DIREITO DE PREFERÊNCIA
CONTRATO-PROMESSA
ARRENDATÁRIO
REVOGAÇÃO
ACORDO
ABUSO DO DIREITO
INCUMPRIMENTO
PROPRIEDADE HORIZONTAL
RESTITUIÇÃO DO SINAL
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
MÁ FÉ
IMPROCEDÊNCIA
Sumário


(art.º 663.º n.º 7 do CPC)

I. O arrendatário habitacional de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal não goza de preferência na venda da totalidade do imóvel.
II. Tendo sido outorgado contrato-promessa de bem imóvel, no qual ficou estipulado que se alguma entidade que fosse titular de direito de preferência na venda prometida exercesse o direito de preferência, o contrato-promessa ficaria imediatamente sem efeito, devendo os promitentes vendedores restituir ao promitente-comprador a parte do preço que dele haviam recebido em singelo, e tendo os promitentes compradores informado que a arrendatária x havia exercido o seu direito de preferência, pelo que solicitavam ao promitente-comprador que lhes comunicasse o NIB, a fim de procederem, nos termos do contrato-promessa, à restituição do sinal em singelo, ao que o promitente-comprador comunicou aos promitentes vendedores que, face ao comunicado exercício do direito de preferência pela arrendatária x, lhes enviava o seu NIB (como enviou), a fim de que os promitentes vendedores pudessem proceder à restituição do sinal, tem-se por revogado o contrato-promessa, por mútuo acordo.
III. Ainda que se considerasse que a supratranscrita troca de comunicações entre o promitente-comprador e os promitentes vendedores não chegara a consubstanciar um acordo de revogação do contrato-promessa, estariam preenchidos os pressupostos do abuso de direito, face à situação concreta dos autos: os RR., patrocinados por advogado, concederam à arrendatária de parte do prédio que iam vender direito de preferência na venda – sem que tenha sido alegado nos autos, nem se tenha minimamente indiciado que o fizeram de má-fé, sabendo ou admitindo que a aludida pessoa não gozava desse direito; tendo dado a conhecer essa situação à contraparte (o ora A.), este, também acompanhado de advogado, não manifestou discordância; pelo contrário, colaborou no sentido de, conforme estipulado no contrato-promessa no caso do exercício do direito de preferência por um terceiro, lhe ser restituído, em singelo, o sinal que prestara; e nada opôs quando foi informado da data em que iria ser celebrado o contrato de compra e venda com o dito preferente – pelo que a ulterior exigência de € 110 000,00 de acréscimo, a título de dobro de sinal, à quantia que o A. havia entregue a título de sinal e que já lhe havia sido devolvida, atentaria contra os valores da confiança e de um mínimo de proporção que estruturam o direito, maxime o direito civil.

Texto Integral

Acordam os juízes no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. Em 07.11.2022, AA instaurou ação declarativa de condenação, com processo comum, contra BB, sua mulher, CC, e DD, viúvo, por si e na qualidade de herdeiro de sua falecida mulher, EE.

O A. alegou, em síntese, que em 12.11.2020 foi celebrado um contrato-promessa de compra e venda respeitante a um prédio urbano localizado no concelho de Almada, que identificou, sendo os RR., a falecida EE e, ainda, FF e esposa GG, os promitentes-vendedores e o A. o promitente-comprador. O preço estipulado era de € 300 000,00, tendo o A. entregue, a título de sinal, € 30 000,00 a BB e € 30 000,00 a DD. Na cláusula 9.ª do contrato admitia-se que FF doasse a sua quota parte do prédio, o que veio a suceder, a BB. A 01.10.2021 o A. e os RR. DD, EE, BB e CC outorgaram um aditamento ao contrato-promessa, no qual se consignou que se havia concretizado a aludida doação de quota parte do imóvel e, bem assim, estipulou-se um reforço do sinal, tendo o A. pago € 25 000,00 a BB e € 25 000,00 a DD, e estipulou-se que o valor remanescente a pagar, no ato da escritura, era de € 200 000,00. Em 22.7.2022, o A., através da sua mandatária, dando cumprimento ao estipulado no contrato, convocou os RR. para a realização da escritura de compra e venda, em cartório notarial, no dia 30.9.2022. A 06.9.2022 o A. recebeu do advogado dos RR. uma carta na qual estes comunicavam que a arrendatária HH havia exercido o direito de preferência que a lei lhe concedia, nos termos da comunicação e cheques bancários cujas cópias seguiam na carta. Nessa carta solicitava-se que o A. indicasse o IBAN para onde pretendia que lhe fosse enviado o valor da quantia de sinal já prestado (€ 110 000,00). O A., sem prescindir dos seus direitos, forneceu o IBAN solicitado pelos promitentes vendedores, tendo recebido o total dos € 110 000,00, em 19 e 20 de setembro de 2022. O A., através da sua mandatária, questionou os RR. acerca da veracidade e credibilidade da reivindicada qualidade de arrendatária da compradora, não tendo obtido nunca nenhuma cópia do contrato de arrendamento celebrado com essa senhora, bem como da comunicação do contrato às Finanças. No dia 30.9.2022 realizou-se a escritura pública de compra e venda do prédio em causa, sendo compradora a mencionada HH e vendedores os aqui primeiro e terceiro RR.. Ora, sucede que o prédio vendido tinha três andares e não estava constituído em propriedade horizontal, ocupando a alegada arrendatária tão-só o rés-do-chão. Assim, a inquilina não tinha direito de preferência na aludida venda, que abarcava a totalidade do prédio. Os RR., pois, incumpriram o contrato-promessa, tendo o A. direito ao pagamento do sinal em dobro, nos termos da lei e da cláusula oitava n.º 2 do contrato-promessa.

O A. terminou pedindo a condenação dos RR. no pagamento ao A. da quantia de € 110 000,00, correspondente ao montante da indemnização (ainda em falta) prevista na cláusula oitava n.º 2 do contrato-promessa de compra e venda junto aos autos, ou seja, ao sinal em dobro pelo incumprimento do contrato-promessa, quantia essa que deveria ser acrescida dos juros legais vincendos, à taxa de 4%, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.

2. Citados, os RR. contestaram, alegando que o contrato-promessa de compra e venda fora revogado por mútuo acordo das partes, na sequência do exercício do direito de preferência pela mencionada arrendatária do prédio, tendo o A. aceitado receber a restituição do sinal que prestara. De todo o modo, o A. foi informado do processo de realização da escritura definitiva, não se lhe tendo oposto. Por isso, sempre agiria em abuso de direito. Os RR. concluíram pela sua absolvição do pedido e, em reconvenção, pediram que o contrato-promessa fosse julgado revogado por mútuo acordo.

3. O A. replicou, pugnando pela ineptidão da reconvenção e reiterando o pedido de condenação dos RR.

4. Realizou-se audiência prévia, na qual foi rejeitada a reconvenção, emitiu-se saneador tabelar, fixou-se o valor da ação (€ 110 000,00), definiu-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.

5. Realizou-se audiência final e em 12.6.2024 foi proferida sentença, que culminou com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, julgo a acção procedente e, em consequência, condeno os Réus a pagar ao Autor, a título de indemnização, a quantia de 110.000,00 euros (cento e dez mil euros), acrescida de juros, à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento.

Absolvo do pedido o Réu DD, na qualidade de herdeiro de sua falecida mulher, EE.

Custas pelos Réus”.

6. O A. apelou da dita sentença e, por acórdão datado de 06.02.2025, a Relação de Lisboa julgou o recurso procedente e, consequentemente, revogou a decisão recorrida e absolveu os RR. do pedido formulado pelo A., com custas pelo apelado.

7. O A. interpôs recurso de revista contra o aludido acórdão, tendo formulado as seguintes conclusões:

“A -O n.º 9.º do art.º 1091.º do Cod. Civil não foi afectado pela declaração de inconstitucionalidade, pelo que, os inquilinos do imóvel para fins habitacionais, não sujeito ao regime da propriedade horizontal podem exercer direito de preferência em conjunto sobre a totalidade do imóvel em compropriedade.

B - Segundo o nº 9 do artº 1091º e demais Legislação em vigor, não se verifica qualquer direito de preferência de arrendatário, no que diz respeito a parte de um prédio não constituído em propriedade horizontal, tanto no que diz respeito à parte do prédio de que são arrendatários, como também e ainda, quanto à totalidade do prédio.

C – A jurisprudência do STJ e doutrina, têm concluído, que o artigo 1091º nº 9 do Código Civil, é aplicável, somente, às situações em que existindo mais do que um ou vários arrendatários de um prédio que não se encontra em propriedade horizontal, estes pretendam exercer em conjunto os seus direitos de preferência

D– No caso em apreço, não existia, qualquer direito de HH, em preferir, e posteriormente adquirir o prédio na totalidade, já que esta era inquilina, somente do R/C do dito prédio.

E – A Lei não conferia qualquer direito à alegada preferente, em exercer a preferência e seguidamente comprar a totalidade do prédio.

F - Os Recorridos, ao venderem a totalidade do prédio a HH, incumpriram culposamente o Contrato-Promessa celebrado com o Recorrente.

G -Não corresponde à verdade, que o Recorrente tenha agido com abuso de direito.

H - O Recorrente, em todo este processo manteve o mesmo comportamento, de boa fé que se consubstancia em:

- antes de ter conhecimento das reais circunstâncias, pelas quais os Recorridos tinha conferido o direito de preferência a HH, aceitando o sinal em singelo, e decidindo que estar presente na escritura efectuada na casa da preferente, não teria nenhum resultado prático.

-depois de tomar conhecimento de que a Lei não conferia a HH, direito de preferência sobre um prédio, não constituído em propriedade horizontal, intentando Acção Judicial, com vista a ser indemnizado pela violação contratual, efectuada pelos Recorridos.

I - Todo este processo e as questões aqui em discussão, tiverem origem na falta de cuidado e de diligência no apuramento da Lei, da doutrina e da jurisprudência em vigor e aplicável ao caso em concreto por parte Recorridos, sendo a sua actuação culposa, a génese de toda esta questão.

J – Não decorre dos factos, que o Recorrente soubesse ou estivesse obrigado a saber, se o exercício do direito de preferência pela arrendatária era legítimo, ao contrário dos Recorridos, que para dar preferência à arrendatária puseram em causa o cumprimento do contrato com o Recorrente.

K - Os Recorridos, e HH, agendaram a escritura publica de compra e venda do prédio, para o dia 30.09.2022 às 10 horas no Cartório Notarial de Almada sito na Rua 1 ... Almada, ao cuidado da Drª II, e o Recorrente decidiu que iria aí estar presente.

L – Na véspera, os Recorridos alteraram o local da escritura para a casa onde reside a alegada preferente, sito na Rua 2, freguesia da Cova da Piedade, Almada.

M – Ao tomar conhecimento desta notícia/alteração, o Recorrente decidiu que, não se sentia confortável em deslocar-se à residência da preferente, mesmo que fosse, para presenciar a escritura de compra e venda, como já tinha decidido fazer.

N – Se o Recorrente estivesse presente na escritura de compra e venda em causa, fica por esclarecer, o que estavam os Recorridos à espera que o aquele fizesse para impedir a escritura?

O - “…Do enquadramento actual, resulta que o Autor foi avisado por carta remetida pelo Ilustre Mandatários dos Réus que a arrendatária iria exercer o direito de preferência, comunicando-lhe a hora e local da realização da escritura.

Não decorre dos factos que o Autor soubesse ou estivesse obrigado a averiguar se o exercício do direito de preferência pela arrendatária, ao contrário dos Réus que para dar preferência à arrendatária era ou não legítimo, ao contrário dos Réus que para dar preferência à arrendatária punham em causa o cumprimento do contrato com o Autor.

Assim, não podemos dizer que o Autor agiu conscientemente no sentido de querer deixar de consumar a celebração da escritura com terceiro para vir exigir o dobro do sinal, ou que violou uma qualquer norma jurídica ao não se opor à celebração da escritura….”

P - Incumprido o contrato, o Recorrente não prescinde da indemnização a que tem direito, ou seja, à restituição do sinal em dobro.

Q – Ao decidir como decidiu, revogando a sentença proferida na 1ª Instância, o ressente Acordão violou o disposto no artº 1091º nº 9 do Código Civil.

R - Pelo que deverá ser proferido Acórdão que revogue o Acórdão da Relação de Lisboa, ora recorrido, mantendo a decisão da 1ª Instância e declarando que o Autor ora Recorrente, tem direito a receber o sinal em dobro.

Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, deve o recurso interposto proceder na integra, revogando-se consequentemente a decisão recorrida.

Assim se fazendo justiça.”

8. Os RR. contra-alegaram, tendo formulado as seguintes conclusões:

“1. O Tribunal a quo não se substituiu ao legislador nem decidiu que à arrendatária em causa nos presentes autos assistia o direito de preferir.

2. Entendeu, contudo, que esta questão não deve ser analisada com tanta rigidez, no sentido de aplicar de forma automática as consequências de um incumprimento culposo aos recorridos, considerando que esta matéria já foi objecto de várias alterações legislativas e de distintas interpretações.

3. Em concreto, o Tribunal a quo decidiu que ao darem direito de preferência à inquilina, os recorridos não violaram a lei, porque a lei é omissa neste circunspecto; ao invés, limitaram-se a agir em sentido contrário àquele que é um entendimento doutrinário e jurisprudencial. Mas que não tem força de lei.

4. Contudo, independentemente da apreciação da existência ou não do referido direito de preferência, salientou o Tribunal a quo – e bem – que o recorrente aceitou a devolução do sinal em singelo ainda antes da data do putativo incumprimento do contrato, ou seja, antes da venda do prédio a terceiro, com impossibilidade de cumprimento perante o promitente-comprador, o que fez ao abrigo da cláusula 5ª do contrato.

5. O que implica concluir pela ausência de incumprimento, exigível para a aplicação do regime do sinal.

6. Porém, ainda que se entenda que, ao vender o prédio a HH, os recorridos incumpriram culposamente o contrato-promessa, no que não se concede, na sua argumentação, e de forma muito conveniente, o recorrente olvida – aliás, omite ou distorce – os comportamentos que o próprio assumiu durante todo o processo de compra e venda e que contribuíram para que os recorridos confiassem que aquele aceitava a cessação do referido contrato.

7. Da análise da matéria de facto provada e da respectiva cronologia decorre que, depois de ter sido informado do exercício do direito de preferência pela arrendatária, o recorrente:

a) Não se opôs à cessação do contrato-promessa compra e venda objecto dos presentes autos;

b) Aceitou e pediu a restituição do sinal em singelo;

c) Não exigiu o pagamento de qualquer indemnização;

d) Não questionou a preferência exercida pela arrendatária.

8. Mais resultou provado que, até à realização da escritura de compra e venda, os recorridos mantiveram o recorrente informado sobre o processo de venda e que, a escritura pública de compra e venda veio efectivamente a realizar-se no dia e local indicados.

9. Porém, mais uma vez, o recorrente:

a) Não se opôs à cessação do contrato-promessa compra e venda objecto dos presentes autos;

b) Aceitou e pediu a restituição do sinal em singelo;

c) Não exigiu o pagamento de qualquer indemnização;

d) Não questionou a preferência exercida pela arrendatária;

e) Não se opôs à celebração da escritura pública de compra e venda entre os recorridos e a referida HH.

10. A todo o exposto acresce, como resulta à saciedade demonstrado, que o recorrente recebeu aconselhamento jurídico e foi acompanhado por advogado ao longo de todo o processo de compra e venda do prédio.

11. O recorrente conhecia o prédio há mais de 15 anos e a respectiva situação locatícia, tendo mesmo sido um dos inquilinos do mesmo.

12. O recorrente, sabendo do dia, local e hora da realização da escritura, podia – e devia, se era esse, afinal, o seu entendimento – ter manifestado a sua oposição e o seu desagrado aos recorridos, fosse verbalmente, ou mesmo por escrito. O que não sucedeu.

13. O recorrente, sabendo do dia, local e hora da realização da escritura, podia – e devia, se era esse, afinal, o seu entendimento – ter comparecido para se opor à prática do acto, designadamente, lavrando o devido protesto e alegando, precisamente, a agora invocada inexistência do direito da preferente,

14. E manifestando a sua posição relativamente ao incumprimento do contrato em que, afinal, entendia que os recorridos estavam a incorrer.

15. E era isso que era expectável do recorrente, pois seria esta a conduta do homem médio que é confrontado com o desmoronar do negócio que tanto queria celebrar.

16. Ao invés, o recorrente decidiu não comparecer na escritura.

17. Pelo que, se assim foi – e foi – é forçoso concluir, repete-se, que o recorrente aceitou a cessação do contrato-promessa de compra e venda cujo incumprimento vem – apenas agora – invocar.

18. O que implica concluir que o pedido que deduz de restituição do sinal em dobro constitui abuso de direito.

19. Na verdade, todo o comportamento do recorrente acima descrito, criou nos recorridos a firme convicção de que, por um lado, o recorrente reconhecia e aceitava o direito de preferência de HH,

20. E, por outro, que, como tal, o recorrente aceitava as consequências previstas na cláusula 5ª do contrato-promessa (cfr. Doc. nº 1 da petição inicial) e que se resumiam à restituição do sinal em singelo.

21. O que os recorridos, de imediato, fizeram. E o recorrente aceitou.

22. As circunstâncias que envolveram o negócio, associadas ao facto de o recorrente, devidamente avisado do exercício da preferência, da marcação da escritura, e da alteração do local onde a mesma seria celebrada, não ter tido qualquer reacção em tempo útil criaram nos recorridos a firme e justa convicção que o Autor nada tinha a opor à cessação do contrato-promessa.

23. E é aqui que reside o comportamento abusivo do recorrente, que deve ser travado.

24. Em face do exposto, a douta decisão recorrida não merece qualquer reparo, devendo ser mantida na íntegra.

25. Ainda que assim não se entenda, sempre se dirá que o recorrente contribuiu de forma essencial e muito significativa para o dano que sofreu.

26. Ao não reagir à comunicação de que a arrendatária havia exercido o direito de preferência, o recorrente adoptou um comportamento que revela uma total e absoluta falta de zelo e diligência, para o qual os recorridos em nada contribuíram.

27. Pelo que o caso dos autos se integra na figura da culpa do lesado.

28. Em face do exposto, a douta decisão recorrida não merece qualquer reparo, devendo ser mantida na íntegra.

Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deve ser negado provimento ao presente recurso e, em consequência, deve ser mantida a decisão recorrida, pois só assim se fará JUSTIÇA!”

9. Foram colhidos os vistos legais.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Discute-se, neste recurso, se o A., promitente-comprador num contrato-promessa de compra e venda de um imóvel, tem direito ao pagamento do sinal em dobro, com base em incumprimento culposo do contrato por parte dos promitentes vendedores.

2. Está provada (com alterações introduzidas pela Relação) a seguinte

Matéria de facto

1. A 12 de Novembro de 2020, foi celebrado um contrato promessa de compra e venda respeitante ao prédio sito Rua 3, freguesia da Cova da Piedade, concelho de Almada, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..16º da União das Freguesias de Almada, Cova da Piedade, Pragal e Cacilhas e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Almada, freguesia da Cova da Piedade sob a ficha ..14.

2. Neste contrato, os intervenientes foram o A., na qualidade de promitente comprador, os Réus como os promitentes vendedores e ainda, FF e esposa GG.

3. Nos termos do acordado pelas partes, este contrato promessa de compra e venda estipulava que o preço do imóvel era € 310.000,00.

4. Sendo que a título de sinal o A. pagou € 60.000,00: - € 30.000.00 a BB, - e € 30.000.00 a DD (cfr cláusula terceira do contrato promessa de compra e venda).

5. A Cláusula Nona deste contrato promessa de compra e venda, previa, que FF, pudesse doar a sua quota parte do prédio, a BB, o que efectivamente veio a acontecer.

6. Posteriormente, a 1 de Outubro de 2021, o A., e os Réus, DD, EE, BB e CC celebraram e assinaram, um aditamento ao contrato promessa de compra e venda acima referenciado.

7. Neste aditamento ao contrato promessa de compra e venda, ficou esclarecido que se tinha concretizado a doação da sua quota-parte do imóvel, que FF, tinha feito ao irmão BB.

8. Também as alíneas b) e c) da Cláusula Terceira do contrato promessa de compra e venda foram alteradas, ficando estipulado, - na alínea b) um reforço de sinal pago pelo A. de € 50.000,00, - sendo € 25.000,00 pagos a BB, - e € 25.000,00 a DD, - na alínea c), que o valor o remanescente por pagar, no acto da escritura é de € 200.000,00.

9. No contrato promessa de compra e venda ficou também estipulado que a escritura publica seria marcada pelo Promitente Comprador, e que este deveria avisar os Promitentes Vendedores: “…da data, hora e Cartório Notarial onde a mesma seria lavrada por carta registada com aviso de recepção, com a antecedência mínima de 60 (sessenta) dias, reportados à data marcada para a celebração da escritura….”.

10. Dando cumprimento ao aí estipulado, a 22 de Julho de 2022, o A., por intermédio da sua mandatária, enviou aos Réus, BB e DD e a seu irmão FF, cartas registadas com aviso de recepção, notificando-os de que: “…pela presente sou a notificá-lo, para comparecer, na sua qualidade de vendedor, no Cartório Notarial JJ, sito na Rua 4, 2670-457 Loures, pelas 10h, do dia 30 de Setembro de 2022, a fim de outorgar a escritura de compra e venda, do prédio sito na Rua 3, freguesia da Cova da Piedade, concelho de Almada, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..16º da União das freguesias de Almada, Cova da Piedade, Pragal e Cacilhas e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Almada, freguesia da Cova da Piedade sob a ficha ..14, conforme contrato promessa de compra e venda de compra e venda celebrado com o meu constituinte, a 12 de Novembro de 2020, e que foi objecto de um aditamento a 1 de Outubro de 2021…” .

11. As cartas foram rececionadas pelos destinatários

12. A 6 de Setembro de 2022, o A. recebeu uma carta, remetida pelo advogado dos Réus, informando-o que: “ Exmº Senhor, “…Faço referencia ao contrato promessa de compra e venda de 12 de Novembro de 2020 aditado em 1 de Outubro de 2021 e respeitante à totalidade do prédio sito na Rua 3, freguesia da Cova da Piedade, concelho de Almada para lhe comunicar que a arrendatária HH exerceu o direito de preferência que a lei lhe concede, nos termos da comunicação e respectivos cheques bancários cujas cópias remeto em anexo. Neste contexto, e em cumprimento do sobredito contrato, solicito que me informe do IBAN para onde pretende que os meus Constituintes transfiram a quantia que entregou a título de sinal, no montante € 110.000,00 (cento e dez mil euros)

13. O A. forneceu o IBAN solicitado pelos Promitentes Vendedores.

14. E a 19 e 20 de setembro de 2022, recebeu o valor de € 110.000,00 (cento e dez mil euros), resultado de duas transferências no valor de € 55.000,00 cada uma, enviadas pelo Primeiro e Terceiro Réus.

15. A 6 de Outubro de 2022, o A. através da sua mandatária, questionou os Réus sobre a veracidade e credibilidade, da reivindicada qualidade de arrendatária, da compradora, HH, necessária a que esta tivesse legitimidade, para exercer o direito de preferência sobre a compra e venda prometida.

16. Em resposta, o único documento enviado ao A., foi um contrato, celebrado entre KK, como senhoria e LL como inquilino.

17. No dia 30 de setembro de 2022, realizou-se a escritura publica de compra e venda do prédio em causa, sendo compradora, HH e vendedores os Primeiro e Terceiro Réus, aqui representados por um procurador.

18. Esta aquisição já está registada na Conservatória do Registo Predial.

19. Em 10 de Outubro de 2022, o A. enviou duas cartas registadas com aviso de recepção, dirigidas ao Primeiro e Terceiro Réus solicitando “… cópia do contrato de arrendamento celebrado com HH, com comprovativo da comunicação do mesmo à Autoridade Tributária, para efeitos de Imposto de Selo….”

20. O contrato de arrendamento correspondente ao único documento enviado ao A. diz respeito somente ao rés do chão do prédio.

21. O imóvel em causa é constituído por r/c e mais dois andares (1º e 2º), e duas garagens.

22. Os réus adquiriram o prédio objecto dos presentes autos por legado que lhes foi deixado pela primitiva proprietária, KK.

23. O arrendatário LL faleceu em 31 de maio de 2005 no estado de casado com HH.

24. HH sucedeu na posição do arrendatário falecido, passando a pagar a respectiva renda.

25. Em janeiro de 2018, na qualidade de arrendatário, o Autor celebrou com FF um contrato de arrendamento habitacional, pelo prazo de um ano, renovável, relativo à cave esquerda do mesmo prédio.

26. Em resposta à carta dos Réus de 6/09/2022, a 15.09.2022, o autor enviou ao mandatário dos réus o seguinte email: “Caros Srs., Acuso a recepção da v/ carta de 6 de Set. em que me informaram que a Srª HH exerceu o direito de preferência na compra do prédio sito na R. Gen. Humberto Delgado nº 2 pelo que solicito a devolução do dinheiro que entreguei como sinal (110.000,00 euro) para a conta abaixo indicada. (…)” doc. 7 da contestação

27. Por email de 22.09.2022, o mandatário dos réus informou a mandatária do autor do dia, hora e local onde se iria realizar a escritura do prédio em causa, tendo igualmente o mesmo mandatário, por email de 29.09.2022, dirigido à mandatária do Autor a seguinte informação: “Exmª Colega, Junto a minha troca de emails com o n/Colega Dr. MM, advogado da parte compradora, referente à escritura do prédio da Cova da Piedade, agendada para amanhã, dia 30 às 10h. A escritura terá lugar, não no Cartório que lhe indiquei anteriormente, mas sim em casa da compradora, (…), ao cuidado da Notária (…).”.

28. O Autor não compareceu na escritura pública de compra e venda outorgada entre os Réus e a referida HH, nem questionou que esta, enquanto arrendatária de um prédio em propriedade total, pudesse exercer o direito de preferência na aquisição da totalidade do prédio.

29. O Réu DD foi casado com EE no regime de separação de bens.

30. O Autor tinha conhecimento aquando do contrato celebrado com os RR. que alguns dos andares do prédio objecto dos autos se encontravam ocupados, mediante contratos de arrendamentos.

31. Nos termos da cláusula quinta do contrato promessa celebrado entre as partes e em causa nos autos estabeleceu-se que: ”UM- Os promitentes-vendedores obrigam-se a, se o Promitente-Comprador o desejar, notificar o presente contrato promessa de compra e venda a todas as entidades que sejam titulares de direito de preferência na venda prometida.

Dois- Caso alguma dessas entidades venha a exercer o direito de preferência que lhe assiste, o presente contrato ficará imediatamente sem qualquer efeito, devendo os Promitentes-Vendedores restituir ao Promitente-Comprador a parte do preço que dele recebeu em singelo e sem quaisquer juros, nos 15 (quinze) dias seguintes àquele em que venham a tomar conhecimento desse exercício.”

3. O Direito

Está provado que entre o A. e os RR. foi celebrado um contrato-promessa (art.º 410.º n.º 1 do Código Civil), nos termos do qual os RR. obrigaram-se a vender ao A. e este obrigou-se a comprar àqueles um determinado imóvel.

Os contratos regem-se pelo clausulado pelas partes, dentro dos limites da lei (art.º 405.º do Código Civil).

Os contratos devem ser pontualmente cumpridos e só podem extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei (n.º 1 do art.º 406.º do Código Civil).

Sendo certo que “o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado” (n.º 1 do art.º 762.º do Código Civil).

Se a prestação se tornar impossível “por causa imputável ao devedor, é este responsável como se faltasse culposamente ao cumprimento da obrigação” (n.º 1 do art.º 801.º do Código Civil).

E, se a obrigação tiver “por fonte um contrato bilateral, o credor, independentemente do direito à indemnização, pode resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação, exigir a restituição dela por inteiro” (n.º 2 do art.º 801.º do Código Civil).

Configurando-se a situação de incumprimento definitivo, poderá o contraente promitente relapso ser confrontado com a resolução do contrato-promessa e a reclamação de indemnização consequente que será, na ausência de estipulação em contrário e consoante o incumpridor seja o promitente comprador ou o promitente vendedor, a perda de sinal ou o seu pagamento em dobro, ou, no caso de tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, o aumento do seu valor ou do direito à data do incumprimento, tudo nos termos dos n.ºs 2 e 4 do art.º 442.º do Código Civil.

In casu, os RR. venderam o imóvel objeto do contrato-promessa a outrem que não ao A.. Os RR. invocaram, para a não realização do contrato prometido, o facto de a efetiva compradora ter exercido direito de preferência na aquisição, de que era titular.

Ganhou unanimidade nos autos, tanto do lado das partes como das instâncias, a conclusão de que, afinal, a aludida compradora, por ser arrendatária de apenas parte do imóvel, que não estava constituído em propriedade horizontal, não era titular de direito de preferência no negócio em causa, o qual abrangia a totalidade do imóvel.

Esta temática foi longamente abordada pelas instâncias, pelo que não cabe escalpelizá-la de novo, na medida em que se concorda com o juízo unânime acima exposto.

Apenas, reportando-nos ao acórdão da Relação de Lisboa, de 08.02.2018, processo n.º 3131/16.1T8LSB.L1-2, então relatado pelo aqui também relator, salientam-se, como nesse acórdão ficou bem expresso, inclusive pelo voto de vencido que nele ficou consignado, as sérias dúvidas que se suscitaram acerca do sentido das alterações ao regime de preferências no arrendamento urbano introduzidas em 2006 pelo NRAU (Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27.02). No passado, à luz da Lei n.º 63/77, de 25.8, não havia qualquer dúvida, na doutrina e na jurisprudência, de que a lei reconhecia ao inquilino habitacional de prédio não constituído em propriedade horizontal direito de preferência na venda do prédio, ainda que fosse arrendatário de apenas parte dele. Só com a publicação do RAU (Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 321-B/90, de 15.10), em 1990, é que, por força da alteração da redação da lei, como explicado no dito acórdão da Relação de Lisboa, surgiu uma corrente, sempre minoritária, que defendia que passara a ser negado o direito de preferência quando não houvesse integral coincidência entre o local arrendado e o imóvel vendido. E, mesmo após a entrada em vigor do NRAU, em 2006, e da introdução do novo art.º 1091.º do CC, por muito tempo continuou a haver quem defendesse a manutenção do dito direito de preferência do inquilino de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal.

De todo o modo, pelo menos a partir de 2018 a jurisprudência do STJ consolidou-se no sentido de que o art.º 1091.º do Código Civil não reconhecia ao arrendatário de parte de um prédio não constituído em propriedade horizontal direito de preferência na venda da totalidade do prédio, entendimento esse que não teve qualquer inflexão com a alteração da redação a esse artigo introduzida pela Lei n.º 64/2018, de 29.10, nem com a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade do n.º 8 desse artigo, na redação introduzida pela Lei n.º 64/2018, emitida pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 299/2020, de 18.6.

Por conseguinte, à data da venda objeto destes autos (setembro de 2022), encontrava-se pacificado, no STJ, que o arrendatário de parte de um prédio não constituído em propriedade horizontal não gozava de direito de preferência no contrato de compra e venda da totalidade do prédio. Ilustrando o aqui exposto, vejam-se os acórdãos do STJ, de 24.5.2018 (processo n.º 1832/15.0), de 26.02.2019 (processo n.º 9/13.4), de 11.7.2019 (processo n.º 3818/17.1), de 07.11.2019 (processo n.º 14276/18.3), de 09.3.2021 (processo n.º 2899/18.5), de 25.3.2021 (processo n.º 10307/16.0). Entendimento esse que se tem mantido: cfr., v.g., acórdãos do STJ de 13.10.2022 (processo n.º 3391/08.1), de 10.01.2023 (processo n.º 2834/18.0), de 14.9.2023 (processo n.º 135/20.3), de 28.9.2023 (processo n.º 17731/18.1).

Essa interpretação da lei radica no facto de o n.º 1 al. a) do art.º 1091.º do Código Civil reportar o exercício da preferência aos casos de venda ou dação em cumprimento do “local arrendado”. Pode, pois, dizer-se que resulta do enunciado legal uma coincidência entre o objeto do direito de preferência e o direito decorrente do contrato de arrendamento que a justifica ou suporta. Desse modo, o locatário que apenas ocupa, por via do arrendamento, uma parte do imóvel, não constituído em propriedade horizontal, não tem preferência na venda ou dação em cumprimento de todo o prédio. Acrescem argumentos retirados da evolução legislativa e da história do preceito, que se mostram analisados pelas instâncias e nos arestos citados.

Contudo, o certo é que os RR. reconheceram à dita inquilina direito de preferência na venda do prédio em que ela estava alojada como arrendatária.

Pelo que os RR. decidiram dar sem efeito o contrato-promessa celebrado com o A., isto é, desistiram de vender o prédio ao A., a fim de o venderem à dita arrendatária. Disso deram conta ao A., mediante a carta supramencionada no n.º 12 dos factos provados, enviada pelo mandatário dos RR. e recebida pelo A. em 06.9.2022, a qual tem, recorde-se, a seguinte redação:

Exmº Senhor, “…Faço referencia ao contrato promessa de compra e venda de 12 de Novembro de 2020 aditado em 1 de Outubro de 2021 e respeitante à totalidade do prédio sito na Rua 3, freguesia da Cova da Piedade, concelho de Almada para lhe comunicar que a arrendatária HH exerceu o direito de preferência que a lei lhe concede, nos termos da comunicação e respectivos cheques bancários cujas cópias remeto em anexo. Neste contexto, e em cumprimento do sobredito contrato, solicito que me informe do IBAN para onde pretende que os meus Constituintes transfiram a quantia que entregou a título de sinal, no montante € 110.000,00 (cento e dez mil euros)

Note-se que os RR., ao proporem-se restituir o sinal ao A., apelaram para o constante no contrato (“Neste contexto, e em cumprimento do sobredito contrato”).

Efetivamente, com relevo para esta matéria, o contrato continha uma cláusula quinta, com o seguinte teor (n.º 31 da matéria de facto):

UM- Os promitentes-vendedores obrigam-se a, se o Promitente-Comprador o desejar, notificar o presente contrato promessa de compra e venda a todas as entidades que sejam titulares de direito de preferência na venda prometida.

Dois- Caso alguma dessas entidades venha a exercer o direito de preferência que lhe assiste, o presente contrato ficará imediatamente sem qualquer efeito, devendo os Promitentes-Vendedores restituir ao Promitente-Comprador a parte do preço que dele recebeu em singelo e sem quaisquer juros, nos 15 (quinze) dias seguintes àquele em que venham a tomar conhecimento desse exercício.”

Sendo certo que se provou que aquando da celebração do contrato-promessa o A. tinha conhecimento de que alguns dos andares do prédio objeto dos autos se encontravam ocupados, mediante contratos de arrendamentos (n.º 30 da matéria de facto).

Ora, em resposta à aludida carta, o A. enviou ao mandatário dos RR. o seguinte email (n.º 26 dos factos provados):

Caros Srs., Acuso a recepção da v/ carta de 6 de Set. em que me informaram que a Srª HH exerceu o direito de preferência na compra do prédio sito na R. Gen. Humberto Delgado nº 2 pelo que solicito a devolução do dinheiro que entreguei como sinal (110.000,00 euro) para a conta abaixo indicada. (…)”

E tudo isto, note-se, numa altura em que o A. já havia designado data para a celebração da escritura definitiva (n.º 10 da matéria de facto).

Ora, da conjugação das duas comunicações constata-se que o A. e os RR. acordaram, de forma expressa (art.º 217.º n.º 1 do Código Civil), na revogação do contrato-promessa, nos termos estipulados na cláusula quinta do contrato, procedendo os RR. à restituição ao A., em singelo, do sinal prestado.

Tendo o A. comunicado o seu IBAN aos RR. e estes enviado ao A. o montante do sinal, em 19 e 20 de setembro de 2022 (n.ºs 13 e 14 dos factos provados).

Os RR. mantiveram o A. a par do processo de celebração da escritura de compra e venda, tendo-o inclusivamente informado da data e local da sua realização – sem que o A. desse conta de qualquer oposição a esse desfecho (n.ºs 27 e 28 da matéria de facto).

Do exposto resulta que o A. e os RR. acordaram livremente, nos termos da lei e do contrato (artigos 405.º n.º 1, 406.º n.º 1 do CC, cláusula quinta do contrato-promessa), na revogação do contrato-promessa, dando sem efeito a obrigação mútua de celebração do contrato prometido.

Assim sendo, o A. não tem fundamento para o peticionado pagamento do dobro do sinal.

Sendo certo que as posteriores diligências do A. tendo em vista a obtenção de elementos demonstrativos da qualidade de arrendatária (n.ºs 15 e 19 dos factos provados), poderiam relevar no sentido de uma eventual anulação da declaração de aceitação da revogação do negócio, com base em erro ou dolo (artigos 252.º n.º 1 e 253.º n.º 1 do Código Civil) – questão que não foi aventada pelo A..

Ainda que se considerasse que a supratranscrita troca de comunicações entre o A. e os RR. não chegou a consubstanciar um acordo de revogação do contrato-promessa, julgamos, à semelhança do tribunal a quo, que estariam preenchidos os pressupostos do abuso de direito.

Sob a epígrafe “abuso do direito”, o art.º 334.º do Código Civil estipula que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito.”

Artigo resultante do artigo 281.º do Código Civil grego, positiva um mecanismo geral de correção daquilo que, na formulação de António Menezes Cordeiro, constituirá o “exercício disfuncional de posições jurídicas” (“Tratado de Direito Civil, V, Parte Geral, Exercício Jurídico”, 2.ª edição, 2015, Almedina, pág. 403), ou seja, a “disfuncionalidade de comportamentos jurídico-subjetivos” que, embora consentâneos com normas jurídicas, contrariam o sistema jurídico em que estas se inserem, isto é, o conjunto de normas e princípios de Direito, ordenado em função de um ou mais pontos de vista, que aquele postula, iluminado pela ideia central do respeito pela boa-fé (Menezes Cordeiro, obra citada, páginas 400 e 401, 402 a 407).

A aplicação do abuso do direito tem-se desenvolvido a partir de grandes grupos de casos típicos, avultando, para o caso sub judice, o venire contra factum proprium, que foi invocado na decisão recorrida.

Venire contra factum proprium consiste, em Direito, no exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente (Menezes Cordeiro, obra citada, pág. 305). Aqui, a regra da observância da boa-fé expressa-se enquanto tutela da confiança, que pressuporá, seguindo-se a síntese de Menezes Cordeiro, quatro requisitos, não necessariamente cumulativos:

1.º “Uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa-fé subjetiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias”;

2.º “Uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objetivos capazes de, em abstrato, provocarem uma crença plausível”;

3.º “Um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efetivo de atividades jurídicas sobre a crença consubstanciada”;

4.º “A imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela proteção dada ao confiante: tal pessoa, por ação ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao fator objetivo que a tanto conduziu” (Menezes Cordeiro, obra citada, páginas 322 a 324).

Ora, dos autos resulta que os RR., devidamente patrocinados por advogado, concederam à arrendatária de parte do prédio que iam vender direito de preferência na venda – sem que tenha sido alegado nos autos, nem tal minimamente estivesse indiciado, que o fizeram de má-fé, sabendo ou admitindo que a aludida pessoa não gozava desse direito. Tendo dado a conhecer essa situação à contraparte (o ora A.), este, também acompanhado de advogado, não manifestou discordância; pelo contrário, manifestou o seu assentimento, colaborando no sentido de, conforme estipulado no contrato-promessa no caso do exercício do direito de preferência por um terceiro, lhe ser restituído, em singelo, o sinal que prestara. E, nada tendo oposto quando informado da data em que iria ser celebrado o contrato de compra e venda, contribuiu para a criação de um estado de confiança, por parte dos RR., de que não impugnaria o negócio, assim o levando aqueles a cabo, com a dita arrendatária.

Isto exposto, cremos que a exigência de € 110 000,00 de acréscimo, a título de dobro de sinal, à quantia que o A. havia entregue a título de sinal e que já lhe havia sido devolvida, atentaria contra os valores da confiança e de um mínimo de proporção que estruturam o direito, maxime o direito civil.

Nestes termos, entendemos que deve manter-se o acórdão recorrido, improcedendo a revista.

III. DECISÃO

Pelo exposto, julga-se a revista improcedente e, consequentemente, mantém-se o acórdão recorrido.

As custas da revista, na vertente das custas de parte, são a cargo do A., que nela decaiu (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e 533.º do CPC).

Lx, 25.11.2025

Jorge Leal (Relator)

Maria João Vaz Tomé

António Magalhães