Integra o «exemplo-padrão» no n.º 2 do artigo 132.º do Código penal, o facto praticado pelo inquilino, homem no auge da sua força física (41 anos de idade), que intencionalmente mata o seu senhorio, pessoa já com 71 anos de idade e aposentada, através de potente asfixia, apenas por ter sido interpelado por aquele acerca de rendas em atraso e mostra de desagrado por o locado se mostrar mal estimado; e de seguida se apodera do cartão de débito da vítima (que permite fazer transações apenas por aproximação ao terminal de pagamento automático), com ele
pagando no supermercado a película aderente que juntamente com fita adesiva, envolveu e selou o corpo da vítima, colocando-o debaixo de uma cama existente no quarto ao lado daquele que ocupava.
a. No ….º Juízo1 Central Cível e Criminal de … procedeu-se a julgamento em processo comum perante tribunal coletivo de AA, nascido a …1980, com os demais sinais constantes dos autos, aos quais foi imputada a autoria de:
- um crime de homicídio qualificado, previsto nos artigos 131.º e 132.º, § 1.º e 2.º, als. d), e) e j) do Código Penal (CP);
- um crime de profanação de cadáver, previsto no artigo 254.º, § 1.º, als. a) e b) CP, e
- um crime de detenção de arma proibida, previsto no artigo 86.º, § 1.º, als. a) e c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.
BB, mulher do falecido, constituiu-se assistente e deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido/demandado, requerendo a condenação deste a pagar-lhe: 10 000€ a título de danos patrimoniais; 20 000€ por danos sofridos pelo ofendido antes de morrer; e 30 000€, por danos não patrimoniais sofridos pela assistente, todas acrescidas de juros à taxa legal desde a citação até o efetivo e integral pagamento.2
Procedeu-se a julgamento e a final o tribunal coletivo proferiu acórdão, pelo qual condenou o arguido como autor de um crime de homicídio qualificado, previsto nos artigos 131.º e 132.º, § 1.º e 2.º al. e) CP, na pena de 17 anos de prisão; pela autoria de um crime de profanação de cadáver, previsto no artigo 254.º, § 1-º, als. a) e b) CP, na pena parcelar de 1 ano e 4 meses de prisão; pela autoria de um crime de detenção de arma proibida, previsto no artigo 86.º, § 1.º, al. c), da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro (Lei das armas), na pena de 1 ano e 8 meses de prisão.
Operando o cúmulo jurídico dos crimes em concurso, nos termos previstos no artigo 77.º CP, condenou o arguido na pena única de 18 anos e 6 meses de prisão.
Mais condenou o arguido/demandado a pagar à demandante 10 000€ a título de danos não patrimoniais sofridos pela própria demandante; 50 000€ a título de danos não patrimoniais e dano morte da vítima.
Absolvendo o demandado do demais pedido.
b. Inconformado com a condenação o arguido interpôs recurso para este Tribunal da Relação, rematando a respetiva motivação com as seguintes conclusões (e só aquelas que o são à luz do artigo 412.º/1 in fine CPP):
«(…) A matéria de facto assente, não consente a punição do arguido e ora recorrente pela prática do crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelo artigo 132.º, n.º 2 alínea e) do Código Penal, como foi decidido pelo Tribunal Recorrido.
Resultam da matéria considerada assente factos que apenas permitem condenar o arguido pelo crime de homicídio simples, previsto pelo artigo 131.º do Código Penal, afastando, por inexistir qualquer circunstância reveladora de qualificação.
(…)
Entende o arguido e ora recorrente que o douto acórdão interpretou e aplicou erradamente o disposto no artigo 132.º, n.º 1 e n.º 2 do Código Penal, fazendo apelo a circunstâncias agravantes que não se verificam, violando desta forma, o disposto no artigo 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea e) todos do Código Penal.»
Os factos praticados pelo arguido integram a qualificação jurídica do crime de homicídio simples previsto e punido pelo artigo 131.º do Código Penal.
Também a indemnização de 50 000€ arbitrada pelo Tribunal “a quo” a título de danos morais sofridos pelo ofendido e pelo dano morte, se mostra excessiva face ao peticionado pela demandante - conforme se comprova pelo referido no artigo 75.º do Pedido de Indemnização civil – a qual peticionou apenas a quantia de 20 000€.
Para ressarcimento dos danos morais sofridos pelo ofendido e pelo dano morte, parece-nos justa e equilibrada uma indemnização que não ultrapasse os 35 000€.»
c. Recebido o recurso a ele respondeu o Ministério Público, dizendo em síntese que:
O comportamento do recorrente é especialmente censurável e desproporcional à conduta do ofendido, sendo o comportamento por si adotado incompreensível face às regras da experiência comum e ao homem médio suposto pela ordem jurídica, tendo atuado de forma a preencher os requisitos da especial censurabilidade previstos no artigo 132.º, n.º 2 do Código Penal, mais concretamente a qualificativa prevista na alínea e), uma vez que atuou determinado por motivo fútil/gratuito.
Considerando a idade do ofendido à data da morte (71 anos) e o futuro que tinha à sua frente, de pelo menos mais 7 anos, o sofrimento natural, desgosto e abalo sofrido pela sua mulher e aqui assistente/demandante, mormente atentas as circunstâncias da morte do ofendido, sem esquecer a situação económica e social do recorrente, que, aliás, resulta da matéria de facto provada, afigura-se equitativa e justa a indemnização de 50 000€ arbitrada pelo Tribunal a quo a favor da assistente/demandante, em resultado dos danos não patrimoniais e do dano morte do ofendido, pelo que se entende que deverá manter-se a obrigação de indemnizar a assistente/demandante no exato quantitativo fixado pelo Tribunal a quo.
d. Neste Tribunal Superior o Ministério Público produziu douto parecer, em que sustenta a sem razão do recurso, para o que refere, no essencial, que:
«Todo o circunstancialismo em que o facto foi praticado, demonstra uma total indiferença pela vida humana, pelo que se considera preenchido este juízo de especial censurabilidade.
Nessa medida, considera-se preenchida a qualificativa prevista da al. e) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal. E relativamente ao “abaixamento” da indemnização estabelecida pelo Tribunal “a quo”, também não assiste razão ao arguido / recorrente.»
e. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, respondeu a assistente, dizendo que: «acompanha integralmente o, igualmente mui douto Parecer [Ref.ª: 9864960], emitido nos presentes autos, pelo Digníssimo Procurador-Geral Adjunto, junto desse TRE.»
f. Também o arguido/recorrente respondeu afirmando a sua discordância com o teor do parecer, dando nesse contexto como integralmente reproduzidas a motivação e conclusões de recurso apresentados.
g. Foram colhidos os vistos e teve lugar a conferência.
Cumpre decidir.
II – Fundamentação
A. Delimitação do objeto do recurso
Sem prejuízo do dever de conhecimento oficioso dos vícios indicados no artigo 410.º, § 2.º do CPP e nulidades, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação.
Neste contexto constatamos serem as seguintes as questões que cumpre apreciar e sobre as quais importa decidir:
i) Erro de julgamento – qualificação jurídica dos factos;
ii) Erro de julgamento relativamente ao quantum indemnizatório.
B. No acórdão recorrido julgaram-se provados os seguintes factos:
«1. Em data não concretamente apurada, mas anterior a julho de 2024, AA arrendou a CC um quarto do imóvel sito na Rua … , …, …, local onde passou a residir.
2. No dia 15 de julho de 2024, no interior do imóvel sito na Rua …, …, em …, AA foi abordado por CC, que se deslocou ao local a fim de alertar aquele para a falta de pagamento das rendas e para o descuido com os cuidados de limpeza e manutenção do imóvel.
3. Desagradado com o teor da conversa, AA, de modo não concretamente apurado, fraturou o osso mandibular esquerdo e o osso zigomático esquerdo do ofendido.
4. Na mesma ocasião, AA pôs e manteve as mãos à volta do pescoço de CC, exercendo força muscular intensa, apertando e pressionando, até que este deixasse de respirar e caísse inanimado no chão, sem movimentos respiratórios e cardíacos.
5. Em consequência direta e necessária da conduta de AA, CC sofreu de fratura do osso mandibular esquerdo, de fratura do osso zigomático esquerdo e de fratura do osso hioide bilateral nos cornos maiores, esta causa direta e necessária da morte por asfixia/esganadura do mesmo.
6. Depois de ter verificado que CC não respirava nem reagia, AA retirou-lhe, entre outros, um cartão de débito da …, com o número …, e tecnologia “contactless” – que permite fazer transações apenas por aproximação ao terminal de pagamento automático (TPA), sem ter de inserir o PIN- que utilizou, com consciência de que os pagamentos que efetuasse seriam descontados na conta de depósitos número … n.º…, da …, de que aquele era titular.
7. Pelas 19H48, AA dirigiu-se ao hipermercado “…”, sito no centro comercial “…” e, entre outros artigos, comprou três rolos de película aderente, que pagou com o cartão de débito da …, com o número ….
8. De regresso à residência sita na Rua …, …, em …, AA envolveu a cintura, as pernas e os pés de CC com película aderente, que selou com fita adesiva, e envolveu-lhe o tronco, os membros superiores e a cabeça com um lençol.
9. De seguida, AA enrolou um edredão à volta do corpo de CC e colocou-o debaixo de uma cama, existente no quarto ao lado daquele que ocupava, onde permaneceu até ao dia 2 de agosto de 2024.
10. No dia 18 de agosto de 2024, nas imediações da …, em …, no interior do veículo em que habitualmente se fazia transportar, de marca “…” modelo “…”, de matrícula …, AA tinha com ele uma pistola, de marca “…”, com o número de série …, de 7,65 milímetros de calibre, com uma munição de 7,65 milímetros de calibre na câmara e seis munições de 7,65 milímetros de calibre no carregador.
11. Ao agir da forma descrita, por ter sido alertado para a necessidade de pagar a renda e de manter o imóvel limpo e cuidado, exercendo força muscular, de forma crua e persistente, AA quis apertar e manter apertado o pescoço de CC com o propósito concretizado de lhe retirar a vida, como fez.
12. Do modo descrito, AA quis esconder o cadáver de CC, para que não fosse encontrado e para que não fosse descoberto o crime que cometeu, o que fez com insensibilidade e consciência de que ofendia o sentimento moral coletivo de respeito devido aos mortos, o que quis e logrou alcançar.
13. Nas referidas circunstâncias de tempo e de lugar, AA quis ter e tinha com ele as mencionadas pistola e munições, cujas características conhecia, e que sabia não poder ter por não ser titular de licença de uso e porte de arma.
14. AA agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, vem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas.
Do pedido de indemnização civil
15. O ofendido CC teve perceção e consciência de que iria morrer, sabendo que não tinha ninguém para o socorrer.
16. Foi uma morte dolorosa.
17. À data da sua morte, CC tinha 71 anos de idade, era professor reformado.
18. Auferia mensalmente de reforma a quantia ilíquida de 2 331,70€.
19. Era casado com a assistente BB há 37 anos.
20. Não tiveram filhos, sendo a assistente a única herdeira do falecido CC.
21. A assistente é professora reformada do ensino secundário.
22. A assistente recebe 1 327,88€ a título de pensão de viuvez.
23. CC era a única companhia da assistente.
24. Após a morte do marido, a assistente passou a sofrer de ansiedade, humor deprimido, alteração dos padrões de sono – insónia e apatia/desinteresse.
25. Passou a ser acompanhada na especialidade de psiquiatria e a fazer medicação com ….
26. A assistente perdeu a alegria e a vontade de viver.
27. Vive angustiada, pesarosa, receoso e com tristeza.
28. A esperança média de vida para os cidadãos portugueses do sexo masculino é de 78 anos.
Mais se provou:
29. O arguido abandonou, sem explicações, o local de trabalho em período anterior a prática dos factos, isolando-se no local onde residia e não respondendo aos contactos da irmã.
30. O arguido concluiu o 12º Ano de informática, aos 20 anos, começando a trabalhar nessa área numa fábrica. Após 2 anos, o arguido deixa este primeiro emprego e vai trabalhar, durante 8 anos como operário fabril numa empresa de produção de componentes para automóveis.
31. Na sequência de um esgotamento psicológico, AA abandona este posto de trabalho e, após negociação com a empresa, permanece por um período de ano e meio no desemprego.
32. Durante este período, o arguido recebe formação em eletricidade e telecomunicações, o que lhe permitiu começar a trabalhar como técnico em diversas empresas de telecomunicações e montagem de painéis solares, atividade que mantém até fevereiro de 2024.
33. Casou aos 25 anos, fruto deste relacionamento, o arguido tem três filhos, DD, de … anos, EE, de … e FF de … que residem em … com a progenitora
34. O arguido não mantém contactos com os filhos.
35. A nível familiar, tem uma irmã com quem mantém contactos e é quem lhe presta auxílio económico.
36. Não mantém contactos com a progenitora e o progenitor faleceu em 2024.
37. No estabelecimento prisional onde se encontra, recebe visitas da irmã e do cunhado.
38. Não possui condenações registadas no seu certificado de registo criminal.»
C.1 Qualificação jurídica dos factos
O acórdão recorrido considerou que: «o arguido atuou motivado pelo facto de opor-se e estar descontente com as exigências do ofendido em relação ao quarto onde residia, nomeadamente acerca das questões de higiene e atraso no pagamento das rendas.
Ora, para o normal dos cidadãos é claro que tal motivo é completamente irrisório, insignificante e desproporcional face à atuação do arguido, demonstrando este um total desprezo pelo valor da vida humana.
Atendendo à imagem global dos factos, nomeadamente ter o ofendido 71 anos, ser senhorio do arguido, ter agido apenas em prol dos seus interesses no que diz respeito ao imóvel em causa, a indiferença demonstrada pelo arguido, quer em razão da idade da vítima quer da posição que assumia. Bem como os factos posteriores – a forma como agiu em relação ao cadáver. Ter utilizado o próprio cartão do ofendido para comprar os materiais que utilizou para ocultar o cadáver. E ter ficado a dormir no quarto ao lado onde havia escondido o corpo, demonstram uma grande insensibilidade por parte do arguido.
Todo este circunstancialismo em que o facto foi praticado, demonstram uma total indiferença pela vida humana, pelo que se considera preenchido este juízo de especial censurabilidade.»
O arguido recorrente sustenta, sem razão, que a sua atuação na ocasião descrita nos factos provados, não integra nenhuma das alíneas do § 2.º do artigo 132.º CP.
Mas não tem razão.
Vejam-se as circunstâncias: o arguido é inquilino da vítima e tem rendas em atraso, a mais de trazer o locado mal estimado. Por essa razão o senhorio, pessoa já com 71 anos de idade e aposentada, foi procurar o inquilino, id est, a vítima foi ter com o arguido para tratar de um assunto corrente, ainda que decerto desagradável para ambos.
Vistas as coisas no contexto da vida normal das pessoas, o motivo do encontro era, pois, singelo e perfeitamente normal. O que o atirou para fora dessa normalidade, foi o modo como o arguido reagiu à interpelação do senhorio.
Pode perfeitamente admitir-se que o inquilino ficasse triste, magoado e até desgastado com tal interpelação. Até mesmo que isso tivesse desencadeado alguma espécie de atrito verbal. No limite até mesmo físico (obrigando-o a afastar-se do local, p. ex.). Mas o que aconteceu está muito para além de tudo o que se deixou dito.
O arguido, homem no auge da sua força física (41 anos de idade), não hesitou em dominar e matar o seu interpelante (homem reformado já com 71 anos de idade) através de potente asfixia, o que só alguém com total desprezo pela vida humana concebe e consegue. Isto é, só alguém que tem um profundo desprezo pela vida humana atua desse modo ante tal quadro circunstancial. Ora isso, no âmbito da estrutura valorativa que impregna os «exemplos padrão» do § 2.º do artigo 132.º CP, é um motivo fútil (al. e).
Em suma: o crime cometido foi de homicídio qualificado, conforme bem decidiu o tribunal coletivo.
Nada havendo nesse conspecto a corrigir.
C.2 Da indemnização civil
Entende o arguido/recorrente que o montante de 50 000€ fixados pelo tribunal recorrido a título de danos morais sofridos pelo ofendido e pelo dano da perda da vida, se mostra excessiva face ao peticionado pela demandante (já que a tal título peticionara apenas 20 000€), considerando-se ajustado que 35 000€ seriam uma compensação ajustadas de tais danos.
Neste conspecto o acórdão recorrido refere o seguinte:
«A assistente BB, deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido reproduzindo os factos constantes da acusação e alegando, em síntese, que a morte de CC foi causada pelo arguido de forma agonizante, percebendo este que iria morrer sem possibilidade de pedir auxílio, que a vítima era professor reformado com gosto de viver e casado com a assistente há mais de 37 anos.
Não tiveram filhos, pelo que a única companhia da assistente era o marido, tendo a morte do mesmo, pela forma brusca e violenta como ocorreu, a deixado destroçada física e emocionalmente, carecendo de acompanhamento psiquiátrico e fazendo uso de medicação. Alega ainda que deixou de poder contar com a reforma do marido para fazer face as suas despesas. Por fim, peticiona que o arguido seja condenado a pagar i) à título de danos patrimoniais: 10 000€; ii) por danos sofridos pelo ofendido antes de morrer 20 000€; iii) por danos não patrimoniais 30 000€, tudo acrescido de jutos à taxa legal desde a citação até o efetivo e integral pagamento.
Nos termos do artigo 129.º, do Código Penal, a indemnização por perdas e danos emergentes de um crime é regulada na lei civil, quantitativamente e nos seus pressupostos, sendo que, nos termos do artigo 71.º do Código Penal , o pedido de indemnização civil deduzido em processo penal deve ter por fundamento a prática de um crime (cfr. Assento 7/99, publicado no DR, I Série, de 03.08.1999).
Por conseguinte, são aplicáveis as normas constantes dos artigos 483.º e seguintes do Código Civil, de onde resulta que a obrigação de indemnizar decorrente da responsabilidade civil subjetiva implica: i) a existência de um facto voluntário do agente; ii) que o facto do agente seja ilícito, por violação de um direito subjetivo de outrem ou pela violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios; iii) a verificação de um nexo de imputação subjetiva do facto ao lesante (culpa); iv) que à violação do direito subjetivo ou da lei sobrevenha um dano e, por último, v) que haja um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima, de modo a poder afirmar-se que o dano é resultante da violação (Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª. Ed., pág. 471).
No caso sub judice, resultou provado que o arguido praticou voluntariamente um facto ilícito – retirou a vida do ofendido. Assim resta apurar se em virtude destes factos sobrevieram os danos invocados pela assistente.
*
Dos danos patrimoniais da assistente
A assistente alega que deixou de poder contar com o valor da reforma que o ofendido auferia, descontando-se o valor que recebe à título de pensão por viuvez e que aquele ainda receberia, pelo menos, por mais sete anos.
Nesse sentido, requer que lhe seja arbitrada a quantia de €10.000,00 euros a título de lucros cessantes.
Ocorre que a assistente não alegou factos que pudessem traduzir-se num concreto prejuízo patrimonial, nomeadamente se haviam despesas e quais eram suportadas pelo ofendido e que passaram a ser suportadas por si, em que medida a reforma do ofendido contribuía para as despesas do agregado familiar e nenhum outro facto donde se possa retirar que existiu de facto um prejuízo patrimonial.
Apenas o facto de não receber integralmente o valor que o ofendido recebia de reforma não é, por si só, suficiente para aferir um prejuízo patrimonial ou um lucro cessante se não foi invocado de que forma tal reforma seria utilizada em benefício da assistente.
Nestes termos, não resultaram provados danos patrimoniais da assistente pelo que o pedido deve improceder quanto a estes danos.
*
Dos danos não patrimoniais da assistente
Resultou provado que a morte do ofendido causou dor, tristeza, angústia, ansiedade e um estado depressivo na assistente, carecendo de acompanhamento psiquiátrico e do uso de medicação, privando a mesma da companhia do ofendido – sendo a única pessoa que compunha o seu agregado familiar.
Estes danos verificaram-se diretamente em função da atuação do arguido uma vez que foi como resultado desta que o ofendido veio a falecer. Nesse sentido, há um nexo de causalidade entre o facto ilícito e os danos causados à assistente.
Para a fixação do montante a atribuir a cada um o Tribunal atendeu as circunstâncias específicas do caso concreto, nomeadamente que a assistente e o ofendido estavam casados há 37 anos, como tal partilharam toda uma vida, não tinham filhos, sendo aquele agregado familiar composto apenas pela assistente e pelo ofendido, ficando a assistente sozinha após o falecimento do marido. Acresce as circunstâncias em que a morte do ofendido se verificou: ficou desaparecido durante largos dias (de 15 de julho a 2 de agosto de 2024) e tratou-se de uma morte violenta, de forma abruta e inesperada por parte da assistente.
Nessa medida, entende-se ser adequado fixar a título de danos não patrimoniais à assistente o valor de 10 000€.
*
Dos danos morais sofridos pelo ofendido e do dano morte
Resulta da matéria de facto que a atuação do arguido provocou lesões no ofendido, violando a integridade física daquele, lesões estas que naturalmente causaram dor e por fim a lesão que veio a ser a consequência direta e necessária da sua morte.
Por outro lado, resultou também provado que o ofendido, face ao tipo de morte em causa, teve consciência de que iria morrer e que não poderia pedir ajuda. Estão aqui em causa direitos absolutos, nomeadamente, direitos de personalidade, que são constitucional e legalmente protegidos (cfr. artigos. 24.º, e seguintes, da Constituição da República Portuguesa, e os artigos. 70.º, e seguintes, do Código Civil), pelo que, estes danos ligados à personalidade moral da pessoa merecem a tutela do direito.
Deste modo, o artigo 70.º, n.º 1, do Código Civil, determina como princípio básico que todo o indivíduo tem o direito de ver protegida a sua personalidade física e moral.
Este direito geral de personalidade visa a realização da autodeterminação e defende contra intervenções ou limitações injustificadas, referindo-se ao direito à vida, à integridade física e psíquica, à liberdade, à honra, à imagem social e de carácter, entre outros.
Tais danos, porque não patrimoniais, como dissemos são indemnizáveis na medida em que, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito (art. 496.º, n.º 1, do Código Civil).
E, a gravidade do dano mede-se por um padrão objetivo, segundo critérios de equidade, tendo em conta que a indemnização a arbitrar tem natureza mista: a compensação do lesado pelos danos sofridos e a sua reprovação civilística.
Atendendo à situação económica do lesante (sem trabalho e preso), considerando a idade da vítima à data da morte (71 anos) e o futuro que tinha à sua frente de pelo menos entre mais 7 anos, entende-se ser adequada e equitativa a fixação da indemnização de 50 000€, pelo dano da morte de CC a pagar à assistente/demandante.
O recorrente apresenta este fundamento do recurso como erro de julgamento de direito e não como nulidade, sendo essa a única razão pela qual só agora dele conhecemos – certo sendo porque não se verificar qualquer nulidade, como melhor se verá.
Dispõe a lei nos artigos 609.º e 615.º do CPC, que a sentença não pode condenar em quantia maior do que a pedida nem em objeto diverso do que foi pedido.
Artigo 609.º, § 1.º CPC:
«1 - A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.»
Artigo 615.º, § 1, al. e) CPC:
«1 - É nula a sentença quando:
(…)
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.»
Ora, se bem virmos, o acórdão recorrido não é nulo, porquanto a quantia correspondente à condenação do arguido não excede o total do pedido feito pela assistente/demandante; nem o tribunal recorrido atribuiu a indemnização a um título diverso do alegado.
E em verdade o que o tribunal recorrido fez – e bem - foi, no âmbito da ponderação que lhe cabia realizar sobre os dados de facto do caso, ajustar os valores de cada uma das fontes do dever de indemnizar (id est a cada espécie de dano indemnizável). E, se bem se vir, o pedido total de 60 000€ corresponde à indemnização global fixada pelo tribunal, respeitante aos danos verificados (ainda que todos de natureza não patrimonial).
Tudo razões pelas quais o recurso não se mostra merecedor de provimento.
III – DISPOSITIVO
Destarte e por todo o exposto acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, pelas razões expendidas, manter integralmente o douto acórdão recorrido.
b) Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s.
Évora, 28 de outubro de 2024
Francisco Moreira das Neves (relator)
Edgar Valente
Manuel Soares
............................................................................................................
1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen júris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).
2 Utilizamos a grafia dos Euros com referência á norma europeia para a língua portuguesa: https://style-guide.europa.eu/pt/content/-/isg/topic?identifier=7.3.3-rules-forexpressing-monetary-units ou https://pt.wikipedia.org/wiki/Euro