INVENTÁRIO
PRESTAÇÃO DE CONTAS
ADMINISTRAÇÃO DA HERANÇA
DESPESAS
CABEÇA DE CASAL
NULIDADE DE ACÓRDÃO
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
NOVOS FACTOS
VIOLAÇÃO DE LEI
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
QUESTÃO DE FACTO
QUESTÃO DE DIREITO
INADMISSIBILIDADE
Sumário


Sumário (cf. art.º 663º, nº7 do CPC):
I. Ao tribunal de revista compete assegurar a legalidade processual do método apreciativo efectuado pela Relação, mas não sindicar o eventual erro desse julgamento nos domínios da apreciação e valoração da prova livre nem da prudente convicção do julgador.
II. As nulidades previstas no nº1 do art.º 615º do CPC só podem ser apreciadas pelo tribunal ad quem quando o recurso é admissível (e como fundamento acessório do recurso).
III. Se não for interposto ou não for admissível o recurso de revista as nulidades de acórdãos podem ser autonomamente arguidas – mas apenas perante a Relação, nos termos do artigo 615.º, n.º 4, do CPC.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório:

AA, melhor identificada nos autos, veio por apenso aos autos principais, intentar Acção Especial de Prestação de Contas – por apenso ao processo de Inventário -, contra as interessadas, BB e CC, pedindo que se julgue verificado o saldo apensado de € 107.045,09, e que sejam condenadas as RR. a pagarem à A., a participação nas despesas, na proporção do seu quinhão, sendo a CC (16,65%), no valor de € 17823,01, e a BB (26,17%), no valor de € 28.013,70 (pedido corrigido por requerimento de 7.6.2023).

Para tanto alegou que no inventário onde foram partilhadas as heranças de DD e de EE, pais da Autora e das Rés, a primeira exerceu o cargo de cabeça de casal e administrou os bens das heranças, fazendo despesas.

Conforme mapa de partilha dos autos principais, as heranças foram partilhadas pela Autora, pelas Rés e por FF, cabendo à R. CC o quinhão de 16,65%, e à R. BB, o quinhão de 26,17%.

No entanto, apesar de interpeladas, as Rés ainda não acertaram contas com a Autora, devendo as segundas à primeira, em igual proporção ao que receberam na partilha, pagar à A. o saldo negativo das despesas por ela despendido na administração das heranças, no valor global de € 108.819,52.


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As Rés vieram contestar a acção, começando por arguir a ilegitimidade da Autora, assim como a ilegitimidade delas próprias, impugnando ainda parte da matéria de facto alegada, dizendo que todas as despesas apresentadas foram pagas com dinheiro dos inventariados, sendo a construção de sepulturas e as missas da alta recriação da Autora, que por isso as tem que assumir na totalidade.

Concluem, a final, pela procedência das excepções invocadas, e se assim se não entender, pela improcedência da acção.


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Tramitados os autos, foram julgadas improcedentes as excepções da ilegitimidade (activa e passiva) invocadas pelas Rés, e foi proferida sentença onde se decidiu julgar parcialmente procedente a presente acção de prestação de contas, julgando-se verificado o saldo de despesas de administração da herança no montante de € 68.229,52, e que deverão recair sobre os interessados na proporção dos respectivos quinhões adjudicados.

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Desta decisão vieram interpor recurso tanto as Rés como a Autora, no âmbito dos quais foi proferido acórdão onde se julgou procedente a Apelação das Rés e improcedente a Apelação da Autora, e em consequência se revogou a sentença recorrida, com a absolvição das Rés dos pedidos contra si formulados pela Autora.

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Desta decisão veio então a Autora interpor o presente recurso de Revista.

A Relação considerou o mesmo recurso tempestivo e legal, admitindo o mesmo com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Cumpridas que foram todas as formalidades legais junto deste Supremo Tribunal de Justiça cumpre decidir.


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II. Enquadramento de facto e de direito:

É consabido que o objecto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso obrigatório, está definido pelo conteúdo das conclusões vertidas pelo recorrente nas suas alegações (cf. artigos 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 do CPC).

Nos autos é o seguinte o teor das conclusões das alegações da Autora:

1. Quando uma decisão judicial padeça da nulidade prevista no art.º 615.º, n.º 1, al. c) do CPC, por os seus fundamentos estarem em oposição com a decisão, ou por ocorrer ambiguidade ou obscuridade que tornasse a decisão ininteligível, o remédio jurídico-processual é a sua anulação, com revolução dos autos ao Tribunal que cometeu a nulidade, para que a repare;

2. No caso dos autos, o Tribunal da Relação de Guimarães aditou à fundamentação um “facto interpretativo”, que se baseia num outro (este um facto propriamente dito): de que a Autora/Recorrente não tinha rendimentos (o qual não foi alegado e nem seleccionado, não constando dos factos provados e não provados, assim inviabilizando a sua impugnação pela Autora/Recorrente em sede própria);

3. O art.º 5.º, n.º2, alínea b), do CPC, ao estatuir a necessidade de o tribunal possibilitar as partes de se pronunciarem acerca da consideração dos factos complementares ou concretizadores decorrentes da instrução da causa, prevê o cumprimento de um contraditório mais exigente, que não se compraz na simples notificação dos meios de prova produzidos de que emerge o facto, antes exigindo, igualmente, a prévia notificação das partes para se pronunciarem sobre a incorporação oficiosa dos novos factos;

4. Se uma “sentença judicial” é um acto jurídico sujeito a interpretação, sempre se dirá que é um acto jurídico “formal”, não podendo a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso;

5. Não podemos olvidar, que a acção foi julgada procedente;

6. E que dos factos provados (ponto 4.) resulta expressamente que a “A. suportou as despesas”;

7. Donde, ao aditar-se à matéria de facto que “Todas as despesas todas pela cabeça de casa foram pagas com dinheiro que pertenciam aos inventariados e à herança” está-se a desvirtuar-se o dispositivo da sentença e o facto provado do ponto 4, que deixa de ter o seu sentido e alcance normal, para passar a significar que, afinal, não foi a A,. mas os inventariados (ou a herança) a suportar as despesas.

8. A mera necessidade de aditamento de “novos factos” demonstra inequivocamente, que a decisão proferida pela 1.ª instância, quando interpretada pelo que nesta é dito/escrito, não permite o resultado jurídico alcançado pelo Tribunal da Relação de Guimarães.

9. Constitui violação do dever de reapreciação da matéria de facto pela Relação a inconsideração da possibilidade de aditamento de factualidade complementar ou concretizadora de factos essenciais alegados com fundamento na circunstância de o juiz de 1.ª instância não ter feito uso dos poderes de cognição atribuídos pelo artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do CPC.

10. O Tribunal da Relação de Guimarães, desconsiderou (mal) pretensão recursória da Autora, de ver aditados à fundamentação os seguintes factos instrumentais que decorrem dos autos principais (de inventário):

1 – Por douto despacho de fls. 564 do Vol. II do processo principal, de inventário, que mandou rectificar a relação de bens de fls. 399 a 403 do mesmo volume, foi determinado o relacionamento dos saldos de € 37.938,55, €103.602,94 e €7.238,31, existentes em contas da CGD à data do óbito do primeiro inventariado pai, DD;

2 – Na relação de bens constante de fls. 399 a 403, do Vol. II, rectificada nos termos do despacho mencionado em 1, foram relacionadas as seguintes verbas de dinheiro:

- Verba 10, o montante de €333.276,71, relativo à indemnização por expropriação; - Verba 11, saldo de €7.238,31 existente em conta da CGD;

- Ver 11-A, o montante de €141.291,49 arrolado à A. no procedimento cautelar que consubstancia o apenso A;

3 – Na acta da conferência de interessados de fls. 112, do Vol. IV, as verbas 10 e 11 da relação de bens, que constituem os saldos bancários existentes à data do óbito do primeiro inventariado, foram adjudicadas na íntegra e sem ser desconto das despesas da administração das heranças (arroladas nas verbas 13 a 21 do passivo), a todas as interessadas na proporção dos seus quinhões;

4 – Na mesma acta de conferência de interessados, o passivo relacionado nas verbas 13 a 21, todas encargos da herança e despesas de administração da herança do primeiro inventariado, não foi aprovado e nem admitido pelas agora RR., tendo-se seguido despacho que remeteu a A. para os meios comuns;

5 – Pelo despacho de fls. 1133 a 1134-verso do Vol. IV, adjudica às RR., sem dedução de qualquer despesa, a totalidade da verba 11-A;

6 – Por requerimentos das RR. de fls. 1467 a 1468 e de 1474 a 1475, ambos do Vol. V, estas exigiram da A. o pagamento da totalidade dos seus quinhões e da totalidade do dinheiro arrolado relativos às vernas 10 a 11-A, mais uma vez sem dedução de qualquer despesa;

7 – Por requerimento da A., de fls. 1523, esta manifestou que, do montante relacionado sob a verba 10 (€333.276,71) já só subsistia o montante de €210.000,00, por o restante ter sido gasto nos encargos da herança oportunamente relacionados como passivo.

11. Esta é a factualidade que constitui o pressuposto da decisão da 1.ª Instância, da qual decorre, linearmente, a dedução do facto incontornável de ter sido a A. quem suportou todos os embargos e despesas, independentemente da titularidade original dos dinheiros que foram usados;

12. A cabeça de casal como administradora dos bens da herança, teve que repor aos bens a partilhar todos os montantes, sem desconto das despesas. E esta reposição, dos dinheiros que foram dados em posse da cabeça de casal, àquela data, é que levou e leva a aqui A. (cabeça-de-casal) a suportar, por sua conta, todas as despesas da administração da herança, mesmo que pagas com o inicial dinheiro que pertencia às heranças, e que a A. teve de repor e já foi partilhado;

13. Além disso, a presente prestação de contas, como se alega e resulta da petição inicial (artigos 1.º e 2.º), consta do processo principal de inventário, e não impugnado na contestação, foi intentado posteriormente ao termo do processo de inventário;

14. Tendo sido partilhados todos os bens e dinheiros que pertenciam às heranças dos inventariados, sem a redução das despesas da administração das heranças, e sem a aceitação em inventário de qualquer prestação de contas;

15. Pelo que, seja qual for a designação que se atribua aos gastos suportados pela A. na administração da herança, tais despesas foram sempre da sua conta, porque teve de repor à partilha todos os dinheiros que tinham existido nas heranças;

16. E tal como se deve entender que as responsabilidades pelo pagamento das despesas apuradas devem recair sobre as interessadas na proporção dos seus quinhões já adjudicados;

17. Porém, estando findo o inventário e a partilha já foi realizada, com trânsito em julgado, em que foi considerada a totalidade dos dinheiros e demais bens, tendo as apelantes recebido integralmente o seu quinhão sem dedução das despesas, que foram suportadas pela cabeça de casal, na impossibilidade de se proceder à redução ou subtracção dos quinhões repectivos das apelantes do valor das despesas pagas pela cabeça de casal, sempre estas devem ser condenadas a pagar à A., nas proporções dos seus quinhões, já assentes no ponto 3 dos factos provados, o saldo verificado, que deverá ser de €68.229,52, €108.819,52 ou €104.639,52, conforme a decisão que este Venerando Tribunal ad quem tomar relativamente à impugnação da decisão da matéria de facto, no recurso interposto pela aqui apelada.

18. O douto acórdão recorrido viola os art.os 5.º, n.º 1, al. b), 615.º, n.º 1, al. c) e 662.º, n.º 2, al. c) do CPC, e o art.º 238.º, n.º 1 do Código Civil.

Termos em que requer a Vªs. Ex.as, Venerandos Conselheiros, que concedendo provimento à presente revista, revoguem o douto acórdão recorrido, expurgando-se da fundamentação o facto aditado, e ordenando-se a devolução dos autos ao Tribunal da Relação de Guimarães, com vista à efectiva apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto deduzida pela A. e, ainda, à ampliação da matéria de facto nos termos por aquela requeridos, a fim de ser proferido novo acórdão ou ordenada a devolução dos autos à 1.ª instância, nos termos do art.º 662.º, n.º 2, al. c) do CPC, com as legais consequências.


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E é o seguinte o teor das conclusões nas contra alegações das Rés:

A-) A recorrente ignora intencionalmente nas suas alegações o recurso interposto pelas Rés, que foi julgado procedente e que, por via disso, foi alterada a matéria de facto e introduzido um novo facto do seguinte teor: “Todas as despesas tidas pela cabeça de casal foram pagas com dinheiro que pertenciam aos inventariados e à herança”;

B-) Nos termos do disposto no artigo 674º, nº 3 do C.P.C.: “O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.”;

C-) Fixada que está a matéria de facto, o recurso é absolutamente inconsequente e serve apenas para “atacar” a posição expressa pelo Tribunal “a quo”, que mais não fez do que decidir como se impunha decidir;

D-) O facto acrescentado resulta da prova produzida em audiência de julgamento, como muito bem afirma o Douto Acórdão recorrido, tendo todas as testemunhas afirmado o mesmo, inclusive a própria irmã da recorrente (com quem esta faz parelha), FF;

E-) Não é verdade que o dinheiro em causa, que pertencia à herança, foi todo partilhado e que por isso, as contas só podiam ter sido pagas pela recorrente;

F-) As contas que apresentou a recorrente são todas efectuadas em vida dos dois inventariados, ou de pelo menos um;

G-) O dinheiro era e só podia ser pertença dos inventariados, tanto mais que a recorrente e a sua irmã FF, nem sequer tinham emprego, razão pela qual viviam dos rendimentos das propriedades dos inventariados;

H-) A ação ter sido intentada depois da partilha, só sucedeu porque as recorridas nunca aceitaram as contas apresentadas pela recorrente, tendo sido remetida pelo Juiz da 1ª Instância para os meios comuns;

I-) A verdade é que as recorridas nunca aceitaram pagar o que quer que fosse, porque sempre foi o dinheiro dos seus pais e não da recorrente que pagou as contas;

J-) O recurso da recorrente está inquinado, porque com a factualidade assente, terá que se manter na totalidade a decisão de direito;

K-) A recorrente o que queria era uma decisão diferente, e mesmo sem argumentos esgrime posições, que mais não são do que torpes ataques ao Douto Acórdão que está bem fundamentado e bem sustentado;

L-) O Douto Acórdão recorrido não viola nenhum dispositivo legal e nem padece de quaisquer outros vícios, pelo que deve ser integralmente mantido.

Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente por não provado, com as legais consequências.


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Foram dados como provados (e não provados) na primeira instância os seguintes factos:

“1. No inventário do processo principal, onde foram partilhadas as heranças de DD e de EE, a A. exerceu o cargo de cabeça de casal, e administrou os bens das heranças, fazendo despesas.

2. Conforme mapa de partilha dos autos principais, as heranças foram partilhadas pela A., RR. e FF.

3. Sendo que, na partilha, coube à R. CC o quinhão de 16,65% e à R. BB coube o quinhão de 26,17%.

4. A A. suportou as seguintes despesas:

I - Para obtenção da indemnização por expropriação (processo nº 29/99 TBFAF, 2º Juízo): - €119,72, a título de custas; - €1.650,00, a título de imposto de selo;

5. Despesas com o funeral de ambos os inventariados, da aquisição e construção da sepultura no cemitério paroquial de ..., com missas, com os demais bens móveis e imóveis bens que integravam a herança, designadamente um veículo automóvel e os prédios rústicos e urbanos, tendo realizado as competentes benfeitorias e conservação dos mesmos até à partilha, seguros e impostos:

a) €1.210,99 do funeral do inventariado DD;

b) €1.745,00 na construção de sepultura;

c) €1.883,00 do funeral da inventariada EE;

d) € 442,88 em missas em sufrágio dos inventariados;

e) € 4.553,00 em serviços de conservação e limpezas dos diversos prédios rústicos;

f) € 4.054,05 a titulo de IMF;

g) € 2.485,32 € com o veículo automóvel;

h) € 2.089,41 a titulo de condomínio;

i) € 6.741,40 € em obras e outras benfeitorias nos prédios;

j) € 996,85 em produtos para tratamento das culturas dos prédios rústicos;

7. Despesas, durante a vida da inventariada EE, com o seu alojamento, alimentação, vestuário, cuidados de saúde e outros, no caso:

a) € 6526,16 em despesas de electricidade;

b) € 22.822,65 em despesas de saúde da inventariada EE;

c) € 8.372,55 em aquecimento para a inventariada;

8. Despesas com o valor das custas processuais que à inventariada foram imputadas no âmbito do processo de interdição que correu termos pelo Tribunal Judicial de Fafe, com o nº2439/2006.9TBFAF, no valor de €2.536,54;

9. A cabeça de casal em funções desde 2015 é a Ré BB.

10. A construção de sepultura e as missas não foram ordenadas pelos inventariados.

11. A quantia indemnizatória atribuída no âmbito do processo nº 29/99, foi depositada na conta da CGD nº .......... .00, tendo sido levantada dessa mesma conta em 23/12/2023 a quantia de € 36.410,00.

Factos Não Provados:

- Para obtenção da indemnização por expropriação (processo nº 29/99 TBFAF, 2º Juízo): a) €40.590,00, a título de honorários e despesas do processo de expropriação nº 29/99, pagos ao mandatário no processo.”


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Na sequência do recurso da decisão da matéria de facto, a Relação aditou aos factos provados o seguinte:

“Todas as despesas tidas pela cabeça de casal foram pagas com dinheiro que pertenciam aos inventariados e à herança”.


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Perante o antes exposto, o que se verifica é que a Autora ora Recorrente delimita este seu recurso de revista na violação das regras previstas nos artigos 5.º, n.º 1, al. b), 615.º, n.º 1, al. c) e 662.º, n.º 2, al. c) do CPC, e o art.º 238.º, n.º 1 do Código Civil.

E perante tal alegação, cabe chamar desde logo à colação o que a propósito dos fundamentos da revista resulta do disposto no art.º 674º, nº1, alíneas b) e c) e nº3 do CPC, cuja redacção é, recorde-se, a seguinte:

“1- A revista pode ter por fundamento:

a) (…);

b) A violação ou errada aplicação da lei de processo;

c) As nulidades previstas nos artigos 615º e 666º.

2- (…)

3- O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.”

Face ao disposto no nº3 é jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal de Justiça, que, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 46º da Lei 62/2013, de 26 de Agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário) e 682º do Código de Processo Civil, o Supremo Tribunal de Justiça é um tribunal de revista que, salvo nos casos excepcionais contemplados no nº 3 do artigo 674º do CPC, aplica definitivamente o regime jurídico aos factos materiais fixados pelo Tribunal recorrido, consistindo as excepções referidas “na ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova”, como dispõe o nº 3 do artigo 674º do C.P.C. (prova vinculada).

Por ser assim, a sindicância do modo como a Relação fixou os factos materiais só pode ocorrer no âmbito do recurso de revista se aquele Tribunal deu por provado um facto sem produção do tipo de prova que a lei exige como indispensável para demonstrar a sua existência ou se tiver incumprido os preceitos reguladores da força probatória de certos meios de prova.

Tal significa que, por regra, e salvo nas situações excepcionais assinaladas, é definitivo o juízo formulado pelo Tribunal da Relação, no âmbito do disposto no artigo 662º, nºs 1 e 2, do C.P.C., em matéria de facto sobre prova sujeita à livre apreciação, não podendo o mesmo ser modificado ou censurado pelo Supremo Tribunal de Justiça, cuja intervenção está limitada aos casos da parte final do nº 3 do artigo 674º do mesmo Código, nos termos do qual o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, que o mesmo é dizer que o erro de julgamento em matéria de facto em si, quando não esteja inquinado por erro de direito, não é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça e não pode constituir fundamento de recurso de revista.

Contudo, é sabido que o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, pode censurar o modo como a Relação exerceu os poderes de reapreciação da matéria de facto, já que se tal for feito ao arrepio do artigo 662º do Código do Processo Civil, se está no âmbito da aplicação deste preceito e, por conseguinte, em matéria de direito.

Em suma, ao tribunal de revista compete pois assegurar a legalidade processual do método apreciativo efectuado pela Relação, mas não sindicar o eventual erro desse julgamento nos domínios da apreciação e valoração da prova livre nem da prudente convicção do julgador.

Ora nos autos e como já vimos, é invocada a violação das regras previstas nos artigos 5.º, n.º 1, al. b), 615.º, n.º 1, al. c) e 662.º, n.º 2, al. c) do CPC, e o art.º 238.º, n.º 1 do Código Civil.

São conhecidas as razões pelas quais a Relação decidiu aditar à matéria provada o facto antes melhor identificado, razões essas que por manifesta desnecessidade nos dispensamos de voltar aqui a reproduzir.

E perante o que das mesmas decorre, resulta para nós evidente que a ter provimento a pretensão da Autora, o que poderia estar eventualmente em causa era um “erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa”, o qual nos termos do nº3 do art.º 674º do CPC e porque não se discute qualquer “ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”, não pode ser sindicável no presente recurso de revista.

Ou seja, não pode a questão suscitada ser por nós conhecida.

Por fim, cumpre recordar que na presente revista foi também invocada a violação das regras dos artigos 5º, nº2, alínea b) e 615º, nº1, alínea c) do CPC e arguidas as nulidades que na tese da autora/recorrente daí decorrem.

Perante tal alegação é relevante ter em conta o seguinte:

Como é sabido, e vem sendo repetidamente afirmado na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, as nulidades previstas no n.º 1 do artigo 615.º do CPC só podem ser apreciadas pelo tribunal ad quem quando o recurso é admissível (e como fundamento acessório do recurso).

Não sendo, como não é, admissível o recurso, só podem ser apreciadas pelo Tribunal a quo (cf. artigo 615.º, n.º 4, do CPC) (cf. por exemplo, neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.02.2020, Proc. 1284/09.4TMPRT-B.P1.S1 (disponível em https://jurisprudencia.csm.org.pt/).

A este propósito é também relevante a opinião de A. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2024 (8ª edição), págs. 491- 492 e págs. 539 – 541 (respectivamente em comentário ao artigo 671.º e ao artigo 674.º do CPC), donde resulta que se não for interposto ou não for admissível o recurso de revista as nulidades de acórdãos podem ser autonomamente arguidas – mas apenas perante a Relação, nos termos do artigo 615.º, n.º 4, do CPC.

Ainda a este propósito cf. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.12.2017, Proc. 22388/13.3T2SNT-B.L1-A.S1 (disponível em dgsi.pt), onde se diz o seguinte: “[a]pesar do artigo 674.º, n.º 1, alínea c), do CPC, estabelecer que a revista pode ter por fundamento as nulidades previstas nas alíneas b) a e) do artigo 615.º do CPC, aquela norma não pode deixar de ser conjugada com o preceituado no n.º 4 deste mesmo artigo, segundo o qual, tais nulidades só são arguíveis por via recursória quando da decisão reclamada caiba também recurso ordinário, ou seja, como fundamento acessório desse recurso”.

No entanto, o que se verifica é que nos autos nem sequer se chegou a conhecer do objecto do recurso, por se ter considerado que as questões suscitadas pela autora/recorrente estavam fora do âmbito de sindicância do Supremo Tribunal de Justiça.

E a ser assim, achamos que tem interesse considerar o que em situação similar foi feito constar no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.11.2024, cujo relato pertence ao Conselheiro Ricardo Costa, no processo nº20526/18.9T8LSB.L2.S1., em www.dgsi.pt., onde em nota de rodapé e com evidente interesse para o nosso caso se afirma: “uma coisa é a admissibilidade da revista (), outra coisa é aquilo que não pode ser objeto da revista, posto que esta seja admissível. No primeiro caso o recurso não chega a ser aberto (não se conhece do seu objeto), no segundo caso o recurso é aberto, apenas acontece que improcede se não se contiver dentro dos limites dos fundamentos legais da revista.” –, 17/11/2020, processo n.º 19128/18, e de 21/9/2021, processo n.º 2380/08, in www.dgsi.pt.).

Em suma e pelas razões expostas, não podem pois as nulidades invocadas ser conhecidas no âmbito do recurso aqui interposto.


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III. Decisão:

Pelo exposto e com todas as consequências que daí decorrem, não se toma conhecimento do objecto do recurso.


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Custas a cargo da Autora/Recorrente (art.º 527º, nºs 1 e 2 do CPC).

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Notifique.

Lisboa, 27 de Novembro de 2025

Relator: Carlos Portela

1º Adjunto: Fernando Baptista de Oliveira

2ª Adjunta: Catarina Serra