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EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RECUSA DA EXONERAÇÃO
Sumário
No âmbito de um incidente de exoneração do passivo restante, a falta injustificada e reiterada de entrega ao fiduciário de um rendimento de €1.503,89, próximo de 1/3 do total de €4.246,69 que os credores da insolvência deveriam ter recuperado durante o período de cessão, é facto que necessariamente prejudica a satisfação dos créditos da insolvência, sendo apto a motivar a recusa da exoneração.
Texto Integral
Processo: 1651/20.2T8VNG.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
Sumário:
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Nos presentes autos de insolvência de pessoa singular, por sentença de 11-03-2020 foi declarado insolvente o apresentante AA, com os sinais dos autos, que formulou no seu requerimento inicial pedido de exoneração do passivo restante.
Por despacho de 13.07.2020 foi admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, tendo sido fixado ao insolvente como rendimento indisponível o valor de 1 SMN, multiplicado por 12 meses, sendo o restante o rendimento disponível para cessão.
Em 20.09.2023 o Sr. Fiduciário apresentou o 3º e ultimo relatório dizendo que o insolvente tinha a ceder no 1º ano 2.145,85€, no 2º ano 1.190,72€ e no 3º ano 910,12€, tudo no total de 4.246,69€, tendo o Insolvente transferido até ao final de agosto a quantia de €1.532,68.
O devedor não veio requerer a prorrogação do período da cessão dentro do prazo previsto no artº 242º-A do CIRE.
Por despacho de 27.10.2024 foi notificado para regularizar a sua situação, no prazo de 20 dias, sob pena de recusa da exoneração do passivo restante.
Em 30.11.2023 o insolvente veio entregar a quantia de €910,12.
Em 13.12.2023 o fiduciário veio informar que o Insolvente transferiu até ao momento a quantia de € 2.742,80, pelo que, encontra-se em falta €1.503,89.
Em 24.01., 16.04. e 27.05.2024 o fiduciário informou que a quantia de €1.505,89 ainda se mantém em falta, pelo que, por despachos de 12.02., 29.04. e 27.06., foi ordenada a notificação do insolvente para proceder à entrega sob pena de recusa da exoneração.
Em 14.10.2024 o insolvente veio dizer que não consegue pagar a quanto ainda em divida de uma vez só, pelo que requereu lhe seja deferido pagar a mesma em 10 prestações mensais e sucessivas.
Por despacho de 13.11.2024 o tribunal indeferiu o pagamento em prestações e ordenou a notificação do insolvente para se pronunciar, nada tendo este vindo dizer.
Em 2/12/2024, após notificação ao insolvente para se pronunciar, foi proferida decisão de recusa do pedido de exoneração do passivo restante.
Inconformado, o insolvente interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
1º - O Douto Despacho não faz a correta aplicação do direito aos factos.
2º - A verificação da violação da condição prevista no artº 239º, nº 4, al. a), do CIRE - entrega ao fiduciário a parte dos rendimentos objecto de cessão - só por si não conduz ao preenchimento do requisito constante do nº 1, a), do art.º 243º do mesmo Código, sendo exigido que o devedor tenha atuado com dolo ou negligência grave e por esse facto tenha prejudicado a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
3º - Por despacho inicial datado de 17.07.2020, foi proferido Despacho inicial de exoneração do passivo restante.
4º - Sucede que o recorrente atravessou uma fase complicada em termos financeiros.
5º - É neste contexto que tem de se encarar o comportamento do insolvente, que apesar de tudo quis cumprir e pagou grande parte do valor à Fidúcia.
6º - Solicitou o pagamento do restante valor em prestações o que não foi aceite.
7º - As causas que fundamentam a cessão antecipada do procedimento de exoneração, por dever ser recusada a exoneração, vêm estatuídas nas alíneas do nº 1 do art. 243º.
8º - Ao caso importa considerar a alínea a), a qual se refere a comportamentos do devedor, ocorridos no período de cessão, que envolvem violação culposa ou com grave negligência das obrigações que lhe são impostas pelas alíneas do nº 4 do art. 239º, desde que daí resulte prejuízo para a realização dos créditos sobre a insolvência.
9º - No caso em apreço a cessação antecipada do procedimento de exoneração foi declarada com fundamento na violação pela insolvente da obrigação que sobre o mesmo impendia e contida no art. 239º, nº 4, alínea a), do CIRE, ou seja, «não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;»
10º - Escreveu-se na decisão recorrida: «Analisada a factualidade dada como provada, ao insolvente foram dadas várias oportunidades para entrega da quantia a ceder e em falta, acabando por reconhecer que não consegue cumprir. Recorde-se que a eventual entrega de montantes disponíveis serviria para dar satisfação, ainda que parcial, aos direitos dos credores do insolvente, os quais, nesta medida, por força dessa falha, ficam prejudicados.»
11º - É certo que o insolvente está em incumprimento.
12º - Todavia, entendemos, salvo melhor opinião que tal incumprimento não foi o verdadeiro fim da conduta do insolvente - e, portanto, que o dolo não é directo - tem-se por certo, a presença, no caso de um dolo eventual: o não cumprimento surge como uma aceitação do risco.
13º - Ora, a verificação da violação dessa obrigação, só por si não conduz ao preenchimento do requisito constante da alínea a) do nº 1 do art. 243º, pois é exigido que o devedor tenha atuado com dolo ou negligência grave e por esse facto tenha prejudicado a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
14º - Escreveu-se a este propósito no acórdão da Relação de Coimbra de 03.06.2014 «A violação, com dolo, da obrigação que vincula o insolvente há-de provocar um resultado: a afectação relevante da satisfação dos créditos da insolvência. Não é suficiente um qualquer prejuízo, como sucede, por exemplo, para a cessação antecipada do procedimento de exoneração: deve tratar-se de um prejuízo relevante (artº se 243 b) e 246 nº 1, in fine, do CIRE) . Realmente, ao passo que para a cessação antecipada do procedimento de exoneração se reclama que da violação dolosa ou negligente de qualquer obrigação do insolvente resulte simplesmente um prejuízo para a satisfação dos créditos sobre aquele, para a revogação da exoneração a lei é, no tocante ao dano resultante da conduta dolosa do insolvente para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, nitidamente mais exigente: esse prejuízo deve ser relevante. A relevância desse prejuízo deve ser aferida, como regra, de harmonia com um critério quantitativo, portanto, em função do quantum do pagamento dos créditos sobre a insolvência. Mas a essa aferição não deve ser estranha a natureza do crédito e a qualidade do credor. Na verdade, na valoração da relevância do prejuízo, não há-de ser indiferente, a par do quantum da insatisfação dos credores da insolvência, o facto de o crédito insatisfeito ter, por exemplo, natureza laboral e por titular um trabalhador, ou de se tratar de uma entidade de reconhecida - ou presumida -solvabilidade económica, como, por exemplo, uma instituição bancária ou um segurador, em que os custos do incumprimento são uma variável tomada em linha de conta na estrutura dos preços oferecidos no mercado. A isto pode obtemperar-se que a avaliação da relevância do dano a partir do valor do rendimento disponível cedido e do seu cotejo com o valor dos créditos - e da qualidade destes e do respectivo credor - terá como consequência, sempre que o rendimento cedido seja diminuto, em termos absolutos, ou por comparação com o valor dos créditos sobre a insolvência, a atribuição à obrigação de entrega imediata do rendimento disponível ao fiduciário de uma natureza puramente semântica, já que a sua violação, por mais intenso que seja o dolo do devedor, nunca seria susceptível de fundamentar – por falta de preenchimento do requisito do prejuízo relevante – a revogação da exoneração. Dito por outras palavras: se o valor diminuto do rendimento objecto da obrigação de dare que vincula o exonerado impedir, em caso de violação da obrigação de entrega, a revogação da exoneração, o despacho inicial redunda, logo, de certo modo, verdadeira e materialmente, numa concessão dessa mesma exoneração.
Desde que, nesta hipótese, o insolvente sempre estará subtraído à revogação da exoneração – por ausência do preenchimento do requisito da relevância do dano - o cumprimento ou não cumprimento da obrigação de entrega do rendimento disponível será de todo indiferente; quer cumpra quer não – ainda que com dolo grave – sempre estará excluída a revogação da exoneração e a consequente reconstituição dos créditos extintos (art.º 246 nº 4 do CIRE). Mas isto só será assim, por regra, no tocante a actos de incumprimento esporádicos ou isolados, dado que, no caso de não cumprimento reiterado, sem a alegação de um motivo justificante, a acumulação do débito – dado o arco temporal de duração do período da cessão – acabará por redundar em dano relevante para os credores do insolvente, de todo incompatível com a cláusula de merecimento que se entende subjazer à concessão da exoneração.
Mas aquela consequência corresponde inteiramente à lógica da exigência da relevância do prejuízo e pode explicar-se por uma ideia ou princípio de proporcionalidade – que possui um claro fundamento constitucional e é, por isso, transversal a toda a ordem jurídica - e que encontra, mesmo no plano estrito do direito privado, inúmeras concretizações, de que são meros exemplos, entre muitos outros, a recusa ao credor do direito potestativo de resolução do contrato com base numa falta leve ou insignificante do devedor, o apelo ao abuso do direito, sempre que se verifique uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências nefastas para o respectivo sujeito passivo ou para terceiros, portanto, em que é patente um desequilíbrio no exercício de posições jurídicas ou o princípio da proporcionalidade da penhora (art.º 18 nº 2 da Constituição da República Portuguesa).
A gravidade das consequências para o devedor da revogação da exoneração – com a consequente vinculação à satisfação integral de todos os créditos sobre a insolvência, só detida pelo prazo ordinário da prescrição – impõem, por aplicação de um princípio de proporcionalidade ou razoabilidade, que aquela revogação só possa fundamentar-se numa conduta dolosa do devedor que seja causa de um dano relevante pata os seus credores, objectivamente imputável àquela conduta.
O pensamento da lei é, assim, em traços largos, este: o comprometimento da finalidade da exoneração do passivo restante – a concessão ao devedor insolvente de um fresh start, de uma nova oportunidade, a reabilitação económica do devedor e a sua reintegração plena na vida económica, liberto das grilhetas do passivo que sobre ele pesava - só deve ocorrer quando a violação das obrigações a que o insolvente está vinculado durante o período da cessão, cause aos credores um dano relevante, grave ou significante».
15º - É certo que o incumprimento da obrigação do insolvente não deixa de causar um prejuízo aos credores.
16º - Todavia, no presente processo o insolvente ainda entregou valores, não sendo este um processo onde os credores não receberam.
17º - Mas este dano, se tivermos em conta o valor do rendimento disponível e o valor global dos créditos sobre a insolvência, bem como a qualidade dos credores afectados -na sua maioria instituições de crédito, não pode ser qualificado de relevante.
18º - Entendemos que a decisão de cessação antecipada do procedimento de exoneração tem uma consequência demasiado gravosa para os insolventes, quando comparada com o prejuízo causado aos credores, considerando o princípio da proporcionalidade, constitucionalmente consagrado no artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
19º - O Douto Despacho recorrido, viola por errada interpretação a aplicação do disposto nos artigos 239º e 243 do CIRE e art.º 18º CRP.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações (artigos 635º, nº 3 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine). Face às conclusões do recorrente, a questão a solucionar é a de saber se existe ou não fundamento para recusar a exoneração do passivo restante ao insolvente.
Os factos e ocorrências processuais a considerar são os descritos no relatório supra, que se dá por reproduzido.
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A exoneração do passivo restante, cujo regime se encontra previsto nos arts. 235.º a 248.º-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), representa um relevante benefício concedido ao devedor pessoa singular declarado insolvente, por lhe permitir libertar-se das suas dívidas e reiniciarem uma actividade económica (o chamado fresh start), constituindo uma causa de extinção das obrigações diversa do cumprimento.
Na redacção actualmente em vigor, o art. 235.º dispõe que “se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições deste capítulo”. Por sua vez, o art. 239.º, sob a epígrafe “Cessão do rendimento disponível”, estatui: “1 - Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido o despacho inicial, na assembleia de apreciação do relatório, ou nos 10 dias subsequentes a esta ou ao decurso dos prazos previstos no n.º 4 do artigo 236.º. 2 - O despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado por período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte. 3 - Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz; b) Do que seja razoavelmente necessário para: i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional; iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor. 4 - Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a: a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado; b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto; c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão; d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego; e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores. 5 - A cessão prevista no n.º 2 prevalece sobre quaisquer acordos que excluam, condicionem ou por qualquer forma limitem a cessão de bens ou rendimentos do devedor. 6 - Sendo interposto recurso do despacho inicial, a realização do rateio final só determina o encerramento do processo depois de transitada em julgado a decisão”.
Para Catarina Serra (in O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, 4.ª Edição, p. 133) o regime da exoneração do passivo restante “implica fundamentalmente que, depois do processo de insolvência e durante algum tempo, os rendimentos do devedor sejam afectados à satisfação dos direitos de crédito remanescentes, produzindo-se, no final, a extinção dos créditos que não tenha sido possível cumprir por essa via, durante tal período. A intenção da lei é a de libertar o devedor das suas obrigações, realizar uma espécie de azzeramento da sua posição passiva, para que, depois de “aprendida a lição” ele possa retomar a sua vida e, se for caso disso, o exercício da sua actividade económica ou empresarial”.
A prolação do despacho liminar de admissibilidade do incidente de exoneração do passivo restante não assegura a definitiva concessão da pretendida exoneração. Representa apenas a concessão de um período temporal durante o qual o devedor fica sujeito a uma espécie de regime de prova de ser merecedor de pretendido benefício, assente no cumprimento de múltiplas obrigações. De tal sorte que, mesmo antes de terminado o período da cessão, a exoneração deve ser recusada a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência ou do fiduciário, nas situações previstas no art. 243.º, n.º 1, designadamente quando: “a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência; b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente; c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência”. Acrescentando-se no n.º 3 do cit. art. 243.º que “Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las”.
A exoneração é recusada a final pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo 243.º (n.º 2 do art. 244.º). De onde resulta que, caso tenha sido requerida a cessação antecipada, mas não tendo ainda sido proferida decisão até final do período de cessão, como é o caso dos autos, “ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, deve o juiz decidir, nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a respectiva prorrogação, nos termos previstos no artigo 242.º-A, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor” (art. 244.º, n.º 1).
Assim, a decisão de recusa da exoneração do passivo restante, à luz das disposições conjugadas dos artigos citados, pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: a) violação das obrigações impostas ao insolvente como corolário da admissão liminar do pedido de exoneração; b) que essa violação decorra de uma actuação dolosa ou com grave negligência; c) verificação de prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência; d) e existência de nexo de causalidade entre a conduta e o prejuízo.
Afigura-se pacífico o entendimento de que impende sobre o credor do insolvente ou sobre o fiduciário, sem prejuízo do dever de investigação oficiosa do tribunal, o ónus de alegação e prova dos factos de que depende a recusa de exoneração do passivo restante, por assumirem natureza impeditiva do direito (art. 342.º, n.º 2, do Código Civil). No entanto, atenta a especial dificuldade, tanto para os credores como para o fiduciário, em fazer prova dos pressupostos que vão além do mero incumprimento objectivo da obrigação, o legislador estabeleceu a regra constante do n.º 3 do art. 243.º do CIRE: baseando-se o requerimento de recusa da exoneração nas als. a) e b) do n.º 1 do mesmo artigo, a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las..
No caso vertente, o período de cessão teve início em 13/07/2020, data em que foi proferido o despacho de admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante. De acordo com a lei vigente à data em que foi proferido o dito despacho liminar, o período de cessão terminaria no dia 13/07/2025. No entanto, por força da entrada em vigor das alterações introduzidas pela Lei n.º 9/2022, o período da cessão foi encurtado para três anos, sendo tal alteração imediatamente aplicável aos processos pendentes. Por onde que, nos termos do n.º 3, do artigo 10.º e do artigo 12.º da aludida lei, se considera findo o referido período de cessão em 13/07/2023. Durante o período da cessão, o recorrente estava obrigado a cumprir as obrigações elencadas no n.º 4 do art.º 239.º do CIRE, designadamente a prevista na sua al. c), de entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão. Da qual, durante o período de cessão se limitou a entregar € 2.742,80, ficando em falta o montante de €1.503,89 do total de €4.246,69 a seu cargo.
Pretende o recorrente que não pode ser-lhe retirado o benefício, uma vez que apesar de tudo quis cumprir e pagou grande parte do valor à Fidúcia. Ora, não é suficiente: nas obrigações civis a intenção de cumprir; a existir e demonstrar-se, não equivale ao efectivo cumprimento. Por outro lado, o trânsito do despacho que rejeitou o pagamento do restante valor em prestações nos termos pedidos pelo recorrente, goza da autoridade de caso julgado, não sendo agora possível questionar a bondade dos seus fundamentos.
No tocante à modalidade de culpa exigida para a cessação antecipada do procedimento de exoneração ou para a sua recusa, há que notar o nº 1 do art. 243º do CIRE não exige o dolo, bastando a negligência grave da violação alguma das obrigações impostas pelo artigo 239.º. A “culpa grave”, na acepção da doutrina, consiste em não fazer o que faz a generalidade das pessoas, em não observar os cuidados que todos em princípio observam – cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1973, pg. 453. Ou, noutra definição, consiste numa negligência grosseira em que só cai um homem excepcionalmente descuidado, distinta da culpa leve (negligência em que não cairia um homem mediano) ou da culpa levíssima (aquela em que só não cairia um homem excepcionalmente diligente) – cf. Pires de Lima e Antunes Varela, CCAnotado, artº 494º, e Pessoa Jorge, Dtº das Obrigações, 75/76, pgs. 572 e 573. Ora, vindo provado que em 12/02, 29/04, e 27/06/2024 o recorrente foi notificado para proceder à entrega dos montantes em falta, sob pena de recusa da exoneração, e não o fez, tendo em 13/11/2024 visto indeferido o respectivo pagamento em prestações e, novamente notificado do indeferimento e para efectuar o pagamento em falta, o recorrente nada veio dizer, é de concluir que, mesmo a admitir-se que se o recorrente quis efectivamente cumprir as suas obrigações fixadas no despacho de admissão liminar da exoneração do passivo restante, sempre revelou com as mesmas um descuido em que só caem pessoas excepcionalmente descuidadas, e em que não cairia um homem mediano. A menos que tal o impedisse de satisfazer necessidades básicas de sobrevivência, o que não se presume e teria de ser alegado e demonstrado.
No tocante ao relevo do prejuízo causado aos credores, que o recorrente põe igualmente em crise, não é passível de ser desconsiderado, tratando-se de prejuízo efectivo e relevante. Além de ascender a valor próximo de 1/3 do total de €4.246,69 que os credores da insolvência deveriam ter recuperado, esse valor já de per si os deixaria com prejuízos traduzidos nos créditos insatisfeitos. Nada na lei permitindo concluir, como faz o recorrente, que o prejuízo dos credores só pode considerar-se relevante quando praticamente iguale o máximo do seu valor potencial.
Assim, o devedor recorrente reiteradamente incumpriu, sem justificação válida, o cumprimento do dever de entrega dos seus rendimentos. E em face do estatuído nos arts. 239.º, n.º 4, al. c), e 243.º, n.ºs 1, a) e 3, do CIRE, impõe-se concluir que o comportamento objectivo assumido pelo devedor integra a verificação dos pressupostos da recusa da exoneração do passivo restante, pelo menos a título de negligência grave.
Impõe-se assim concluir pela improcedência do recurso, com a consequente manutenção da decisão recorrida.
Decisão.
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, em função do que confirmam a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
Porto, 26/11/2025
João Proença
Raquel Correia de Lima
Maria Eiró