INJÚRIA
AMEAÇA
CONCURSO EFETIVO
Sumário

Para haver um crime de injúria é necessário que a ofensa atinja o
mínimo ético indispensável à salvaguarda sócio/moral da pessoa, da sua honra e consideração, devendo a afectação destes valores ser aferida por um critério situacional, que tenha em conta o contexto em que as palavras ou os factos imputados foram proferidos, bem como os sujeitos da comunicação em causa.
Para haver crime de ameaça é necessário que a ameaça seja susceptível de lesar a paz individual ou a liberdade de determinação do seu destinatário, não sendo essencial ou necessário que, em concreto, tenha provocado medo ou inquietação no mesmo.
Há concurso real ou efetivo de crimes quando os factos praticados pelo agente são subsumíveis a normas penais que protegem bens jurídicos diferentes ou, protegendo o mesmo bem jurídico, os factos forem cometidos em ocasiões diferentes, e concurso ideal quando através de uma mesma acção se violam várias normas penais ou a mesma norma repetidas vezes.
Estamos perante um concurso efectivo entre os crimes de injúria, ameaça e desobediência, quando as condutas do arguido são perfeitamente autonomizáveis entre si e tiveram como objectivo, conseguido, a violação de diferentes bens jurídicos de vários ofendidos, tutelados por diferentes normas penais, não obstante terem sido praticadas no mesmo circunstancialismo de facto.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
1 – Relatório

No processo nº 26/24.9GDLLE do Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo Local Criminal de …é - Juiz …, foi proferida sentença datada de 1/07/25, na qual se decidiu:

“a) CONDENAR o arguido AA pela prática de um crime de desobediência, p. e p. pelos arts. 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal e 152.º, n.ºs 1, al. a), e 3 do Código da Estrada, na pena de 3 (três) meses de prisão.

b) CONDENAR o arguido AA pela prática de quatro crime de injúria agravada, p. e p. pelos arts. 181.º, n.º 1 e 184.º, com referência ao art. 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) meses de prisão, para cada um.

c) CONDENAR o arguido AA pela prática de dois crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. c), do Código Penal, por referência ao art. 132.º, n.º 2, al. l), do mesmo diploma legal, na pena de 8 (oito) meses de prisão, para cada um.

d) Em CÚMULO JURÍDICO, CONDENAR o arguido AA na pena única de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão.

e) Determinar o cumprimento da pena de prisão em REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO, sita em Avenida …, …, … nos termos do art. 43.º do Código Penal.

f) Autorizar as AUSÊNCIAS do condenado, de segunda a sexta-feira, das 07h30 às 17h30 para exercício de actividade profissional, já incluindo o tempo de deslocação de e para o local de trabalho, bem como nos dias e durante o período horário necessário para esse exercício quando chamado a dar resposta a reclamações, mediante prévia comunicação com a DGRSP que deverá verificar se os pedidos de saída visam tal finalidade, nos termos do art. 43.º, n.º 3, do Código Penal.

g) CONDENAR o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 4 (quatro) meses, nos termos do art. 69.º, n.º 1, al. c), do Código Penal.(…).”

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Inconformado com aquela decisão, veio o arguido interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

“I. O ponto 7 da matéria de facto dada como provada não deveria constar da sentença recorrida, ao menos com a formulação adotada, por não refletir com rigor os elementos de prova produzidos.

II. O tribunal a quo formou convicção quanto a factos que não se mostram demonstrados nos autos, desde logo quanto à intenção do arguido de atentar contra a honra ou dignidade de outrem, não se provando o animus injuriandi exigido.

III. As expressões proferidas pelo arguido, como (“vocês só querem me foder”), não visaram individualmente os militares, mas antes revelam um desabafo dirigido à atuação da Instituição, no contexto de frustração pessoal, carecendo de idoneidade ofensiva.

IV. Não se demonstra qualquer impacto real ou concreto na esfera jurídica individual dos militares, tratando-se de expressões genéricas, não dirigidas a qualquer pessoa em concreto.

V. O arguido exerceu, com as expressões proferidas, o seu direito à liberdade de expressão, constitucionalmente consagrado no artigo 37.º da Constituição da República Portuguesa, não havendo colisão com quaisquer outros direitos fundamentais.

VI. Vedar ao cidadão a possibilidade de criticar, ainda que de forma menos urbana, a atuação de entidades públicas, configura uma compressão inadmissível da liberdade de expressão e aproxima-se de uma forma de censura vedada pelo artigo 38.º da CRP.

VII. No caso concreto, a conduta do arguido não extravasou os limites da liberdade de expressão, não violando qualquer bem jurídico pessoal, pelo que deverá prevalecer o direito fundamental consagrado constitucionalmente.

VIII. O ponto 8 da matéria de facto dada como provada não merece acolhimento, por não estarem preenchidos os pressupostos típicos do crime de ameaça agravada, quer no plano objetivo, quer no plano subjetivo.

IX. Segundo o acórdão do Tribunal da Relação de Évora (Proc. 538/17.0PBELV.E1), a aferição da ameaça deve seguir um critério objetivo-individual, que não foi observado na sentença recorrida.

X. No caso concreto, o arguido não possuía qualquer arma e os guardas encontravam-se equipados e treinados, não se verificando qualquer ameaça idónea a provocar receio sério ou fundado.

XI. O critério do “homem médio”, nos termos do Professor Mário Júlio de Almeida Costa, deve ser aferido em função do contexto socioprofissional dos intervenientes, neste caso, militares da GNR, o que reforça a inaplicabilidade da qualificação penal como ameaça.

XII. Não se compreende que guardas armados e treinados para manter a ordem pública possam ser objetivamente intimidados por expressões genéricas de um civil desarmado, atuando isoladamente.

XIII. O arguido encontrava-se sozinho, enquanto os militares atuavam em par e com superioridade numérica, afastando qualquer receio legítimo e reforçando o carácter meramente reativo e emocional da conduta.

XIV. Conforme o acórdão do Tribunal da Relação de Évora (Proc. 139/11.7PATVR.E1, de 03.02.2015), estamos perante um episódio espácio- temporalmente conexo, que configura uma unidade de facto e não um concurso efetivo de crimes.

XV. Ainda que não se acolha integralmente a tese da atipicidade, as condutas do arguido inserem-se numa única descarga emocional, desprovida de fracionamento típico, não podendo dar origem a múltiplas condenações.

XVI. Impõe-se o reconhecimento de um concurso aparente de normas, sendo absorvidas as condutas acessórias pelo ilícito principal.

XVII. O crime de desobediência deve absorver as demais condutas, não se verificando qualquer autonomia típica nas injúrias proferidas, reconduzíveis à mesma sequência comportamental.

XVIII. Quanto à alegada ameaça agravada, esta não se revela adequada a provocar receio ou inquietação nos termos legais, não preenchendo os elementos do tipo, nem afetando o bem jurídico “liberdade pessoal”.

XIX. Assim, deverá ser aplicada ao arguido pena única pelo crime de desobediência, nos termos da moldura penal abstrata correspondente, afastando-se o regime do artigo 77.º do Código Penal.”

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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

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O Ministério Público apresentou resposta, pugnando pela manutenção da decisão recorrida e pela improcedência do recurso, sem formular conclusões.

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Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, acompanhando a posição assumida pelo Ministério Público na primeira instância.

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Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nada tendo o recorrente vindo acrescentar ao já por si alegado.

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Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.

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2 – Objecto do Recurso

Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt).

São, assim, as seguintes as questões a decidir neste recurso:

- Preenchimento do elemento subjetivo do crime de injúria agravada;

- Preenchimento dos elementos objetivo e subjetivo do crime de ameaça agravada;

- Concurso efectivo ou aparente entre o crime de injúria agravada e o crime de desobediência.

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3- Fundamentação:

3.1. – Fundamentação de Facto

A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos relativamente à responsabilidade criminal do recorrente:

“1. Em 6 de Janeiro de 2024, pelas 09H20, o arguido conduzia um veículo automóvel ligeiro de passageiros, da marca “…”, na Avenida …, em …, quando foi abordado por uma patrulha da GUARDA NACIONAL REPUBLICANA, constituída pelos militares BB e CC, devidamente uniformizados e no exercício das suas funções, que o instou a efectuar o exame quantitativo de pesquisa de álcool no sangue, após o teste qualitativo ter resultado positivo, tendo recusado fazê-lo.

2. Advertido de que incorria em crime de desobediência, o arguido, desagradado com o facto de lhe ter sido dada voz de detenção, proferiu as expressões:

— “Estou-me a cagar para isso e para vocês!”;

— “Não vou soprar merda nenhuma, vocês só me querem foder!”;

— “Quero ver qual é o merdas que me consegue levar detido, não há aqui homens para isso!”;

— “Não há militares capazes para me prender!”;

— “O primeiro que me tocar vai levar na boca!”.

3. Durante o processo de algemagem, o arguido, dirigindo-se aos mesmos militares, gritou:

— “Filhos da puta!”;

— “Cabrões!”;

— “Caniches!”;

— “Seus cães!”.

4. Já no interior do SUBDESTACAMENTO TERRITORIAL DE …, o arguido dirigindo-se aos militares presentes – BB, CC, DD e EE – bradou:

— “Seus filhos da puta!”;

— “Vou apanhar-vos lá fora com os meus manos e aí vão ver os caniches que vocês são!

5. Pouco depois, o arguido foi colocado na cela, de onde gritou:

— “Seus cães, vamo-nos ver em Tribunal!”;

— “Vou continuar a bater na porta seus cães!”.

6. Bem sabia o arguido que se encontrava obrigado a realizar o exame de pesquisa de álcool no sangue, porém, querendo evitar a realização do mesmo e a obtenção de um resultado, não o efectuou.

7. Ao proferir e dirigir as mencionadas palavras, o arguido sabia serem as mesmas objectivamente ofensivas da honra, brio, dignidade pessoal e profissional dos militares BB, CC, DD e EE, e que, ao fazê-lo, faltava ao respeito devido aos ofendidos enquanto pessoas, bem como, e em especial, enquanto agentes de uma autoridade pública no exercício das suas funções, sendo que agiu com a intenção de concretizar tal desiderato, o que logrou alcançar.

8. Bem sabia o arguido que as expressões que dirigiu aos militares BB e CC eram aptas e idóneas a provocar-lhes receio de virem a sofrer algum mal – que temessem pela sua segurança, bem-estar e integridade física – o que representou e quis.

9. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei penal.

Mais se provou que:

10. Na audiência de julgamento o arguido não apresentou qualquer juízo crítico sobre a ilicitude da sua conduta, nem arrependimento, adoptando uma postura de vitimização e demonstrando uma atitude impulsiva e irascível.

11. O arguido consentiu no cumprimento de pena de prisão em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica. (…)”

*

3.2.- Mérito do recurso

No presente recurso não vem o recorrente pôr em causa a factualidade apurada pelo Tribunal a quo, nem as penas concretas que lhe foram aplicadas.

No entanto, pretende:

- ser absolvido do crime de ameaça agravada, por não se mostrarem preenchidos os elementos subjetivos e objetivos do tipo;

- que se considerem absorvidas as condutas subsumíveis ao crime de injúrias pelo crime de desobediência, face à unidade do contexto fáctico e à aplicação do princípio do concurso aparente de normas;

- a sua condenação pela prática de um único crime de desobediência;

- a aplicação de pena atenuada, tendo em conta as circunstâncias concretas dos autos;

- a suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada.

Vejamos se lhe assiste razão.

A) Preenchimento do elemento subjetivo do crime de injúria agravada

Quanto a esta matéria, alega o recorrente que:

- o ponto 7 da matéria de facto dada como provada não deveria constar da decisão recorrida porque tais expressões não são atentórias da honra, brio e dignidade;

- a expressão proferida “vocês só querem me foder”, consubstancia, no essencial, uma manifestação de descontentamento dirigida à atuação da Instituição e não necessariamente um ataque pessoal aos indivíduos que se assumem como visados;

- tal expressão revela um juízo emocional imediato, num contexto de frustração ou exasperação, não sendo possível extrair, de forma inequívoca, a intenção deliberada de atingir a honra ou consideração pessoal de terceiros;

- não obstante os visados serem “pessoas comuns”, certo é que, à data dos factos, se encontravam no exercício das suas funções, atuando na qualidade de representantes da Instituição militar;

- as ofensas apesar de dirigidas aos militares, representavam descontentamento para com atuação desta força policial;

- as restantes expressões empregues pelo arguido revestem natureza genérica e imprecisa, não sendo possível determinar que tenham sido dirigidas a um indivíduo em concreto;

- a prolação pelo arguido de expressões dirigidas à atuação da Guarda Nacional Republicana insere-se no âmbito do seu direito ao livre exercício da liberdade de expressão, constitucionalmente consagrado no art.º 37º da Constituição da República Portuguesa;

- tal direito fundamental abarca, não apenas a manifestação de opiniões favoráveis, mas também a crítica, mesmo que incisiva ou veemente, relativamente à atuação de entidades públicas.

Sucede, porém, que o recorrente não impugnou a matéria de facto apurada pelo Tribunal a quo, nos termos previstos no art.º 412º, nº 3 do Cód. Proc. Penal, pelo que se tem aquela matéria por definitivamente assente.

Ora, prevê-se no art.º 181º, nº 1 do Cód. Penal que:

“Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias”.

Nos termos do art.º 184º do mesmo diploma, esta pena é elevada de metade nos seus limites, mínimo e máximo, se a vítima for uma das pessoas referidas na alínea l) do nº 2 do art.º 132º do diploma, no exercício das suas funções ou por causa delas.

Incluem-se na alínea l) do art.º 132º, nº 2 do Cód. Penal o “agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar, agente da força pública ou cidadão encarregado de serviço público”.

Relativamente ao crime de injúria, o bem jurídico protegido pela incriminação é a honra, enquanto bem jurídico complexo, no qual se inclui a reputação e o bom nome de que qualquer pessoa goza na comunidade, bem como a dignidade inerente a qualquer pessoa, independentemente do seu estatuto social, decorrendo a tutela penal da honra directamente da dignidade da pessoa humana, prevista no art.º 1º da CRP, e merecendo tutela constitucional no art.º 26º também da CRP.

O crime de injúria é um crime de dano, quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido, e de mera actividade, quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção.

O tipo objectivo inclui a imputação de um facto ofensivo da honra a outra pessoa, a formulação de um juízo ofensivo da honra de outra pessoa ou a reprodução daquela imputação ou deste juízo, sempre dirigido ao ofendido.

O tipo subjectivo, por seu turno, admite qualquer modalidade de dolo, incluindo o dolo eventual.

( quanto à qualificação do crime, cf. Paulo Pinto de Albuquerque, in “ Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos ”, 5ª edição atualizada, UCP, pág. 819 e 820 )

Relativamente ao que se deva entender por honra, diz-nos José de Faria Costa (in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, págs. 605 a 607), que o conceito tem conhecido ao longo do tempo diversas concepções, afigurando-se como correta a concepção normativa de honra, temperada com uma dimensão fáctica, sendo a honra vista como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior.

Refere este autor, in ob. cit., pág. 607, que na sintética formulação do Supremo Tribunal Federal alemão, o que se protege com esta incriminação “é a honra interior inerente à pessoa enquanto portadora de valores espirituais e morais e, para além disso, a valência deles decorrente, a sua boa reputação no seio da comunidade. Fundamento essencial da honra interior e, desta forma, núcleo da capacidade de honra do indivíduo, é a irrenunciável dignidade pessoal que lhe pertence desde o nascimento e cuja inviolabilidade a Lei Fundamental reconhece no art.1 (…). Da honra interior decorre a pretensão jurídica, criminalmente protegida, de cada um a que nem a sua honra interior nem a sua boa reputação exterior sejam minimizadas ou mesmo totalmente desrespeitadas.”

O critério objectivo à luz do qual deve ser aferida a tipicidade/gravidade das ofensas a este bem jurídico deve ser o sentimento médio de honra da comunidade.

“Ofensivo da honra e consideração” é aquilo que razoavelmente e segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, se deverá considerar como ofensivo daqueles valores, ou seja, aquilo que a generalidade das pessoas de bem de um certo país e no ambiente em que se passarem os factos considere como ofensivo, porque, de forma grave e inaceitável, envergonha, perturba ou humilha.

Neste sentido, decidiu o Acórdão do TRE datado de 2/07/96, in CJ 1996, tomo IV, pág. 295, apontando que um facto ou juízo, para que possa ser havido como ofensivo da honra e consideração devida a qualquer pessoa, deve constituir um comportamento com objecto eticamente reprovável, de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento.

Também o STJ no seu acórdão datado de 2/10/1996, in CJ, 1996, pág.147, decidiu que: “ Por «honra» deverá entender-se a integridade moral de cada um, a probidade de carácter, rectidão, lealdade e dignidade subjectiva, fazendo parte da essência da personalidade humana, enquanto condição essencial e de natureza moral para que um indivíduo possa, com legitimidade, ter estima por si.”

Para haver incriminação é, assim, necessário que a ofensa atinja o mínimo ético indispensável à salvaguarda sócio/moral da pessoa, da sua honra e consideração, devendo a afectação destes valores ser aferida por um critério situacional, que tenha em conta o contexto em que as palavras ou os factos imputados foram proferidos, bem como os sujeitos da comunicação em causa.

Volvendo ao caso concreto, apurou-se que:

“(…)2. Advertido de que incorria em crime de desobediência, o arguido, desagradado com o facto de lhe ter sido dada voz de detenção, proferiu as expressões:

— “Estou-me a cagar para isso e para vocês!”;

— “Não vou soprar merda nenhuma, vocês só me querem foder!”;

— “Quero ver qual é o merdas que me consegue levar detido, não há aqui homens para isso!”;

— “Não há militares capazes para me prender!”;

— “O primeiro que me tocar vai levar na boca!”.

3. Durante o processo de algemagem, o arguido, dirigindo-se aos mesmos militares, gritou:

— “Filhos da puta!”;

— “Cabrões!”;

— “Caniches!”;

— “Seus cães!”.

4. Já no interior do SUBDESTACAMENTO TERRITORIAL DE …, o arguido dirigindo-se aos militares presentes – BB, CC, DD e EE – bradou:

— “Seus filhos da puta!”;

— “Vou apanhar-vos lá fora com os meus manos e aí vão ver os caniches que vocês são!

5. Pouco depois, o arguido foi colocado na cela, de onde gritou:

— “Seus cães, vamo-nos ver em Tribunal!”;

— “Vou continuar a bater na porta seus cães!”.(…)” (sublinhados nossos)

Face a esta factualidade, dúvidas não restam de que as expressões dirigidas pelo arguido aos ofendidos são idóneas a ofender a honra e consideração, pessoal e profissional, dos mesmos, que, enquanto agentes da autoridade, se encontravam devidamente uniformizados e no exercício das suas funções.

As expressões proferidas pelo arguido, dirigidas aos agentes da autoridade, qualquer que seja o conceito de honra que se perfilhe, têm um significado inequivocamente ofensivo da honra e consideração dos mesmos, avaliado à luz dos padrões médios de valoração social, situando-se a ofensa muito para além da mera violação das regras de cortesia e de boa educação e atingindo o âmago daquele mínimo de respeito indispensável ao relacionamento em sociedade.

Na verdade, não se apurou a existência de uma relação de amizade ou de convívio entre o arguido e os ofendidos que justificasse uma liberdade de actuação e de linguagem em que tais expressões fossem consideradas socialmente aceitáveis ( cf. neste sentido, entre outros, os Ac. do TRC de 2/11/2011, in CJ, 2011, Tomo V, pág. 315, Ac. do TRG de 10/07/2014, in www.dgsi.pt, Ac. do TRL datado de 11/01/18, proferido no processo nº 68/17.0P5LSB.L1-9, em que foi relator Almeida Cabral, in www.dgsi.pt).

Pelo contrário, as expressões utilizadas pelo arguido pertencem àquele grupo de expressões comunitariamente tidas como obscenas ou soezes, que objetivamente atingem o património pessoal das pessoas a quem são dirigidas, enxovalhando-as e humilhando-as, sem que isso dependa de uma especial sensibilidade ou susceptibilidade dos ofendidos.

A conduta do arguido tem, assim, que ser considerada grave, não permite que a sociedade lhe fique indiferente e justifica uma punição, por forma a acautelar a tutela que a confiança nos agentes da autoridade sempre deverá merecer.

Impõe-se, assim, concluir que os factos apurados integram o tipo objectivo do crime de injúria agravada, previsto e punido nos termos das supra citadas disposições legais.

Na medida em que se apurou que:“(…) 7. Ao proferir e dirigir as mencionadas palavras, o arguido sabia serem as mesmas objectivamente ofensivas da honra, brio, dignidade pessoal e profissional dos militares BB, CC, DD e EE, e que, ao fazê-lo, faltava ao respeito devido aos ofendidos enquanto pessoas, bem como, e em especial, enquanto agentes de uma autoridade pública no exercício das suas funções, sendo que agiu com a intenção de concretizar tal desiderato, o que logrou alcançar. (…)”, verifica-se também que a conduta do arguido preencheu o elemento subjectivo do tipo, na modalidade de dolo directo.

Não colhe também o argumento do arguido de que as expressões em causa foram proferidas genericamente, sem visar ninguém em concreto, pois foram proferidas para aqueles agentes da GNR que em concreto se encontravam a interagir com o arguido e não para quaisquer outras pessoas.

Por outro lado, o direito de liberdade de expressão do arguido não é um direito absoluto, mas antes suceptível de compressão quando confrontado com outros direitos também constitucionalmente garantidos como o direito à honra e consideração dos agentes da GNR visados.

Mostrando-se preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo dos crimes de injúria agravada pelos quais o arguido foi condenado, improcede neste tocante o recurso.

B) Preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do crime de ameaça agravada

Quanto a esta matéria, alega o recorrente que o ponto 8 da matéria de facto dada como provada não deveria ter sido incluído na decisão recorrida porque a sua redação carece de correspondência rigorosa com os pressupostos legais exigidos para a verificação do crime de ameaça agravada.

Alega, para tanto, que:

- a aferição da adequação da ameaça deve obedecer a um critério objetivo-individual, que exige que a ameaça seja séria e idónea à luz do entendimento do homem médio e que se atenda às características psíquico-mentais do recetor, enquanto elemento decisivo para aferir da sua suscetibilidade a sentir medo ou inquietação;

- o arguido não se encontrava na posse de qualquer arma ou instrumento que pudesse conferir à sua conduta um grau de perigosidade real ou iminente;

- os militares da Guarda Nacional Republicana encontravam-se devidamente munidos de armamento e demais instrumentos de proteção e reação, o que reduz substancialmente, senão elimina, qualquer sensação de ameaça séria ou idónea à luz do critério do homem médio;

- o homem médio relevante para efeitos de aferição da adequação da ameaça em concreto não é o cidadão comum abstrato, mas sim o militar da Guarda Nacional Republicana, devidamente treinado, hierarquicamente inserido e dotado dos meios técnicos e físicos adequados ao exercício das suas funções de autoridade;

- considerando que os visados se encontravam munidos de armamento e detinham formação para atuar em contextos de tensão e hostilidade, não se compreende, à luz de um juízo razoável, que as expressões proferidas pelo arguido, desprovido de qualquer meio de agressão, fossem aptas a provocar receio sério, fundado e perturbador;

- o arguido estava sozinho, ao passo de que os guardas estavam em par, pelo que, face à superioridade numérica, a ameaça não era capaz de surtir qualquer receio, sendo fruto de um momento de frustração.

Mais uma vez importa atentar em que o arguido não procedeu à impugnação da matéria de facto apurada pelo Tribunal a quo, não havendo qualquer alteração da mesmo por via deste recurso.

Ora, relativamente ao crime de ameaça agravada, dispõe o art.º 153º, nº 1 do Cód. Penal que:

“1 - Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.” (sublinhados nossos)

A agravação vem prevista no art.º 155º, nº 1 do mesmo diploma, onde se pode ler que: “1 - Quando os factos previstos nos artigos 153.º a 154.º-C forem realizados: a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; ou b) Contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez; c) Contra uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas; d) Por funcionário com grave abuso de autoridade; e) Por determinação da circunstância prevista na alínea f) do n.º 2 do artigo 132.º; o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, nos casos dos artigos 153.º e 154.º-C, com pena de prisão de 1 a 5 anos, nos casos dos n.º 1 do artigo 154.º e do artigo 154.º-A, e com pena de prisão de 1 a 8 anos, no caso do artigo 154.º-B.” (sublinhados nossos)

Da análise do art.º 153º, nº 1 do Cód. Penal decorre que o bem jurídico protegido é a liberdade de decisão e de acção de outra pessoa.

Como refere Américo Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Coimbra Editora, 1999, tomo I, pág. 342, o “bem jurídico protegido pelo art. 153º é a liberdade de decisão e de acção. As ameaças, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado, afectam, naturalmente, a paz individual que é condição de uma verdadeira liberdade”. Trata-se de um crime de perigo e de mera actividade, pois basta que, na perspectiva do agente e à luz das regras da experiência comum, tomando por referência a capacidade de entendimento e de decisão do homem médio, o anúncio de um mal futuro que corresponda a um crime, em que se traduz a ameaça, seja apto a causar medo, inquietação ou perturbação da liberdade de determinação (cf., neste sentido, Ac. TRL de 14/10/2020, proferido no processo nº 170/18.1PLLSB.L1-3, em que foi relatora Cristina de Almeida e Sousa, in www.dgsi.pt). Segundo Figueiredo Dias, in Actas da Comissão Revisora do Código Penal, 1993, pág. 500: “O que se exige para preenchimento do tipo, é que a acção reúna certas características, não sendo necessário que, em concreto se chegue a provocar o medo ou a inquietação”. Ainda nas palavras de Américo Taipa de Carvalho, in ob. cit., pág. 348: “O critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a liberdade de determinação é objectivo - individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das “sub-capacidades” do ameaçado”).”

O crime de ameaça é, assim, um crime de perigo abstrato-concreto, na medida em que, para a sua consumação, não se exige a ocorrência de dano, mas também não se basta com a simples ameaça, exigindo-se que, em concreto, a ameaça seja adequada a provocar no ofendido medo ou inquietação ou prejudicar a liberdade de determinação do destinatário ( cf. neste sentido, entre outros, Paulo Pinto de Albuquerque, in “ Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 5ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa 2022, pág. 677 e 678 ).

No mesmo sentido se decidiu no Acórdão do TRE de 19/06/2007, proferido no processo nº 426/07-1, em que foi relator António João Latas, in www.dgsi.pt, e onde se pode ler que: “Atendendo à classificação dogmática dos crimes de perigo em crimes de perigo abstracto, de perigo abstracto-concreto e concreto, afigura-se-nos estarmos perante um crime de perigo abstracto-concreto (…) Ou seja, não faz parte do tipo a efectiva lesão do bem jurídico protegido (por isso não é um crime de dano), nem a efectiva colocação em perigo do bem jurídico protegido (por isso não será um crime de perigo concreto ), mas também não basta a ameaça com a prática de algum dos crimes a que se reporta o nº1 do art. 153º do C. Penal, para o preenchimento do tipo. (…) No que respeita ao tipo do art. 153º do C.Penal, exige-se a comprovação no caso concreto, da aptidão genérica das ameaças contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual, para provocar medo ou inquietação ou prejudicar a liberdade de determinação de pessoa determinada. A comprovação desta aptidão genérica no caso concreto, corresponde ao juízo de adequação de que fala o tipo legal, o qual deve aferir-se de acordo com um critério objectivo-individual, usando a terminologia do Prof. Taipa de Carvalho, mas atribuindo-lhe um significado não totalmente coincidente. Objectivo, na medida em que a adequação da ameaça, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, deve ser aferida pelo critério do homem comum, da generalidade das pessoas, e não de acordo com um critério subjectivo, ou seja, segundo as convicções ou valores do agente que se impusesse averiguar caso a caso. Individual, porque a adequação da ameaça há-de ser aferida face às características psíquicas e mentais do ameaçado e não da generalidade das pessoas ou de determinadas categorias de pessoas. Isto é, dado o carácter individual do bem jurídico tutelado pelo tipo do art. 153º (liberdade de decisão e de acção), o que está em causa é a perigosidade particular da acção e não a sua perigosidade geral, contrariamente ao que sucede relativamente aos bens jurídicos supra-individuais. Daí que possa concluir-se com Taipa de Carvalho que, “… a ameaça adequada é a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente, independentemente de o destinatário da ameaça ficar, ou não, intimidado).” c) Por outro lado, a adequação da ameaça, de que depende a verificação do perigo típico, é um conceito normativo e não naturalístico, como referido supra, visto que o juízo de perigo é perspectivado, não como um juízo sobre um curso causal real, «mas sobre uma relação causal possível (provável)», pois o perigo significa «a probabilidade cognitiva de produção de um determinado acontecimento danoso», «um juízo fundado na experiência geral, no conhecimento objectivo das leis que regulam os acontecimentos, que exprime o receio fundado da lesão de um bem jurídico». À conclusão sobre a probabilidade de produção do acontecimento danoso, isto é, à conclusão sobre a verificação do perigo, há-de chegar-se, como refere A. Silva Dias, através de uma prognose póstuma, ou seja, de um juízo de idoneidade realizado posteriormente, mas reportado ao momento da acção e não, – como sempre terá de ser num crime de perigo concreto – a partir da análise de uma situação real de perigo, conceptualmente distinta da situação de lesão do bem jurídico. Parafraseando Silva Dias, (referindo-se ao originário art. 273º do C.Penal de 1982 ), podemos dizer que as ameaças a que se reporta o art. 153º do C. Penal são adequadas, quando o juiz, colocando-se no momento da acção e fazendo apelo às regras da experiência comum e aos conhecimentos de que dispõe, sobre a pessoa do ameaçado e demais circunstancialismo relevante (com base no conjunto da factualidade provada), puder concluir que aquelas ameaças são concretamente idóneas para provocar, na pessoa ameaçada, medo ou inquietação ou prejudicar a sua liberdade de determinação.”

Pode-se, assim, concluir que resulta do texto do nº 1 do art.º 153º que a criação de um sentimento de inquietação na pessoa do ofendido é por si só suficiente para a verificação do crime, desde que se mostrem preenchidos os demais requisitos do tipo, nomeadamente:

- a ameaça, pressupondo a cominação de um mal, de natureza pessoal ou patrimonial;

- que configure um tipo legal de crime futuro, porque se o mal se iniciar imediatamente após a concretização da ameaça, estaremos já no domínio do início da execução do crime ameaçado ou, pelo menos, da tentativa;

- de concretização dependente da vontade do agente ou que pelo menos se apresente como tal, aos olhos do homem médio, sob pena de a ameaça não se apresentar como credível e portanto, não poder ser punível como tal ( cf., neste sentido, Ac. do TRC de 29/01/2020, proferido no processo nº 81/18.0PBFIG-C1, em que foi relator Jorge Jacob, in www.dgsi.pt ).

Exige-se também que o sujeito passivo do crime tenha conhecimento da ameaça e que esta seja adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.

É necessário, portanto, que a ameaça seja susceptível de lesar a paz individual ou a liberdade de determinação, não sendo essencial ou necessário que, em concreto, tenha provocado medo ou inquietação.

Em face da factualidade considerada como provada, nos termos supra expostos, analisada em conjunto com os restantes factos apurados pelo Tribunal a quo, conclui-se que se mostram provados factos bastantes para o preenchimento dos elementos objectivo e subjectivo do crime de ameaça agravada, impondo-se a condenação do arguido pela prática do mesmo.

Na verdade, a conduta do arguido preenche a tipicidade objectiva do crime em questão, uma vez que o mesmo proferiu as expressões:

“O primeiro que me tocar vai levar na boca!”;

“Vou apanhar-vos lá fora com os meus manos e aí vão ver os caniches que vocês são!” .

Estas expressões chegaram ao conhecimento dos visados e são objectivamente adequadas a causar medo e inquietação aos ofendidos, para além do que se tratam de ameaças contra a sua integridade física, as quais constituem não só um mal futuro, como se tratam da prática de um crime.

Tendo em conta as regras da experiência comum e segundo a sensibilidade do homem médio, colocado na posição dos ofendidos, é credível que estes, ao tomar conhecimento das expressões proferidas pelo arguido, tenham sentido receio e inquietação de que o arguido concretizasse a ameaça, tanto mais que o arguido visava, por todos os meios ao seu dispor, impedir a realização do exame quantitativo de pesquisa de álcool no sangue, após o teste qualitativo ter resultado positivo, tendo conseguido o seu objectivo.

Com tal finalidade, não se coibiu o arguido de proferir expressões injuriosas e de ameaçar os agentes da GNR, devidamente uniformizados e no exercício das suas funções, que o abordaram e que o instaram, legalmente, a efectuar o exame quantitativo de pesquisa de álcool no sangue.

Dado o estado de exaltação em que o arguido se encontrava e a sua determinação em não ser submetido ao exame quantitativo de pesquisa de álcool no sangue, verifica-se que as expressões “Não há militares capazes para me prender!”; “O primeiro que me tocar vai levar na boca!”, “Vou apanhar-vos lá fora com os meus manos e aí vão ver os caniches que vocês são!, proferidas pelo arguido eram aptas a causar inquietação e receio pela integridade física a qualquer militar da GNR colocado na posição dos ofendidos, não obstante a sua superioridade numérica e o facto de o arguido não se encontrar armado, factos estes irrelevantes para descredibilizar as ameaças.

Da factualidade dada como provada em 8 e 9, e não impugnada, decorre que o arguido, ao proferir as expressões em apreço, quis intimidar e incutir medo nos agentes da GNR e fazê-los temer pela sua integridade física, bem sabendo que tais expressões eram idóneas a provocar esse medo, mostrando-se, assim, preenchido o elemento subjectivo do tipo, na modalidade de dolo directo.

Em face disto, improcede também neste tocante o recurso.

C) Concurso aparente ou efectivo entre o crime de desobediência e os crimes de injúrias

Alega também o recorrente que as suas condutas dizem respeito a uma única “descarga emocional”, num “episódio de vida unívoco espácio-temporalmente conexo”, pelo que entende que o crime de desobediência deverá absorver as demais condutas que lhe foram imputadas, porquanto todas elas decorrem de um mesmo núcleo factual e situacional, sem autonomia objetiva, nem subjetiva entre os comportamentos visados.

Entende o recorrente que estamos em presença de um concurso aparente de normas penais, em que a pluralidade de previsões legais incide sobre uma realidade comportamental una e indivisível, devendo, por isso, prevalecer a norma especial ou subsidiária, no caso, a que tutela o bem jurídico da autoridade, sobre outras que, no contexto concreto, assumem caráter meramente acessório ou reflexo.

Em consequência, entende o recorrente que os factos subsumíveis ao tipo legal de injúrias devem ser absorvidos pelo ilícito de desobediência, por força do princípio do concurso aparente de normas penais, uma vez que tais expressões foram proferidas no decurso da mesma conduta, como mera reação emocional à atuação da autoridade, sem qualquer autonomia típica ou volitiva.

Apreciemos a sua pretensão.

Prevê-se no art.º 30º, nº 1 do Cód. Penal que: “O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.”

Da análise desta norma decorre que o critério normativo adotado está ligado a uma conceção pessoal do ilícito, segundo a qual haverá tantos crimes quantos os ilícitos praticados, quer atendendo ao número de vezes que o agente violou determinado tipo legal, quer ao número de tipos legais violados.

Quanto a esta matéria, o STJ, no seu acórdão de 24/04/2019, proferido no processo nº 308/12.2 TAABF.S1, in www.dgsi.pt, concluiu que: “ (…) Este preceito consagra um critério teleológico, e não naturalístico, para distinguir entre unidade e pluralidade de crimes. Se a conduta do agente integra um único tipo de crime constitui uma única infração; se preencher vários tipos de crime haverá várias infrações. A uma única conduta naturalística podem corresponder vários crimes, tantos quantos os tipos de crime violados; a várias condutas naturalísticas subsumíveis ao mesmo tipo legal pode corresponder um único crime. A unidade de tipo de crime avalia-se de acordo com a unidade de bem jurídico infringido.”

Segundo o critério constante do nº 1 do art.º 30º do Cód. Penal podemos, assim, concluir que:

- se várias condutas violarem o mesmo bem jurídico, o critério de distinção deve residir na existência de unidade ou pluralidade de resoluções criminosas;

- se existir uma única resolução, determinante de uma prática sucessiva de atos ilícitos, haverá lugar a um único juízo de censura penal, e portanto existirá apenas um crime;

- caso hajam sucessivas resoluções, estaremos perante uma pluralidade de juízos de censura, e portanto de infrações.

A unidade de infrações pressupõe porém, em regra, uma conexão temporal forte entre as diversas ações naturalísticas.

É este também o entendimento perfilhado por Eduardo Correia, in “Unidade e Pluralidade de Infracções – A Teoria do Concurso em Direito Criminal”, Livraria Atlântida, Coimbra, págs. 115 a 128.

Havendo violação de vários bens jurídicos pela atividade do agente, haverá sempre pluralidade de crimes, ainda que exista uma só resolução criminosa, excepto se houverem normas concorrentes que se excluam mutuamente.

Em face do exposto, pode-se dizer que há concurso real ou efetivo de crimes quando os factos praticados pelo agente são subsumíveis a normas penais que protegem bens jurídicos diferentes ou, protegendo o mesmo bem jurídico, os factos forem cometidos em ocasiões diferentes, e concurso ideal quando através de uma mesma acção se violam várias normas penais ou a mesma norma repetidas vezes.

O critério operativo de distinção entre categorias, que permite determinar se em casos de pluralidade de acções ou pluralidade de tipos realizados existe, efectivamente, unidade ou pluralidade de crimes, ou seja, se estamos perante um concurso legal ou aparente ou real ou ideal, é o do bem jurídico violado e a concreta definição do mesmo que esteja subjacente a cada tipo de crime.

Também o Tribunal Constitucional se pronunciou, nomeadamente no acórdão nº 303/2005, de 8/06/2005, proferido no processo nº 242/2005, publicado no Diário da República, II Série, n.º 150, de 5/08/2005, no sentido de que: “(…) nada impede que o legislador configure o sistema sancionatório penal quanto ao concurso de infracções em matéria criminal segundo um critério de índole normativa e não naturalística, de modo que ao "mesmo pedaço da vida" corresponda a punição por tantos crimes quantos os tipos legais que preenche, desde que ordenados à protecção de distintos bens jurídicos, como é seguramente o caso dos que prevêem a burla e a falsificação de documentos. Não ficando a protecção de lesão ou perigo de lesão de bens jurídicos merecedores de tutela penal esgotada ou consumida por um dos tipos que a conduta do agente preenche, não viola o princípio da necessidade das penas e, consequentemente, o ne bis in idem material, a punição em concurso efectivo (concurso ideal heterogéneo), mediante esse critério teleológico, do crime-meio e do crime-fim, porque cada uma das punições sanciona uma típica negação de valores pelo agente.”

O crime de desobediência vem previsto no capítulo dos crimes contra a autoridade pública, no art.º 348º, nº 1 do Cód. Penal.

O bem jurídico protegido é a autonomia intencional do funcionário com autoridade pública, no sentido da não colocação de obstáculos às suas ordens por parte dos respectivos destinatários, incluindo-se no conceito de funcionário os gestores e trabalhadores das empresas privadas concessionárias de serviços públicos.

Trata-se de um crime de dano, quanto ao grau de lesão do bem jurídico, e de mera actividade, quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção.

O tipo objectivo consiste no não cumprimento de uma ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados ao destinatário e provenientes de autoridade ou funcionário competente.

O crime consuma-se com a prática do acto cuja omissão foi ordenada ou com a omissão do acto cuja prática foi ordenada.

(cf., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in ob. cit., pág. 1209).

Já nos crimes de injúria agravados em apreço, como se viu, o bem jurídico protegido é a honra e a consideração do funcionário.

No caso dos autos, o arguido não só dirigiu expressões ofensivas da honra e consideração de agentes da GNR, como os ameaçou e se recusou a efectuar o exame quantitativo de pesquisa de álcool no sangue, sem motivo válido, depois de receber uma ordem legítima para a sua realização.

Não obstante terem sido praticadas no mesmo circunstancialismo de facto, as diferentes condutas do arguido são perfeitamente autonomizáveis entre si e tiveram como objectivo, conseguido, a violação de diferentes bens jurídicos, tutelados por diferentes normas penais.

Assim sendo, havendo vários bens jurídicos tutelados por diferentes normas e vários ofendidos, tem que se considerar que estamos perante um concurso efectivo entre os crimes de injúrias, os crimes de ameaças e o crime de desobediência, pelos quais o arguido foi condenado, e julgar também nesta parte improcedente o recurso.

Na parte final do recurso alega ainda o recorrente que a pena que lhe foi aplicada deve ser atenuada e suspensa na sua execução, nos termos do art.º 50º do Cód. Penal, por se mostrarem reunidos os respetivos pressupostos legais.

Sucede, porém, como supra referido, que, nos termos previstos no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso.

Ora, no corpo da motivação do seu recurso e nas conclusões do mesmo, o recorrente nada argumenta quer quanto à atenuação especial da pena que lhe foi aplicada, quer quanto à suspensão da sua execução.

Assim sendo, tem que se entender que a alusão a tais questões apenas na parte final do recurso se deve ter ficado a dever a um manifesto lapso, não havendo qualquer argumento do recorrente a considerar ou a rebater, pelo que não irá este Tribunal de recurso conhecer de tais questões, uma vez que as mesmas não são de conhecimento oficioso.

Por todo o exposto, impõe-se concluir que a sentença recorrida não violou nenhum dos preceitos legais e constitucionais invocados pelo recorrente e, em consequência, julgar o recurso totalmente improcedente, sem necessidade de mais considerandos.

*

4. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os Juízes que integram esta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso apresentado por AA, e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.

Évora, 11 de Novembro de 2025

(texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto pela relatora)

Carla Francisco

(Relatora)

Jorge Antunes

Edgar Gouveia Valente

(Adjuntos)