A interpretação de um regulamento interno concreto de uma entidade empregadora de interesse muito circunscrito não constitui questão que justifique a admissibilidade de uma revista excecional.
Acordam na Formação prevista no artigo 672.º n.º 3 do Código do Processo Civil junto da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,
AA, Autora da presente ação declarativa comum em que é Ré a Ordem dos Advogados, veio interpor recurso de revista excecional do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.05.2025, ao abrigo das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil (doravante designado por CPC).
A Ré contra-alegou.
Na sua petição inicial a Autora deduziu o seguinte pedido:
“Nestes termos e nos mais de direito deve a presente ação ser julgada procedente, e em consequência, ser a R. condenada a:
1- Reconhecer que a remuneração da A. é, atualmente, de 1.285,16€;
2- Pagar à A. as diferenças entre a remuneração base que a R. lhe pagou entre 1 de Fevereiro de 2018 e 31 de Outubro de 2023 e a remuneração base que deveria ter sido paga, atenta a sua categoria profissional e o disposto no Regulamento Interno do CRL, no montante global de 32.887,44€, e ainda as diferenças salariais vincendas;
3- Pagar à A. a quantia de 417,24€ de diuturnidades vencidas e não pagas entre Fevereiro de 2021 e Agosto de 2022, ao valor mensal de 21,96€;
4- Pagar à A. a quantia de 4.173,75€ das 371 horas de trabalho suplementar efetivamente prestadas entre 1 de Fevereiro de 2018 e 19 de Setembro de 2019 pela A. à R, e que não foram pagas, tendo em conta o período normal de trabalho de 35 horas semanais fixado no Regulamento Interno do CRL;
5- Pagar à A. a quantia de 1.500,00€ por não lhe ter atribuído seguro de saúde entre 1 de Fevereiro de 2018 e 29 de Fevereiro de 2020, ao valor mensal de 60,00€;
6- Quantias a que acrescem juros vencidos, desde o respetivo vencimento e que, a 3 de Novembro de 2023, ascendia a 4.839,81€, e vincendos até efetivo e integral pagamento, à taxa legal supletiva em vigor;
7- Pagar à A. a quantia de 30.000,00€ a título de danos morais, acrescida de juros de mora que se vençam desde a data da sentença e até efetivo e integral pagamento, à taxa legal supletiva em vigor.”.
Por Sentença de 02.08.2024 a ação foi considerada improcedente.
A Autora interpôs recurso de apelação.
Por Acórdão de 14.05.2025 o Tribunal da Relação decidiu:
“Termos em que se acorda:
i. quanto à impugnação da decisão da matéria de facto:
a) alterar o julgado provado n.º 16, ficando assim:
"16 - Em 1 de Julho de 2007, a funcionária da Delegação de ..., BB, com a categoria de Técnica Administrativa, recebia a remuneração base de € 1.134,70, e em 2017, o funcionário CC, com a categoria profissional de contínuo de 2.a, recebia a remuneração base de € 656,00";
b) julgar não provado o facto julgado provado n.º 21;
c) julgar provado o facto julgado não provado em d) - 4) e 5), aditando-se ao facto já julgado provado n.º 5 o seguinte: "i) Presta apoio administrativo na organização eventos da delegação e faz a comunicação externa dos mesmos junto dos advogados e das entidades oficiais";
d) manter a restante decisão da matéria de facto impugnada;
ii. quanto ao mais: negar provimento à apelação e confirmar a sentença recorrida.”.
Como já mencionado, a Autora interpôs recurso de revista excecional.
No seu recurso a Autora identifica assim a questão sobre a qual este Supremo Tribunal de deveria pronunciar:
“A questão discutida nos presentes autos é se o Regulamento Interno do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados e a Ordem de Serviço Interna n.º 2/2008 se aplicam apenas aos trabalhadores afetos ao próprio Conselho Distrital de Lisboa ou também aos trabalhadores afetos às suas vinte e duas Delegações”.
Defende a Recorrente que esta questão “levanta um conjunto de problemas jurídicos com transcendência clara para além do caso dos presentes autos”.
Na Conclusão 5 do recurso fala-se da necessidade de garantir “uma interpretação uniforme e uma aplicação segura e coerente do direito laboral relativamente aos regulamentos internos aprovados pela Recorrida, enquanto empregadora” e na sua Conclusão 6 destaca-se estar em causa uma associação pública profissional dotada de poderes públicos inclusive regulamentares.
Quanto aos interesses de particular relevância social a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, sustenta que “a interpretação controvertida da aplicação do Regulamento Interno do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados e da Ordem de Serviço Interna n.º 2/2008 aos trabalhadores que prestam trabalho nas Delegações do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, afeta diretamente todos os trabalhadores dessas vinte e duas Delegações, podendo também repercutir-se em futuras relações laborais no seio da Recorrida, que prossegue interesses públicos, entre os quais se destacam a defesa do Estado de Direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, bem como a colaboração na administração da justiça e que é dotada de poderes públicos de autoridade (como, por exemplo, os poderes regulamentar e disciplinar)”.
A este propósito, as Conclusões do recurso invocam a insegurança jurídica que o Acórdão recorrido provocaria em todos os trabalhadores das vinte e duas Delegações da Ordem dos Advogados (Conclusão 13 a), a necessidade de evitar decisões contraditórias em casos semelhantes (Conclusão 13 c) e o perigo de “fragilizar a força normativa de regulamentos internos válidos e aprovados formalmente pelo órgão competente do empregador” (Conclusão 13 b).
Cumpre apreciar.
A questão colocada na presente ação é essencialmente uma questão sobre a interpretação da Ordem de Serviço n.º 2/2008 bem como sobre a interpretação do Regulamento Interno do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados – aliás, o próprio Recorrente como já dissemos, reconhece que “[a] questão discutida nos presentes autos é se o Regulamento Interno do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados e a Ordem de Serviço Interna n.º 2/2008 se aplicam apenas aos trabalhadores afetos ao próprio Conselho Distrital de Lisboa ou também aos trabalhadores afetos às suas vinte e duas Delegações”.
A revista excecional é, como o seu próprio nome já sugere, excecional, não devendo “banalizar-se” e converter-se em mais um grau de recurso generalizado.
Começando a análise pelos interesses de particular relevância social a que se reporta a alínea b) do n.º 1 do artigo 672.º, importa destacar que não causa qualquer estranheza ou comoção social uma decisão no sentido de que trabalhadores de diferentes Delegações da Ordem dos Advogados, ainda que com a mesma categoria, possam auferir retribuições distintas, bastando considerar a diferente dimensão e nível de atividade das vinte e duas Delegações espalhadas pelo nosso País. Sintomaticamente o Recorrente invoca sobretudo questões jurídicas mesmo a propósito desta alínea b) do n.º 1 do artigo 672.º, mas não se vislumbra uma razão para a intervenção deste Supremo tribunal fundada na referida alínea.
Quanto à alínea a) importa transcrever uma passagem da fundamentação, aliás muito clara e coerente, do Acórdão recorrido, o qual depois de destacar que as ordens de serviço integram o conceito de regulamento interno em sentido material afirma o seguinte:
“Por outro lado, é bem sabido que os regulamentos internos, como qualquer acto jurídico, são susceptíveis de interpretação (neste sentido, vd. o acórdão da Relação de Lisboa, de 09-11-2011, no processo n.º 3537/09.2TTLSB.L1-4, publicado em http://www.dgsi.pt); e se a esse propósito o n.º 1 do art.º 9.º do Código Civil estatui que "a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada", naturalmente que os mesmos princípios valem, mutatis, mutantis, para os Regulamentos Internos.
Ora, um desses elementos interpretativos é a chamada occasio legis, o qual se mostra particularmente relevante para compreender o dissídio em apreço, isto porque, como atrás se disse, por um lado a testemunha DD subscreveu o primeiro dos citados documentos (Ordem de Serviço n.º 2/2008) na qualidade de Vice-Presidente do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados e, por outro, o documento que documenta a discussão do que deveria ser o seu sentido expressou, com meridiana clareza, que a apelada pretendeu manter uma separação clara entre o centro e a periferia, digamos assim, das carreiras, sem prejuízo de numas e noutras passarem a haver escalões nas categorias profissionais pelas razões referidas pela referida testemunha (a compensação, digamos assim, pelo estabelecimento de isenção de horário de trabalho então instituído). Veja-se o que resultou da discussão, seguida de aprovação consensual, daquele Regulamento:
"O Regulamento Interno respeita exclusivamente à gestão corrente e de natureza laboral, administrativa e procedimental dos meios e dos recursos humanos que lhes estão disponíveis, sem sequer se imiscuir ou permitir qualquer interferência, ténue sequer, na condução concreta dos assuntos internos de cada órgão;
O Regulamento Interno é omisso quanto à definição concreta e objectiva do conteúdo funcional e âmbito de competências dos funcionários, matéria esta que se situa no campo da competência exclusiva de cada órgão, seja ele o Conselho de Deontologia de Lisboa ou cada uma das vinte e duas Delegações que integram o CDL;
(…)
O Regulamento Interno dispõe expressamente que o poder de direcção é exercido por cada um dos órgãos individualmente considerados, no âmbito das suas competências próprias, cabendo a cada um, definir a respectiva acção, em consonância com as especificidades que caracterizam a actividade pelos mesmos livre e independentemente desenvolvida".
Ou seja, se é verdade que a Ordem de Serviço remonta a 2008 e que a aprovação do Regulamento Interno é posterior, de 2010, não restam dúvidas de que sempre houve na apelada a intenção de manter bem vincada a autonomia dos diversos órgãos em que o Conselho Distrital se decompõe. Aliás, que sentido faria dizer-se a propósito deste último que "O Regulamento Interno é omisso quanto à definição concreta e objectiva do conteúdo funcional e âmbito de competências dos funcionários, matéria esta que se situa no campo da competência exclusiva de cada órgão, seja ele o Conselho de Deontologia de Lisboa ou cada uma das vinte e duas Delegações que integram o CDL" para depois pretender ele mesmo igualizar a retribuição, etc., de todos os trabalhadores do Centro e das suas Delegações (além dos trabalhadores do Conselho Deontológico)? Isso seria compreensível caso o Regulamento Interno também procedesse à "definição concreta e objectiva do conteúdo funcional e âmbito de competências dos funcionários", sim, mas de todos eles!”
Como se vê, do que se trata é essencialmente da interpretação do Regulamento interno, tendo o Acórdão recorrido procedido a uma interpretação em função não apenas do seu elemento literal, mas também teleológico e histórico.
A alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC exige para a admissão de uma revista excecional que se trate de uma questão cujo tratamento por este Supremo Tribunal de Justiça seja claramente necessário para uma melhor aplicação do direito.
Ora, também aqui não se vislumbra essa necessidade (e muito menos uma “clara necessidade”). Não é decerto por estar em jogo um regulamento da Ordem dos Advogados que essa interpretação é necessária, sendo que, aliás, o que está verdadeiramente em causa neste processo não é a natureza jurídica do regulamento interno e se o mesmo constitui ou não uma fonte de direito, mas apenas a interpretação de um regulamento concreto, questão que se revela de interesse circunscrito.
Há, pois, que concluir que a presente revista excecional não é admissível.
Decisão: Não se admite a presente revista excecional.
Custas pela Recorrente.
Lisboa, 26 de novembro de 2025
Júlio Gomes (Relator)
José Eduardo Sapateiro
Mário Belo Morgado