ELEMENTOS OBJETIVO E SUBJETIVOS DO CRIME DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
ARTIGO 256º DO CP
DOLO ESPECÍFICO
Sumário

I.O tipo do crime de falsificação de documento, previsto no artigo 256.º do CP, é constituído por três elementos, a saber:
- Um elemento objetivo - que o agente, a) fabrique ou elabore documento falso, b) falsifique ou altere documento, c) abuse da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento, d) faça constar falsamente de documento facto juridicamente relevante, e) use documento falsificado ou contrafeito, f) por qualquer meio, faculte ou detenha documento falsificado ou contrafeito;
- Um elemento subjetivo - o conhecimento e a vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, ou seja, o agente tem de ter praticado o facto com dolo genérico;
- Um outro elemento subjetivo - a intenção de causar prejuízo a terceiro, de obter para si ou outra para pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime, isto é, o agente tem de ter praticado o facto também com dolo específico.
II. Inexistindo indícios de as arguidas advogadas terem atuado com dolo específico não está preenchido um dos pressupostos do artigo 256.º do CP, implicando tal circunstância a não pronúncia daquelas.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 1.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I. RELATÓRIO

1. Da decisão

No Processo de Instrução n.º 2062/24.6T9TMR, do Tribunal Judicial da Comarca de … Juízo de Instrução Criminal de … - Juiz …, foi julgado procedente o requerimento de abertura de instrução apresentado pelas arguidas AA e BB e decidido não as pronunciar pelos factos e ilícitos constantes da acusação pública de fls. 489 e segs. que lhes imputava, em autoria material e na forma consumada, a prática de um crime de falsificação de documento autêntico (artigo 256.º, n.º 1, alíneas a), d), e), f) e n.º 3 do CP).

2. Do recurso

2.1. Das conclusões do Ministério Público

Inconformado com a decisão o MP interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

“1. O presente recurso vem interposto da douta decisão datada de 05.03.2025 pela qual o meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo” não pronunciou as arguidas, AA e BB, pelos factos constantes da acusação pública formulada contra tais arguidas, os quais são passíveis de consubstanciar a prática de um crime de falsificação de documento autêntico, p.p. pelo artº 256º, nº 1, als a), d), e) e f) e nº 3, do Código Penal;

2. Não concordamos com a circunstância de o Mmo Juiz do Tribunal “a quo” ter considerado não suficientemente indiciado que as arguidas atuaram com intenção de obter benefício ilegítimo e, por tal motivo, ter concluído pelo não preenchimento de todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de falsificação de documento, com o consequente despacho de não pronúncia;

3. Salvo o devido respeito por opinião contrária, entendemos que se mostra suficientemente indiciado que as arguidas atuaram com intenção de obter, para si e para terceiros, benefício ilegítimo.

4. Atendendo aos factos considerados suficientemente indiciados, a conclusão a extrair dos mesmos é a de que as arguidas atestaram falsamente facto juridicamente relevante ao procederem à autenticação das assinaturas de CC, DD e EE como se estas tivessem sido realizadas na sua presença, usando os documentos assim elaborados na celebração de um contrato de doação com reserva de usufruto(factos dados como suficientemente indiciados e constantes dos pontos 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31 a 37);

5. Assim, tais factos preenchem os elementos objetivos do tipo de crime de falsificação de documento, na modalidade, segundo Helena Moniz e Figueiredo Dias, entre outros, de falsidade em documento;

6. Ao nível do elemento subjetivo, o crime de falsificação de documento do artº 256º do CPEnal é um crime intencional, exigindo-se que o agente atue com “intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo”.

7. Segundo Helena Moniz “Constitui benefício ilegítimo toda a vantagem (patrimonial ou não patrimonial) que se obtenha através do ato de falsificação ou do ato de utilização do documento falsificado.”

8. Porque se trata de um fenómeno psicológico interno, só observável diretamente por quem o experiencia, a prova de tal estado subjetivo pode resultar, desde logo da confissão do agente e da prova indiciária ou indireta a qual, partindo de outros elementos empiricamente observáveis, permitem ao julgador demonstrar que “(…) de acordo com os padrões racionais de comportamento e com os critérios de normalidade social “ as arguidas atuaram com intenção de obter para si e para outrem, benefício ilegítimo e em prejuízo de terceiros;

É o que nos propomos demonstrar;

9. Ora, a feitura das procurações nos moldes em que foram feitas visava a utilização para a realização de uma escritura/contrato de doação o qual tinha como finalidade, obstar a que a … lograsse penhorar o imóvel, propriedade de DD e CC (factos suficientemente indiciados e constantes dos pontos 7,8, 9, 10, 12, 13, 14 e 15);

10. Mais resulta suficientemente indiciado que, pela elaboração de tais documentos, a arguida “AA recebeu quantia não concretamente apurada, mas seguramente superior a €300,00 (trezentos euros) que lhe foram entregues pela arguida DD” (facto constante do ponto 48º da acusação) , e a arguida BB “recebeu cerca de 348,07 euros (trezentos e quarenta e oito euros e sete cêntimos) que lhe foram entregues pela arguida AA” (facto constante do ponto 49º da acusação).

11.Ora, quanto a nós, o recebimento das quantias referidas como pagamento pelo “serviço prestado” e que consistiu em atestar falsamente que as assinaturas apostas nas procurações haviam sido efetuadas na presença do atestante, e subsequente utilização de tais documentos para a outorga da escritura/contrato de doação, só pode ser considerado benefício ilegítimo obtido “através do ato de falsificação”;

12.Não concebemos que o pagamento de um serviço que consiste na prática de um crime, ou se se preferir, de um ato ilícito (em termos formais o crime de falsificação de documento está preenchido) possa ser considerado lícito;

13. Acresce que, não fora a conduta das arguidas, facilitadoras de uma feitura à distância de procurações como se os outorgantes tivessem estado, efetivamente, na presença das mesmas, estas não teriam recebido os honorários que lhes foram pagos por tal serviço;

14. E isto porque nada impediria DD de marcar a escritura de doação junto de um qualquer notário já que teria de se deslocar a Portugal, conjuntamente com o seu filho e marido, para outorgar uma Procuração que tinha como finalidade a feitura de tal escritura, o que lhe sairia mais barato pois só teria de suportar o valor dos emolumentos e as despesas de deslocação;

15. Pelo que, tal facilitação, ao contrário do sufragado na decisão ora recorrida, foi fundamental (relevante) para o negócio pois, não fosse tal “facilitação” e, pelo menos, a arguida AA, corria o risco de “perder o cliente”.

16. Ademais, não nos podemos esquecer do fim visado com a feitura de tais documentos: o seu uso (tal como ocorreu) na feitura de uma escritura/contrato de doação fictícia, porquanto o verdadeiro fim de tal negócio jurídico era frustrar o crédito que a … tinha sobre DD;

17. Ora, salvo o devido respeito por opinião contrária, a utilização dos documentos assim elaborados visava beneficiar ilegitimamente, pelo menos, DD em claro prejuízo para a …

18. E tal intenção, embora não esteja expressamente consignada na parte atinente ao elemento subjetivo, resulta do teor dos factos constantes dos artºs 7º a 9º e 12º e 13º da acusação e que foram dados como suficientemente indiciados;

19. Trata-se, a nosso ver, de um claro benefício ilegítimo que as arguidas (mormente a arguida AA por ter sido esta quem foi contactada e contratada por DD) sabiam e quiseram proporcionar com as falsidades que consignaram em tais documentos e a posterior utilização dos mesmos;

20. Na verdade, independentemente da questão de se indiciar ou não que as arguidas sabiam que CC não havia assinado tais procurações e termos de autenticação, o falso reconhecimento presencial de todas as assinaturas dos três outorgantes não fica legitimado pela circunstância de as arguidas desconhecerem a falsidade da assinatura de CC;

21. Essa falsificação apenas é relevante no que tange à DD pois é esta que se aproveita da “facilitação” do falso reconhecimento presencial;

22. Mas o benefício que as arguidas AA e BB pretenderam com as respetivas condutas reporta-se à finalidade da doação propriamente dita, cuja ilegitimidade não desaparece mesmo que a doação tivesse sido consentida por CC;

23. Conforme já referimos, estamos perante uma doação fictícia cuja única finalidade seria a de obstaculizar à penhora do imóvel, o qual continuaria a estar na disponibilidade dos anteriores proprietários (nomeadamente de DD) e em prejuízo de terceiros, no caso, a …, e tal finalidade era conhecida, pelo menos, da arguida AA (atente-se, em particular nos factos indiciados constantes dos pontos 12 e 13 da acusação);

24. Uma última nota para dizer que mesmo que a conduta das arguidas visasse, tão só, “facilitarem a vida dos clientes, dispensando-os de virem a Portugal para praticar tais atos (assinaturas)”, também tal finalidade constitui um benefício ilegítimo: Ilegítimo porque ilegal e benefício porque obviou a, pelo menos, uma deslocação a Portugal que, de outro modo, não seria evitada;

25. Face ao que supra se referiu, entendemos que se mostra suficientemente indiciado os factos que o Mmo Juiz do Tribunal “a quo” considerou não suficientemente indiciados e que, em síntese, se reporta à intenção subjacente à conduta das arguidas;

26. A suficiente indiciação dos referidos factos (pelas razões explanadas), a par dos que já foram considerados suficientemente indiciados, permitem imputar às arguidas a prática, em co-autoria, de, pelo menos um crime de falsificação de documento autêntico (note-se que a conduta das arguidas consistiu na elaboração de dois termos de autenticação de falsas assinaturas presenciais, não se tendo narrados factos relativos à continuação criminosa);

27. Ao decidir da forma como o fez, o Mmo Juiz do Tribunal “a quo” fez uma errónea interpretação do artº 256º do CPenal, devendo tal decisão ser revogada e substituída por outra que:

• Considere suficientemente indiciados os factos que considerou não suficientemente indiciados e

• Pronuncie as arguidas pela prática, em coautoria, de um crime de falsificação de documento, p.p. pelo artº 256º, nº 1, als a), d), e) e f) e nº 3, do CPenal.”.

2.2. Das contra-alegações da arguida BB

Respondeu a arguida BB defendendo o acerto da decisão recorrida, quanto às questões suscitadas pelo MP concluindo nos seguintes termos (transcrição):

“a) A Digna Magistrada do Ministério Público veio, pelo presente recurso, manifestar a sua discordância relativamente à decisão instrutória proferida nos autos e que julgou procedente o requerimento de abertura de instrução apresentado pelas arguidas AA e BB, e que decidiu não as pronunciar pelos factos ilícitos que constam da acusação pública.

b) Em concreto a arguida vinha acusada de, em autoria material e na forma consumada, ter praticado um crime de falsificação de documento autêntico p. e p. pelo artigo 256º, nº 1, al. a), d) e e), f) e nº 3 do Código Penal.

c) Com base uma suposta comunhão de esforços e intentos entre a ARGUIDA e a também arguida Dra. AA de forma a obter benefício ilegítimo e prejudicar o ofendido, CC.

d) O crime de falsificação de documentos é um crime intencional, ou seja, pressupõe um dolo específico em que o agente atua com uma intenção de causar prejuízo a outrem ou obter para si ou outrem benefício ilegítimo.

e) Aliás “[a]quando da prática do crime de falsificação (onde se integra, por força deste tipo legal, o uso de documento falso por terceiro) o agente deverá ter conhecimento que está a falsificar um documento ou que está a usar um documento falso, e apesar disto querer falsificá-lo ou utilizá-lo.” (Helena Moniz, Direção por Jorge de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, Tomo II, 1999, p. 685).

f) A decisão sob recurso considerou que as arguidas não tiveram intenção de causar ao ofendido CC, ao Estado ou a outrem, mormente à arguida DD, benefício ilegítimo ou prejuízo e não tiveram intenção de preparar, facilitar ou encobrir outro crime, com as condutas pelas mesmas perpetradas.

g) Na decisão instrutória pode ler-se que “as arguidas desconheciam que as assinaturas de CC constantes do termo de autenticação e procuração tinham sido fabricadas pela arguida DD e não tinham saído da lavra do próprio.

h) Em concreto, não se mostrou suficientemente indiciado que as arguidas, AA e BB, com as suas condutas, quer relativas às procurações quer relativas aos termos de autenticação, descritas em 11 a 49, obtiveram para si benefício ilegítimo ou disso tivessem intenção, mormente manter a arguida DD como cliente, dai retirando proventos económicos que sabiam não lhes ser devida.

i) Considerou também não suficientemente indiciado que ambas as arguidas, em comunhão de esforços e vontades entre si, elaboraram plano para permitir a transferência da propriedade do imóvel sem o conhecimento e consentimento do ofendido, bem sabendo que, agindo dessa forma, dos indícios recolhidos em sede de inquérito e da qualificação jurídica.

j) Não há nos autos, elemento probatório que indique que as mesmas estavam conluiadas com a arguida DD, que agiram todas em comunhão de esforços ou vontades ou que soubessem que CC não havia assinado a procuração e termo de autenticação e não pretendia o negócio realizado (doação), tanto mais que tais elementos foram enviados via postal para França, para assinatura por quem de direito e reenviados de França (as arguidas não estiveram presentes nem podiam conhecer o contexto dessas assinaturas) e que CC inicialmente concordou com a doação. Por outro lado, nunca o mesmo referiu que tinha dado conhecimento da sua mudança de posição às aqui duas arguidas ou á aqui arguida AA.

k) Ao invés do decidido, o Ministério Público considera fortemente indiciado que as arguidas atuaram com intenção de obter benefício para si e para terceiros, uma vez que dos factos considerados suficientemente indiciados se pode concluir que as arguidas atestaram falsamente facto juridicamente relevante ao procederem à autenticação das assinaturas de CC, DD e EE como se estas tivessem sido realizadas na sua presença, usando os documentos assim elaborados na celebração de um contrato de doação com reserva de usufruto (factos dados como suficientemente indiciados e constantes dos pontos 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31 a 37);

l) E que tais factos preenchem o elemento subjetivo do tipo, refere a Digna Magistrada do Ministério público que “uma vez feitura das procurações nos moldes em que foram feitas visava a utilização para a realização de uma escritura/contrato de doação o qual tinha como finalidade, obstar a que a … lograsse penhorar o imóvel, propriedade de DD e CC (factos suficientemente indiciados e constantes dos pontos 7,8, 9, 10, 12, 13, 14 e 15)”;

m) Considera ainda que “o benefício que as arguidas AA e BB pretenderam com as respetivas condutas reporta-se à finalidade da doação propriamente dita, cuja ilegitimidade não desaparece mesmo que a doação tivesse sido consentida por CC”. E que “estamos perante uma doação fictícia cuja única finalidade seria a de obstaculizar à penhora do imóvel, o qual continuaria a estar na disponibilidade dos anteriores proprietários (nomeadamente de DD) e em prejuízo de terceiros, no caso, a …, e tal finalidade era conhecida, pelo menos, da arguida AA (atente-se, em particular nos factos indiciados constantes dos pontos 12 e 13 da acusação);”

n) Este prejuízo para a … ou benefício indevido, enquanto finalidade do negócio jurídico, que entende fictício não integra, em momento nenhum, a Douta Acusação Pública.

o) Tais factos configuram uma alteração substancial daqueles que estão descritos na acusação, na medida em que pretendem agora colmatar a omissão relativa ao dolo específico, integrando um prejuízo não antes considerado.

p) Tais factos concretizam uma modificação estrutural dos factos descritos na acusação, e consubstanciam aliás um elemento essencial do tipo, que pode até agravar a posição processual da arguida, fazendo integrar consequências que se não continham na descrição da acusação, constituindo uma surpresa com a qual a arguida não poderia contar, e relativamente às quais não pode preparar a sua defesa.

q) Como dispõe o artigo 359.º, nº 1 do Código Penal “uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância.”

r) O recurso, nos termos em que vem formulado, viola o artigo 359º, nº 1 do CPP, quando pretende a apreciação de factos que não constam da Acusação Publica, e sobre os quais a arguida não se pronunciou,

s) O artigo 256º do C. Penal quando pretende a pronuncia da arguida sem que resulte indiciado o preenchimento do tipo subjetivo,

t) Viola ainda o princípio do contraditório, o princípio da proibição das decisões surpresas, e ainda o artigo 32º da CRP.

u) A decisão instrutória considerou prejudicado o conhecimento da aplicação da figura da suspensão provisória do processo, cujos requisitos legais, deixamos salientado sempre estariam verificados, dando sempre lugar à suspensão provisória do processo, concordando o Juiz de Instrução com tal solução jurídica se não prejudicado o conhecimento de tal questão

v) Pelo que, mesmo que procedente o recurso interposto pelo Ministério Publico, nunca este Venerando Tribunal poderá pronunciar as arguidas pela prática, em coautoria, de um crime de falsificação de documento, p.p. pelo artº 256º, nº 1, als a), d), e) e f) e nº 3, do C.Penal, sem que seja equacionada a referida figura da suspensão provisória do processo que mereceu, aliás, concordância da Digna Magistrada do Ministério Público.

Termos em que, nos melhores em Direito aplicáveis, e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas deve o recurso ser julgado improcedente (…)”.

2.3. Das contra-alegações da arguida AA

Respondeu a arguida AA defendendo o acerto da decisão recorrida, quanto às questões suscitadas pelo MP concluindo nos seguintes termos (transcrição):

“64. Em consonância com o até agora exposto, impõe-se a conclusão de que não foram recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação à arguida de uma pena ou de uma medida de segurança,

65. O que, nos termos do disposto no art. 308.º, n.º1 do CPP, implica a realização de um juízo de prognose negativo e a confirmação do despacho de não pronúncia recorrido e, no que lhe diz respeito, o consequente justo termo e arquivamento do processo.

66. Em face do supra exposto, bem andou o Tribunal a quo em decidir como decidiu, isto é, ao não pronunciar a arguida AA pelo crime pelo qual foi injustamente acusada, não merecendo, assim, o despacho ora sindicado pelo MP qualquer reparo ou alteração. (…)”.

2.4. Do Parecer do MP em 2.ª instância

Na Relação o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido de ser julgada a procedência total do recurso interposto pelo MP.

2.5. Da tramitação subsequente

Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP.

Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Objeto do recurso

De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19-10-95, publicado no DR I-A de 28-12-95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

2. Questão a examinar

Analisadas as conclusões de recurso a questão a conhecer cinge-se em apurar se ocorreu uma errada interpretação do artigo 256.º do CP em virtude, de ao contrário do decidido, encontrarem-se indiciados suficientemente os factos constantes da acusação e preenchidos todos os elementos do referido tipo criminal, devendo, em consequência, ser emitido despacho de pronúncia.

3. Apreciação

3.1. Da decisão recorrida

Definida a questão a tratar, importa considerar o que se mostra decidido pela instância recorrida.

“(…) 2 – Decisão comprovanda:

Acusação pública de fls. 489 e segs., em que o M.P. imputa às arguidas, em autoria material e na forma consumada, a prática de um crime de falsificação de documento autêntico p. e p. pelos Artigos 256º, nº 1, al. a), d) e e), f) e nº 3 do C.P..

3 – Fundamentos da abertura de instrução:

As arguidas vieram requerer a abertura de instrução, pondo em causa os factos, mormente os atinentes ao elemento subjetivo e requerendo a aplicação da figura da suspensão provisória do processo.

(…)

6 – Apreciação e discussão:

A fase de instrução consiste numa fase processual, de natureza facultativa, dirigida por um Juiz de Direito, que visa a comprovação judicial da decisão do Magistrado do Ministério Pública de deduzir acusação e/ou arquivamento, em ordem a submeter a causa a julgamento (Artigos 286º, nº1 e 2 do C.P.P.).

Pretende-se aferir, mormente, da suficiência ou não dos indícios recolhidos em sede de inquérito (Artigo 308º, nº 1 do C.P.P.), por forma a verificarem-se estarem ou não preenchidos os requisitos para submeter determinada pessoa a julgamento.

Para que surja uma decisão de pronuncia, a lei não exige a prova no sentido da certeza, mas a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência, tanto mais que a prova recolhida na fase instrutória, não constitui pressuposto da decisão de mérito final. Trata-se antes de mera decisão processual relativa ao prosseguimento do processo até à fase de julgamento.

Para fundar uma decisão de pronuncia, não é necessária uma certeza da infracção, mas serem bastantes os factos indiciários, por forma a que, da sua lógica conjugação e relacionação, se conclua pela culpabilidade do arguido, formando-se um juízo de probabilidade da ocorrência dos factos que lhe são imputados e, bem assim, da sua integração jurídico-criminal.

Indícios suficientes são aqueles que permitem concluir que a probabilidade de a determinada pessoa ser aplicada determinada pena criminal ou medida de segurança é maior do que a sua não probabilidade (artigo 283º, nº 2 do C.P.P.).

Conforme Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, pag. 777 “(…) mas o âmbito desta discussão é limitado pela lei, ou melhor, pelo objectivo que a lei estabelece para aquela discussão. Nela pretende-se apurar a existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança (artigo 308º, nº 1). Portanto, a instrução visa discutir a discussão de arquivamento apenas no que respeita ao juízo do MP de inexistência de indícios suficientes e discutir a discussão de acusação apenas no que respeita ao juízo do MP de existência de indícios suficientes”.

Nas palavras de Nuno Brandão, “A nova face da instrução”, in RPCC, Ano 18, nºs 2 e 3, Abril-Setembro de 2008, a instrução, como fase facultativa, de um determinado processo em curso, é um “puro instrumento de controlo”.

Segundo Pedro Daniel dos Anjos Frias, in “Com o Sol e a Peneira: Um olhar destapado sobre o conceito de inadmissibilidade…”, in “Revista Julgar, nº 19, Janeiro-Abril de 2013, Coimbra Editora, “(...) Primeira: A instrução tem por fim apenas a comprovação judicial da decisão de acusar. Segue-se daqui que a instrução não pode servir para outra finalidade que não esta, a que a lei lhe determina. Designadamente, não pode ser utilizada para repetir o que na investigação já se efectuou, para a realizar de novo, ou para ensaiar a defesa antecipando o julgamento, ect.

Nenhuma destas realidades respeita o valor semântico do enunciado escolhido pelo legislador e, por sobre tudo, a realidade teleológica que lhe subjaz: comprovar (em face do que já existe).

Segunda: Na instrução a única actividade a desenvolver é a de comprovação judicial e este tem por objecto, desde logo, o inquérito lato sensu.

Terceira: A comprovação judicial carece de ser despoletada, o que acontece mediante a apresentação do requerimento, onde têm que constar os fundamentos necessários a servir de apoio ou arrimo a essa actividade (as razões de facto e de direito de discordância em relação à decisão do Ministério Pública esgrimidas pelo arguido).

Quarta: A instrução configura unicamente um momento de “controlo” da conformidade/legalidade da actividade do Ministério Público que culminou com a decisão de acusar e nada mais.

De igual modo, o mesmo autor acrescenta, a fls. (…) a discordância (por parte do requerente da instrução, acréscimo nosso) relevante é vinculada. Exerce-se relativamente à acusação que é, e é-o sempre, sublinhe-se, o corolário de uma actividade pretérita: o inquérito. De igual modo, acrescenta, a fls. 109”(…) a actividade de comprovação carece, por sua própria natureza, de dois pontos de apoio para se poder realizar. Um é o inquérito (lato sensu); o outro, o requerimento de abertura de instrução que trará as razões de discordância”.

Desta maneira, podemos concluir que, num direito processual penal de natureza acusatória, em que vigora o princípio da vinculação temática, a actividade do Juiz de Instrução está limitada, contida e enformada, pela acusação/arquivamento prolactados por um lado, que se alicerça no inquérito que lhe subjaz e, por outro, pelo requerimento de abertura de instrução apresentado.

Isto para dizer, que a actividade do Juiz de Instrução não abrange todo o objecto do processo, nem sequer todos os factos da acusação/arquivamento, mas tão só aqueles factos ou questões de direito que constituem as razões da discordância e fundam o requerimento de abertura de instrução.

Assim, no caso presente, a questão relevante é a de se apurar se no caso presente há indícios dos factos e ilícito imputados às aqui arguida e se, havendo, estão ou não preenchidos os requisitos da figura da suspensão provisória do processo.

*

Factos suficientemente indiciados (com relevo):

Os que constam da acusação pública de fls.487 e segs. , factos para que remeto e aqui dou por reproduzidos ao abrigo do Artigo 307º, nº 3 e 1 do C.P.P. com ressalva dos factos dados como não indiciados.

Quanto ao artigo 61º da acusação, só suficientemente indiciado até “doação”. Quanto ao artigo 63 da acusação, só suficientemente indiciado até “daquelas”.

Quanto ao artigo 69º da acusação, só suficientemente indiciado até “respectivamente”, por a parte final implicitamente pressupor que sabiam que CC não tinha dado autorização nem tinha assinado a procuração e acto de autenticação (bem como o filho EE).

Quanto ao artigo 70º da acusação, só suficientemente indiciado até “verdade”.

A arguida AA e a arguida BB não tiveram intenção de causar ao ofendido CC, ao Estado ou a outrem, mormente a arguida DD, benefício ilegítimo ou prejuízo e não tiveram intenção de preparar, facilitar ou encobrir outro crime, com as condutas pelas mesmas perpetradas.

As arguidas estavam convictas que o ofendido CC tinha assinado a procuração e o termo de autenticação tal como era a inicial intenção deste.

As arguidas desconheciam que as assinaturas de CC constantes do termo de autenticação e procuração tinham sido fabricadas pela arguida DD e não tinham saído da lavra do próprio.

As arguidas “facilitaram” na prática dos actos supra referenciados próprios das suas funções e qualidades de advogadas, confiando em DD.

A arguida BB agiu no pressuposto de que o ofendido CC tinha intenção de outorgar a procuração e o contrato de doacção correlativo à mesma e confiando na arguida AA.

*

Factos não suficientemente indiciados (com relevo):

Não indiciados os factos que constam dos artigos 59º, 60º e 66º da acusação publica. Não indiciada a parte final do Artigo 61º da acusação, a partir de “doação”, parte final do artigo 69º, a partir de “respectivamente”, parte final do artigo 70º (quanto a “tendo logrado obter vantagem patrimonial que sabiam não lhes ser devida) e parte final do artigo 63º, a partir “daquelas”.

Em concreto, não suficientemente indiciado que as arguidas, AA e BB, com as suas condutas, quer relativas às procurações quer relativas aos termos de autenticação, descritas em 11 a 49, obtiveram para si benefício ilegítimo ou disso tivessem intenção, mormente manter a arguida DD como cliente, dai retirando proventos económicos que sabiam não lhes ser devida.

Não suficientemente indiciado que ambas as arguidas, em comunhão de esforços e vontades entre si, elaboraram plano para permitir a transferência da propriedade do imóvel sem o conhecimento e consentimento do ofendido, bem sabendo que, agindo dessa forma, causavam prejuízo ao ofendido e benefício ilegítimo para a arguida DD.

Não suficientemente indiciado que as arguidas soubessem que a sua conduta era e é punida por lei penal (porquanto na nossa perspectiva o não é).

Não suficientemente indiciado que as duas arguidas sabiam que CC não tinha dado autorização para a outorga do acto nem tinha assinado a respectiva procuração e acto de autenticação e já não pretendia o negócio.

Não suficientemente indiciado que a arguida BB não previu e não se conformou com a possibilidade de estar a falsificar documentos.

*

Dos indícios recolhidos em sede de inquérito e da qualificação jurídica: Não se põem em causa objectivamente os factos perpetrados pelas arguidas.

As arguidas não o fazem e admitem tais factos e tais factos, quer os relativos às procurações, quer os relativos aos termos de autenticação e seus registos e uso, resultam da prova documental junta aos autos mormente, a queixa apresentada por CC e documentos juntos com a mesma de fls. 4 e segs., as procurações em causa, os termos de autenticação (fls. 58 e segs. e 72 e segs.e fls. 81 e segs. e fls. 88 e segs. e fls. 93 e segs. e 215 e segs.) e prova do seu registo, cópias das cadernetas prediais de fls. 99 e segs., cópias das certidões permanentes de fls. 101 e segs., o contrato de doacção de fls. 83 e segs., declaração de fls. 151 e segs., factura de fls. 147 e segs., os assentos de nascimento de fls. 29 e segs., documentação de fls. 159 e segs., atinente à penhora e ao incumprimento. E, bem assim, resultam, com relevo, do depoimento de CC, dele constando que o mesmo se recusou a assinar a procuração e que foi surpreendido com o facto de o imóvel estar em nome do filho, EE, tendo o mesmo visualizado duas procurações assinadas com a sua assinatura, mas que não foram feitas por si, mas pela sua ex-esposa, em concreto as declarações não só o de fls. 40 e segs., mas também o de fls. 479 e segs..

Por se tratar de prova proibida, o Tribunal não valorou o auto de inquirição de fls. 46 e segs. e o de fls. 47 e segs., porquanto realizado por AA e BB, enquanto testemunhas, detendo agora a mesma a qualidade de arguidas.

Mas, outrossim valorou as declarações prestadas a fls. 194 e segs. e a fls. 207 e segs. enquanto e na qualidade de arguidas.

Atendeu-se ainda ao teor do relatório pericial de fls. 469 e segs..

O que as arguidas põem em causa é o seu dolo, mormente a questão atinente ao conhecimento da falsidade das assinaturas e a intenção de auferirem vantagem a que sabiam não ter direito.

Não há nos autos, elemento probatório que indique que as mesmas estavam conluiadas com a arguida DD, que agiram todas em comunhão de esforços ou vontades ou que soubessem que CC não havia assinado a procuração e termo de autenticação e não pretendia o negócio realizado (doação), tanto mais que tais elementos foram enviados via postal para França, para assinatura por quem de direito e reenviados de França (as arguidas não estiveram presentes nem podiam conhecer o contexto dessas assinaturas) e que CC inicialmente concordou com a doação. Por outro lado, nunca o mesmo referiu que tinha dado conhecimento da sua mudança de posição às aqui duas arguidas ou à aqui arguida AA.

Perante o teor dos termos de autenticação e perante o teor da procuração, aludindo-se a … e aludindo-se ao facto de as pessoas (outorgantes no negócio) alegadamente terem pessoalmente comparecido, não há dúvidas que as arguidas tinham consciência que faziam constar de tais documentos factos objectivamente falsos, relevantes, porquanto as procurações foram assinadas em França, local da residência dos clientes e os termos de autenticação não foram realizados com a presença física dos outorgantes do negócio. Tratando-se de factos pessoais não os podiam desconhecer nem objetivamente desconhecer a falsidade de tais afirmações, como não podiam desconhecer que tais condutas eram e são objectivamente ilícitas e contrárias à lei, mormente por violadoras dos seus deveres deontológicos e, ainda que não sejam, criminalmente ilícitas, pelas razões que abaixo serão explanadas.

Nesta medida, o Tribunal deu como suficientemente indiciados e não suficientemente indiciados os factos supra, em face do critério de mera suficiência indiciária vigente nesta fase processual.

Questão diversa é a de se saber se os factos dados como suficientemente indiciados, permitem imputar às arguidas o crime de falsificação de documento autêntico.

Nos termos do Artigo 256º do C.P. o crime de falsificação de documentos, independentemente da natureza do documento, particular ou autêntica, pressupõe um dolo específíco. Tal dolo reporta-se ao benefício ilegítimo ou à causação de prejuízo a outrem ou ao cometimento de outro crime e o preparar, facilitar, executar ou encobrir tal crime. Nao é exigível que o mesmo se verifique, dado que se trata de um crime de resultado cortado.

Tal prejuízo ou benefício tem que advir da conduta típica, no caso presente, a inserção em documento de factos falsos juridicamente relevantes ou o uso de tal documento. O facto de as arguidas advogadas terem sido pagas pelos seus serviços não consubstancia tal benefício ilegítimo, uma vez que os honorários são devidos.

Se tal benefício ilegítimo é claro por referência à pessoa de DD, tal não resulta claro quanto às duas advogadas aqui arguidas. Não se vislumbra que ganhassem ou perdessem clientes, por “obrigar” o ofendido e EE a virem pessoalmente ao escritório em … outorgar as procurações ou assinar os termos de autenticação, cumprindo aliás o que era a lei a e a sua obrigação.

Por outro lado, não se indicia que soubessem que o ofendido CC não queria e não assinou a procuração e o termo de autenticação, facto que, ao invés, era do conhecimento de DD, sua ex-esposa, que procedeu a tais assinaturas (segundo o ofendido), pelo que, se a mesma teve intenção e obteve vantagem ilegítima por via da realização do negócio que não se faria quanto à quota parte pertença de CC, já não se pode dizer que tal vantagem fosse a almejada pelas arguidas, advogadas, que desconheciam tais factos.

As arguidas agiram para facilitarem a vida aos clientes, dispensando-os de virem a Portugal para praticar tais actos (assinaturas), mas tal não traduz, a nosso ver, benefício ilegítimo, sendo que o beneficio ou o prejuízo ilegítimo deve constituir e constitui facto posterior à conduta típica, advindo da conduta típica, ainda que possa ser de natureza não patrimonial. Mas, tal facilitação a nosso ver não foi relevante para o negócio. Os clientes teriam vindo assinar a documentação e o negócio teria sido realizado se tal se impusesse virem pessoalmente, caso as arguidas não tivessem agido da forma em que agiram (na prisma das arguidas que julgavam que o ofendido CC com ele concordava e o pretendia).

Mais se salienta que o dolo específico pressupõe somente o dolo direto, não abrangendo dolos eventuais e necessários. Ainda que tenha ocorrido prejuízo para o Estado decorrente de se pôr em causa a confiança e credibilidade que merecem os documentos autênticos, tal não era o fim primeiro almejado pelas arguidas, mas um fim necessariamente decorrente da sua conduta típica, ainda que as mesmas tivessem consciência da falsidade dos factos que inseriram nos documentos, juridicamente relevantes e quisessem essa inserção. E nos termos e para os termos do Artigo 256º do C.P. o prejuízo do Estado enquanto uma das modalidades do dolo específico não pode consubstanciar o pôr em causa a confiança e credibilidade atribuídas aos documentos que é inerente à conduta típica. Sempre que ocorre a conduta típica tal prejuízo existe, ou potencialmente existe, dado que se trata de um crime formal, de perigo e de resultado cortado.

Porque o crime é um de resultado cortado, o prejuízo a que alude o normativo quanto ao dolo específico, tem que ser de natureza diversa, que excede e vai para além da lesão do bem jurídico tutelado que corresponde à segurança e credibilidade do tráfico jurídico.

Isto para dizer que se o Tribunal considera que as arguidas agiram com o dolo genérico, uma vez que sabiam que estavam a falsificar documentos autênticos e pretenderam faze-lo, não agiram com o dolo específico que tal normativo legal exige.

Desta maneira, impõe-se, assim, a não pronuncia das arguidas, por tais factos suficientemente indiciados, não integrarem os elementos do tipo subjectivo do crime de falsificação de documento, em concreto, o dolo específico.

E, por tais razões, prejudicado o conhecimento da aplicação a ambas da figura da suspensão provisória do processo, cujos requisitos legais, deixamos salientado sempre estariam verificados, dando sempre lugar à suspensão provisória do processo, concordando o Juiz de Instrução com tal solução jurídica se não prejudicado o conhecimento de tal questão. (…)”.

3.2. Da apreciação do recurso interposto pelo Ministério Público

Cumpre agora conhecer a questão suscitada pelo recorrente MP e já assinalada em II., ponto 2. deste Acórdão relativa à errónea interpretação do artigo 256.º do CP.

O MP entende ter o tribunal recorrido interpretado incorretamente o disposto no artigo 256.º do CP, pois, na sua ótica todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime se encontram preenchidos e nessa medida as arguidas deveriam ter sido pronunciadas.

Apreciemos, pois, o estabelecido no artigo 256.º do CP, sob a epígrafe “Falsificação ou contrafação de documento”:

“1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:

a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;

b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;

c) Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento;

d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;

e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou

f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito;

é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

(…)

3 - Se os factos referidos no n.º 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267.º, o agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias.”.

O crime de falsificação de documento, previsto no transcrito artigo 256.º do CP, é um crime comum, de perigo abstrato e de mera atividade e tutela o bem jurídico segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório1.

Este crime tem três elementos constitutivos do respetivo tipo, a saber:

1.º Um elemento objetivo - que o agente, a) fabrique ou elabore documento falso, b) falsifique ou altere documento, c) abuse da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento, d) faça constar falsamente de documento facto juridicamente relevante, e) use documento falsificado ou contrafeito, f) por qualquer meio, faculte ou detenha documento falsificado ou contrafeito;

2.º Um elemento subjetivo - o conhecimento e a vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, ou seja, o agente tem de ter praticado o facto com dolo genérico;

3.º Um outro elemento subjetivo - a intenção de causar prejuízo a terceiro, de obter para si ou outra para pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime, isto é, o agente tem de ter praticado o facto também com dolo específico.

É precisamente este dolo específico que o Mmº JIC considera não se encontrar indiciado e daí ter concluído pelo não preenchimento dos pressupostos do artigo 256.º do CP, com a consequente não pronúncia das arguidas.

Para este efeito o Tribunal a quo depois de ouvir as arguidas AA e BB em sede de instrução e ponderar a restante prova constante do processo considerou indiciariamente apurados factos constantes do RAI e conduziu outros, designadamente, integrantes da acusação, aos factos não indiciariamente apurados.

Assim, nomeadamente, deu como indiciariamente provado que:

“A arguida AA e a arguida BB não tiveram intenção de causar ao ofendido CC, ao Estado ou a outrem, mormente a arguida DD, benefício ilegítimo ou prejuízo e não tiveram intenção de preparar, facilitar ou encobrir outro crime, com as condutas pelas mesmas perpetradas.

As arguidas estavam convictas que o ofendido CC tinha assinado a procuração e o termo de autenticação tal como era a inicial intenção deste.

As arguidas desconheciam que as assinaturas de CC constantes do termo de autenticação e procuração tinham sido fabricadas pela arguida DD e não tinham saído da lavra do próprio.

As arguidas “facilitaram” na prática dos actos supra referenciados próprios das suas funções e qualidades de advogadas, confiando em DD.

A arguida BB agiu no pressuposto de que o ofendido CC tinha intenção de outorgar a procuração e o contrato de doacção correlativo à mesma e confiando na arguida AA.”.

Por outro lado, o JIC conduziu, designadamente, aos factos não indiciariamente apurados que:

“as arguidas, AA e BB, com as suas condutas, quer relativas às procurações quer relativas aos termos de autenticação, descritas em 11 a 49, obtiveram para si benefício ilegítimo ou disso tivessem intenção, mormente manter a arguida DD como cliente, dai retirando proventos económicos que sabiam não lhes ser devida.

Não suficientemente indiciado que ambas as arguidas, em comunhão de esforços e vontades entre si, elaboraram plano para permitir a transferência da propriedade do imóvel sem o conhecimento e consentimento do ofendido, bem sabendo que, agindo dessa forma, causavam prejuízo ao ofendido e benefício ilegítimo para a arguida DD.

Não suficientemente indiciado que as arguidas soubessem que a sua conduta era e é punida por lei penal (porquanto na nossa perspectiva o não é).

Não suficientemente indiciado que as duas arguidas sabiam que CC não tinha dado autorização para a outorga do acto nem tinha assinado a respectiva procuração e acto de autenticação e já não pretendia o negócio.

Não suficientemente indiciado que a arguida BB não previu e não se conformou com a possibilidade de estar a falsificar documentos.”.

O Tribunal a quo motivou a sua convicção salientando essencialmente inexistirem no processo elementos probatórios indicativos de as advogadas arguidas (AA e BB) terem atuado conluiadas com a arguida DD.

Para fundamentar a conclusão alcançada o JIC evidenciou que as arguidas advogadas admitiram os factos relativos às procurações, aos termos de autenticação, aos seus registos e ao uso das procurações e o termo de autenticação, mas colocaram em causa terem atuado com conhecimento da falsidade da assinatura do denunciante e com a intenção de auferirem vantagem.

A reforçar este desconhecimento por parte das arguidas advogadas o Tribunal a quo destacou ter sido enviado, via postal para França (local de residência da cliente DD) a documentação para assinatura e posterior devolução.

Apesar de resultar da documentação que a arguida BB esteve presente aquando da assinatura das procurações (aludindo-se à localidade de … e ao facto de as pessoas, outorgantes no negócio, alegadamente terem pessoalmente ali comparecido) o facto é que nem aquela nem a arguida AA estiveram presentes (a documentação foi assinada em França) e daí não podiam conhecer o contexto dessas assinaturas, ou seja, que tivessem sido apostas pela arguida DD ao invés do ofendido CC.

Acresceria ter o denunciante confirmado ter inicialmente dado a sua concordância à doação, o que reforçaria a versão apresentada pelas arguidas advogadas, especialmente por AA de que a sua cliente, ora arguida DD, lhe havia transmitido a existência de tal posição assumida pelo ex-marido.

Depois, não resulta do inquérito que a mudança de opinião do denunciante tenha chegado ao conhecimento de quaisquer das arguidas AA ou BB. Aliás, tal, como aconteceu com o próprio filho do denunciante e da arguida DD, que nunca soube da mudança de opinião do pai (e que apesar de ter sido constituído arguido viu quanto a ele o processo ser arquivado – cf. fls. 482 a 487 do processo).

O Julgador considerou, pois, não se encontrarem indiciariamente apurados factos dos quais resultassem saberem as arguidas de que a assinatura aposta na procuração era falsa ou que tivessem tido a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.

Como já se referiu o dolo específico no crime de falsificação de documentos consiste na intenção de o agente de obter um benefício ilegítimo, prejudicar outra pessoa ou facilitar, executar ou encobrir outro crime. Este dolo específico é um elemento subjetivo do crime e distingue-se do dolo genérico, que é a simples vontade de praticar o ato falsificador.

Existem, efetivamente, indícios de as arguidas, ambas advogadas, terem tido vontade de elaborarem as procurações nos moldes realizados para serem utilizados para a realização de uma escritura/contrato de doação. Depois como assinala o Tribunal recorrido “Não há dúvidas, também, que as arguidas tinham consciência que faziam constar de tais documentos factos objectivamente falsos, relevantes, porquanto as procurações foram assinadas em França, local da residência dos clientes e os termos de autenticação não foram realizados com a presença física dos outorgantes do negócio. Tratando-se de factos pessoais não os podiam desconhecer nem objetivamente desconhecer a falsidade de tais afirmações, como não podiam desconhecer que tais condutas eram e são objectivamente ilícitas e contrárias à lei, mormente por violadoras dos seus deveres deontológicos“.

Não resulta, todavia, indiciariamente apurado que as arguidas AA ou BB soubessem que a assinatura da procuração e do termo de autenticação não havia sido aposta pelo punho do denunciante.

Acresceria não constar da acusação factos concretos dos quais resultasse que a elaboração das procurações, por parte das advogadas arguidas, visasse impedir que a … lograsse penhorar o imóvel propriedade de DD e CC (cf. ponto 9. das conclusões de recurso apresentadas pelo MP).

Depois, também, não se encontra indiciariamente apurado ter ocorrido dolo específico de causar prejuízo ao denunciante, porquanto as arguidas AA e BB estavam convencidas “que o ofendido CC tinha assinado a procuração e o termo de autenticação tal como era a inicial intenção deste.” É que “As arguidas desconheciam que as assinaturas de CC constantes do termo de autenticação e procuração tinham sido fabricadas pela arguida DD e não tinham saído da lavra do próprio.”.

Por fim, o Tribunal recorrido, também, sinaliza que qualquer eventual benefício ilegítimo auferido pelas arguidas não se revela claro ou até defensável, pois o benefício tem de advir da conduta típica, isto é, do uso da procuração falsa e não se deslinda em que medida as arguidas tivessem colhido algum benefício por terem facilitado a feitura à distância de procurações como se os outorgantes tivessem estado efetivamente na sua presença.

O designado “benefício” aludido pelo MP na sua acusação reporta-se às arguidas advogadas terem sido pagas pelos seus serviços, e tal circunstância não consubstancia um “benefício ilegítimo” para efeitos do artigo 256.º do CP, mas sim o pagamento de honorários devidos.

Inexistindo indícios de as arguidas advogadas terem abusado da assinatura do denunciante, sendo que todos os indícios apontam para que tenha sido DD quem assinou em nome do queixoso (esta arguida reconhece esse facto), sem o conhecimento de quaisquer outros intervenientes (filho EE ou advogadas AA e BB), não se verifica o preenchimento de um dos elementos do dolo específico. É que “As arguidas “facilitaram” na prática dos actos supra referenciados próprios das suas funções e qualidades de advogadas, confiando em DD”, no pressuposto de que o ofendido CC tinha intenção de outorgar a procuração e o contrato de doação correlativo com base na relação de confiança (advogada AA e cliente DD) ou amizade (advogadas BB e AA).

Em síntese, em relação aos elementos do dolo específico:

- Quanto à intenção de prejudicar não se encontra indiciariamente apurado que as arguidas tivessem tido o objetivo de causar prejuízo a alguém, designadamente à … ou ao denunciante. Aliás, em relação à … não constam factos concretos da acusação dos quais resultasse esse dolo de causar prejuízo. Quanto ao denunciante as arguidas não conheciam este último e indiciariamente encontra-se apurado que estavam convencidas que o mesmo, juntamente com a ex-mulher, pretendia doar o imóvel ao filho EE, pelo que não tiveram intenção de causar prejuízo ao ofendido.

- No concernente à intenção de obter benefício ilegítimo, não se deslinda nem se mostra indiciariamente apurado que as arguidas tivessem agido com o intuito de obterem para si ou para a outra arguida DD uma vantagem não permitida por lei.

Pelos serviços prestados como advogadas ambas as arguidas AA e BB receberam quantias em dinheiro a primeira em valor superior a 300 € e a segunda recebeu 348,07 € (honorários pela consulta, redação, envio por correio das procurações e dos termos de autenticação, etc). Tais montantes arrecadados pelas arguidas destinaram-se a pagar os honorários pelo exercício das suas funções como advogadas, não se deslindando em que medida esse dinheiro pudesse ser considerado como um benefício ilegítimo obtido através do ato de falsificação, quando resultou indiciariamente apurado que ambas as arguidas estavam convictas que o ofendido tinha assinado a procuração e o termo de autenticação tal como era a sua inicial intenção.

Depois, não se tendo indiciariamente apurado que as mesmas arguidas advogadas pretendessem beneficiar o filho do ofendido EE ou a ex-mulher do denunciante também não se encontra indiciariamente apurada a intenção de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime, ou que que a falsificação visou atingir outro objetivo criminoso (transferência da propriedade do imóvel do ofendido para o filho deste, sem o consentimento daquele)

Não se encontrando indiciariamente apurado que as arguidas tivessem atuado com o apontado dolo específico, tal redunda no impedimento de poderem ser punidas pela prática do crime de falsificação de documento, pois a lei exige a intenção de prejudicar ou obter benefício.

Não se mostrando indiciada a prova do dolo específico, isto é, a intenção de prejudicar ou de obter um benefício ilegítimo através do uso do documento, tanto basta para não se poder considerar o preenchimento da previsão da norma quanto ao crime de falsificação, não merecendo censura o despacho de não pronúncia recorrido.

III. DECISÃO

Nestes termos e com os fundamentos expostos:

1. Nega-se provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência, mantem-se na íntegra, o despacho de não pronúncia recorrido.

2. Sem custas.

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos signatários.

Évora, 11 de novembro de 2025.

Beatriz Marques Borges

Mafalda Sequinho dos Santos

Manuel Soares (voto vencido*)

* «Votei vencido por considerar que há indícios suficientes para imputar às arguidas um crime de falsificação de documento. Procederam ao reconhecimento de uma assinatura, declarando no documento que se tratava de um ato presencial, quando não foi. Essa declaração desconforme com a realidade foi intencionalmente praticada pelas arguidas e teve como contrapartida o recebimento dos honorários próprios da prestação de serviços de advocacia. A remuneração assim recebida constitui um benefício ilegítimo, visto tratar-se do recebimento de remuneração pela prática de um ato proibido por lei».

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1 Cf. Helena Moniz, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II. Almedina. pág. 680.