Sumário elaborado pelo relator nos termos do art.º 663.º, n.º 7, do CPC
I.- Verifica-se a nulidade da sentença/acórdão prevista na al.º d), do n.º 1, do art.º 615.º, do C.P.C., quando o tribunal não se pronuncie sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
II- Apenas se verifica quando o tribunal deixe de conhecer “questões temáticas centrais” (isto é, atinentes ao thema decidendum, que é constituído pelo pedido ou pedidos, causa ou causas de pedir e exceções) suscitadas pelos litigantes, ou de que se deva conhecer oficiosamente, cuja resolução não esteja prejudicada pela solução dada a outras, questões (a resolver) que não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os invocados argumentos, motivos ou razões jurídicas, até porque, como é sabido, “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito
III.- Há violação do poder jurisdicional quando um juiz após a prolação do acórdão/sentença profere atos que a lei não permite (art.º 613.º do C.P.C.), o que se aplica às decisões arbitrais.
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I.- Relatório
Recorrente – A A. AA, S.A.
Recorrida – A R. - IMODALE – INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA,
*
1.1. - AA, S.A. (Autora), pessoa colectiva número .......09, com sede na Rua 1, ... Guimarães, propôs na Relação de Guimarães a presente acção de anulação de decisão arbitral (nos termos do disposto no artigo 46.º da Lei da Arbitragem Voluntária, aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro [doravante LAV]), contra IMODALE – INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA. (Ré), pessoa colectiva número ... ... .77, com sede na Localização 2, ... Guimarães, pedindo que seja anulada (parcialmente) a decisão proferida, no processo AH 02/2021, pelo tribunal arbitral que, por acordo entre as partes, foi constituído em 29.06.2021, com sede jurídica em Guimarães, mas que, nos termos do artigo 31.º da LAV funcionou nas instalações do Centro de Arbitragem do Instituto de Arbitragem Comercial da Associação Comercial do Porto.
Para tal, alegou, em síntese, que:
- as partes submeteram ao tribunal arbitral a resolução de um litígio que surgiu entre ambas quanto à existência, responsabilidade e quantificação de prejuízos decorrentes, para qualquer delas, da execução e da cessação da empreitada de construção do “Edifício ...”, na cidade de Guimarães, da qual a Autora foi “Empreiteira” e a Ré foi “Dona de Obra”;
- após instrução do processo e produção de prova em audiência, o tribunal arbitral proferiu decisão sobre o mérito da causa, através de acórdão, datado de 18-01-2024, subscrito por unanimidade pelos três árbitros, que foi notificado às partes nesse mesmo dia através de correio electrónico;
1.2. - A Ré, em 19-02-2024, apresentou um requerimento a peticionar aos árbitros do tribunal que se dignem:
(i) nos termos do disposto no artigo 42.º, n.º 1 do Regulamento de Arbitragem do Instituto de Arbitragem Comercial e 45.º, n.ºs 1 e 2 da Lei da Arbitragem
Voluntária, proceder à rectificação do Acórdão, esclarecendo as obscuridades e ambiguidades de que o mesmo enferma;
(ii) nos termos do n.º 2 do mencionado artigo 42.º e do n.º 5 do referido artigo 45, proferir sentença adicional sobre o supramencionado pedido que não foi objecto de decisão.
1.3. - após audição da parte contrária, o tribunal arbitral proferiu em 22-03-2024, com um voto de vencido, um “acórdão arbitral rectificativo” que foi notificado às partes por correio electrónico em 25-03-2024.
1.4.- Sucede que, segundo o entendimento jurídico da Autora:
1.º) o tribunal arbitral “no que concerne à correcção de defeitos (…) extravasou largamente o mero âmbito de uma retificação ou esclarecimento, tendo, após esgotado o poder jurisdicional, procedido a um novo julgamento sobre tal matéria”, o que, ainda por cima, aconteceu “em termos manifestamente não suportados pelo arrimo de factos, porquanto não se provou sequer a existência dos defeitos (alegadamente) reparados”.
2.º) por isso, o tribunal arbitral conheceu de questão de que não podia ter tomado conhecimento, o que, sob a égide do disposto no art. 46.º, n.º 3, a), v) da LAV, constitui fundamento para que o acórdão rectificativo seja parcialmente anulado, na parte em que modificou a decisão e o julgamento relativo à “correção de defeitos”, com a consequente repristinação, neste particular, da decisão inicial “nos seus precisos termos”;
3.º) o tribunal arbitral não fez a rectificação ou o esclarecimento dentro do prazo de 30 dias seguintes à recepção do requerimento da Ré, em contravenção com o disposto no n.º 3 do art.º 45.º da LAV, e também não prolongou o prazo para o efeito, nos termos do disposto no n.º 6 do art.º 45.º da LAV, o que constitui fundamento “para que, não só quanto à ‘correção de defeitos’, mas também quanto aos ‘encargos com fiscalização’ e ‘encargos bancários’ (enfim, quanto a tudo o que foi pedido sob ‘retificação’ e ‘esclarecimento’), seja anulado o acórdão retificativo por o Tribunal Arbitral, no dia 22 de março de 2024, ter conhecido de questão de que não podia tomar conhecimento (mantendo-se apenas quanto a este acórdão retificativo o que foi decidido sob ‘sentença adicional’, porquanto quanto a esta a LAV prevê um prazo de 60 dias, que foi cumprido, e valendo, quanto ao demais, o acórdão inicial de 18.1.2024)”;
Concluiu a Autora peticionando o seguinte:
«…Deve a presente ação ser julgada procedente, por provada e demonstrada e, em consequência, ser:
a).- anulada parcialmente a decisão arbitral, ou seja, ser anulado o acórdão retificativo de 22.3.2024, na parte em que atendeu ao que a Ré pediu, no seu requerimento de 19.2.2024, sob “DA RETIFICAÇÃO E ESCLARECIMENTO DE OBSCURIDADES OU AMBIGUIDADES” (quer quanto à “correção de defeitos” quer quanto aos “encargos com a fiscalização e encargos bancários”), valendo neste particular na Ordem Jurídica o acórdão inicial, de 18.1.2024;
Ou, subsidiariamente
b).- ser anulada parcialmente a decisão arbitral, ou seja, ser anulado o acórdão rectificativo de 22.3.2024, na parte em que atendeu ao que a Ré pediu, no seu requerimento de 19.2.2024, sob “DA RETIFICAÇÃO E ESCLARECIMENTO DE OBSCURIDADES OU AMBIGUIDADES” quanto à “correção de defeitos”, valendo neste particular na Ordem Jurídica o acórdão inicial, de 18.1.2024”.
1.5.- A Ré deduziu oposição, invocando a excepção da incompetência territorial e pugnando pela improcedência do pedido, mediante a argumentação, em resumo, de que:
1.º) o acórdão arbitral rectificativo incidiu exclusivamente sobre as obscuridades, ambivalências e inexactidões de que, designadamente quanto à extensão das anomalias já reparadas, o acórdão inicial padecia e que a ora Ré requereu que fossem esclarecidas, não tendo, por isso, sido conhecidas questões de que o tribunal arbitral não podia ter tomado conhecimento;
2.º) a par do pedido de rectificação e esclarecimento da obscuridade e ambiguidade da decisão, a IMODALE requereu ainda ao Tribunal Arbitral fosse proferida sentença adicional relativamente a uma questão jurídica cujo conhecimento havia sido omitido pelo Tribunal, pelo que, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 45.º da LAV, o tribunal arbitral dispunha de 60 dias para proferir a sentença adicional, prazo este que foi respeitado;
3.º) ainda que assim não fosse, sempre se devia considerar que o prazo de 30 dias para proferir decisão previsto no artigo 45.º, n.º 3, da LAV só se inicia a partir do momento em que o tribunal arbitral dispõe dos elementos necessários para o efeito, o que só acontece após o exercício do contraditório pela parte contrária, ou se ter exaurido o prazo para o exercício desse contraditório, pelo que, também por essa via, se teria que reconhecer que in casu não se verificou qualquer incumprimento do prazo legal;
4.º) com excepção do prazo estabelecido no artigo 43.º da LAV, que é peremptório, todos os outros prazos que a LAV prevê para os árbitros, à semelhança do que sucede no Processo Civil para os actos dos juízes, são meramente ordenadores ou procedimentais;
5.º) as consequências a extrair de um eventual incumprimento do prazo para a prolação da decisão rectificativa não seriam as propugnadas pela Autora, pois a ultrapassagem do prazo previsto no n.º 3 do artigo 45.º, para além de não se mostrar cominada na lei como nulidade, não tem qualquer influência no exame ou na decisão da causa, o que faz com que, face ao disposto no artigo 195.º, n.º 1 do Código do Processo Civil, não tenha sido produzida qualquer nulidade;
6.º) decorre do artigo 45.º, n.º 3, da LAV, que a decisão de esclarecimento ou rectificação de sentença anteriormente proferida passa a integrar esta, valendo como uma só, pelo que, caso se entendesse que o tribunal arbitral cometeu uma nulidade por excesso do prazo de que dispunha para proferir a decisão, pura e simplesmente não se manteria na ordem jurídica qualquer sentença arbitral, o que, por aplicação do disposto no artigo 43.º, n.º 3, da LAV, importaria, automaticamente, o termo do processo arbitral e a extinção da competência dos árbitros para julgarem o litígio que lhes foi submetido, com a consequente necessidade de as partes, querendo resolver o litígio, constituírem um novo tribunal arbitral e iniciarem nova arbitragem.
1.6.- Após a Autora ter respondido à excepção arguida na contestação, a Relação de Guimarães declarou-se territorialmente incompetente para conhecer a causa, ordenando a remessa dos autos para esta Relação, (Relação do Porto), sublinhado é nosso, que foi cumprido.
1.7.- Subsequentemente, considerando-se não haver prova a produzir e nada obstar ao conhecimento da causa, foram colhidos os vistos legais.
1.8.- Foi referido que a instância mantém-se válida e regular, não havendo excepções dilatórias, nulidades processuais ou questões prévias que obstem ao conhecimento da causa.
1.9 – Foram elencadas as questões apreciar, como sendo:
a) se, à luz do disposto no artigo 46.º, n.º 3, al. a), v, da LAV, existe fundamento para anular, ainda que parcialmente, a sentença final que foi proferida pelo tribunal arbitral;
b) se a sentença arbitral, ou parte dela, deve ser anulada por falta de cumprimento dos prazos de decisão previstos no artigo 45.º da LAV.
1.10.- Foi proferido o acórdão recorrido, que terminou com o seguinte dispositivo:
a) julgar improcedente o pedido de anulação da sentença arbitral;
b) condenar a Autora, AA, S.A., no pagamento das custas da acção;
c) fixar o valor da causa em €:226.481,34 (duzentos e vinte e seis mil, quatrocentos e oitenta e um euros e trinta e quatro cêntimos).
Notifique.”
1.11. – Inconformada com tal acórdão dele recorreu de revista a A. - AA, S.A – terminando a sua motivação com as conclusões que se transcrevem:
“1- A Recorrente dá por reproduzidos os factos dados como provados na decisão ora em crise, nos pontos 1) a 18). Com base nesse quadro factual, que teve origem naquilo que a Recorrente alegou na Petição Inicial motriz destes autos, foram nesse articulado invocados dois fundamentos com base nos quais se peticionou a anulação parcial do acórdão retificativo de 22.03.2024.
2- No Acórdão agora em crise, o Tribunal a quo julgou o pedido totalmente improcedente.
3- Contudo, a Recorrente não se conforma com os concretos fundamentos do Acórdão ora em crise e, por isso, interpôs o presente recurso.
4- A decisão do Acórdão recorrido assenta nas seguintes premissas ou fundamentos:
a) não existe qualquer fundamento para anular ex officio a sentença do Tribunal Arbitral;
b) a nulidade por excesso de pronúncia verifica-se quando o tribunal toma conhecimento e decide questões que não faziam parte do objecto do processo, o que não se verifica no caso em apreço;
c) saber se o Tribunal Arbitral extravasou os limites do pedido de esclarecimento, é uma questão de mérito da acção, cuja apreciação se encontra vedada numa acção de anulação de decisão arbitral, por parte do tribunal estadual.
5- O primeiro ponto que se considera essencial no presente recurso tem que ver com o facto, que na modesta opinião da Recorrente não foi devidamente sopesado pelo Tribunal a quo, de que com a prolação da sentença arbitral, “mais do que esgotado (extinto) o seu poder jurisdicional, é o próprio tribunal que está esgotado, com as ressalvas excecionalmente previstas no art. 45.º e no n.º 8 do artigo 46.º da LAV.”
6- Assim, depois de esgotado o poder jurisdicional do Tribunal a quo e, simultaneamente, depois de esgotado o próprio Tribunal Arbitral, só em circunstâncias muito excepcionais é que a sentença poderia ser alterada e, como tal, a admissibilidade de modificação da sentença arbitral, terá forçosamente de ser apreciada em termos ainda mais estritos do que no caso de uma sentença cível.
7- A excepção a este princípio é precisamente o pedido de rectificação e esclarecimento previsto no artigo 45º nº1 da LAV. previsão em tudo semelhante ao da rectificação dos erros materiais, prevista no artigo 614º do CPC.
8- Em ambos os casos, o que está em causa é a mera possibilidade de rectificação de simples erros. Como se julga pacífico na doutrina e jurisprudência, cinge-se ao lapso de escrita ou de cálculo, ou ao erro material cuja existência pressupõe uma divergência entre a vontade real do juiz e aquilo que escreveu na sentença (o juiz escreveu coisa diversa daquela que queria escrever) e que não se confunde com o erro de julgamento (que ocorre quando o juiz disse aquilo que pretendia, mas julgou ou decidiu mal).
9- Assim se entendendo e aplicando uniformemente pelos Tribunais superiores será que se pode considerar que nesta decisão, os Senhores Árbitros limitaram-se a corrigir uma mera divergência entre a sua vontade real e aquilo que haviam escrito na sentença primitiva?
10- A Recorrente considera absolutamente impossível uma resposta afirmativa a esta questão.
11- Neste sentido, desde logo o facto de a sentença originária ter sido proferida por unanimidade dos árbitros e, no caso da sentença rectificativa, na parte relativa à correção de defeitos, o mesmo foi objeto de declaração de voto de vencido por parte do Senhor Dr. BB. Considera-se que este detalhe não será irrelevante na medida em que não demonstra uma mera divergência entre a vontade real e a vontade declarada.
12- Depois, analisadas ambas as decisões, a primitiva e a rectificativa, considera-se inevitável concluir que a sentença rectificativa procede, de facto e de direito, a um novo (e diferente do inicial) julgamento de mérito sobre a matéria da correção de defeitos, e ainda para mais em termos manifestamente não suportados pelo arrimo de factos.
13- Se os danos (alegadamente) reparados, já haviam sido reparados antes, então cabia à Recorrida alegar que assim tinha sucedido, bem assim, comprovar os respetivos custos, o que não alegou nem comprovou, não cabendo ao Tribunal substituir-se-lhe nesta matéria.
14- E, por fim, ainda que não olhando com tanto detalhe material, é inequívoco, da análise dos pontos 9), 10) e 17) do acórdão ora recorrido, que o Tribunal Arbitral foi muito para além do âmbito da rectificação de um mero erro material, pois mais do que rectificar a admissível divergência entre a vontade real e a vontade declarada, houve antes uma nova apreciação do mérito da acção, que nem sequer em sede de reforma de sentença seria possível (se fosse admissível) mas só em sede de recurso.
15- E esta análise, o Tribunal a quo não a fez, por considerar que o seu conhecimento lhe estava vedado – mas, repete-se, esta análise tem de ser feita, independentemente do que depois disso vier a concluir-se.
16- Neste ponto, em que estamos perante um caso evidente de excesso do poder de rectificação da sentença, quid iuris? Para a Recorrente, há um caso de nulidade da sentença por excesso de pronúncia; já o Tribunal a quo assim não entende por considerar que tal nulidade apenas se verifica quando o tribunal toma conhecimento e decide questões que não faziam parte do objecto do processo, o que não se verifica no caso em apreço.
17- O dissenso aqui reside em saber o que é o objecto do processo.
18- Aceita-se, por corresponder à verdade, que as modificações introduzidas na sentença rectificativa, fazem realmente parte do objecto do processo desde o seu início.
Mas a discórdia por parte da Recorrente, reside no facto de o Tribunal a quo não ter atendido à fase do processo, elemento este que é essencial.
19- É que para a Recorrente, proferida a sentença “inicial”, ou “primitiva”, do objecto em discussão nos autos, nessa fase, apenas passam a fazer parte do objecto disponível dos autos, os erros de cálculo, os erros de escrita e os erros materiais, pois tudo o resto está definitivamente decidido.
20- Mas como a sentença adicional não rectificou nenhum desses erros, ainda que não tenha decidido sobre nenhuma questão absolutamente nova nos autos, era porém uma questão cujo conhecimento lhe estava vedado nessa fase processual, e por isso sim, conheceu de questão que naquela fase, não fazia parte do objecto disponível do processo.
21- Daí que se reafirme, de forma categórica, que a sentença adicional se pronunciou sobre questão cujo conhecimento lhe estava efectivamente vedado, ferindo assim a decisão de nulidade.
22- Nada que já não tenha assim sido decidido na jurisprudência, como no caso do Acórdão supra citado, Veja-se o caso do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02.06.2016, proc. 128/12.4TBVLN.G2, em que está em causa, precisamente, a apreciação de nova decisão, após a sentença e esgotado o poder jurisdicional do Tribunal a quo, se considerou que se tratava de questão de que não se podia tomar conhecimento, decidindo, por isso, “em excesso”, conduzindo à declaração de nulidade da referida decisão.
23- Assim, considera-se suficientemente demonstrado que o Tribunal a quo apreciou incorrectamente esta matéria, reafirmando-se por isso a invocação de nulidade da sentença arbitral adicional, por violação do artigo art. 46.º, n.º 3, a), v) da LAV.
24- Mas, não é apenas este o único entendimento sobre esta matéria. Recordemos que o Tribunal a quo começou por considerar que não existia qualquer fundamento para anular ex officio a sentença do Tribunal Arbitral.
25- Parte da decisão ora em crise, assenta na invocação por parte da Recorrente da prática de um acto processual que, materialmente, não é permitido por lei. Ou seja, a rectificação de sentença arbitral é permitida mas o que o Tribunal Arbitral acabou por fazer extravasou, em larga medida, esse âmbito, assim proferindo uma decisão não permitida pela lei.
26- O acórdão ora em crise assim não considerou, não porque tivesse apreciado a conformidade da sentença adicional à luz do artigo 45º nº1 da LAV, mas por considerar que essa era uma questão de mérito da acção, cuja apreciação se encontrava vedada na acção de anulação de decisão arbitral.
27- Para ilustrar o que se alegou, citou-se novamente o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24.09.2024, proc. nº 1441/24.3YRLSB-7, que tratava também de uma sentença proferida por tribunal arbitral, tendo sido requerida a modificação da mesma por via de reforma da sentença, a qual foi concedida pelo Tribunal Arbitral, decisão essa que o Tribunal da Relação julgou absolutamente nulo – e não por violação do artigo art. 46.º, n.º 3, a), v) da LAV
28- Na base de tal decisão está uma modificação da sentença arbitral por via de reforma da mesma. Nesse caso, o Tribunal da Relação começou por enunciar o carácter categórico da extinção do próprio Tribunal Arbitral com a prolação da decisão, excepcionando os casos previstos na lei.
29- E por isso, considerou também que aquela alteração à sentença em sede de reforma «é processualmente absolutamente nulo (ou inexistente). (…) Ora, o vício de nulidade absoluta sinalizado não se encontra, de modo patente, expressamente previsto na LAV (nem no Cód. Proc. Civil, diga-se). No entanto, a nulidade absoluta transcende a relatividade da anulação prevista no art. 46.º da LAV, assim como transcende a taxatividade das causas de nulidade (relativa) da sentença judicial (art. 615.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil
30- Claro que há uma questão que é legítima: o que é o caso citado tem que ver com o caso destes autos, se aqui está em causa um acto processual tipificado e ali um acto processual não previsto na LAV?
31- Pois bem, tudo tem que ver com o acto em si e com a apreciação do teor desse acto: se é verdade que a lei admite a rectificação da sentença nos casos especialmente previstos no artigo 45º nº1 da LAV, a verdade é que a sentença “adicional” ou “rectificativa” que foi proferida pelo Tribunal Arbitral exorbita de forma tão abusiva e evidente a admissível rectificação de sentença, que se transforma numa outra coisa qualquer, chame-se-lhe reforma ou recurso encapotado (mas sempre sem previsão legal), que chega a transcender a relatividade da anulação prevista no art. 46.º da LAV, assim como transcende a taxatividade das causas de nulidade (relativa) da sentença judicial (art. 615.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil.
32- Dito de outra forma, independentemente do nome que se lhe dê naquele e neste caso, em ambos, nos deparamos com uma flagrante violação da lei, sancionada com a nulidade absoluta.
33- E neste caso, a propósito da nulidade absoluta detectada considerou-se que
“O conhecimento deste vício, imposto por razões de ordem pública, não está sujeito às limitações previstas no art. 46.º da LAV (ou no art. 615.º do Cód. Proc. Civil), inscrevendo-se diretamente no poder da justiça estadual previsto nos arts. 286.º e 295.º do Cód. Civil de conhecer da total ineficácia e invalidade dos atos jurídicos objeto da demanda.”.
34- Por isso, no limite e a título subsidiário, impugna-se o Acórdão em crise na parte em que considerou que inexistia qualquer fundamento para anular oficiosamente aquela decisão, quando ao abrigo do disposto nos artigos 286º e 295º do Código Civil deveria ter sido conhecida oficiosamente a invocada nulidade absoluta.
35- Atento tudo quanto exposto, pretende a Recorrente que o presente recurso seja julgado totalmente procedente e, em consequência, seja anulado o Acórdão que julgou improcedente a acção de anulação de decisão arbitral, sendo substituído por um outro que julgue totalmente procedente a aludida acção, nos termos aí peticionados.
36- Nestes termos e nos mais de direito, requer-se a Vas.Exas. que se dignem conceder total provimento ao presente recurso, alterando a sentença ora em crise no sentido supra enunciado, só dessa forma fazendo a mais sã e elementar
JUSTIÇA”.
1.12. – Feitas as notificações a que alude o art.º 221.º, do C.P.C., respondeu a recorrida, não terminando a sua motivação referindo que:
“Assim, e uma vez que aquilo que a AAverdadeiramente pretende, como resulta claro das alegações de recurso que apresenta, é um verdadeiro reexame da prova produzida e um novo julgamento da causa no que respeita à matéria dos defeitos de obra, sempre terá de improceder a presente ação de anulação.
Nesta medida, andou bem o Tribunal Recorrido ao decidir que não lhe compete aferir do acerto jurídico da decisão que foi proferida pelo tribunal arbitral quanto ao pedido de aclaração ou esclarecimento que uma das partes lhe dirigiu nos termos do disposto no artigo 45.º, n.º 2 da LAV.
Inexistindo, portanto, fundamento para que se anule ex officio a sentença arbitral.
Em face do exposto, inexistem quaisquer razões para que o alegado pela AAproceda, devendo-se, outrossim, manter-se o entendimento do Tribunal Recorrido.
Termos em que deverá o recurso ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, fazendo deste modo V. Exas. A costumada,
JUSTIÇA!”
1.13. – Em 2/10/2025 foi proferido despacho a receber o recurso do seguinte teor:
“ Por colocar em causa decisão recorrível, ter sido atempadamente interposto por quem para tal tem legitimidade e estar devidamente motivado, admito o recurso interposto pela A., DIFFERENTODYSSEY, UNIPESSOAL, LDA., em 25/11/2024, em relação ao acórdão de 21/10/2024 (artigos 629.º, n.º 1, 630.º a contrario, 631.º, n.º 1, 637.º, 638.º, n.º 1, e 639.º, todos do Código de Processo Civil, todos ex vi artigo 59.º, n.º 8, da Lei da Arbitragem Voluntária).
Tal recurso é de revista, sobe nos próprios autos e tem efeito meramente devolutivo (artigos 671.º, nº 1, 674.º, n.º 1, al. a), 675.º, n.º 1, e 676.º, n.º 1 a contrario, todos do Código de Processo Civil, igualmente ex vi artigo 59.º, n.º 8, da Lei da Arbitragem Voluntária).
Notifique e remeta os autos ao Supremo Tribunal de Justiça.
Em 3/10/2025 veio a ser proferido despacho do seguinte teor:
“ Por manifesto lapso de processamento de texto, do qual nos penitenciamos, ficaram a constar no despacho de admissão de recurso proferido no dia de ontem indicações erradas quanto à identificação da sociedade recorrente e às datas da interposição do recurso e de prolação do acórdão recorrido.
Devido a isso, ao abrigo do disposto nos artigos 613.º, n.º 3, 614.º, n.º 1, e 666.º, n.º 1, do Código do Processo Civil, ora procedo à rectificação dos erros materiais referidos, determinando que, no despacho em causa:
- onde se lê “DIFFERENTODYSSEY, UNIPESSOAL, LDA.,” passe a ler-se “AA, S.A.”;
- onde se lê “25/11/2024,” passe a ler-se “30/06/2025”; e
- onde se lê “21/10/2024” passe a ler-se “26/05/2025”.
Para facilitar a apreensão da globalidade das rectificações, apresenta-se de seguida a versão consolidada do despacho rectificado:
“Por colocar em causa decisão recorrível, ter sido atempadamente interposto por quem para tal tem legitimidade e estar devidamente motivado, admito o recurso interposto por AA, S.A., em 30/06/2025, em relação ao acórdão de 26/05/2025 (artigos 629.º, n.º 1, 630.º ‘a contrario’, 631.º, n.º 1, 637.º, 638.º, n.º 1, e 639.º, todos do Código de Processo Civil, todos ‘ex vi’ artigo 59.º, n.º 8, da Lei da Arbitragem Voluntária).
Tal recurso é de revista, sobe nos próprios autos e tem efeito meramente devolutivo (artigos 671.º, nº 1, 674.º, n.º 1, al. a), 675.º, n.º 1, e 676.º, n.º 1 ‘a contrario’, todos do Código de Processo Civil, igualmente ‘ex vi’ artigo 59.º, n.º 8, da Lei da Arbitragem Voluntária).
Notifique e remeta os autos ao Supremo Tribunal de Justiça.».
1.14.- Colhidos os vistos cumpre decidir.
II
Delimitação do objecto do recurso
Nada obsta à apreciação da revista.
*
Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), as questões decidir consistem em saber:
a).- Se o acórdão recorrido é nulo por violação da al.ª d), do n.º 1, do art.º 615.º, do C.P.C.
b)- Se o acórdão recorrido deve ser anulado e substituído por um outro que julgue totalmente procedente a aludida acção, nos termos aí peticionados.
III
Fundamentação
1. Matéria de facto
Factos dados como provados.
1) A Autora (doravante ‘MCA’) foi “Empreiteira” e a Ré (doravante ‘IMODALE’) “Dona de Obra” no âmbito da empreitada de construção do “Edifício ...” na cidade de Guimarães.
2) Por força de acordo estabelecido entre as partes, em 29-06-2021 foi constituído tribunal arbitral para resolução do litígio que surgiu entre ambas quanto à existência, responsabilidade e quantificação de prejuízos decorrentes, para qualquer delas, da execução e da cessação da empreitada supra-mencionada.
3) O Tribunal Arbitral foi constituído pelo Dr. BB, Advogado (árbitro designado pela Autora), pelo Dr. CC, Advogado (árbitro designado pela Ré) e pelo Dr. DD (jurista, árbitro presidente, designado pelos anteriores).
4) A AAfoi Demandante no processo de arbitragem, tendo aí apresentado petição inicial que estruturou do modo seguinte:
A – Da Cronologia dos Factos Relativos à Obra
1. Da celebração do contrato;
2. Da execução da obra e seus incidentes
3. Da fase final da execução do contrato
B – Resolução do contrato e seus efeitos
1. Fundamentos da Resolução
2. Consequências da ilegitimidade da resolução.
5) A AAconcluiu essa sua peça processual formulando o seguinte pedido:
a) se reconheça que a Demandada operou uma desistência do contrato de empreitada firmado entre as partes; ou subsidiariamente, se reconheça que a Demandada resolveu de forma ilegítima o contrato de empreitada;
b) se reconheça que por isso se extinguiu a obrigação da Demandante de reparação de defeitos inerente ao contrato de empreitada;
c) no que às garantias bancárias respeita, seja a Demandada condenada a:
i) abster-se de executar qualquer uma daquelas garantias que mantém na sua posse (ou qualquer outra que a(s) venha a substituir);
ii) devolver tais garantias à Demandante, no prazo de 5 (cinco) dias após trânsito em julgado da decisão que vier a ser proferida sob a cominação de sanção pecuniária compulsória de €500 por cada dia de atraso no cumprimento de tal obrigação;
d) se condene a Demandada a pagar à Demandante as indemnizações peticionadas, limitadas por acordo, no valor máximo de €1.000.000,00, acrescido de juros de mora à taxa legal desde a data da notificação da presente petição inicial até efectivo pagamento.
6) A IMODALE (Demandada) contestou o pedido da AAe apresentou reconvenção contra esta, tendo ordenado os fundamentos do seu pedido reconvencional da seguinte forma:
IX – DO PEDIDO RECONVENCIONAL
A) DA LÍCITA RESOLUÇÃO CONTRATUAL
B) DANOS PATRIMONIAIS
B.1.) DO CRÉDITO DA IMODALE DECORRENTE DOS TRABALHOS A MAIS REQUERIDOS E NÃO EXECUTADOS PELA AA
B.2.) DO CRÉDITO DA IMODALE DECORRENTE DOS TRABALHOS NÃO FINALIZADOS PELA AA
B.3.) DEVOLUÇÃO DAS QUANTIAS RETIDAS
B.4.) DO CRÉDITO DA IMODALE DECORRENTE DOS TRABALHOS A MENOS
B.5.) DOS PREJUÍZOS DECORRENTES DO INCUMPRIMENTO DOS CONTRATOS-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
B.6.) DAS PENALIZAÇÕES CONTRATUALMENTE PREVISTAS
B.7.) DOS VALORES SUPORTADOS COM OS SERVIÇOS DE FISCALIZAÇÃO DA OBRA B.8.) ENCARGOS BANCÁRIOS
B.9.) CORRECÇÃO DOS DEFEITOS
B.10.) IMI
B.11.) DANOS DECORRENTES DA PROVIDENCIA CAUTELAR
B.12.) DA PERDA EFETIVA DE OPORTUNIDADE
C) DANOS NÃO PATRIMONIAIS
7) No ponto B.9.), a IMODALE apresentou da seguinte forma os danos patrimoniais decorrentes da correcção dos defeitos que alegou:
“B.9.) DANOS DECORRENTES DA CORRECÇÃO DOS DEFEITOS e CONCLUSÃO DA OBRA
1335º.
Dão-se por reproduzidos os factos alegados nos arts. 1196º a 1227º.
1336º.
Assim, quer porque a IMODALE procedeu à resolução lícita do contrato, quer porqueseverifica a total por parte da AAem proceder à sua reparação, verificando-se manifesta urgência na sua reparação, assiste à IMODALE o direito de ser indemnizada pelos custos decorrentes da correcção dos defeitos de que padece a obra,
1337º.
Custos, esses, que totalizam a quantia de 155 730,00 € (valor sem IVA).”
8) A IMODALE concluiu a sua contestação/reconvenção com a formulação do seguinte pedido reconvencional:
A) Declarar-se que a IMODALE resolveu lícita e legitimamente contrato de empreitada;
B) Declarar-se improcedente o pedido de indemnização formulado pela AA;
C) Declarar-se que as garantias bancárias n.º .......0P, emitida pelo “Banco Bic Português, S.A.” e “Operação n.º .............93”, emitida pela Caixa Geral Depósitos, “Operação n.º .............93”, e mantêm em vigor até ao integral cumprimento das obrigações que visam assegurar;
D) Condenar-se a AAa pagar à IMODALE as indemnizações peticionadas – limitadas por acordo ao valor máximo de 1.000.000,00 € -, acrescidas de juros até integral pagamento.
9) Após instrução do processo e produção de prova em audiência, o tribunal arbitral, em 18-01-2024, proferiu acórdão sobre o mérito da causa no qual decidiu, por unanimidade dos três árbitros, o seguinte:
a) a Demandada é condenada a pagar à Demandante a quantia de €:221.864,10, acrescida de juros à taxa legal, contados desde a citação até ao efectivo pagamento;
b) a Demandante é condenada a pagar à Demandada a quantia global de €:13.542,90, acrescida de juros à taxa legal, contados desde a notificação da reconvenção até ao efectivo pagamento;
c) a Demandante é condenada a pagar à Demandada a quantia que for fixada em incidente de liquidação em execução de sentença correspondente a metade do acréscimo de encargos bancários suportados pela Demandada decorrente de atraso na execução da obra;
d) a Demandante é condenada a pagar à Demandada a quantia que vier a ser fixada em incidente de liquidação em execução de sentença relativamente à despesa de correcção de defeitos de execução da obra referidos na alínea i) anterior B – Pedidos da Demandada/Reconvinte;
e) as custas do processo serão suportadas em partes iguais por Demandante e Demandada (…).
10) A condenação da Demandada no pagamento do valor de €:13.542,90 referido na alínea b) do dispositivo da decisão referido em 9) subdivide-se, segundo o acórdão, em:
- 9.542,90 €, atribuídos a título de “prejuízos decorrentes de incumprimentos de contratos-promessa de compra e venda”, considerando a responsabilidade de ambas as partes nos atrasos da execução da obra;
- 4.000 €, a título de “encargos suportados com os serviços de fiscalização da obra”, correspondentes a metade da despesa com a fiscalização suportados pela Ré no período de 95 dias de atraso na execução da obra.
11) A IMODALE, em 19-02-2024, apresentou ao tribunal arbitral um requerimento no qual:
A) alegou que o acórdão proferido padecia de obscuridades ou ambiguidades nos segmentos em que apreciou e decidiu sobre:
A.1.) a indemnização devida pela AApara compensar a IMODALE dos custos por esta suportados para corrigir defeitos da obra;
A.2.) a indemnização devida pela AApara compensar a IMODALE dos encargos acrescidos que esta teve com a fiscalização da obra, bem como para reembolsá-la do acréscimo de encargos bancários que teve que suportar;
B) alegou que o acórdão proferido omitiu decisão sobre o pedido que a IMODALE formulou a solicitar a devolução de duas das quantias que pagou a terceiros, sob reserva, no âmbito do acordo celebrado entre as partes após a extinção do contrato de empreitada.
12) A IMODALE concluiu o ponto A.1.) do seu requerimento acima referido da seguinte forma:
«(…) Pelo que importa que o Tribunal Arbitral venha esclarecer o sentido e alcance da decisão proferida, esclarecendo:
Se o Tribunal entende que a AAdeve pagar o custo de correção de todos os defeitos verificados (independentemente de, em 21.06.2022, estarem ou não reparados)?
Se o Tribunal entende que a AAsó deve pagar o custo de correção dos defeitos que em 21.06.2022 ainda se encontravam por reparar?
Quais as patologias reparadas que foram dadas como provadas na resposta ao quesito 167? Correspondem às 19 patologias constantes das reclamações enunciadas no quesito 166?»
13) A IMODALE concluiu o ponto A.2.) do seu requerimento com o seguinte texto:
«(…) ORA,
A fundamentação desenvolvida pelos srs. Árbitros é absolutamente contraditória,
Pois se por um lado consideram que entre 15/05/2019 e 31/07/2020 o atraso da conclusão da obra decorre de culpa da ambas as partes – atraso concorrente – e após 31/07/2020 o atraso decorre de culpa exclusiva da AA,
Por outro defendem que apenas são indemnizáveis os custos suportados pela IMODALE a partir de 31/07/2020, e, mesmo quanto a estes, entendem que a responsabilidade das partes deve ser repartida.
Com efeito, considerando os srs. Árbitros que entre 15/05/2019 e 31/07/2020 o atraso da conclusão da obra decorre de culpa da ambas as partes – atraso concorrente – e após 31/07/2020 o atraso decorre de culpa exclusiva da AA,
Afigura-se que a decisão não podia ser outra senão no sentido de:
- considerar indemnizáveis 50% dos custos suportados entre 15/05/2019 e 31/07/2020, em virtude de nesse período de tempo o atraso da obra decorrer de culpa da ambas as partes – atraso concorrente.
- considerar indemnizáveis os custos suportados a partir de 31/07/2020 na sua totalidade, em virtude de nesse período de tempo o atraso da obra decorrer de culpa exclusiva da AA.
Ora, estando em causa uma premissa e uma conclusão inconciliáveis, importa que este Tribunal aclare o texto decisório … (…)
O mesmo se aplica ao pedido de reembolso de encargos bancários relativamente ao qual o Tribunal conclui pela condenação da AAno “correspondente a metade do acréscimo de encargos bancários suportados pela Demandada”, já que “o atraso verificado na conclusão da obra se deveu, em partes sensivelmente iguais, a Demandante e Demandada”.
Desta feita, não se compreendendo nem concedendo a contradição de que o texto decisório enferma, quanto ao vindo de expor, importa que o Tribunal esclareça, de forma objectiva, a sua posição, dando, assim, cumprimento aos objectivos de transparência da actividade jurisdicional e de ponderação das decisões judiciais, a que estão subjacentes à exigência da fundamentação destas.»
14) A IMODALE finalizou o seu requerimento de 19-02-2024 da seguinte forma:
«Termos em que se requer a V. Exas. Se dignem:
2. nos termos do disposto no artigo 42.º, n.º 1 do Regulamento de Arbitragem do Instituto de Arbitragem Comercial e 45.º, n.ºs 1 e 2 da Lei da Arbitragem Voluntária, proceder à rectificação do Acórdão, esclarecendo as obscuridades e ambiguidades de que o mesmo enferma;
(ii) nos termos do n.º 2 do mencionado artigo 42.º e do n.º 5 do referido artigo 45, proferir sentença adicional sobre o supramencionado pedido que não foi objecto de decisão.»
15) Através de despacho proferido em 21-02-2024, o Tribunal Arbitral ordenou a notificação da AApara, querendo, no prazo de dez dias, dizer o que se lhe oferecesse sobre o requerimento da IMODALE.
16) Por requerimento de 4-03-2024 a AApronunciou-se sobre o aludido requerimento, pugnando pela improcedência das pretensões formuladas pela IMODALE.
17) Em 22-03-2024, o tribunal arbitral proferiu um “acórdão arbitral rectificativo” que foi notificado às partes por correio electrónico em 25-03-2024, no qual:
• • subdividiu as ambiguidades ou obscuridades invocadas pela IMODALE em três questões, a saber:
2. – «… Se o tribunal entende que a AAdeve pagar o custo de reparação de todos os defeitos não reparados, o que pressupõe a necessidade de aclarar quais os defeitos que deu como provados.»
II. – «… O reembolso das despesas com encargos bancários e das despesas com os serviços de fiscalização ocorridos a partir da data do incumprimento do contrato pela Demandante, ou seja, 21/07/2020, deve ser referente à totalidade das despesas.»
III. «… Suscita a Demandada a questão da obscuridade relativamente à responsabilidade pelo pagamento das despesas ocorridas em consequência do atraso na conclusão da obra, nos termos seguintes:
– quanto ao acréscimo de despesas com os serviços de fiscalização em consequência desse atraso após a data tida como prevista para a conclusão da obra (31/07/2020);
– quanto à responsabilidade pelo acréscimo das despesas durante o período concorrente de atraso na execução (entre 15/05/2019 e 31/07/2020), devem esses custos ser repartidos em partes iguais.»
• quanto à primeira questão (I), após se pronunciar sobre a mesma, concluiu o seguinte:
«Considera o tribunal, face a esta obscuridade, ser necessário esclarecer que das respostas aos quesitos 166.º e 167.º resulta ter considerado todas as patologias constantes do quesito 166.º como verificadas e, portanto, provadas – umas reparadas e outras não reparadas.
E, em consequência, não se tendo pronunciado sobre a responsabilidade relativa à sua correcção, o Tribunal, nos termos do artigo 45.º, n.º 5, da LAV, altera, na conclusão decisória, a alínea d), que passa a ter o seguinte teor: “a Demandante é condenada a pagar à demandada a quantia que for liquidada em incidente de liquidação em execução de sentença relativamente à despesa de correcção de defeitos de execução da obra, quer os referidos na alínea i) de B – Pedidos da Demandada/Reconvinte (defeitos não reparados) quer os demais referidos na resposta ao quesito 166 em conjugação com a resposta ao quesito 167, para a qual remete (defeitos reparados).”»
• quanto à segunda questão (II), pronunciou-se da seguinte forma:
«Parece evidente ser correta a posição de considerar o reembolso das despesas com encargos bancários e das despesas com os serviços de fiscalização ocorridos após 21/07/2020, havendo, de facto, contradição entre os fundamentos invocados e a conclusão do tribunal.
Isso mesmo será considerado na parte decisória, sendo certo que, embora tenha sido apurado o quantitativo respeitante às despesas de fiscalização, o mesmo não sucede quanto ao excesso de encargos bancários, cuja liquidação ficará relegada para o incidente de liquidação em execução de sentença.»
quanto à terceira questão (III), pronunciou-se da seguinte forma:
«Quanto à responsabilidade pelo acréscimo de despesas com os serviços de fiscalização, relativos ao período de atraso na conclusão da obra por culpa exclusiva da Demandante (desde 31/07/2020 até à conclusão da obra), tal como visto relativamente ao acréscimo de encargos bancários durante o mesmo período, deve esse acréscimo ser imputado na sua totalidade à Demandante, como foi já considerado no ponto anterior (II), na redacção dada à alínea c).
Quanto à responsabilidade pelo acréscimo das despesas durante o período concorrente de atraso na execução (entre 15/05/2019 e 31/07/2020), é entendimento do tribunal que (…)
(…)
Assim sendo, não tendo sido apurado que os danos verificados em consequência de atrasos concorrentes emergem da consuta exclusiva da Demandante, é de considerar inexistir na situação em análise, um direito de indemnização por parte da Demandada.»
subsequentemente, procedeu à análise da questão atinente à invocada falta de pronúncia sobre o direito da IMODALE ser reembolsada de quantias que pagou sob reserva, após
o que, invocando o disposto no artigo 45.º, n.º 5 da LAV e do artigo 42.º, n.º 2, do Regulamento do Instituto da Arbitragem Comercial, proferiu uma “decisão adicional à sentença proferida” no final da qual julgou improcedente a pretensão de reembolso deduzida pela Demandada (IMODALE).
• Por fim, condensou o teor do acórdão primitivo com as alterações decorrentes das decisões acabadas de proferir sobre o requerimento de esclarecimento, rectificação, e prolação de sentença adicional apresentado pela IMODALE, organizando um texto integrado com o teor completo da decisão final do tribunal arbitral sobre o mérito da causa, denominado “ACÓRDÃO ARBITRAL RETIFICADO”, com o seguinte dispositivo:
a) a demandada é condenada a pagar à demandante a quantia de €:221.864,10, acrescida de juros à taxa legal, contados desde a citação até ao efectivo pagamento;
b) a demandante é condenada a pagar à demandada a quantia global de €:9.542,90 (ressarcimento de indemnizações pagas pela demandada por não cumprimento de obrigações assumidas para com promitentes-compradores), acrescida de juros à taxa legal, contados desde a notificação da reconvenção até ao efectivo pagamento;
c) a demandante é condenada a pagar à demandada a quantia global de €:8.000,00, acrescida de juros à taxa legal, contados desde a notificação da reconvenção até ao efectivo pagamento, relativa ao excesso de encargos com os serviços de fiscalização decorrente de atraso na execução da obra;
d) a demandante é condenada a pagar à demandada a quantia que for fixada em incidente de liquidação em execução de sentença correspondente a metade do acréscimo de encargos bancários suportados pela demandada decorrente de atraso na execução da obra;
e) a demandante é condenada a pagar à demandada a quantia que for liquidada em incidente de liquidação em execução de sentença relativamente à despesa de correcção de defeitos de execução da obra, quer os referidos na alínea i) de B – Pedidos da Demandada/Reconvinte (defeitos não reparados) quer os demais referidos na resposta ao quesito 166 em conjugação com a resposta ao quesito 167, para a qual remete (defeitos reparados);
f) as custas do processo serão suportadas em partes iguais por demandante e demandada (…).
18) No final do acórdão arbitral rectificativo referido em 17), o sr. árbitro Dr. BB anexou “DECLARAÇÃO DE VOTO VENCIDO” quanto à decisão proferida sobre a primeira ambiguidade ou obscuridade conhecida (mais concretamente sobre a questão: Se o tribunal entende que a AAdeve pagar o custo de reparação de todos os defeitos não reparados, o que pressupõe a necessidade de aclarar quais os defeitos que deu como provados), concluindo a mesma da seguinte forma:
«… Por todas estas razões, não se verifica nenhuma obscuridade ou ambiguidade no Acórdão neste particular, pelo que a inclusão das patologias descritas no Quesito 166 para liquidação em execução de sentença, constitui uma modificação do Acórdão, já depois de esgotado o poder jurisdicional do tribunal, extravasando claramente o âmbito do previsto no Artigo 45.º da LAV.».
Não há outra factualidade concreta alegada pelas partes que, tendo relevo para a decisão a proferir por esta Relação, tenha ficado por provar.
2.- Direito.
A recorrente no seu recurso invoca duas questões, a saber:
i).- nulidade do acórdão recorrido por violação da al.ª d), do n.º 1, do art.º 615.º, do C.P.C.
ii).- Revogação do acórdão recorrido e substituição do mesmo por outro que decida como o peticionado.
Tendo presente que são duas as questões a decidir, por uma questão de método iremos analisar cada uma de per si.
Assim
Quanto ao ponto i).
1.- A recorrente para defender este seu ponto de vista, refere entre o mais: “… é inequívoco, da análise dos pontos 9), 10) e 17) do acórdão ora recorrido, que o Tribunal Arbitral foi muito para além do âmbito da rectificação de um mero erro material, pois mais do que rectificar a admissível divergência entre a vontade real e a vontade declarada, houve antes uma nova apreciação do mérito da acção, que nem sequer em sede de reforma de sentença seria possível (se fosse admissível) mas só em sede de recurso.
E esta análise, o Tribunal a quo não a fez, por considerar que o seu conhecimento lhe estava vedado – mas, repete-se, esta análise tem de ser feita, independentemente do que depois disso vier a concluir-se.
Neste ponto, em que estamos perante um caso evidente de excesso do poder de rectificação da sentença, quid iuris? Para a Recorrente, há um caso de nulidade da sentença por excesso de pronúncia; já o Tribunal a quo assim não entende por considerar que tal nulidade apenas se verifica quando o tribunal toma conhecimento e decide questões que não faziam parte do objecto do processo, o que não se verifica no caso em apreço”.
2.- Opinião oposta tem a recorrida, que pugna pela manutenção do acórdão recorrido.
3.- Apreciando.
Preceitua a citada alínea d), do n.º 1, do citado art.º 615.º, do C.P.C..
“1 - É nula a sentença quando:
a)-…
b) - …
c) - …
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”
A nulidade prevista nesta alínea, verifica-se quando a decisão se queda aquém ou foi além do thema decidendum ao qual o tribunal estava adstrito, consubstanciando-se no uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de se ter deixado por tratar de questões que deveria conhecer (no caso da omissão de pronúncia) ou por se ter abordado e decidido questões de que não se podia conhecer (no caso de excesso de pronúncia).
O prescrito na citada alínea d) está em consonância com o n.º 2 do artigo 608.º, que dispõe: «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
A nulidade em referência serve, pois, de cominação para o desrespeito do artigo 608.º, n.º 2, do CPC, reconduzindo-se os vícios aí previstos à inobservância dos estritos limites do poder cognitivo do tribunal.
Como constitui também entendimento sedimentado na doutrina e jurisprudência os argumentos convocáveis para se decidir certa questão não se identificam necessária e coincidentemente com a própria questão a decidir, em si mesma considerada. Ou seja, questões e argumentos não se confundem, sendo que o dever de decisão é circunscrito à apreciação daquelas.
Sobre esta matéria, e no mesmo sentido, vejam-se, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 8/3/2023, proc.º n.º 16978/18.5T8LSB.L2.S, relatado por Mário Belo Morgado, e de 10/4/2024, proc.º n.º 1610/19.8T8VNG.P1.S1relatado por Nelson Borges Carneiro.
Assim, como se assinala no citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8/3/2023, [a] nulidade por omissão de pronúncia (art. 615.º, n.º l, d), do CPC), sancionando a violação do estatuído no nº 2 do artigo 608.º, apenas se verifica quando o tribunal deixe de conhecer “questões temáticas centrais” (isto é, atinentes ao thema decidendum, que é constituído pelo pedido ou pedidos, causa ou causas de pedir e exceções) suscitadas pelos litigantes, ou de que se deva conhecer oficiosamente, cuja resolução não esteja prejudicada pela solução dada a outras, questões (a resolver) que não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os invocados argumentos, motivos ou razões jurídicas, até porque, como é sabido, “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” (art. 5.º, n.º 3).».
Esta nulidade, como se expõe no citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/12/2020, proc.º n.º 12131/18.6T8LSB.L1.S1, relatado por Maria do Rosário Morgado “apenas se verifica quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre as «questões» pelas partes submetidas ao seu escrutínio, ou de que deva conhecer oficiosamente, como tais se considerando as pretensões formuladas por aquelas, mas não, como é pacífico, os argumentos invocados, nem a mera qualificação jurídica oferecida pelos litigantes.”
O que importa como refere Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil, anotado, volume 5º, página 143, é que o tribunal decida a questão posta, não lhe incumbindo apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.
Operando à leitura do acórdão recorrido não vislumbramos que o mesmo se tenha pronunciado sobre algo que não lhe foi pedido, ou que tenha deixado de se pronunciar sobre algo que lhe fora pedido.
Na verdade, o acórdão tomou posição sobre a questão, quando refere - a A. defendeu foi que extravado o âmbito daquilo que lhe era permitido efectuar e, conhecendo aquilo que lhe estava vedado, alterou indevidamente aquilo que havia decidido anteriormente.
Sucede que esta questão, tanto quanto se entende, encontra-se subtraída ao âmbito da apreciação que cumpre efectuar em sede de acção de anulação da sentença arbitral, pois a mesma, em bom rigor, diz respeito ao mérito da decisão que foi tomada pelo tribunal arbitral relativamente ao requerimento de aclaração que lhe foi dirigido por uma das partes num momento em que, face ao disposto no artigo 45.º da LAV, a sentença arbitral ainda não tinha natureza definitiva”
Assim, sem mais considerandos esta pretensão da recorrente improcede.
Visto este ponto passemos ao ponto seguinte.
Ponto ii)
1.- Pede a recorrente a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por outro que atenda ao por si peticionado.
Para tanto, refere entre o mais, que a rectificação de sentença arbitral é permitida mas o que o Tribunal Arbitral acabou por fazer foi extravasar, em larga medida, esse âmbito, assim proferindo uma decisão não permitida pela lei.
2.- O acórdão recorrido sobre esta matéria refere, entre o mais, que
“… Centrando agora a nossa atenção no caso dos autos, desde já se pode adiantar que, face aos princípios acima enunciados, não se detecta que a sentença proferida em sede de arbitragem tenha decidido qualquer questão que, por não integrar o objecto do processo, estivesse subtraída ao âmbito do conhecimento do tribunal arbitral. O tribunal arbitral, após proferir sentença sobre o litígio que lhe foi submetido pelas partes, procedeu, na sequência do requerimento que lhe foi dirigido nos termos do disposto no artigo 45.º, n.ºs 2 e 5, da LAV, ao esclarecimento da sua decisão, bem como à prolação de sentença adicional sobre partes dos pedidos que lhe haviam sido apresentados no decurso do processo, passando o esclarecimento a fazer parte integrante da sentença final (cf. artigo 45.º, n.º 3 in fine da LAV), juntamente com a sentença adicional. Desta forma, a decisão definitiva do litígio é aquela que se encontra condensada no “acórdão arbitral rectificativo” proferido em 22-03-2024 e que foi notificado às partes em 25-03-2024. Visto o dispositivo deste acórdão, não se identifica aí qualquer segmento decisório que tenha ultrapassado, no âmbito da solução do conflito, os limites daquilo que foi pedido e definido pelas partes nos seus articulados, nomeadamente na petição e na reconvenção que foram apresentadas pela AAe pela IMODALE, respectivamente. Nada foi decidido que não fizesse parte do objecto do processo e dos respectivos thema decidenda.
Sustenta, contudo, a AAque a tribunal arbitral, ao proceder ao esclarecimento da sentença previsto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 45.º da LAVA, extravasou o âmbito daquilo que lhe era permitido efectuar e, conhecendo aquilo que lhe estava vedado, alterou indevidamente aquilo que havia decidido anteriormente.
Sucede que esta questão, tanto quanto se entende, encontra-se subtraída ao âmbito da apreciação que cumpre efectuar em sede de acção de anulação da sentença arbitral, pois a mesma, em bom rigor, diz respeito ao mérito da decisão que foi tomada pelo tribunal arbitral relativamente ao requerimento de aclaração que lhe foi dirigido por uma das partes num momento em que, face ao disposto no artigo 45.º da LAV, a sentença arbitral ainda não tinha natureza definitiva”
3.- Ou seja, entendeu o acórdão recorrido, que indo ou não o acórdão arbitral retificativo, além do que lhe estava vedado, era uma questão decisória, que não deveria ser apreciada em sede de ação de anulação da sentença arbitral.
4.- Partindo desse pressuposto partiu para analise da questão de saber se a sentença arbitral deveria ou não ser anulada, tendo chegado à conclusão que não havia razões para tal anulação.
5.- Não partilhamos o entendimento do acórdão recorrido, nesta vertente, ou seja, que a questão do acórdão arbitral ir além do que lhe estava vedado, era uma questão decisória, e por isso, não deveria ser apreciada em sede de anulação da sentença arbitral.
6.- Na verdade advogamos, que tal matéria deveria ter sido analisada a montante, ou seja, antes de se entrar na análise da questão da anulação da sentença arbitral.
7.- Dito isto, cabe-nos apreciar se foi ou não violado o poder jurisdicional, entendendo a recorrente que o mesmo foi violado.
8.- Para melhor nos situar e aquilatar a questão, diremos:
i).- Em 18/1/2024 foi proferido o acórdão arbitral, (que chamamos de 1.º), por unanimidade (cfr. facto 9).
ii)- Em 19-02-2024 a demandada apresentou ao tribunal arbitral um requerimento no qual, entre o mais, alegou que o acórdão proferido padecia de obscuridades ou ambiguidades (cfr. facto 11).
iii)- Por despacho proferido em 21-02-2024, o Tribunal Arbitral ordenou a notificação da AApara, querendo, no prazo de dez dias, dizer o que se lhe oferecesse sobre o requerimento da IMODALE (cfr. facto 15).
iv).- Por requerimento de 4-03-2024 a AApronunciou-se sobre o aludido requerimento, pugnando pela improcedência das pretensões formuladas pela IMODALE. (cfr. facto 16)
v).- Em 22-03-2024, o tribunal arbitral proferiu um “acórdão arbitral rectificativo” que foi notificado às partes por correio electrónico em 25-03-2024 (cfr. facto 17)
vi).- Este acórdão tem um voto de vencido, onde se refere:
“«… Por todas estas razões, não se verifica nenhuma obscuridade ou ambiguidade no Acórdão neste particular, pelo que a inclusão das patologias descritas no Quesito 166 para liquidação em execução de sentença, constitui uma modificação do Acórdão, já depois de esgotado o poder jurisdicional do tribunal, extravasando claramente o âmbito do previsto no Artigo 45.º da LAV.» (cfr. facto 18).
9.- Confrontando os dois acórdãos verificamos que há uma condenação que não se encontrava no 1.º acórdão e se encontra no segundo, desde logo, a referida na condensação dos dois acórdãos (facto 17) alínea e), no que diz respeito ao quesito 166 e que excede a simples retificação.
10.- Assim temos para nós que foi excedido as ambiguidades e obscuridades solicitadas, ou seja, a retificação (aludida 9) constitui uma modificação do Acórdão, já depois de esgotado o poder jurisdicional do tribunal o que alias é referido no voto de vencido do Dr.º BB (cfr. facto 18).
11.- Assim, houve violação ao poder jurisdicional, a que o art.º 613.º do C.P.C.
12.- Dispõe o art.º 613º, nº 1 que, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, só sendo lícito, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes, sendo que o art.º 45.º, n.º 2, do Dl. n.º 63/2011, 14/12 (LAV), permite a qualquer das partes requerer ao tribunal arbitral que esclareça alguma obscuridade ou ambiguidade da sentença ou dos seus fundamentos, (consagrando no fundo o poder jurisdicional).
13.- O princípio do esgotamento do poder jurisdicional justifica-se pela necessidade de evitar a insegurança e incerteza que adviriam da possibilidade de a decisão ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu, funcionando como um obstáculo ou travão à possibilidade de serem proferidas decisões discricionárias e arbitrárias.
14.- Assim, uma vez prolatada uma decisão, “o tribunal não a pode revogar, por perda de poder jurisdicional. Trata-se, pois, de uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais. (...) Graças a esta regra, antes mesmo do trânsito em julgado, uma decisão adquire com o seu proferimento um primeiro nível de estabilidade interna ou restrita, perante o próprio autor da decisão” (Rui Pinto in CPC Anotado, Vol. II, pág. 174).
15.- Como já referia Alberto dos Reis em anotação ao anterior art. 666º, correspondente ao atual 613º, o princípio do esgotamento do poder jurisdicional justifica-se por uma razão de ordem doutrinal e por uma razão de ordem pragmática.
16.- “Razão doutrinal: o juiz, quando decide, cumpre um dever – o dever jurisdicional – que é a contrapartida do direito de acção e de defesa. Cumprido o dever, o magistrado fica em posição jurídica semelhante à do devedor que satisfaz a obrigação. Assim como o pagamento e as outras formas de cumprimento da obrigação exoneram o devedor, também o julgamento exonera o juiz; a obrigação que este tinha de resolver a questão proposta, extinguiu-se pela decisão. E como o poder jurisdicional só existe como instrumento destinado a habilitar o juiz a cumprir o dever que sobre ele impende, segue-se lògicamente que, uma vez extinto o dever pelo respectivo cumprimento, o poder extingue-se e esgota-se.
17.- A razão pragmática consiste na necessidade de assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional. Que o tribunal superior possa, por via do recurso, alterar ou revogar a sentença ou despacho, é perfeitamente compreensível; que seja lícito ao próprio juiz reconsiderar e dar o dito por não dito, é de todo intolerável, sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão” (Alberto dos Reis in CPC Anotado, Vol. V, pág. 127).
18.- Portanto, da extinção do poder jurisdicional decorre esta consequência irrecusável: o juiz não pode, motu proprio, voltar a pronunciar-se sobre a matéria apreciada.
19.- Prolatada a decisão, e ressalvados os casos de retificação, suprimento de nulidades, ou esclarecimentos de ambiguidades, por força do esgotamento do poder jurisdicional fica vedada a possibilidade de essa decisão ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu, apenas sendo possível obter a sua alteração através de recurso que dela venha a ser interposto.
20.- Como tal, podemos afirmar que da “extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem dois efeitos: um positivo, que se traduz na vinculação do tribunal à decisão que proferiu; outro negativo, consistente na insusceptibilidade de o tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa in CPC Anotado, 2ª ed., Vol. I, pág. 762).
21.- A intangibilidade da decisão proferida é, naturalmente, limitada pelo respetivo objeto no sentido de que a extinção do poder jurisdicional só se verifica relativamente às concretas questões sobre que incidiu a decisão.
22.- Podemos perguntar-nos, qual o vício de que padece, então, a segunda decisão/despacho.
-Lebre de Freitas (em A Acção Declarativa Comum, À Luz do CPC de 2013, 3ª Ed., nota (38) pág. 329/330), defende que estamos perante uma nulidade processual, sanável pela falta de tempestiva arguição, o que não conseguimos acompanhar, pois se a lei menciona expressamente o esgotamento do poder jurisdicional, é difícil aceitar que outra seja produzida e essa infracção não passe de uma mera irregularidade.
- O Prof. Castro Mendes (em D. Proc. Civil, Vol. III, Ed. AAFDL, 1978/79, pág. 300) considera que se trata de um caso de ineficácia, por aplicação do actual art. 625º, nº 2, do NCPC, no mesmo sentido Prof. A. Reis (em CPC Anotado, Vol. V, págs. 113/128, particularmente a 121),
- Já o Prof. Paulo Cunha (em Marcha do Processo, Vol. II, págs. 358 e segs.) defende que se trata de uma situação de inexistência jurídica, neste sentido cfr. entre outros acórdão do STJ, de 6.5.2010, Relator Álvaro Rodrigues, in www.dgsi.pt).
Inclinamo-nos, para a solução da ineficácia.
O juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu, ainda que logo a seguir se arrependa, por adquirir a convicção que errou. Para ele a decisão fica sendo intangível. É esta a razão do princípio estabelecido no aludido art. 613º, nº 1, do NCPC.
Na verdade, cabe assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional, sob pena de dando o juiz o dito por não dito se criar a desordem, a confusão e a incerteza.
Ora, se a lei determina a ineficácia entre duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, no referido art. 625º do NCPC, paralisando a que transitou em segundo lugar, afigura-se-nos que semelhante raciocínio e consequência jurídica, pode ser feito e há-de ser tirada em relação à situação processual imediatamente antecedente, isto é, quando embora ainda não haja trânsito em julgado de nenhuma das decisões, tivessem sido proferidas duas, de seguida, de sinal contrário. Ou seja, perante a intangibilidade da primeira decisão a defesa da sua eficácia faz-se a montante, num momento anterior, em vez de se esperar que tal ineficácia se produza a jusante, num momento posterior (cfr, neste sentido Ac. Rel. de Coimbra de 24/4/2018, proc.º 3639/09.5TJCBR-A.C1, relatado por Moreira do Carmo.
23.- No caso em apreço, como resulta de 10 e 11 o acórdão retificativo foi além do permitido, pelo que, esse além tem de ser considerado ineficaz por violação do poder jurisdicional.
24.- Nesta medida, a revista é parcialmente procedente, sendo ineficaz a parte da alínea e), do dispositivo aludido no facto 17, quando se alude ao quesito 166, mantendo-se no mais o acórdão recorrido, por não haver razões para o alterar.
IV.- Decisão
Face ao exposto decide-se:
a).- Julgar improcedente a pretensão da recorrente no que concerne à nulidade do acórdão recorrido, por violação da alínea d), do n.º 1, do art.º 615.º, do C.P.C.
b)- Julgar procedente a pretensão da recorrente na parte em que da alínea e), do dispositivo aludido no facto 17, no que concerne ao quesito 166, por ineficaz.
c).- No mais manter o acórdão recorrido.
d) – Custas a cargo de recorrente e recorrida, na proporção do decaimento.
Lisboa, 25/11/2025
Pires Robalo (relator)
Isoleta Costa (adjunta)
Maria João Vaz Tomé (adjunta)