TRIBUNAL CRIMINAL
INQUÉRITO
MINISTÉRIO PÚBLICO
JIC
COMPETÊNCIA
CRITÉRIOS
VIOLAÇÃO
NULIDADE INSANÁVEL
CONSEQUÊNCIAS
Sumário

I - A competência dos Tribunais criminais é determinada em função de quatro critérios: (i) em razão do território (área geográfica de jurisdição), (ii) em razão da matéria (especificidade dos assuntos), (iii) em razão da estrutura (composição do tribunal) e (iv) em razão da hierarquia (organização judiciária piramidal).
II - A repartição da competência em razão do território prende-se com a distribuição dos “casos” judiciais entre os vários Tribunais da mesma categoria e a proximidade entre o local dos factos e o Tribunal onde a causa é tramitada e decidida, sendo, por isso, determinada sobretudo por finalidades racionais de organização e de operacionalidade.
III - O Inquérito corresponde à fase da investigação por excelência, da competência exclusiva do Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal (arts. 263.º do CPP), sendo a intervenção do Juiz de Instrução Criminal (JIC) meramente residual e sempre mediante promoção ou requerimento, destinando-se somente a praticar ou determinar actos de natureza jurisdicional.
IV - Como regra, a competência territorial para a realização do Inquérito recai sobre o Ministério Público que exercer funções no local da ocorrência do crime (art. 264.º), sendo também esse o critério definidor da competência territorial do JIC para a prática dos actos jurisdicionais (arts. 17.º e 19.º, todos do CPP).
V - Apesar da competência territorial estar em “aberto” e poder alterar-se até à dedução da acusação, em função da factualidade que se for indiciariamente apurando no Inquérito (arts. 264.º, n.ºs 1 e 2, e 266.º, n.º 1, do CPP), a mesma não varia em virtude das ocorrências ao nível da direcção e tramitação do inquérito, designadamente pela sua transmissão para outros Serviços do Ministério Público por conveniências investigatórias, pois que estas não se sobrepõem às regras de atribuição da competência legalmente estabelecidas.
VI - Tendo os factos denunciados ocorrido no Município de Chaves, da Comarca de Vila Real, em cujos Serviços do Ministério Público se iniciou o Inquérito, sendo competente para a realização dos actos jurisdicionais o JIC dessa Comarca, esta competência não pode ser subtraída em virtude da posterior assunção da investigação pelo DIAP Regional do Porto, nos termos do artigo 71.º, n.º 1, alínea b), do EMP (Lei n.º 68/2019, de 27-08), para onde os autos foram remetidos.
VII – Tendo o JIC do Porto passado, desde então, a praticar os actos jurisdicionais, cuja competência territorial não abrange a Comarca de Vila Real, tal conduziu ao desaforamento do processo do JIC territorialmente competente, com violação do princípio do juiz natural (arts. 38.º e 39.º da LOSJ e 32.º, n.º 9, da CRP).
VIII - A nulidade insanável, por violação das regras de competência do Tribunal, cominada pelo invocado artigo 119.º, alínea e), do CPP, reporta-se ao conhecimento da incompetência a todo o tempo (com o limite do trânsito em julgado), mas com a ressalva estabelecida no n.º 2 do artigo 32.º do mesmo Código.
IX - A declaração da incompetência não tem como consequência imediata e necessária a nulidade dos actos levados a cabo pelo Juiz incompetente, pois que a mesma somente tem como efeito a remessa do processo para o Tribunal competente, sendo este que, se assim entender, poderá anular actos, tal como estabelece o artigo 33.º, n.ºs 1 e 3, do CPP. Trata-se da consagração, como regra, do princípio do aproveitamento dos actos processuais.

(Sumário da responsabilidade do Relator)

Texto Integral

Processo: 295/14.2T9VRL-D.P1


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Acordam, em conferência, os Juízes da 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I

Nos autos de Inquérito n.º 295/14.2T9VRL, a correr termos no DIAP Regional do Porto – 1.ª Secção, foi proferido despacho pela Exm.ª Juíza do Juízo de Instrução Criminal do Porto – Juiz 3, em 16-05-2025, pelo qual desatendeu a nulidade invocada pelos arguidos AA e A..., Ld.ª, por alegada incompetência territorial daquele Tribunal, em relação ao “despacho de 07/05/2025” (ref.ª 472052198 – Proc. Principal).


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Os arguidos AA e A..., Ld.ª, interpuseram, em 20-06-2025, recurso desse despacho, tendo apresentado a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

“I. A única questão que se coloca neste recurso é da violação do disposto no artigo 32.º, n.º 9, da Constituição da República Portuguesa e do disposto no[s] artigo[s] 43.º, n.º 4, e 120.º, a contrario, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, e do mapa III, anexo ao DL n.º 49/2014, de 27.03.

II. O Tribunal “a quo” não atendeu à nulidade invocada pelos recorrentes no sentido de ser incompetente em razão do território para conhecer dos requerimentos apresentados pelos arguidos, nomeadamente o requerimento de prorrogação do prazo de abertura da instrução.

III. Resulta dos factos imputados aos arguidos na acusação que lhes foi notificada no passado dia 26 de Maio de 2025 que os factos ilícitos foram consumados no concelho de Chaves, área de jurisdição da Comarca de Vila Real.

IV. Mais resulta que o inquérito foi inicialmente tramitado na Comarca de Vila Real, desconhecendo-se nesta data a razão para ter sido remetido para o DIAP Regional do Porto, uma vez que ainda não foi permitido que os arguidos pudessem consultar os autos e também lhes foi indeferida a confiança do processo.

V. Certo é apenas que, ao abrigo do disposto no artigo 19.º do Código de Processo Penal, o tribunal de instrução competente para os actos do artigo 17.º do mesmo Código é o tribunal em cuja área se tiver verificado a consumação, neste caso, o Juiz de instrução criminal da Comarca de Vila Real, sendo nulos todos os actos praticados com violação desta regra, uma vez que derroga o princípio fundamental de direito criminal previsto no artigo 32.º, n.º 9 da Constituição da República Portuguesa.

VI. A nulidade dos actos praticados com violação das regras de competência está prevista no 119.º, al. e), do CPP, como nulidade insanável, tal a importância que o legislador atribui à violação do princípio do juiz natural que no caso foi violado.

Termos em que, contando sempre com o douto suprimento de V. Exas., se pede a V. Exas. se dignem conhecer da questão enunciada nas conclusões que antecedem e, julgando o recurso procedente, revoguem o douto despacho recorrido e, em consequência, defiram a nulidade arguida, com as legais consequências, nomeadamente, declarem a incompetência territorial do Tribunal de Instrução Criminal do Porto para conhecer dos requerimentos dos recorrentes.” (ref.ª 52695539).


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Admitido o recurso por despacho de 27-06-2025 (ref.ª 473519588), o Exm.º Magistrado do Ministério Público apresentou resposta, dizendo, em síntese, que o recurso deverá ser rejeitado, quer porque viola o caso julgado formal, quer porque os recorrentes não têm interesse em agir, além de que os mesmos há muito que conheciam, pela tramitação dos autos, a afirmação da competência jurisdicional por parte do Juízo de Instrução Criminal do Porto sem qualquer reacção, impondo-se também uma interpretação actualista da competência do Juiz de Instrução, em harmonia com a lei, o sistema e o propósito do legislador, devendo a incompetência territorial ser apreciada no primeiro momento em que o Juiz de Instrução tem intervenção, desde que o quadro factual se mantenha igual, como é o caso dos autos, pelo que deverá improceder o recurso interposto (ref.ª 42964585).

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Recebidos os autos respectivos neste Tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no qual, em síntese, referiu aderir às considerações e motivos constantes da resposta apresentada pelo Exm.º Magistrado do Ministério Público junto da 1.ª Instância, concluindo que o mesmo deve ser julgado improcedente, mantendo-se integralmente o despacho recorrido (ref.ª 19870899).

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Tendo dele sido notificado, os recorrentes não apresentaram resposta a esse parecer (ref.ª 19886529).

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Foi proferido despacho liminar e colhidos os vistos, com decisão em conferência.

II

As conclusões formuladas, resultado da motivação apresentada, delimitam o próprio objecto do recurso (art. 412.º, n.º 1, do CPP).

Não havendo outras de conhecimento oficioso, passa a apreciar-se a questão colocada pelos recorrentes à apreciação deste Tribunal, para o que importa ter presente a tramitação processual relevante e a decisão recorrida, a qual foi a seguinte (elencada cronologicamente, conforme consta do Citius – Processo principal):

a) Tendo sido notificados da acusação deduzida pelo Ministério Publico (DIAP Regional do Porto – 1.ª Secção), vieram os arguidos AA e A..., Ld.ª, ora recorrentes, em 21-04-2025, invocando a extensão e complexidade do processo e da própria acusação, requerer ao Exm.º Juiz de Instrução Criminal que “lhes seja concedido um prazo não inferior a oito meses após a disponibilização da consulta dos autos e das gravações para requererem a abertura da instrução” (ref.ª 25560331).

b) O Exm.º Magistrado do Ministério Público pronunciou-se a tal respeito, em 23-04-2025, tendo considerado, perante os motivos invocados e a dimensão dos autos, “justificar-se prorrogar esse prazo [para a abertura da instrução] até no máximo de 60 dias” (ref.ª 414362869).

c) Em 30-04-2025 foi proferido despacho pela Exm.ª Juíza do Juízo de Instrução Criminal do Porto – Juiz 3, do seguinte teor:

Pelos fundamentos da promoção do M. P., à qual aderimos por estarmos integralmente de acordo, defere-se a requerida prorrogação do prazo para abertura de instrução pelo prazo de 60 dias.” (ref.ª 471398434).

d) Tendo sido apresentados idênticos requerimentos por outros arguidos, o Exm.º Magistrado do Ministério Público, em 06-05-2025, determinou a remessa dos autos à Exm.ª Juiz de Instrução, promovendo que “seja declarado judicialmente que o determinado no douto despacho judicial de 30-04-2025 (ref.ª 471398434) se aplica a todos os arguidos alvo de acusação.” (ref.ª 414377947).

e) Na sequência, em 07-05-2025, a Exm.ª Juíza do Juízo de Instrução Criminal do Porto – Juiz 3 proferiu o seguinte despacho:

Em conformidade com a promoção que antecede, notifique informando que o despacho de fls. 6419 se aplica a todos os arguidos.” (ref.ª 471652763).

f) Notificados do despacho referido em c), vieram os arguidos AA e A..., Ld.ª, em 12-05-2025, arguir perante a Exm.ª Juíza de Instrução Criminal a incompetência desse Tribunal de Instrução Criminal do Porto, em razão do território, “para conhecer dos requerimentos apresentados nestes autos pelos arguidos, nomeadamente o que agora justifica a arguição da nulidade”, pois que os factos, segundo a acusação, se localizam no território do concelho de Chaves, distrito e comarca de Vila Real, terminando a pedir que seja conhecida a nulidade invocada e declarada a incompetência de tal Tribunal de Instrução, declarando-se a nulidade dos actos aí praticados e remetendo-se os autos “ao Tribunal competente, ou seja, ao Juízo Central Criminal da Comarca de Vila Real.” (ref.ª 25566858).

g) O Exm.º Magistrado do Ministério Público pronunciou-se, em 14-05-2025, sobre tal arguição de nulidade nos seguintes termos:

II. Arguição de nulidade do douto despacho judicial de 07/05/2025 (ref.ª 471652763 e fls. 6646), por req. dos arguidos AA e A...… de 12/05/2025 (ref.ª 25566858 e fls. 6837 e ss.):

O arguido entende que a nulidade, prevista no art. 119.º, al. e), do Código de Proc. Penal, radica na circunstância de ser competente a Comarca de Vila Real, e para tando, ademais, cita o AUJ n.º 2/2017.

A nosso ver, não tem razão.

Primeiro, o citado AUJ aplicava-se ao extinto Tribunal Central de Instrução Criminal e no que concerne à fase de instrução propriamente dita, não a actos jurisdicionais praticados em inquérito que corra termos em estruturas centrais do Ministério Público, como é o caso.

Segundo, a referida nulidade vem prevista, sem prejuízo do disposto pelo art. 32.º do mesmo Código, a qual não regula os actos jurisdicionais, entende-se, porque neste caso a lei não tutela tão intensamente os efeitos da eventual incompetência territorial. Portanto, neste caso, interessará o juízo efectuado pelo julgador na primeira intervenção que efectuar.

Acresce, pretendendo a lei, conforme art. 32.º, n.º 2, do Código de Proc. Penal e art. 620.º, n.º 1, do Código de Proc. Civil, ex vi art. 4.º do Código de Proc. Penal, evitar a instabilidade em matéria de competência territorial, por não a valorizar tão intensamente quanto noutros casos, a incompetência territorial deverá ser apreciada no primeiro momento em que o Juiz de Instrução aprecia a sua intervenção jurisdicional, desde que o quadro factual se mantenha igual, o que há muito sucedeu, fixando-se a esse respeito o caso julgado.

Questão diferente, efectivamente, será a eventual distribuição dos autos para a fase de instrução, caso venha a ser aberta por qualquer um dos arguidos, a remeter à secção territorialmente competente.

Promove-se, assim sendo, seja julgada improcedente a arguida nulidade.” (ref.ª 414394261).

h) Aquele requerimento dos arguidos / recorrentes foi desatendido pelo despacho de 16-05-2025, ora recorrido, o qual é do seguinte teor:

Vieram os arguidos AA e A... [por] requerimentos de 12/05/2025 (ref.ª 25566858 e fls. 6837 e ss.) arguir a nulidade do despacho de 07/05/2025 (ref.ª 471652763 e fls. 6646) por considerar verificada a nulidade prevista no art. 119.º, al. e), do Código de Proc. Penal, por ser competente a Comarca de Vila Real, alicerçando-se no AUJ n.º 2/2017.

Concordamos com o magistrado do M. P. no sentido de que o AUJ se aplicava ao extinto Tribunal Central de Instrução Criminal e no que concerne à fase de instrução propriamente dita, não a atos jurisdicionais praticados em inquérito que corra termos em estruturas centrais do Ministério Público, como é o caso, aderindo, no mais, aos argumentos ali invocados e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais, não ocorrendo a invocada nulidade.

Notifique e devolva.” (ref.ª 472052198).


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Apreciando.

Previamente importa clarificar que os agora recorrentes arguiram nulidade relativamente ao despacho de 30-04-2025 (aludido em c) supra), pelo qual foi deferida a prorrogação do prazo para a abertura da instrução pelo prazo de 60 dias, conforme explicitaram expressamente no respectivo requerimento, apresentado em 12-05-2025 (mencionado em f)), sendo manifesto o lapso no despacho recorrido ao dizer-se que os mesmos vieram “arguir a nulidade do despacho de 07/05/2025 (ref.ª 471652763 e fls. 6646)”, o mesmo ocorrendo na resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público, na parte inicial relativa ao “OBJECTO DO RECURSO” (pág. 3).

Com efeito, no despacho de 07-05-2025 somente se clarificou que o anterior despacho (o de 30-04-2025) “se aplica a todos os arguidos” (vide al. e)), não sendo relativamente a ele que foi arguida tal nulidade.

Assim, perante tal erro de escrita, rectifica-se o despacho de 16-05-2025, ora recorrido, passando a constar na sua parte inicial o seguinte:

Vieram os arguidos AA e A... [por] requerimentos de 12/05/2025 (ref.ª 25566858 e fls. 6837 e ss.) arguir a nulidade do despacho de 30/04/2025 (ref.ª 471398434)…”,

o que se determina ao abrigo do disposto no artigo 380.º, n.ºs 1, alínea b), 2 e 3, do Código de Processo Penal (CPP).

Prosseguindo.

Os recorrentes AA e A..., Ld.ª, após transcreverem o despacho recorrido e a promoção que o antecedeu (aludidos em g) e h), respectivamente), dizem na motivação, em síntese, discordar de tal despacho, pois que o processo não está na fase de inquérito, a qual terminou com o despacho de acusação, estando agora os autos “na antecâmara da fase eventual da instrução ou da fase de julgamento”, sendo que o despacho recorrido “não põe em crise que a competência territorial para os factos da acusação é do Tribunal de Instrução Criminal da Comarca de Vila Real”, daí que não se compreenda como é que “um processo de inquérito iniciado em 2014, na Comarca de Vila Real, que correu termos no DIAP Regional do Porto, presume-se em razão do disposto no artigo 73.º, n.º [?] al. b) da lei ao tempo em vigor (Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro), ainda não foi remetido para a Comarca competente”.

Mais referem que, ao contrário do que resulta do despacho recorrido, o princípio do juiz natural (art. 32.º, n.º 9, da CRP) não estabelece graus de intensidade, sendo as regras de competência regras absolutas e aquele um princípio fundamental de garantia dos cidadãos, de modo a evitar que o Ministério Público possa “escolher a seu critério o juiz que fiscaliza a respectiva actividade”, devendo tal juiz ser aquele que “a lei de processo e de organização judiciária determina como tal”, sendo que o artigo 19.º do CPP tem como primeiro critério para determinar a competência o local da consumação do crime, pelo que, tendo-se os crimes imputados, segundo a acusação, relativamente à qual pretendem exercer o contraditório, consumado em Chaves, o juiz de instrução criminal competente é o da Comarca de Vila Real e não qualquer outro.

Terminam dizendo que o Tribunal de Instrução Criminal do Porto não exerce jurisdição territorial sobre a Comarca de Vila Real, que inclui o concelho de Chaves, como resulta do disposto nos artigos 43.º, n.º 4, e 120.º, a contrario, da Lei n.º 62/2013, de 26-08, e Mapa III anexo ao Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27-03, pelo que todos os actos praticados pelo Juízo de Instrução Criminal do Porto são nulos, nulidade essa que foi tempestivamente invocada no requerimento que foi indeferido pelo despacho recorrido, sendo que os acórdão deste Tribunal da Relação de 15-11-2023 e de 26-03-2025, são no sentido da verificação da nulidade dos actos praticados pelo Juiz de Instrução Criminal do Porto, em situações de facto semelhantes (págs. 2 a 4 da motivação).

Vejamos.

Como é sabido, o Tribunal da Relação conhece de facto e de direito (art. 428.º do CPP), representando os recursos um meio de impugnação das decisões judiciais, cuja finalidade consiste na eliminação dos erros, defeitos ou lapsos das mesmas através da sua análise por outro órgão jurisdicional, desse modo constituindo um instrumento processual de consagração prática dos princípios constitucionais de acesso ao direito e de garantia do duplo grau de jurisdição (arts. 20.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa - CRP).

Está em causa a eventual ocorrência da nulidade consagrada no artigo 119.º, alínea e), do CPP, o qual dispõe o seguinte:

Constituem nulidades insanáveis, que devem ser declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas noutras disposições legais:

(…)

e) A violação das regras de competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 32.º;

(…).”

Por sua vez, o referido artigo 32.º refere o seguinte:

1 – A incompetência do tribunal é por este conhecida e declarada oficiosamente e pode ser deduzida pelo Ministério Público, pelo arguido e pelo assistente até ao trânsito em julgado da decisão final.

2 – Tratando-se de incompetência territorial, ela somente pode ser deduzida e declarada:

a) Até ao início do debate instrutório, tratando-se de juiz de instrução; ou

b) Até ao início da audiência de julgamento, tratando-se de tribunal de julgamento.”

Num Estado-de-Direito democrático, como é o nosso, o ius puniendi Estadual é exercido através dos Tribunais, aos quais incumbe “administrar a justiça em nome do povo” (arts. 202.º, n.º 1, da CRP - e 2.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário - LOSJ[1]).

Perante tal comando, compete à lei ordinária determinar a forma como são distribuídos os casos a carecer de apreciação judicial entre os vários Tribunais.

A competência dos Tribunais criminais, única que agora releva, é determinada em função de quatro critérios: competência em razão do território (área geográfica de jurisdição), competência em razão da matéria (especificidade dos assuntos), competência em razão da estrutura (composição do tribunal) e competência em razão da hierarquia (organização judiciária piramidal).[2]

Para o caso somente releva a primeira delas, ou seja, a competência territorial, sendo a violação das regras desta que, segundo a lei, apresentam menor gravidade, pois que, embora seja conhecida e declarada oficiosamente, tal só poderá ocorrer até certos momentos processuais, consoante os autos se encontrem na fase da instrução ou de julgamento, tal como estabelece o referido n.º 2 do artigo 32.º do CPP.[3]

Se esses momentos estiverem ultrapassados, a referida nulidade adveniente da incompetência do Tribunal já não poderá ser conhecida e declarada, ficando tal possibilidade precludida e definitivamente fixada a competência territorial. A razão de ser de tal regime menos exigente prende-se com o facto de a determinação da competência do Tribunal em função do território se prender com aspectos menos relevantes para a administração da justiça, como sejam, designadamente, a repartição dos “casos” judiciais entre os vários Tribunais da mesma categoria e a proximidade entre o local dos factos e o Tribunal onde a causa é tramitada e decidida.

Conforme refere Henriques Gaspar, a competência territorial é determinada sobretudo por finalidades racionais de organização e de operacionalidade, procurando determinar o Tribunal que, em cada situação, esteja em melhores condições de proximidade ou de conexão objectiva quanto a elementos do crime ou do seu autor (In Código de Processo Penal Comentado, 3.ª Edição, Almedina, pág. 73).

No que respeita especificamente à jurisdição processual penal, é sabido que a tramitação do processo comum se divide - melhor, pode dividir-se - em três fases, as duas primeiras designadas de fases preliminares,[4] o inquérito (obrigatório) e a instrução (facultativa), sendo a última a fase de julgamento (não interessando agora a eventual fase dos recursos e a de execução da pena).

O Inquérito corresponde à fase da investigação por excelência, sendo a mesma da competência exclusiva do Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal (arts. 263.º do CPP).

A intervenção do Juiz de Instrução Criminal (doravante JIC) na fase de Inquérito é meramente residual e sempre mediante promoção ou requerimento, destinando-se somente a praticar ou determinar actos de natureza jurisdicional, como seja, designadamente, a admissão da constituição de assistente (art. 68.º, n.º 4), a permissão da consulta dos autos e obtenção de certidões ou informações pelos sujeitos processuais em caso de oposição do Ministério Público (art. 89.º, n.º 2), a prorrogação de prazos em caso de procedimento de especial complexidade (art. 107.º, n.º 6), a condenação por falta injustificada de comparecimento e detenção do faltoso (art. 116.º, n.ºs 1 e 2), a quebra de segredo profissional (art. 135.º, n.ºs 2 e 3), o primeiro interrogatório de arguido e aplicação de medidas de coacção diferentes do TIR, bem como a sua revogação ou substituição (arts. 141.º, 194.º, n.ºs 1 a 3, e 212.º, n.ºs 1 e 3), a declaração de especial complexidade do processo (art. 215.º, n.º 4), além da recolha de prova ou meios de obtenção e prova mais intrusivos (arts. 177.º, n.ºs 1 e 4, 179.º, 180.º, 181.º, 187.º, n.º 1, 268.º e 269.º) e da tomada de declarações para memória futura (art. 271.º, todos do CPP).

Ou seja, o Ministério Público é o detentor da acção penal e o dominus do Inquérito, sendo a intervenção do JIC meramente pontual e a solicitação dos sujeitos processuais.

Já as fases de instrução e de julgamento são fases totalmente jurisdicionais. A primeira, de natureza facultativa, tem somente lugar a requerimento do arguido ou do assistente, nos termos, prazo e circunstancialismos legais (arts. 286.º e 287.º do CPP). A última inicia-se com o despacho de “recebimento da acusação” e actos que lhe estão associados, em vista da apreciação do “mérito” da causa (arts. 311.º do CPP).

Não existe um “juiz do inquérito”, mas somente o “juiz de instrução” e o “juiz de julgamento”.

A competência do Tribunal é assumida, de forma expressa ou implícita, respectivamente, no momento dos despachos de abertura da instrução e de recebimento da acusação, pois que somente com a acusação deduzida, seja pelo Ministério Público ou pelo assistente, ou com a “acusação alternativa” que tenha sido formulada no requerimento de abertura da instrução pelo assistente, nos termos do artigo 287.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, do CPP, fica definido o objecto do processo e se delimita a vinculação temática do Tribunal.

É com referência a esse objecto do processo e a esse momento inicial das fases jurisdicionais (instrução e julgamento) que se determina a competência territorial do Tribunal respectivo, pois que apenas nesse momento o processo entra verdadeiramente em juízo, sendo irrelevantes, em regra, as modificações de facto e/ou de direito que venham a ocorrer depois disso, tal como estabelece o artigo 38.º da LOSJ.

Assim, estabelecida a competência, a mesma mantém-se até final da causa, com proibição de desaforamento, sendo esse o suporte do princípio do juiz natural, com consagração nos artigos 32.º, n.º 9, da CRP e 39.º da LOSJ.

A respeito do Juiz de Instrução, o mesmo tem competência para “proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento” (art. 17.º do CPP), pelo que lhe compete praticar os actos de natureza jurisdicional no decorrer do Inquérito. Igual regime resulta do artigo 119.º, n.º 1, da LOSJ.

Em termos territoriais, é competente para conhecer de um crime, como regra, “o tribunal em cuja área se tiver verificado a consumação”, estabelecendo-se especificidades para os casos de crime que compreenda como elemento do tipo a morte de uma pessoa, de crime que se consuma por actos sucessivos ou reiterados ou por um só acto susceptível de se prolongar no tempo ou ainda de crime que não tenha chegado a consumar-se (art. 19.º do CPP).

No caso sub judice resulta da análise dos autos que, em 24-11-2014, foi remetida aos Serviços do Ministério Público de Vila Real a denúncia “por carta anónima” que deu origem ao Inquérito, sendo reportadas “irregularidades por parte do Director de Finanças de Via Real”, vindo o DIAP de Vila Real, em 28-11-2014, a determinar a remessa dos autos à Polícia Judiciária (PJ) para investigação, o quais ficaram a coberto do segredo de justiça, por promoção de 05-02-2015 e subsequente despacho de 06-02-2015 (ref.ªs 27367604 e 27419158).

Na sequência de relatório da PJ, em que levanta tal questão, o Exm.º Magistrado do Ministério Público (Procuradoria da Inst. Local – Sec. Inquéritos), por despacho de 09-02-2015, entendeu, perante os factos em investigação, não estarem verificados os pressupostos legais, com referência ao artigo 73.º do EMP, para a remessa dos autos ao DIAP do Porto, devolvendo os mesmos à PJ para continuação da investigação (ref.ª 27421099).

Tendo-se considerado não existirem indícios suficientes da prática de qualquer crime, por despacho de 30-01-2028, foi determinado pelo Exm.º Magistrado do Ministério Público o arquivamento dos autos (ref.ª 31866158), vindo o Superior hierárquico, por despacho de 04-04-2018, a ordenar a reabertura do inquérito e o prosseguimento da investigação quanto a alguns dos factos, referindo que os visados na investigação são todos dessa região (Vila Real/Chaves), mais determinando, face à natureza dos crimes e indisponibilidade de meios, que o Exm.º Procurador-Adjunto titular do inquérito pondere propor que o mesmo seja investigado pela Secção Distrital do DIAP do Porto (ref.ª 32084356).

Na sequência, foi proferido despacho pelo Exm.º Procurador Coordenador, em 23-04-2018, em que - considerando estarem em investigação crimes de fraude fiscal, p. e p. pelo artigo 103.º do RGIT, e de fraude na obtenção de subsídio e/ou desvio de subsídio, p. e p. pelos artigos 36.º e 37.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20-01, sendo suspeito, desde logo, o referido Director, apontando a complexidade da matéria a investigar -, determinou a remessa dos autos à Exm.ª Procuradora-Geral Distrital do Porto, com a “proposta de que, pela sua complexidade e gravidade, a investigação seja deferida à Secção Distrital do DIAP do Porto” (ref.ª 32161370).

Recebidos os respectivos autos, pelo DIAP do Porto – 12.ª Secção, dando por reproduzido anterior despacho, em 17-05-2028, foi determinada a remessa dos autos à PJ do Porto para prosseguimento da investigação (ref.ª 392802030).

Em 12-11-2020, na sequência de promoção nesse sentido, foram os autos remetidos ao Juízo de Instrução Criminal do Porto para acto jurisdicional, tendo a Exm.ª Juíza do JIC do Porto – Juiz 3 determinado a emissão de vários mandados de busca e apreensão, a generalidade a realizar em Chaves, sendo um deles a levar a cabo em escritório de Advogado, com expedição de Carta Precatória para o efeito (ref.ªs 412451868, 412455365 e 419359782/419368168).

Desde então manteve-se a intervenção, para actos jurisdicionais no Inquérito, do JIC do Porto – Juiz 3, assumindo implicitamente a competência territorial para tais actos.

Do que se deixa enunciado resulta que os autos se iniciaram nos Serviços do Ministério Público da Comarca de Vila Real, sendo estes, perante os elementos disponíveis, os competentes territorialmente para a realização do inquérito, em conformidade com o disposto no artigo 264.º, n.ºs 1 e 2, do CPP.

Em consequência, seria também competente para a realização dos actos jurisdicionais no decurso do Inquérito o JIC com jurisdição territorial na Comarca de Vila Real (arts. 17.º e 19.º, n.º 1, do mesmo Código), o qual, aliás, teve intervenção inicial nos autos relativamente á sujeição dos mesmos a segredo de justiça, conforme despacho de 06-02-2015 (acima mencionado).

Tal como refere o Exm.º Magistrado do Ministério Público na sua resposta ao recurso, o Estatuto do Ministério Público (EMP) permite, mediante determinação do Procurador-Geral Regional, que os Departamentos de Investigação e Acção Penal (DIAP) Regionais dirijam o inquérito e exerçam a acção penal quando, relativamente a crimes de manifesta gravidade, a complexidade ou dispersão territorial da actividade criminosa justificarem a direcção centrada da investigação, conforme estabelecem os artigos 73.º, n.º 1, alínea c), do EMP então em vigor (Lei n.º 47/86, de 15-10)[5] e 71.º, n.º 1, alínea b), do actual EMP (Lei n.º 68/2019, de 27-08).[6]

Os DIAP Regionais foram criados especialmente para dar resposta à gravidade e dispersão territorial dos fenómenos criminais, além da investigação dos designados crimes de catálogo, nos termos nos artigos 58.º, n.º 1, e 71.º, n.º 1, alíneas a) e b), do EMP.

É no EMP que se encontra o principal referencial normativo da organização interna do Ministério Público, sendo que, como afirma Paulo Dá Mesquita, igualmente citado na resposta ao recurso, “O diploma actualmente designado como estatuto do Ministério Público é simultaneamente um estatuto e uma lei orgânica, sendo esta última vertente completada pela lei de organização e funcionamento dos tribunais judiciais e respectivo regulamento” (in Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, Coimbra Editora, 2003, pág. 213).

A Procuradoria-Geral Regional do Porto abrange a área de “competência territorial dos Tribunais da Relação do Porto e de Guimarães” (arts. 65.º, n.º 1, e 68.º, n.º 1, do EMP e respectivo Anexo I).

E, como é sabido, a Comarca de Vila Real, nela incluído o concelho de Chaves, faz parte do Tribunal da Relação de Guimarães (Mapas II e III anexos ao Reg. da LOSJ – Lei n.º 49/2014, de 27-03).

Já o JIC do Porto tem como área de competência territorial os municípios de Gondomar, Valongo, Vila Nova de Gaia e Porto (Mapas III anexo ao mesmo Reg. da LOSJ – Lei n.º 49/2014, de 27-03).

Assim, não há dúvida quanto à legalidade da “avocação” do processo pelo Exm.º Procurador-Geral Regional do Porto e da sua investigação pelo respectivo Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) Regional.

São questões de eficiência e eficácia na investigação, especialmente resultantes da especialização, que justificam, em certos casos, a direcção centralizada da investigação por parte do Ministério Público.

Questão diferente é se tal circunstância (passagem do processo dos Serviços do Ministério Público de Vila Real para os do Porto) mexe com a competência territorial do JIC, a qual tem por critério primeiro de determinação o locus delicti. E a este respeito afigura-se-nos que a resposta tem de ser negativa.

Com efeito, sendo manifesto que o JIC do Porto não tem jurisdição no local em que os factos terão ocorrido (Chaves/Vila Real), não é essa mudança da autoridade judiciária responsável pela investigação (MP) que pode levar ao desaforamento do processo do Juízo territorialmente competente, com violação do princípio do juiz natural (arts. 38.º e 39.º da LOSJ e 32.º, n.º 9, da CRP).

E importa referir que não se verifica o circunstancialismo mencionado no artigo 120.º, n.º 3, da LOSJ para o alargamento da área de competência do JIC do Porto, por forma a corresponder à da respectiva Relação, pois que, apesar de a investigação incidir, além do mais, sobre o crime referido n.º 1, alínea i), do mesmo preceito, o qual veio a ser imputado aos arguidos na acusação entretanto deduzida, com fixação do objecto do processo, da mesma resulta que os factos terão ocorrido na área geográfica da Comarca de Vila Real (concelho de Chaves), não constando que a actividade criminosa ocorreu “em comarcas diferentes dentro da área de competência do mesmo Tribunal da Relação.”

Trata-se de uma situação excepcional de atribuição de competência alargada ao JIC do Porto, por se encontrar instalado na sede deste Tribunal da Relação, a qual aqui não se verifica.

Nessa medida, a competência do DIAP Regional do Porto para a investigação no Inquérito não é, no caso presente, coincidente com a competência territorial do JIC do Porto para a prática dos actos jurisdicionais, muitos embora os Exm.ºs Juízes nunca tenham invocado a respectiva incompetência.

Os recorrentes não põem em causa no recurso a competência do DIAP Regional do Porto para a investigação, mas somente a do JIC do Porto para os actos jurisdicionais a praticar no decurso do Inquérito, especialmente para apreciar e decidir o requerimento que dirigiram aos autos, em 21-04-2025, a solicitar a concessão de prazo não inferior a 8 meses para requerem a abertura da instrução (al. a)).

A jurisprudência, designadamente deste Tribunal da Relação, tem vindo a pronunciar-se sobre situações idênticas à dos presentes autos, considerando que, apesar de a competência territorial poder alterar-se até à dedução da acusação, em função da factualidade que se for indiciariamente apurando no Inquérito (arts. 264.º, n.ºs 1 e 2, e 266.º, n.º 1, do CPP), a mesma não varia em função das ocorrência ao nível da direcção e tramitação do inquérito, designadamente pela sua transmissão para outros Serviços do Ministério Público por conveniências investigatórias, pois que estas não se sobrepõem às regras de fixação da competência legalmente fixadas (cfr. os Acórdãos desta Relação de 15-11-2023 – Proc. n.º 626/23.4T9VFR-A.P1, e de 26-03-2025 – Proc. n.º 110/18.8T9TMC-AJ.P1, bem como da Relação de Évora de 10-03-2020 – Proc. 63/16.7GECUB-Q.P1, todos acessíveis em www.dgsi.pt).

Poderá dizer-se que a competência territorial está “em aberto” enquanto decorre a investigação, pois que os inquéritos são, muitas vezes, procedimentos complexos, com evolução de modo incerto, incluindo quanto aos factos determinadores da competência territorial, podendo levar a que, no seu decurso, haja necessidade de remeter os autos a outro magistrado (n.º 1 do art. 266.º), com a consequente alteração também da competência para os actos jurisdicionais (arts. 17.º e 19.º, ambos do CPP).

Por isso, o JIC competente para a prática dos actos jurisdicionais do Inquérito poderá não ser o competente para a realização da Instrução, na medida em que nesta altura já estará definido o objecto do processo, seja através da acusação, seja através do requerimento de instrução do assistente, com a dedução de “acusação alternativa” (arts. 283.º, n.º 3, al. b), e 287.º, n.º 2, do CPP).

Tal como se decidiu no Acórdão STJ n.º 2/2017, de 01-02-2017,[7] o qual fixou jurisprudência, “Competindo ao Tribunal Central de Instrução Criminal proceder a actos jurisdicionais no inquérito instaurado no Departamento Central de Investigação Criminal para investigação de crimes elencados no artigo 47.º, n.º 1, da Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro (Estatuto do Ministério Público), por força do artigo 80.º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, essa competência não se mantem para proceder à fase de instrução no caso de, na acusação ali deduzida ou no requerimento de abertura de instrução, não serem imputados ao arguido qualquer um daqueles crimes ou não se verificar qualquer dispersão territorial da actividade criminosa.”

E a fundamentação aí vertida é clara a esse respeito, designadamente quando se escreveu o seguinte:

No que concerne, importa referir que, durante a fase de inquérito e nos termos do art. 264.º do CPP, só está definida a competência territorial do MP. Isto sendo, naturalmente, possível a transmissão dos autos para outro MP (com consequente alteração da competência territorial do MP) nos termos do art. 266.º do CPP. A competência do juiz, na fase de inquérito, para a prática de actos jurisdicionais apenas está definida em termos de reserva de jurisdição (art. 17.º, 268.º e 269.º do CPP).

Quem tem o domínio da acção penal, na fase de inquérito, é o MP, sendo que a competência territorial do Ministério Público se pode ir modificando consoante os resultados da investigação. A investigação é dinâmica e os factos vão apresentando contornos diversos, podendo estes implicar alteração do MP competente e, consequentemente, alteração do JIC competente para a prática de actos jurisdicionais.

Cabe ao MP apresentar o processo ao Juiz para a prática dos actos jurisdicionais e é nesse momento - isto é, quando é chamado a intervir para a prática de tal acto jurisdicional - que importa ao Juiz verificar se é competente para o efeito. Durante a fase de inquérito, entendemos, pois, que não se fixa a competência do Tribunal. Com o que não tem aqui aplicação o art. 38.º da LOSJ (Lei n.º 62/2013, de 26-08) em virtude de o objecto do processo ainda se encontrar em formação.

Quando o Juiz é chamado a praticar actos jurisdicionais, na fase de inquérito (da qual não tem o dominium), o mesmo aprecia a sua competência para a prática daquele acto naquele momento (momento processualmente relevante). Trata-se, pois, de uma competência em aberto.

Assim sendo, o Juiz, durante a fase de inquérito e quando é chamado a intervir para a prática de actos jurisdicionais, avalia a sua competência em razão da matéria e verifica se tem competência para intervir naquele acto. Tal competência é aferida em relação àquele momento concreto e não em relação a qualquer outro.

Quando o objecto do processo se fixa - com a acusação ou requerimento de abertura de instrução - é que o Tribunal (Juiz) está em condições de aferir a sua competência e, a partir de então, a mesma fixa-se para futuro - art. 38.º da LOSJ.” (pág. 1456 do DR, 1.ª Série, N.º 55, de 17-03-2017).

Mas no caso presente a questão não se coloca em termos de competência para a realização da instrução, pois que os autos, ao contrário do referido pelos recorrentes, ainda não estão nessa fase, permanecendo como Inquérito, pese embora já tenha sido deduzida acusação em 09-04-2025 (ref.ª 414351776).

Na verdade, somente com a admissão do(s) requerimento(s) de abertura da instrução, por parte do JIC, se vier a ser requerida, é que se pode considerar aberta a fase da instrução, tanto mais que até ser proferido tal despacho poderá ainda o requerente desistir da instrução, tal como vem sendo entendido, ao que julgamos, pela maioria da jurisprudência, podendo ver-se entre outros, os Acórdãos desta Relação de 09-02-2022, proferido no Processo n.º 9276/19.9T9PRT.P1; de 18-09-2024, proferido no Processo n.º 2417/19.8T9VFR.P1 (ambos relatados pelo agora também Relator, acessíveis em www.dgsi.pt, o segundo ainda na CJ Ano XLIX, Tomo IV/2024, págs. 205 a 209), e de 16-02-2022 (Relator Des. Pedro Lima, acessível na CJ Ano XLVII, Tomo I/2022, págs. 211 a 214).[8]

Não pode dizer-se, como fazem os recorrentes, que o presente processo “está na antecâmara da fase eventual da instrução ou da fase do julgamento” (pág. 3 da motivação), pois que tais antecâmaras não existem, mas somente fases processuais. Nesse enquadramento poderia também dizer-se que o processo está na pós-câmara do Inquérito.

A dedução da acusação encerrou a investigação, mas não pôs termo ao Inquérito enquanto fase processual, uma vez que, depois dela, importa, além do mais, efectuar as notificações legais, designadamente aos arguidos (e seus Defensores), somente prosseguindo os autos quando os procedimentos a tal destinados se tenham concluído ou revelado ineficazes (art. 283.º, n.ºs 5 e 6, do CPP), tudo isso decorrendo (ainda), como é evidente, com a intervenção do Ministério Público.

E cumpridos esses procedimentos impõe-se aguardar pelo decurso do prazo para os arguidos eventualmente requererem a abertura da instrução, o qual foi prorrogado pelo prazo de 60 dias pelo despacho de 30-04-2025 (al. c)), sendo que até lá os autos permanecerão no DIAP Regional do Porto. Só depois disso é que serão remetidos, em definitivo, para o Juízo competente, seja ele o de Instrução Criminal, no caso de esta ser efectivamente requerida, ou o de Julgamento.

Independentemente disso, a verdade é que o JIC do Porto – Juiz 3, não é, pelo que já se disse, o territorialmente competente para apreciar o requerimento apresentado aos autos em 21-04-2025 (al. a)), pois que, apesar de deduzida acusação, o teor da mesma em nada alterou os critérios legais determinadores da competência territorial do JIC para a prática dos actos jurisdicionais no Inquérito, que aquando da denúncia foi aventado (Chaves/Vila Real), pertencendo a mesma ao JIC com competência na área da Comarca de Vila Real (arts. 17.º e 19.º do CPP e 119.º da LOSJ e Mapa III anexo ao RLOSJ – Lei n.º 49/2014, de 27-03).

Na verdade, com o decorrer da investigação nada se apurou - nem é alegado que se tenha apurado, designadamente na resposta ao recurso - que levasse a alterar o inicial critério definidor da competência territorial – o aludido locus delicti -, pelo que o JIC da Comarca de Vila Real manteve competência territorial para os actos jurisdicionais do Inquérito.[9]

As regras da competência dos Tribunais são impostas por princípios de interesse público, pois que determinam ex ante o Tribunal que há-se intervir no processo, qualquer que seja a fase do mesmo, no respeito do princípio do juiz natural, consagrado no n.º 9 do artigo 32.º da CRP, sendo contra lei o seu desaforamento (art. 39.º da LOSJ).

Contudo, ao contrário do sugerido pelos recorrentes, a nulidade insanável, por violação das regras de competência do Tribunal, cominada pelo invocado artigo 119.º, alínea e), do CPP reporta-se ao conhecimento da competência a todo o tempo (com o limite do trânsito em julgado), mesmo oficiosamente, sendo que a mesma comporta uma excepção: “sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 32.º”, ou seja, a incompetência territorial, que é a aqui em causa.

A declaração da incompetência não tem como consequência imediata e necessária a nulidade dos actos levados a cabo pelo Juiz incompetente, pois que a mesma somente tem como efeito a remessa do processo para o Tribunal competente, sendo o Tribunal que receber os autos, por lhe ser reconhecida a competência, que poderá anular “os actos que não teria praticado se perante ele tivesse corrido o processo e ordena a repetição dos actos necessários para conhecer da causa”, sendo que as eventuais medidas de coacção ou de garantia patrimonial que tenham sido aplicadas “conservam eficácia mesmo após a declaração de incompetência”, ainda que devam, no mais breve prazo, “ser convalidadas ou infirmadas pelo tribunal competente” (art. 33.º, n.ºs 1 e 3, do CPP).

Tal como refere Paulo Pinto de Albuquerque, a anulação dos actos praticados pelo tribunal incompetente está submetida a um critério de justiça material consentâneo com os princípios da economia processual (cfr. Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª Edição, UCE, pág. 115).

Trata-se da consagração, como regra, do princípio do aproveitamento dos actos processuais. Ademais, nem sequer está aqui em causa a incompetência material ou funcional do Tribunal, mas somente a que resulta da infracção das normas definidoras da competência territorial.

Assim, caberá ao Tribunal competente, aquando do recebimento do processo e da aceitação da competência, ponderar e decidir quais os actos que deve anular e convalidar de entre os levados a cabo pelo Tribunal incompetente no decurso do Inquérito.

Finalmente, uma nota quanto à “questão prejudicial” suscitada na resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público (págs. 3 a 7).

Além de a incompetência do Tribunal ser de conhecimento oficioso, no caso até aos momentos processuais mencionados no n.º 2 do artigo 32.º do CPP, o caso julgado formal incide somente sobre a relação processual, circunscrevendo a sua força obrigatória dentro do processo à concreta questão apreciada (art. 620.º, n.º 1, do CPC, ex vi art. 4.º do CPP).

Tal como se escreveu no Acórdão do STJ de 20-02-2010, o caso julgado formal respeita a “decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito”. O mesmo “constitui um efeito e vinculação intraprocessual e de preclusão, pressupondo a imutabilidade dos pressupostos em que assenta a relação processual.” (in www.dgsi.pt).

Contudo, como é bom de ver, a competência do Juiz é um pressuposto prévio para proferir decisões no processo, desde logo quanto à relação processual. Daí que a incompetência do Tribunal possa ser conhecida e declarada até ao trânsito em julgado da decisão final, com a ressalva da incompetência territorial, que tem menor amplitude temporal para esse efeito, tal como estabelece o aludido artigo 32.º do CPP.

Por outro lado, ao contrário do que parece resultar da mesma resposta, não podem ser quaisquer benefícios para a investigação, nomeadamente os resultantes da proximidade geográfica, que poderão levar à atribuição da competência territorial ao JIC do Porto relativamente a factos ocorridos na Comarca de Vila Real, não nos parecendo que tal possa ser suportado na conjugação das normas indicadas do EMP e da LOSJ, pois que não vislumbramos que a sua interpretação possa sustentar esse entendimento à luz dos critérios enunciados no artigo 9.º do Código Civil.[10]

Deste modo, reconhecendo-se a incompetência do JIC do Porto para praticar actos jurisdicionais no decurso do Inquérito, especialmente para apreciar e decidir o requerimento que os recorrentes dirigiram aos autos em 21-04-2025, a solicitar a concessão de prazo não inferior a 8 meses para requerem a abertura da instrução (al. a)), deverão os autos ser presentes, com abertura de conclusão, ao JIC com competência na área do Município de Chaves, Comarca de Vila Real, nos termos e para os efeitos do artigo 33.º, n.ºs 1 e 3, do CPP.

Assim, procede nessa medida o recurso interposto.

III

Pelo exposto, decide-se julgar procedente o recurso interposto pelos arguidos AA e A..., Ld.ª, revogando-se o despacho recorrido e declarando-se territorialmente incompetente o JIC do Porto – Juiz 3 para os actos jurisdicionais do Inquérito e competente o JIC com competência territorial na área do Município de Chaves, Comarca de Vila Real, devendo os autos ser presentes a este último, com abertura de conclusão, nos termos e para os efeitos do artigo 33.º, n.ºs 1 e 3, do CPP.

Sem custas (arts. 513.º, n.º 1, do CPP, à contrário).


*

Notifique.

*
Porto, 19-11-2025.
Raúl Cordeiro
José Castro
Maria dos Prazeres Silva
________________
[1] Lei n.º 62/2013, de 26-08, com as posteriores alterações, a última delas pela Lei n.º 57/2025, de 24-07.
[2] Veja-se o artigo 37.º, n.1, da referida LOSJ, sendo que o critério do “valor” não se aplica aos Tribunais Criminais, tal resulta do artigo 41.º da mesma Lei.
[3] Já a incompetência de outra natureza pode ser conhecida e declarada até “ao trânsito em julgado da decisão final” (n.º 1 do mesmo art. 32.º do CPP).
[4] “Das Fases Preliminares” é o título do Livro VI.
[5] Com as alterações posteriores, incluindo pela Lei n.º 9/2011, de 12-04, versão em vigor à data da instauração do Inquérito).
[6] Com as alterações introduzidas pelas Leis n.ºs 2/2020, de 31-03, e 57/2025, e 24-07 (tendo a referida Lei n.º 68/2019 revogado, pelo seu art. 286.º, a dita Lei n.º 47/86).
[7] O mesmo foi publicado no DR, 1.ª Série, N.º 54, de 16-03-2017, mas veio a ser republicado integralmente, devido às inexactidões que apresentava, pela Declaração de Rectificação n.º 8/2017, no DR, 1.ª Série, N.º 55, de 17-03-2017.
[8] No sentido de que o arguido pode desistir da instrução a todo o tempo (naturalmente até à decisão instrutória), decidiu-se no Acórdão deste mesmo Tribunal da Relação de 06-07-2022, proferido no Proc. n.º 234/19.4PAVLG.P1 (Rel. Des. Amélia Catarino), acessível em www.dgsi.pt.
[9] A própria acusação indica como Tribunal de julgamento o Juízo Central Criminal de Vila Real (ref.ª 414351776 - pág. 21), em face do disposto no artigo 19.º, n.º 1, do CPP.
[10] Contudo, admitimos que em termos de lege ferenda fosse conveniente estender a competência territorial do JIC do Porto, para actos jurisdicionais, aos Inquéritos que, nos termos da lei, podem correr termos no DIAP Regional do Porto.