivamente, a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais previstos nos arts. 40º e 71º do CP, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos fatores de medida da pena, mas já não abrange «a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, exceto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada» (Figueiredo Dias, DPP, As Consequências Jurídicas do Crime 1993, §254, p. 197; Acs. da Relação de Lisboa de 11.12.2019, proc. 4695/15.2T9PRT.L1-9, da Relação do Porto de 13.10.2021, proc. 5/18.5GAOVR.P1 in http://www.dgsi.pt).
Assim neste segmento não merece provimento o recurso do recorrente, havendo de ter-se por prejudicada pelo acima decidido a apreciação da pena única.
*
Entende o recorrente que ao ter sido aplicada uma pena de prisão efetiva, desatendeu o Tribunal “a quo” ao relatório social, pois haveria de ter suspendido a pena com regime de prova, pois dali consta que o recorrente se encontra integrado em termos familiares, sociais e laborais, tendo o Tribunal recorrido na sentença, sopesando, antes, o certificado de registo criminal, onde a última condenação se reporta a 2015, violou, assim, o juízo de contemporaneidade que se deve reportar à data da sentença, o que torna imperativa a suspensão da pena com regime de prova.
A questão que agora se coloca, é de aferir da necessidade do cumprimento da pena de prisão efetiva ou se a simples censura do facto e a ameaça de prisão, realizam ou ainda realizam, de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, por referência ao artigo 50.º do Código Penal.
O Tribunal deve decidir no sentido da suspensão da pena de prisão aplicada, em medida não superior a 5 anos, sempre que seja possível fazer um juízo de prognose favorável acerca do comportamento futuro do arguido, com base na sua personalidade, nas condições de vida, na conduta que manifestou antes, e após o crime, bem como as circunstâncias deste, assente na expectativa, fundada, de que a censura do facto e a ameaça da pena de prisão venham a ser suficientes para cumprir as finalidades da punição, isto é, que o arguido não volte a delinquir.
Tal juízo de prognose quanto ao comportamento futuro do arguido, não deve assentar necessariamente numa certeza, mas antes se deve bastar com uma expectativa fundada de que a socialização em liberdade se consiga realizar.
Na ponderação sobre a viabilidade e adequação da suspensão da execução da prisão, não intervêm considerações sobre a culpa do agente, mas antes prevalecem juízos prognósticos sobre o desempenho da sua personalidade perante as condições da sua vida, o seu comportamento e as circunstâncias de facto, sendo admissível a aplicação de tal pena sempre que os mencionados fatores permitam ao julgador supor que são fundadas as expectativas de confiança na prevenção da reincidência.
A respeito da prevenção especial, é necessário que a suspensão implique, de facto, uma “mudança de vida” do delinquente, é preciso que a suspensão leve o delinquente a “interiorizar o mal feito”.
Contudo, a avaliação a efetuar não se esgota na ponderação das exigências de prevenção especial, mas abrange também a avaliação das necessidades de prevenção geral, atentas as disposições conjugadas dos artigos 40.º, n.º 1, e 50.º, n.º 1, do Código Penal, pois não se pode olvidar que a finalidade primordial da pena é a proteção dos bens jurídicos.
Assim, quando se mostre comprometida a satisfação das exigências de prevenção geral é de afastar a aplicação de tal pena substitutiva, de molde a assegurar que a comunidade não encare, no caso, a suspensão, como sinal de impunidade, retirando toda a sua confiança ao sistema repressivo penal.
Destarte para que se decrete a suspensão da execução da pena, é necessário, que por um lado que, o julgador se convença, face à personalidade do arguido, comportamento global, natureza do crime e sua adequação a essa personalidade, que o facto cometido não está de acordo com essa personalidade e foi simples acidente de percurso, e que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro, evitará a repetição de comportamentos delituosos e, por outro, que a pena de suspensão da execução da prisão não coloque irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias, ou seja, o sentimento de reprovação social do crime ou sentimento jurídico da comunidade, juízos que se haverão de reportar ao momento da decisão.
No caso presente consignou-se na sentença recorrida:
“IV.4. Da suspensão da pena
Resta-nos assim aferir se no caso concreto se mostram verificados os pressupostos de que a lei faz depender a suspensão da execução da pena de prisão.
Com efeito, o artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal confere a possibilidade de se suspender a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às suas condições de vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, o tribunal concluir que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades de punição.
A opção pela suspensão de execução da pena de prisão deve ser feita em função de considerações exclusivamente preventivas (de prevenção geral e especial), pelo que para a sua aplicação é necessário, em primeiro lugar, que tal suspensão não coloque irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e, por outro lado, que o tribunal se convença, face à personalidade do arguido, ao seu comportamento global, à natureza do crime e à sua adequação a essa personalidade, que bastará a ameaça da pena para evitar a repetição de comportamentos delituosos.
Pressuposto básico da aplicação de uma pena de substituição é a existência de factos que permitam um juízo de prognose favorável em relação ao comportamento futuro do arguido, sendo necessário que o tribunal esteja convicto de que a censura expressa na condenação e a simples ameaça de execução da pena de prisão aplicada sejam suficientes para afastar o arguido de uma opção desvaliosa em termos criminais e para o futuro.
Logicamente, tal juízo de prognose deverá reportar-se ao momento da decisão e não ao da prática do crime.
Ou seja, desde que imposta ou aconselhada à luz de exigências de socialização, a pena de substituição só não será aplicada se ela não se mostrar capaz de evitar que sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.
*
Vejamos o caso concreto.
Conforme se apontou supra, as exigências de prevenção geral são elevadas, reclamando uma punição forte.
Porém, note-se que a prognose, como pressuposto da suspensão da execução da pena, deve entender-se num sentido puramente preventivo especial e não tendo em conta critérios de prevenção geral, sendo que tal juízo de prognose, como se referiu acima, deverá reportar-se ao momento da decisão e não ao da prática do crime.
Debrucemo-nos, pois, sobre as exigências de prevenção especial.
O arguido tem os antecedentes criminais a que acima se aludiu – tendo dezassete condenações averbadas no seu certificado de registo criminal –, dando-se aqui por reproduzido o que quanto aos mesmos supra se expôs.
Das considerações acima vertidas quanto às condenações já sofridas pelo arguido, e respectivos crimes, resulta, de forma absolutamente clara, que não é possível fazer agora um juízo de prognose remotamente favorável de que a simples censura expressa na condenação e a simples ameaça de execução da pena de prisão aplicada sejam suficientes para afastar o arguido de voltar a delinquir.
Com efeito, o arguido já teve hipótese de inverter caminho, uma vez que iniciou o seu percurso criminoso há 30 anos, em 1995, já tendo cumprido várias penas de prisão efectiva e, ainda assim, não se absteve de voltar a delinquir – aliás, com gravidade –, logo poucos dias após ter-lhe sido concedida liberdade condicional.
As suas condenações anteriores e o seu percurso criminal revelam uma personalidade adversa ao direito e com total desrespeito pelas penas que lhe foram sendo aplicadas, uma vez que não o coibiram de voltar a praticar crimes, revelando absoluta indiferença face a tais penas, não lhes reconhecendo autoridade e desrespeitando-as.
Tal indiferença e desrespeito pelas penas que lhe são aplicadas manifesta-se, de forma claríssima, e além do mais, como já se referiu, no facto de o arguido ter cometido os crimes ora em apreço durante um período de liberdade condicional que lhe havia sido concedida.
Acresce que o arguido não se encontra profissionalmente inserido com consistência e permanência.
Assim, e em conclusão, este quadro supra traçado não nos permite prever como suficiente para acautelar as já referidas exigências de prevenção geral e especial a simples censura do facto e a ameaça de prisão.
Face ao exposto, decide-se não se suspender a pena de prisão ora aplicada.
Ponderemos:
No que respeita ao pressuposto formal revela-se no caso este preenchido, no que respeita ao pressuposto material havemos de considerar, ponderando, que o arguido havia saído em liberdade condicional há poucos dias e que a apresentação de queixa por factos cuja autoria repudiava são adequados a fazer perder a flexibilização da medida de que gozava e que para cujo merecimento se havia esforçado, não só estudando e obtendo equivalência ao 12º ano de escolaridade bem como o curso de pintor da construção civil, trabalhou ainda no EP como faxina, na cozinha, passando para o regime aberto para o exterior (ERA) onde trabalhou desde 3/07/2023 até 20/09/2023, em jardinagem com bom desempenho, na CM da Mealhada.
O recorrente em reclusão manteve um comportamento de acordo com as normas instituídas e sem qualquer infração disciplinar. Não teve registo de anomalias nas flexibilizações da pena de que beneficiou, e tem vindo a efetuar um percurso de maior interiorização da censura da sua conduta, assumindo os crimes e manifestando propósitos de não delinquir.
Na data da prolação da sentença o recorrente estava integrado no seu agregado familiar, constituído pela companheira KK e pelo seu filho LL, de 20 anos residindo em habitação edificada em terreno camarário, com as infraestruturas básicas necessárias à habitabilidade.
A nível laboral tinha retomado a atividade ainda que de forma pouco expressiva a venda de antiguidades e velharias, auferindo a média mensal de 250€, sendo o agregado apoiado pelo rendimento de reinserção social.
O recorrente não apresentava problemáticas aditivas.
Na comunidade não se registam ocorrências com a intervenção do recorrente geradoras de alarmismo social ou de desajuste comportamental, participadas pelas autoridades locais ou pelos órgãos de polícia criminal
O recorrente sofre de um problema de saúde ao nível da obstrução vascular efetuando medicação regular.
O recorrente admitiu a prolação da ameaça revelando consciência critica do desvalor dessa conduta que justificou num contexto de acusação injusta e a possibilidade de lhe vir a ser revogada a medida de flexibilização da pena de que beneficiava desde 20 setembro de 2023 reportando-se o facto a 9.10.2023.
Os antecedentes criminais do recorrente reportam-se aos anos de 1995, onde lhe foi aplicadas multas por ofensa a funcionário, ameaça, recetação e condução ilegal; em 1997 multa extinta por amnistia por um crime de desobediência; em 1999, a 2001, penas de prisão suspensas e multa por resistência e coação, injurias agravadas, desobediências, ameaças, cheque sem provisão, e burla qualificada vindo em cúmulo a cumprir a pena única de 2 anos e 4 meses e 100 dias de multa; por factos de 2010 foi condenado na pena de prisão efetiva de 4 anos e 6 meses por roubo qualificado; entre 3.06.2013 e 17.03.2015, foi condenado em cumulo jurídico na pena única de 9 anos de prisão, e multa que pagou por um crime de desobediência, e por crimes de homicídio na forma tentada, burla qualificada, ofensa à integridade física qualificada; abuso de confiança e falsificação, estando a cumprir de forma sucessiva estas penas, das quais e de acordo com a liquidação efetuada tinha atingido o meio das penas em 9.09.2022, o cumprimento dos dois terços ocorreria em 1/06/2024, o cumprimento de 5/6 em 17/05/2026, terminando o cumprimento em 17/11/2027. Veio a beneficiar da flexibilização da pena através da concessão de Liberdade Condicional em 20 setembro de 2023.
Havendo de entender-se o instituto da suspensão da execução da pena como uma autêntica medida penal, suscetível de servir também - ou tão eficazmente - quanto a efetividade das sanções, ao desiderato da prevenção geral positiva, com a acrescida vantagem do mesmo passo, satisfazer a prevenção especial.
Assim, e por um lado ponderando em concreto o comportamento global do recorrente, na medida em que a sentença recorrida se reporta a 5.05.2025, a natureza do crime, o contexto em que foi praticado, e que o mesmo não se reflete na personalidade que nos últimos cerca de dez anos (ultimo crime de 9.10.2015) o recorrente tem manifestado, revelando-se, antes, um episódio fruto de um particular contexto, e que a ameaça do cumprimento da pena, terá reflexos no seu comportamento futuro, evitando a repetição futura de crimes, e ainda que, por outro lado, não se revela que em concreto a aplicação de pena de suspensão da prisão coloque de modo irremediável em causa a tutela de bens jurídicos, nem a estabilização das expetativas comunitárias, isto é, o sentimento da comunidade, atenta a inserção familiar e na comunidade local, do recorrente, como derradeira e última oportunidade, de infletir o seu percurso de vida ponderando-se que o recorrente ainda reúne condições, para pressupondo o seu adequado acompanhamento pós-sentencial (no âmbito de adequado regime de prova), ensaiar, em liberdade, a sua ressocialização, sem necessidade do cumprimento da pena de prisão aplicada, ao ser de esperar que, com a sua condenação, a simples ameaça do cumprimento da pena a que ficará sujeito conduza a uma adesão voluntária e efetiva a um processo de reinserção social, fundado num esforço suficiente para eliminar os fatores criminógenos que levaram ao comportamento delituoso.
Consequentemente, caberá ao recorrente aproveitar esta oportunidade para orientar o seu futuro, pois suspender-se-á a pena aplicada ao arguido de 1 ano e 6 meses de prisão, pelo período de 2 anos, condicionando o acompanhamento da suspensão, a adequado regime de prova, assente num plano com intervenção técnica estruturada o qual deverá promover, a aquisição de competências sociais, no sentido de valorizar a vida em sociedade e o respeito pelas normas sociojurídicas, nos termos dos artigos 50º, nº 1 e 2, 53º, 54º, todos do Código Penal.
Em face do que procede neste segmento a argumentação recursiva.
3.3. Das custas
Em face do parcial provimento do recurso interposto pelo arguido, não vai o mesmo condenado no pagamento de custas –(cf. artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal).
IV. Decisão
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, em
- manter os factos 6 e 7 no elenco dos factos provados, mantendo nesta parte o decidido.
-alterar a matéria de facto provada nos termos acima decididos, passando a ser eliminados dos factos provados os pontos 2, 4, 5, 10, os quais passam para o elenco dos factos não provados sob as letras a) b) c) e d) e em consequência julgam procedente, nesta parte, o recurso do recorrente AA, revogando-se a sentença recorrida na parte em que o condenou por um crime de furto qualificado p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 203º, 204º, nº 1 al. b) e f) ambos do Código Penal, deste o absolvendo;
- julgar improcedente o recurso do recorrente na parte em que pugnava pela alteração do quantum da pena de prisão aplicada ao crime de coação agravada na forma tentada, a qual se mantem em 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão.
- determina-se que a pena de prisão de 1 (um) ano e 6 (seis) meses fique suspensa na sua execução por 2 (dois) anos com regime de prova, assente num plano com intervenção técnica estruturada o qual deverá promover, a aquisição de competências sociais, no sentido de valorizar a vida em sociedade e o respeito pelas normas sociojurídicas, nos termos do artigo 50º, nº 1 e 2, 53º, 54º, todos do Código Penal.
Sem custas – artigo 513º nº 1 do CPP
Porto, data certificada digitalmente
Assinado digitalmente
Isabel Monteiro
Elsa Paixão
Maria Dos Prazeres Silva [votou a decisão:
Voto a decisão, com a única ressalva de que discordo do entendimento expresso quanto à valoração do depoimento prestado por testemunha sobre o que ouviu dizer ao arguido.
Sobre esta matéria sufrago o entendimento contrário, aliás, mencionado no acórdão.
A prova testemunhal releva apenas no que respeita ao conhecimento direto dos factos, nos termos do artigo 128.º, n.º 1, do Código Processo Penal.
Considero que se encontra legalmente vedada a valoração do depoimento indireto (1) de testemunha, consistente na narração do conteúdo de conversa tida com o arguido sobre a conduta que lhe está imputada, nomeadamente afirmações confessórias por ele produzidas, ainda que na ocasião não estivesse investido nessa qualidade, atento o disposto nos artigos 128.º, n.º 1, e 129.º, n.º 1, do Código Processo Penal, e uma vez que o regime do depoimento indireto estabelecido nesta última norma apenas é aplicável à prova testemunhal indireta, ou seja, somente vale para a prova testemunhal e portanto não vale como prova o depoimento indireto de uma testemunha sobre o que ouviu dizer ao arguido (2) .
Em decorrência, a meu ver, não deveria ser conferida relevância alguma à narração produzida por GG e HH sobre o que ouviram dizer ao arguido.]
Moreira Ramos
________________
(1) Constitui depoimento indireto aquele que resulta da narração de acontecimentos de que a testemunha obteve conhecimento através de outra prova. Ou seja, conforme refere Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, II, pág. 132), Conhecimento directo dos factos é aquele que resulta à testemunha de se ter apercebido imediatamente deles através dos seus próprios sentidos. No testemunho indirecto a testemunha refere meios de prova, aquilo de que se apercebeu foi de outros meios de prova relativos aos factos, mas não imediatamente dos próprios factos (sublinhado e realce nossos).
(2) Cf. Luís Lemos Triunfante, Comentário Judiciário do Código Processo Penal, Tomo II, pág. 93; Vd. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Processo Penal, 2.ª ed., págs. 345-346, não vale como prova o depoimento indirecto de uma testemunha sobre o que ouviu dizer ao arguido (…), porque as “pessoas” a que a ressalva do n.º 1, do artigo 129.º, se refere são apenas as testemunhas. (realce nosso).