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ACUSAÇÃO
FURTO
BURLA
ELEMENTOS OBJECTIVOS
ELEMENTOS SUBJECTIVOS
Sumário
Estando elencados na acusação os elementos objectivos e subjectivos dos crimes de furto e de burla, será forçoso concluir que os factos descritos na acusação são idóneos para submeter o arguido a julgamento e que não se configura uma situação em que seja manifesta a irrelevância penal dos factos, para efeitos de apreciação de uma acusação como manifestamente infundada, desde logo porque não é o juiz de julgamento que “escolhe” os crimes que entende dever julgar, pois tal viola o princípio do acusatório.
Texto Integral
Acordam em Conferência os Juízes da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa
1. Relatório
Nos autos de processo comum com intervenção do Tribunal Singular com o n.º 969/20.9PRAGR.L1 foi proferido despacho na qual foi decidido: Face ao exposto, nos termos do art.º 311.º, n.º 1, 2, al. a) e 3, al. b), do Código de Processo Penal, rejeita-se parte da acusação, porque nula e manifestamente infundada, relativamente ao crime de furto que vem acusado de praticar no apenso n.º 969; bem como relativamente a todos os crimes de burlas indicados na acusação. Em conformidade com o acima decidido, recebo a acusação deduzida pelo Digno Magistrado do Ministério Público, contra o arguido AA, pelos factos e disposições legais aí descritos, apenas relativamente ao crime de furto listado no apenso n.º 1131 e, bem assim, quanto aos crimes de abuso de confiança indicados nos apensos n.º 349, 1954, 738 e 886, que dou por integralmente reproduzidos e para os quais expressamente remeto [art.º 311-A.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal].
*** Não conformado, veio o MP, interpor recurso para este Tribunal, juntando, para tanto, as motivações que constam destes autos, e que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais, concluindo nos seguintes termos, que se transcrevem:
1. O presente recurso vem interposto do douto despacho proferido nos autos identificados em epígrafe e constante de fls.876 e segs., (referência 59341277), que rejeitou parte da acusação, porque nula e manifestamente infundada, relativamente ao crime de furto que vem acusado de praticar no [apenso n.0 969], bem como relativamente a todos os crimes de burla indicados na acusação.
2. Relativamente ao crime de furto, estão preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos deste ilícito, pelo que não poderia a Mma Juíza, fazer um pré-julgamento sobre os indícios e sobre a prova indicada na acusação.
3. Salvo melhor entendimento, inexiste fundamento válido para a rejeição da acusação sub judice. No nº 3 do artº 311º do Código de Processo Penal são elencados casos extremos em que a acusação é insuscetível de correção sem prejuízo do direito de defesa fundamental que a falta dos elementos aí mencionados traria. Nele se preveem nulidades da acusação sui generis, insuperáveis e insanáveis, que permitem ao Juiz do julgamento uma intromissão na estrutura acusatória do processo que de outro modo não seria admissível. No caso da alínea d) da mencionada norma prevê-se uma dessas situações limites - a falta de objecto legal. Este apenas poderá ser verificado quando a factualidade descrita não configura a prática de qualquer crime. Ora, a acusação rejeitada contém os factos integradores do tipo de ilícito em questão, do crime de furto.
4. Deste modo, os factos estão devidamente descritos, tanto o elemento objetivo como o elemento subjetivo, pelo que relativamente ao crime de furto, cuja acusação a Mma Juíza não recebeu, violou assim Mma Juíza o disposto nos artigos 203º. 1 do Códido Penal e o 311º. do CPP.
5. Relativamente aos onze crimes de burla, decidiu também a Mma. Juíza fazer um pré-julgamento sobre os indícios e sobre a prova indicada na acusação.
6. Ora, a Mma Juíza, entende que exercendo o arguido as funções de mecânico de automóveis por conta própria, não poderia praticar factos que tipificam a prática do crime de burla.
7. Nas 11 (onze) situações, em que foi deduzida acusação, existem indícios fortes de que o arguido de forma a conseguir dos ofendidos o dinheiro de que se apoderou, fez-lhes crer que sem a entrega do dinheiro, que dizia ser essencial para comprar o material a utilizar nos respetivos veículos e sem o qual não efetuaria qualquer trabalho, levou de facto, os ofendidos, acreditando na palavra do arguido a entregar-lhes o dinheiro solicitado.
8. De harmonia com o disposto no artigo 311º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal, quando o processo é remetido para julgamento sem ter havido instrução, a acusação pode ser rejeitada, se for considerada manifestamente infundada, o que, nos termos do nº 3 do referido artigo, acontecerá quando: a) Não contenha a identificação do arguido; b) Não contenha a narração dos factos; c) Não indique as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; d) Os factos não constituam crime; Nos presentes autos, foi deduzida acusação contra o arguido, tendo-lhe sido imputada a prática de onze crimes de burla simples, p.p. pelo artigo 217º, nº 1 do Código Penal.
9. Decorre do disposto no nº 1 do artigo 217º do Código Penal, que “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”. A proteção ao património coloca-se no momento em que evento danoso ocorre, em que o prejuízo patrimonial se verifica - sob a forma de dano emergente ou de lucro cessante -, sendo esse, justamente, o momento da consumação do crime.
10. No libelo acusatório acusatório, aparece de uma forma clara a intenção de enriquecimento ilegítimo, claramente definida e demonstrada em relação ao arguido, já que se propunha obter, como obteve, um enriquecimento com base no direto empobrecimento dos ofendidos, sem causa justificativa. Na concretização dessa sua intenção, sabendo que só podia conseguir esse dinheiro dos ofendidos, fazendo-os crer que só procederia ao arranjo dos veículos, caso os ofendidos lhe entregassem as quantias pelo arguido solicitadas, atingindo assim o arguido, por este meio, o seu desiderato, constituindo a entrega de tais montantes, envolvendo necessariamente o erro sobre os factos astuciosamente provocados, a que alude o artigo 217.º, n.º 1, sendo este resultado a consequência daquela atividade.
11. Em tudo isto se traduz o erro sobre factos, que foram astuciosamente provocados, tanto quanto é certo que o arguido de forma a dar credibilidade à sua historia, até assinou pelo menos três declarações de dívidas, quando sabia que não tinha condições para pagar. Por outro lado, o arguido praticou todos os atos vindos de referir, com conhecimento e consciência da ilicitude das suas condutas e com o propósito conseguido de, assim, obter um benefício ilegítimo em detrimento dos ofendidos.
12. Deste modo, será forçoso concluir que os factos descritos na acusação são idóneos para submeter o arguido a julgamento de forma a esperar que da discussão em julgamento poderá decorrer a condenação do arguido por aqueles factos e com o enquadramento constante da acusação.
13. A Mma Juíza lavrou, pois, em erro ao declarar nula a acusação, por não observar os requisitos do art, 311º. do CPP.
14. A acusação rejeitada contém os factos integradores do tipo de ilícito em questão, o crime de furto e de burla.
15. Como decidido no Ac. TRE de 3-12-2013 : No caso de se apresentar controversa a atipicidade dos factos narrados na acusação, esta não pode ser taxada de manifestamente infundada e fulminada com a rejeição liminar, nos termos do art.311º, nº2, al. a) e nº3, al. d) , do CPP, devendo os autos prosseguir para julgamento, onde a questão, segundo as várias perspetivas que se perfilem e sob a égide do contraditório, será discutida e debatida.
16. A acusação rejeitada tem, por conseguinte, condições de viabilidade e é fundamento bastante da realização de julgamento.
17. Ao rejeitar a acusação por a considerar nula e manifestamente infundada, o Tribunal a quo, violou o disposto no art.º 311.º, n.º 1, 2, al. a) e 3, do Código de Processo Penal e o art. 203º. e 217º.1 do Código Penal, pelo tal despacho deverá ser substituído por outro que receba a acusação, seguindo-se os ulteriores trâmites processuais, assim se fazendo a habitual e inteira
Nesta instância, foi cumprido o disposto no art. 416º nº 1 do Código de Processo Penal. A Digna Procuradora-Geral Adjunta proferiu parecer, pugnando pelo provimento do recurso, aderindo à fundamentação da Exma Procuradora da República, mas acrescentando o seguinte:
Adere-se na íntegra ao recurso do Ministério Público na 1.ª instância interposto do despacho judicial, proferido ao abrigo do disposto no artigo 311.º do CPP, que rejeitou parcialmente a acusação pública deduzida no processo, quanto a um crime de furto simples (do apenso 969) e quanto a todos os crimes de burla narrados naquela, entendendo o Tribunal que nessa parte a acusação era manifestamente infundada.
Dada a ampla e acertada argumentação expendida no recurso, com indicação de inúmeras fontes que lhe dão total respaldo, condensada de forma clara, pertinente e concisa nas respetivas conclusões, pouco ou nada de útil sobra para dizer.
Todavia, não pode deixar de se salientar o seguinte:
Sob pena de o Tribunal, em sede de saneamento nos temos do artigo 311.º do CPP, ao rejeitar a acusação tecendo pré-juízos de culpa ou interferindo na forma como os factos da acusação se mostram descritos, porventura por razões linguísticas ou porque os considera dissociados da tese doutrinária que perfilha, quando sobre a questão se podem colocar várias soluções plausíveis de direito, se ver confrontado com flagrante violação do princípio do Acusatório e das finalidades que o mesmo visa garantir, assim, com ofensa do consagrado no artigo 32.º/5 da CRP, como refere Paulo Pinto de Albuquerque em anotação ao cit. artigo 311.º do CPP no seu Comentário do Código de Processo Penal, volume II, 5.ª edição atualizada, páginas 249/253, o conceito de acusação manifestamente infundada é … normativamente fixado por meio de um elenco fechado de causas de ineptidão (n.º 3) … o juiz deve apenas controlar os vícios estruturais graves da acusação taxativamente enunciados no n.º 3 (do artigo 283.º do CPP)…
No que interessa ao caso e face aos fundamentos do despacho recorrido veja-se ainda O legislador não pretende censurar a omissão de narração de quaisquer factos, mas a falta de narração ainda que sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena … op. cit. . No que se refere ao crime de furto simples p.p. artigo 203.º/1 do CP (apenso 969) diz o Tribunal que a acusação é manifestamente infundada porque não contém a descrição da subtração (tipo objetivo do crime de furto), nem contém a narração da especial intenção de ilicitude que é a intenção de se apropriar da coisa alheia.
No que respeita à subtração, ou seja o ato de retirar a coisa e levá-la consigo, a acusação descreve que o arguido foi buscar o veículo, que sabia não ser seu, e que agia contra a vontade da sua dona, ao local onde se encontrava estacionado, não o devolveu e ficou na sua posse. Por conseguinte, afigura-se caraterizada e descrita de facto a ação objetiva típica do crime de furto, a subtração da coisa móvel alheia.
Quanto à especial intenção de apropriação, diz a acusação que o arguido sabia que o veículo já não era seu, o que não o demoveu de dele se apoderar, que agia contra a vontade e no desconhecimento pela dona, o que quis. Aceitando-se que a descrição em causa aponta claramente mais para o dolo do tipo de furto, a utilização do verbo apoderar-se, que significa em termos comuns apropriar-se, fazer seu, associando-lhe a vontade de se apoderar da coisa, vem a encerrar essa especial intenção, porque vai além dela, ou seja, o arguido apropriou-se, mesmo, da coisa, o que quis, logo, teve de agir com essa intenção, pelo que a respetiva narração ainda está contida no sentido possível daquela.
Daqui que e de forma sintética, a acusação contém a especial intenção de apropriação.
No que respeita aos crimes de burla p.p. artigo 217.º do CP, como bem se assinala no recurso, o Tribunal entendeu que o arguido não podia cometer os crimes de burla por que vinha acusado porque exercia por conta própria a função de mecânico de automóveis, parecendo que, para o Tribunal só haveria burla relativamente aos clientes a quem fez crer que tinham de pagar previamente os custos das peças, caso contrário, não poderia fazer os trabalhos de reparação e assim conseguiu que lhe entregassem quantias em dinheiro, que fez suas, se a oficina, o exercício da função de mecânico, tivesse sido organizada apenas para a prática de crimes de burlas, ou seja se a burla fosse um modo de vida.
Acontece que se assim fosse, a conduta seria ainda assim subsumível ao tipo de burla, agora qualificada por modo de vida – cfr. 218.º/2/b do CP.
Afigura-se que o ardil criminoso que carateriza a ação típica do crime de burla, no caso concreto, se consubstancia no convencimento de que os trabalhos de reparação teriam de ser pagos antecipadamente, que era preciso dinheiro para as peças, o que determinou os clientes a entregarem o dinheiro pretendido ao arguido, que agiu apenas com o propósito de fazer suas tais quantias em dinheiro.
Também o arguido compreendeu a acusação, exerceu o seu direito de defesa como entendeu, contestando a acusação através da negação da prática dos factos que, ali, lhe foram imputados.
Daqui que seja legítimo concluir que o Tribunal rejeitou a acusação, não por esta ser inepta, mas, num caso porque não concorda com a forma (estilo, vocábulos usados) como os enunciados são descritos, no outro, porque interpretou de forma errada o tipo do artigo 217.º do CP., em ambos, porque mal interpretou o disposto nos artigos 283.º e 311.º do CPP e as finalidades das normas no contexto dos princípios legais e constitucionais que as contextualizam.
Assim, reproduzindo-se a matéria das conclusões do recurso, entende-se que o mesmo deverá obter total provimento e revogar-se a douta decisão recorrida por erradamente ter rejeitado parcialmente a acusação por ineptidão prevista no artigo 283.º/3/b do CPP, vício estrutural este que não se verifica, incorrendo assim o despacho recorrido em erro de direito e de interpretação, e violação do princípio do Acusatório consagrado no artigo 32.º/5 da CRP.
*** Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417º nº 2 do CPP, foram os autos aos vistos e procedeu-se à Conferência.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
2. Fundamentação:
Cumpre assim apreciar e decidir. O despacho recorrido é o seguinte: O Tribunal é o competente. O Ministério Público dispõe de legitimidade para acusar. O processo é o próprio e é válido. Inexistem nulidades, exceções e questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa. Autue como processo comum, com intervenção do Tribunal Singular. * Relativamente à Acusação deduzida pelo Digno Magistrado do Ministério Público, contra o arguido AA, importa analisar e dizer o seguinte: §1. Relativamente ao crime de furto [apenso n.º 969] O Ministério Público acusa o arguido AA de ter praticado em autoria material e na forma consumada, dois crimes de furto, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal. Para o efeito, elenca a seguinte factualidade: 22. No dia … de … de 2020, o arguido AA, vendeu o veículo da marca …, modelo …, de matrícula ..-..-VF a BB, pela quantia de €2.100 (dois mil e cem euros). 23.Nessa altura, o arguido comprometeu-se a fazer a inspeção periódica ao veículo, o que não fez. A ofendida BB, mostrou-se desagradada pela situação e o arguido, contra a vontade da ofendida, em … de 2020, foi buscar o veículo que se encontrava estacionado na Rua 1 e não mais o devolveu, apesar da insistência da ofendida. Através das mensagens por telemóvel trocadas com o arguido, este foi sempre dando desculpas para não devolver nem o dinheiro, nem o veículo. Ficou assim na posse do dinheiro e do veículo. A ofendida só entregou ao arguido o referido montante por este a convencer que iria proceder à inspeção do veículo, e que lhe entregaria o veículo como acordado, o que nunca fez. 24. O arguido sabia que o veículo já não lhe pertencia, facto que não o demoveu de dele se apoderar, contra a vontade e no desconhecimento do legitimo dono, o que quis. 25. O arguido de modo a dar credibilidade à sua conduta e sabedor de que não tinha bens que a ofendida lhe pudesse executar, emitiu uma declaração de divida a favor da ofendida BB, no valor de €2.100 (dois mil e cem euros) O bem jurídico protegido pelos crimes de furto é a propriedade no seu sentido socioeconómico, i.e., o conjunto de faculdades juridicamente protegidas pelo titular da relação de posse sobre determinada coisa, nelas incluindo o conteúdo económico que a coisa comporta. O tipo objetivo da norma encontra-se na primeira parte do preceito: (i) subtração, (ii) de coisa móvel, (iii) alheia. Para os efeitos que aqui relevam, importa ater apenas no elemento “subtração”. Subtração não se confunde com apreensão. Pode bem haver casos em que existe subtração sem que, para o efeito, o agente tenha, sequer, apreendido/tocado coisa alheia. A subtração é o elemento do tipo que demonstra maior relevância, por assumir simultaneamente a natureza de ação e resultado [GARCIA, M. Miguez, O Direito Penal Passo a Passo, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2011, pág. 45]. Subtrair é retirar a coisa/objeto de um determinado sítio, para outro, i.e., retirá-la do domínio de facto de certo sujeito e integrá-la na de outro. Como se pode ler no ac. do TRE “(...) a ‘subtração’ (...) não é, pois, uma ‘apropriação’ (...), mas tão só a perda dos poderes de facto do detentor originário e a constituição de uma nova detenção por parte do agente do crime. A investidura nessa situação de nova detenção (por parte do agente do crime) dever-se-á considerar realizada quando o agente passa a controlar, de facto, a coisa, passa a tê-la sob o seu domínio, em exclusividade, o que pressupõe que a coisa foi retirada do poder de facto do anterior detentor, que sobre ela deixou de ter a possibilidade de controle” [ac. do TRE de 17.3.2015, proc. n.º 43/12.1GCLGS.E1 (Rel. JOÃO AMARO), disponível em www.dgsi.pt]. Relativamente ao elemento da subtração, vários posicionamentos têm surgido na jurisprudência nacional a este respeito. Há quem considere relevante o simples ato de pegar ou tocar na coisa para considerar existir consumação do furto – teoria da contretação [ac. do STJ de 5.7.1989, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 389, pág. 298]–, quem entenda que é necessário um controlo de facto e exclusivo do novo detentor – teoria da apreensão [ac. do STJ de 21.11.1990, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 401, pág. 234]–, entendimentos que consideram essencial retirar a coisa do local de domínio de facto do anterior detentor/possuidor – teoria da ablação – e ainda quem considere necessário a transferência ou recolha da coisa de modo pacífico na esfera de domínio do novo detentor – teoria da ilação [ac. do STJ de 23.11.1982, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 312, pág. 316]. Para este Tribunal, aproximar-se-á mais da ideia de subtração como ato de desapossamento a última das teorias apresentadas, por implicar a criação de um novo domínio de facto sobre o objeto. Não basta tocar nos objetos, colocá-los já dentro da mochila e sair da casa. É necessário que haja, de forma direta ou indireta, a disponibilidade total sobre a coisa subtraída [ac. do TRP de 8.5.2013, proc. n.º 830/12.0GCSTS.P1 (Rel. JOAQUIM GOMES), disponível em www.dgsi.pt]. Resulta da conjugação do art.º 203º com o art.º 13º do Código Penal a não incriminação do crime de furto por negligência. A contrario sensu pode-se concluir que o crime de furto é sempre e necessariamente doloso, qualquer que seja a sua modalidade (direto, necessário ou eventual). A primeira componente do dolo é de ordem intelectual e não volitiva. Quem o determina é o art.º 16º, n.º 1 do Código Penal, quando se refere ao objeto do dolo como abrangendo os elementos de facto ou de direito. Quer isto dizer, portanto, que o agente tem que conhecer e querer tirar de terceiro, para dela se apoderar, o domínio do facto de coisa móvel que lhe é alheia. Exige-se que o agente queira realizar a ação de subtrair e logre obter o resultado dela decorrente. A segunda componente do dolo é puramente volitiva e prende-se com a intenção de passar à posição jurídica de proprietário/possuidor. Estamos no âmbito de uma “vontade intencional” do agente de se comportar perante a coisa móvel como seu proprietário. Isto porque, além do dolo genérico necessário para qualquer das suas modalidades (direto, necessário ou eventual) – que se direciona à demonstração que o agente agiu com conhecimento e vontade relativamente à conduta que vem acusado de praticar – exige-se para consumação deste tipo de crime um elemento especial subjetivo da ilicitude [Ac. do TRL de 12.1.2022, proc. n.º 230/21.1PFLSB.L1-9 (Rel. BRÁULIO MARTINS), disponível em www.dgsi.pt], consubstanciado nesta ilegítima intenção de apropriação para si ou terceira pessoa. O elemento da ilegítima intenção de apropriação é preenchido pela vontade específica, traduzida na intenção de o agente, contra a vontade do proprietário ou detentor da coisa furtada, a haver para si ou para outrem, integrando-a na sua esfera patrimonial [ac. do STJ de 26.10.1994, proc. n.º 046597 (Rel. TEIXEIRA DO CARMO), disponível em www.dgsi.pt]. O elemento subjetivo em causa, de que não se pode prescindir ou abdicar para a subsunção jurídico-penal do crime de furto, é essencial, entre outras coisas, para o diferenciar de outros tipos criminosos, nomeadamente o crime de furto de uso [ac. do TRC de 29.2.2012, proc. n.º 482/10.2PAVFR.C1 (Rel. BRÍZIDA MARTINS), disponível em www.dgsi.pt]. Conforme resulta do art.º 208º, n.º 1 do Código Penal, “Quem utilizar automóvel ou outro veículo motorizado, aeronave, barco ou bicicleta, sem autorização de quem de direito, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal” (s.n.) É que entre ambos os furtos há elementos coincidentes, maxime um ato material de subtração de uma coisa móvel alheia. Todavia, ao contrário do crime de furto simples, no crime de furto de uso inexiste uma vontade dirigida a uma apropriação de coisa alheia, sendo o agente tão-só motivado a fazer uso ilegítimo de coisa alheia, de forma abusiva, para prossecução de outra atividade, nunca atuando com animus de proprietário. Ora, compulsada a matéria de facto pela qual o Ministério Público pretende submeter este arguido em julgamento, verifica-se que, não inexiste a descrição do elemento de facto “subtração” que integra o elemento objetivo pressuposto do crime em apreço. Aquilo que é enunciado nos factos descritos da acusação é que o arguido foi buscar o veículo que havia vendido à ofendida, manteve a posse do referido veículo (facto 3), sem que em momento algum se faça qualquer referência à intenção específica de dele fazer-se proprietário. A prossecução dos presentes autos sem a presença deste elemento essencial à subsunção jurídico-penal dos factos ao tipo de crime de furto implicará, necessariamente, a realização de prova quanto a factos que implicarão, ab initio, o insucesso da acusação e levarão à consequente absolvição do arguido, uma vez que o Tribunal não poderá comunicar a aludida alteração de factos que, sendo substancial, não será autonomizável. Será, então, a factualidade imputada na acusação suficiente e suscetível de preencher a integralidade dos elementos constitutivos do tipo legal de furto simples, p. e p. no art.º 203º, n.º 1 do Código Penal? Entende-se que não, mediante a constatação de que se encontra omisso o elemento especial subjetivo da ilicitude do tipo, maxime a intenção ilegítima de apropriação por parte do arguido. * §2. Relativamente aos crimes de burla [todos os apensos] O Ministério Público acusa o arguido AA de ter praticado em autoria material e na forma consumada, onze crimes de abuso de burla simples, previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal. Nos termos do art.º 217, n.º 1 do Código Penal “1 - Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”. O crime de burla visa proteger o bem jurídico do património do ofendido genericamente considerado de uma perspetiva criminal. Mas para que seja o agente punido por este crime, é necessário que a lesão ocorra através de uma provocação feita a esse terceiro que limite a sua liberdade de disposição patrimonial e levada a cabo através do erro, astúcia e engano. O tipo objetivo da norma é composto três elementos: quem (i) intentar uma conduta por forma a obter um enriquecimento ilegítimo para si ou terceiro, (ii) socorrendo-se do uso ao erro ou engano do lesado relativamente a factos que astuciosamente provocou, (iii) conduzindo-o à prática de atos que lhe causem (ou a terceiro) um prejuízo patrimonial [cf. Ac. do STJ de 20.3.2003, proc. n.º 03P241 (Rel. SIMAS SANTOS), disponível em www.dgsi.pt]. Quando a norma incriminadora prevê a tutela contra o enriquecimento ilegítimo, fá-lo em termos amplos. Na esteira dos comentários tecidos no Código Conimbricense anotado, a noção de património é aqui considerada tal como desenvolvida pelo pensamento civilista, não podendo a hermenêutica penal limitar as suas variadas situações. Daí a amplitude da noção de património usada pelo legislador como elemento do tipo na tarefa de subsunção legal ao art.º 217º do Código Penal, por forma abranger quer direitos subjetivos de caráter patrimonial, quer a diminuição de todo e qualquer direito, valor, bem, expectativa ou prestação patrimonial do ofendido. Incluem-se aqui, assim, quer as situações (i) aumento patrimonial dos bens e (ii) diminuição do passivo patrimonial do agente ou terceiro, ou (iii) poupança de despesas satisfeitas pelo lesado. Relevante é que esse enriquecimento não tenha qualquer correspondência, objetiva ou subjetivamente, direta ou indiretamente, num direito do agente [cf. SIMAS SANTOS; LEAL HENRIQUES, Código Penal Anotado, 3ª ed., II Vol., Rei dos Livros, 2000, pág. 839]. O crime consuma-se com a entrega da coisa das mãos do lesado para as do agente, ou quando tal coisa é colocada à sua disposição, ainda que não seja indispensável uma efetiva transmissão. Mas o tipo também prevê como elemento específico objetivo a intenção de obter para si ou para terceiro aquele enriquecimento ilegítimo, o que mais não significa que não o facto de a burla se consumar mesmo que o mencionado enriquecimento não se chegue a verificar, tão-bastando que esteja presente aquela motivação específica. Relativamente ao uso do erro ou engano pelo agente, provocado de forma astuciosa para conduzir o lesado a uma falsa representação da realidade e, inevitavelmente, à consumação do enriquecimento patrimonial do agente, trata-se de um esquema, mentira, criada e utilizada intencionalmente pelo agente do crime para, assim, lhe provocar uma ilusão [cf. ob cit.]. O agente criminoso ilude, engana e induz em erro o lesado através da criação de uma aparência factual inexistente e construindo uma contradição entre a realidade e uma mera representação [MIGUEZ GARCIA; CASTELA RIO, Código Penal – Parte geral e especial com notas e comentários, Coimbra, Almedina, 2014, pág. 915]. Não é suficiente, assim, a existência de um simples erro ou engano na mente do ofendido, sendo necessário que este erro seja “astuciosamente” (ardilosamente) provocado pelo agente com recurso a uma fraudulenta, i.e., “um facto material acrescentado à mentira para lhe reforçar a credibilidade” [Ac. TRP de 22.1.2003, ob cit.]. A burla surge, assim, como um delito de execução vinculada, onde a afetação do bem jurídico protegido surge como decorrência de um comportamento particular adotado pelo agente. Este engano astucioso criado pelo burlão tem, porém, de ser criado de molde idóneo para, de forma geral e abstrata, enganar outrem. Essas manobras podem implicar a simples mentira credível, como pode traduzir-se em expedientes e artifícios complexos e diversificados, desde que levem a vítima a uma falsa representação da realidade (v.g. emprego de nome ou documento falso) Por último, é necessário a verificação de uma relação de causalidade (causa-efeito) entre a conduta astuciosa criada pelo agente, a criação de um erro a respeito da factualidade no lesado e a consumação do enriquecimento patrimonial do agente à custa do empobrecimento patrimonial do lesado. A lesão patrimonial do lesado acaba por ser realizada pelas suas próprias mãos de forma inconsciente, por atuar com erro. Fala-se, em alguma doutrina, em causalidade psíquica, por contraste à ideia de causalidade material. O erro surge no meio de uma tríplice relacional onde aparece, de um lado, relacionado com os meios astuciosos criados pelo burlão e, por outro, com os atos que lhe causam prejuízo patrimonial; daí o duplo nexo de causalidade existente no tipo. Ora, compulsada a factualidade descrita na acusação pública que antecede, verifica-se que em momento algum da acusação são apresentados elementos objetos que descrevam de que modo é que se processou o engano ou a astucia que o arguido terá provocado, relativamente a cada um dos ofendidos. Em causa está o princípio da intervenção subsidiária do direito penal na resolução de litígios emergentes na comunidade, i.e., sempre que a lesão dos bens jurídicos protegidos pela norma incriminadora assume tal gravidade que se impõe a intervenção da tutela jurídico-penal. Orientando-se o Estado sob o postulado da não intervenção ou intervenção mínima, as reações penais apenas podem ser chamadas a intervir na regulação de processos civis ou comerciais apenas quando tal se revele necessário, em face da insuficiência de mecanismos de resolução de litígios oferecida por outras vias. Nas sábias palavras de FIGUEIREDO DIAS, “a violação de um bem jurídico penal não basta por si para desencadear a intervenção, antes se requerendo que esta seja absolutamente indispensável à livre realização da personalidade de cada um na comunidade. Nesta aceção o direito penal constitui, na verdade, a ultima ratio da política social e a sua intervenção é de natureza definitivamente subsidiária.” [Direito penal, Questões Fundamentais, A doutrina Geral do Crime, Coimbra Editora, 2004, pág. 121]. Ora, o primeiro facto descrito na acusação refere expressamente que “O arguido AA, de ora em diante, AA, exerce as funções de … por contra própria, na oficina denominada …, sita na Rua 2. Nessa atividade, por vezes procede também à compra e venda de veículos.” Todos os factos que lhe sucedem partem deste princípio: a existência de um negócio aberto ao público, de …, intitulado …. Partindo desta premissa, a conclusão de que este negócio, aparentemente legítimo, representa um esquema fraudulento para o seu proprietário se apropriar indevidamente de quantias dos seus clientes, são elementos objetivos de facto que deveriam ter sido explanados e enunciados ao longo da acusação pública, o que não aconteceu. Compulsada a factualidade indicada em todos os apensos descritos na acusação pública, as referências efetuadas a factos prendem-se com (i) a entrega de veículo para que este seja objeto de empreitada/serviço; (ii) o pagamento adiantado, ou subsequente, de quantias, na esteira do contrato comercial contraído entre comerciante e cliente (na esteira, aliás, de quaisquer contratos cíveis ou comerciais para este fim); (iii) a falta de reparação do veículo no prazo indicado ou estimado; (iv) a recusa, em alguns casos, de entrega do veículo (relevante apenas para efeitos do crime de apropriação ilegítima pelo qual o arguido se encontra já acusado). Em momento algum são indicados factos objetivos que permitam dar o salto conclusivo tecido nas várias considerações genéricas que são tecidas a final no despacho acusatório (factos 55 a 59). Neste crime especial de burla, é necessário discriminadamente elencar, com factos, elementos que permitam chegar à conclusão de que existiu um engodo, um esquema criminoso; nomeadamente, que o negócio por si aberto e com o seu nome no logótipo da oficina é, na verdade, uma aparência de negócio, por si usada como esquema criminoso apenas para enriquecer à custa do erro em que faz incorrer os clientes que ali se dirigem. Há que demonstrar a existência de um engano predeterminado por parte do arguido, i.e., que todos os valores solicitados para a prestação de serviço, vendida pelo arguido como credível, foram cobrados com a intenção exclusiva de os enganar. Seria ingénuo ignorar a existência de certa malícia entre as partes nas transações civis ou comerciais, que procuram, por meio da ocultação de defeitos ou inconveniências da coisa, ou de uma depreciação, justa ou não, efetuar operação mais vantajosa. Relevante para um mero incumprimento contratual ser conduzido à intervenção jurídico-penal é a distinção entre aquilo que é o dolo civil, que poderá dar lugar à anulação do negócio, por vício de consentimento, com as consequentes perdas e danos, do dolo configurador de burla, estelionato. Não havendo elementos que demonstrem o engano astuciosamente provocado por um comerciante, dificilmente se consegue identificar um crime de um mero incumprimento do contrato, mesmo doloso, o qual apenas configura mero ilícito civil. Mas esta destrinça, que só pode ser lograda através de factualidade objetiva, é ónus que pertence ao Ministério Público discriminar, explicando o modus operandi do arguido, o seu real intuito criminoso, com recurso a expedientes ou esquemas fraudulentos para levar a bom termo o seu fim: enriquecimento patrimonial à custa do erro alheio que astuciosamente provocou. Ora, compulsada toda a factualidade indicada na acusação, em qualquer dos seus apensos, não é possível chegar a tal conclusão. Antes pelo contrário. Veja-se que nos factos 17, 25 e 38 até se faz menção ao facto de o arguido ter assinado declarações de dívida a favor dos ofendidos; o que mais não representa senão comportamento diametralmente contraditório com alguém que atua com intenção ilegítima de enganar terceiros e enriquecer à sua custa. Ora, nos termos do disposto no art.º 311º, n.º 2 e 3 do Código de Processo Penal, “Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respetivamente. 3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: a) Quando não contenha a identificação do arguido; b) Quando não contenha a narração dos factos; c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou d) Se os factos não constituírem crime” (s.n.). Dependendo a apreciação da subsunção jurídico-penal ao tipo legal incriminador indicado na acusação da verificação de todos os elementos objetivos e subjetivos integrantes daquele, sem a verificação dos quais a acusação não é fundada, pois insuscetível de suportar a aplicação de uma pena ou medida de segurança (art.º 283º, n.º 3, al. b) do Código de Processo Penal) e, ainda, não sendo possível de suprir a omissão em causa a partir dos restantes elementos normativos objetivos elencados [vd Ac. do STJ n.º 1/2015, publicado no Diário da República, Série I, de 27.01.2015 (Rel. RODRIGUES DA COSTA), disponível em www.stj.pt/?p=6329], impõe-se não receber a acusação ora apresentada pelo digno magistrado do Ministério Público, nesta parte, porque nula e manifestamente infundada [cfr. disposto nos arts.º 311º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. b) do Código de Processo Penal]. O despacho de acusação tinha o seguinte teor: Em Processo Comum, com intervenção de Tribunal Singular, nos temos do art. 16º3 do CPP, o MP acusa: AA, solteiro, mecânico, nascido a ...-...-1986, filho de CC e de DD, natural … e residente na Localização 3 Porquanto, indiciam suficientemente os autos:
1. O arguido AA, de ora em diante, AA, exerce as funções de … por contra própria, na oficina denominada …, sita na Rua 2. Nessa atividade, por vezes procede também à compra e venda de veículos. NUIPC 1131/21.9PARGR
2. Em maio de 2019, o ofendido EE, deixou o seu veículo da marca …, com a matrícula ..-..-CQ, para que o arguido AA, reparasse a chapa e efetuasse a pintura do referido veículo. Entregou-lhe para inicio de pagamento, a quantia de €650 (seiscentos e cinquenta euros) e o veículo de passageiros da marca ..., de matrícula PQ-..-.., avaliado em € 400 (quatrocentos euros).Por várias vezes o ofendido contactou o arguido para que este lhe entregasse o carro devidamente arranjado, sendo que o arguido sempre ia dando repostas evasivas. O ofendido entre o dia 2019-… e o dia 2021-…, cumpriu pena no Estabelecimento Prisional de …, pelo que, não teve oportunidade de acompanhar a situação do seu veículo. O arguido, sem a autorização do ofendido, vendeu 4 (quatro) jantes do seu veículo, no valor de 400,00 euros e 3 (três) bancos. O arguido, apoderou-se ainda de várias peças que o ofendido lhe tinha entregue para o arguido colocar no seu veículo, designadamente: - Motor de arranque, Starter. - 4 Velas de motor de marca NGK. No veículo, o arguido retirou e fez seus - Os dois pára-choques (frontal e traseiro) - Os dois braços do limpa pára-brisas. - O vidro pára-brisas da frente. - As borrachas vedantes de todas as quatro portas - Chapa que fica acima da chapa de matrícula traseira - Duas das jantes que tinha montadas no veículo quando o entregou. - O pano da porta do lado do condutor.
3. 3- O ofendido só entregou ao arguido os referidos montantes por este o convencer que iria proceder à reparação do veículo, o que nunca fez.
4. 4- O arguido sabia que as peças do veículo não lhe pertenciam facto que não o demoveu de as vender, contra a vontade e no desconhecimento do legitimo dono, o que quis. NUIPC 349/21.9PCRGR 5- No dia …-…-2020, o ofendido FF, entregou a sua viatura, de matrícula ..-..-XN, na oficina do arguido, para que este a reparasse.
5. O arguido, AA, acordou então com o ofendido o pagamento faseado, sendo o valor total da reparação, a quantia de €900,00 (novecentos euros).
6. O ofendido FF, pagou em numerário e em prestações esse montante.ao arguido.
7. Após várias semanas, o ofendido FF continuou a não ter notícias sobre o seu carro, sendo que o arguido não realizou qualquer arranjo na viatura como acordado.
8. Nessa altura, com arguido AA, trabalhava GG e este, várias vezes viu na oficina o ofendido FF a falar com o seu patrão sobre o arranjo do carro, sendo que o mesmo continuava por arranjar.
9. Apesar da insistência do ofendido, nunca o arguido AA lhe arranjou o veículo.
10. O ofendido FF, só entregou ao arguido os referidos montantes por este o convencer que iria proceder à reparação do veículo, o que nunca fez e apesar de instado pelo ofendido e, não obstante, saber que estava obrigado a devolver o veículo, o arguido não o fez até esta data, fazendo o seu.
11. NUIPC 1954/21.9PBPD No dia … de … de 2020, o ofendido HH colocou a sua viatura da marca Mitsubishi com a matrícula ..-..-RN, na oficina do arguido, a fim ser efetuada uma revisão profunda do referido veículo, sendo orçamentado o valor de €5000 (cinco mil euros) para a reparação.
12. Em meados de … de 2020, o ofendido acordou deixar a referida viatura na garagem do arguido. Durante meses, o arguido foi sempre protelando a reparação da mesma sob o pretexto de que tinha falta de tempo para poder proceder à reparação.
13. Que desde logo nessa data, o ofendido emitiu um cheque ao portador que entregou ao arguido, no valor de €831,72 (Oitocentos e trinta e um Euros e Setenta e dois Cêntimos, como forma de pagamento, parcial e antecipado da dita reparação. No dia 16 de setembro, emitiu outro cheque a favor do arguido no montante de €826,00 (oitocentos e vinte e seis euros), no dia …-2020, emitiu outro cheque que entregou ao arguido no valor de €600 ( seiscentos euros) e no dia 26 de …, emitiu outro cheque que entregou ao arguido no valor de € 400 ( quatrocentos euros). No total, € 2.657,72 ( dois mil, seiscentos e cinquenta e sete euros e setenta e dois euros.
14. Durante o período em que o arguido ficou com a viatura na sua posse, o arguido não reparou o veículo e vendeu o motor da viatura, sem autorização do seu legítimo proprietário e apoderou-se dos montantes entregues pelo ofendido para a reparação do veículo
15. O ofendido só entregou ao arguido os referidos montantes por este o convencer que iria proceder à reparação do veículo, o que nunca fez.
16. Apesar de a isso instado, o arguido nunca devolveu o veículo ao ofendido.
17. O arguido de modo a dar credibilidade à sua conduta e sabedor de que não tinha bens que o ofendido lhe pudesse executar, emitiu uma declaração de divida a favor do ofendido HH, no valor de €7.500 ( sete mil e quinhentos euros)
18. Apesar de instado pelo ofendido e, não obstante, saber que estava obrigado a devolver o veículo, o arguido não o fez até esta data, fazendo o seu. NUIPC 738/22.1PARGR
19. Em dia não apurado do mês de … de 2020, II, entregou na oficina do arguido o veículo da marca …, Modelo …, a fim de o mesmo ser reparado na chapa e pintura, tendo o arguido apresentado o orçamento para a reparação no valor de €1500.00 (mil e quinhentos euros) o qual foi aceite pelo ofendido.
20. Entregou nesse dia ao arguido a quantia de 500.00 (quinhentos) euros, sendo que ainda foi entregando ao mesmo, diversas quantias, sempre em numerário, até perfazer o total de 1200.00 (mil duzentos euros). O arguido, não arranjou o veículo e apesar de instado pelo ofendido QQ a entregar-lho, não obstante, saber que estava obrigado a devolver o veículo, o arguido não o fez até esta data, fazendo o seu.
21. O ofendido só entregou ao arguido os referidos montantes por este o convencer que iria proceder à reparação do veículo, o que nunca fez. NUIPC 969/20.9PARGR
22. No dia 26 de agosto de 2020, o arguido AA, vendeu o veículo da marca …, modelo …, de matrícula ..-..-VF a BB, pela quantia de €2.100 ( dois mil e cem euros).
23. Nessa altura, o arguido comprometeu-se a fazer a inspeção periódica ao veículo, o que não fez. A ofendida BB, mostrou-se desagradada pela situação e o arguido, contra a vontade da ofendida, em outubro de 2020, foi buscar o veículo que se encontrava estacionado na Rua 1 e não mais o devolveu, apesar da insistência da ofendida Através das mensagens por telemóvel trocadas com o arguido, este foi sempre dando desculpas para não devolver nem o dinheiro, nem o veículo. Ficou assim na posse do dinheiro e do veículo. A ofendida só entregou ao arguido o referido montante por este a convencer que iria proceder à inspeção do veículo, e que lhe entregaria o veículo como acordado, o que nunca fez.
24. O arguido sabia que o veículo já não lhe pertencia, facto que não o demoveu de dele se apoderar, contra a vontade e no desconhecimento do legitimo dono, o que quis.
25. O arguido de modo a dar credibilidade à sua conduta e sabedor de que não tinha bens que a ofendida lhe pudesse executar, emitiu uma declaração de divida a favor da ofendida BB, no valor de €2.100 ( dois mil e cem euros) NUIPC 886/20.2PARGR
26. No dia 28-11-2020, JJ, entregou a sua viatura da marca … e de matrícula ..-..-TZ, na oficina do arguido, para que este a reparasse.
27. A pedido do arguido, a ofendida entregou-lhe a quantia de €200 ( duzentos euros). Após a entrega do veículo e do dinheiro, o arguido nunca mais lhe permitiu ver o veículo referindo que o mesmo se encontrava na oficina, mas que não o poderia mostrar. Desde que o veículo foi deixado na oficina do arguido, este começou a pedir dinheiro à ofendida, alegando vários problemas
28. Em data não apurada, mas que terá sido no ano de 2021, e sem qualquer motivo, o arguido solicitou-lhe a entrega de €260 (duzentos e sessenta euros, quantia que a ofendida lhe entregou em notas do BCE.
29. Dias depois, o arguido solicitou-lhe nova entrega de €180 (cento e oitenta euros), dizendo à ofendida que tal dinheiro e destinaria à compra de artigos respeitantes à reparação da sua viatura, ao que a ofendida anuiu, entregando novamente em mão e em notas do BCE essa quantia.
30. Numa terceira data, foi solicitado pelo arguido o empréstimo de 150 euros, com o argumento de que necessitava de efetuar o pagamento de rendas do espaço onde trabalha e que se encontravam em atraso. No total, €790 ( setecentos e noventa euros).
31. O arguido foi sempre dizendo à ofendida que o veículo iria ser reparado e iria ser submetido a inspeção periódica, o que não veio a acontecer. Quando a ofendida confrontou o arguido, este ficou irritado, dizendo-lhe que não lhe entregaria o veículo.
32. Apesar de a isso instado, o arguido nunca devolveu o veículo à ofendida, fazendo o seu.
33. A ofendida JJ, só entregou ao arguido os referidos montantes por este a convencer que iria proceder à reparação do veículo, o que nunca fez. NUIPC 1181/21.5PARGR Em dia que não foi possível precisar do mês de … de 2020, KK, entregou o seu veículo da marca …, de matrícula ..-..-PO, na oficina do arguido a fim de reparar a pintura. Ficou acordado a quantia de €1600 (mil e seiscentos euros).
34. Para pagamento da reparação, entregou ao arguido a quantia de €800 ( oitocentos euros), em notas do BCE.
35. Cerca de 4 meses depois, o arguido disse ao ofendido que o veículo encontrava reparado e que era necessário levá-lo à inspeção, pelo que lhe solicitou a quanto de €250 (duzentos e cinquenta euros), quantia que o arguido lhe entregou.
36. Desde que lhe entregou os montantes referidos, o arguido não realizou qualquer trabalho no referido veículo e sempre que era confrontado pelo ofendido, arranjava sempre desculpas para que o carro não estivesse arranjado.
37. O ofendido só entregou ao arguido os referidos montantes por este o convencer que iria proceder à reparação do veículo, o que nunca fez.
38. O arguido de modo a dar credibilidade à sua conduta e sabedor de que não tinha bens que o ofendido lhe pudesse executar, emitiu uma declaração de divida a favor do ofendido KK, no valor de €10.000 ( dez mil euros) NUIPC 583/21.1PARGR
39. A ofendida LL, em … de 2021, colocou o seu veículo da marca ... de matrícula ..-..-UU, na oficina do arguido AA, para que este procedesse à reparação da referida viatura, tendo o valor da reparação da referida viatura sido orçamentado pelo arguido na quantia de €1.500 (mil e quinhentos euros) entregando ao mesmo a totalidade da referida quantia em numerário.
40. No dia … de … de 2021, a ofendida dirigiu-se à referida oficina com o objetivo de a trazer devidamente arranjada, tendo na altura o arguido referido que a viatura se encontrava pronta para a pintura.
41. No dia …de julho, a ofendida dirigiu-se de novo à oficina, tendo-lhe o arguido dito que ainda necessitava de alguns dias para acabar o trabalho. No dia … de julho, a ofendida dirigiu-se à oficina e verificou que o veículo estava nas mesmas condições de quando o deixou na oficina para arranjar, não tendo por isso o arguido efetuado qualquer trabalho no veículo, pelo que a ofendida decidiu retirar o veículo da oficina, sendo que o arguido não devolveu o dinheiro recebido.
42. A ofendida só entregou ao arguido o referido montantes por este a convencer que iria proceder à reparação do veículo, o que nunca fez NUIPC 943/21.8PARGR
43. No dia … do mês de … de 2021, MM, entregou o veículo da marca ..., modelo …, com a matrícula ..-..-QT, na oficina do arguido, para reparação de chapa e pintura, substituição da consola e alavanca de velocidades, reparação do assento do condutor, substituição do elevador de vidro da porta lateral direita, substituição do espelho retrovisor do lado direito, substituição do farol lateral direito traseiro e substituição de correia do motor, tendo arguido acordado fazer o trabalho pela quantia de €1000,00 (mil euros).
44. Nesse mesmo dia, … de … de 2021 transferiu 750,00 (setecentos e cinquenta) euros para uma conta indicada pelo arguido - ... - NN.
45. A … de … de 2021 transferiu 150,00 (cento cinquenta) euros para a conta pessoal do arguido e que se destinaria à compra do para-brisas. A … de … de 2021 transferiu o valor de €200,00 (duzentos euros) para a conta do arguido, para comprar tinta para o carro, como o arguido lhe tinha referido. No total, entregou-lhe € 1150 ( mil cento e cinquenta euros).
46. A … de … de 2021 deslocou-se à oficina, altura em que lhe foi entregue o veículo, desmontado e por pintar e sem qualquer reparação como acordado, pelo que o rebocou para outra oficina. Nesse mesmo dia o arguido, de modo a dar credibilidade à sua conduta e sabedor de que não tinha dinheiro na sua conta, prontificou-se a, em dois dias devolver o valor recebido, tendo assinado um documento de transferência para a sua conta junto do CA, no montante de €1150,00 (mil cento cinquenta euros), valor este que o ofendido não recebeu.
47. O ofendido só entregou ao arguido os referidos montantes por este o convencer que iria proceder à reparação do veículo, o que nunca fez. NUIPC 824/21.5PARGR
48. No Dia … de … de 2021, o ofendido OO, entregou a sua viatura da marca …, modelo …, com a matrícula ..-FM-.., na oficina do arguido para que este efetuasse a reparação de mecânica e de pintura. A pedido do arguido, o ofendido entregou ao arguido a quantia de €600 (seiscentos euros), tendo o arguido referido que a viatura estaria pronta no dia …/2021.
49. O arguido não cumpriu o acordado, impediu o ofendido de ver a viatura, com a desculpa de que estaria noutro armazém. O arguido referiu então que a viatura estaria reparada no dia …/2021, o que não veio a acontecer. No dia …/2021, o ofendido, mais uma vez foi à oficina do arguido, dizendo este que a viatura estaria reparada dia …/2021. Nesse dia voltou à oficina onde constatou que o arguido não tinha arranjado o veículo.
50. O ofendido só entregou ao arguido os referidos montantes por este o convencer que iria proceder à reparação do veículo, o que nunca fez. NUIPC 901/21.2PARGR
51. No dia …-…-2021, o ofendido PP, entregou na oficina do arguido, o seu veículo da marca …, modelo … e de matrícula ..-HH-.., para reparação que este o arranjasse. Acordaram o preço de €1100 (mil e cem euros), sendo que o prazo de execução da reparação seria de 3 semanas,
52. Nessa altura, fez uma entrega do valor de 700 euros. Posteriormente no dia 2021-…, o arguido pediu ao ofendido mais €200 (duzentos euros), para efetuar o trabalho com jato de areia para as jantes, peças que estavam em falta, ao que o ofendido acedeu, sendo informado de que a entrega do veículo reparado, seria feita na sexta-feira, dia 6 de agosto de 2021.
53. O ofendido tentou contacto com o arguido por telemóvel, não tendo este atendido as chamadas. Cerca de 4 meses após deixar a viatura na oficina, o ofendido conseguiu recuperar o veículo sem que o arguido o tivesse arranjado.
54. O ofendido só entregou ao arguido os referidos montantes por este o convencer que iria proceder à reparação do veículo, o que nunca fez.
55. O arguido, em todas as circunstâncias supra descritas, agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de fazer seu o dinheiro que os ofendidos lhe entregaram, integrando-os no respetivo património.
56. Atuou ainda, o arguido com o propósito de, ao convencer os ofendidos a entregar-lhes as quantias supra referidas, convencendo-os de que tais quantias se destinariam a comprar o material para proceder ao arranjos dos referidos veículos e só por isso os ofendidos lhe entregaram a quantias por ele solicitadas.
57. Visou assim o arguido o enriquecimento ilegítimo, por meio de engano sobre factos que o mesmo astuciosamente provocou quando fez crer aos ofendidos que precisava do dinheiro para comprar os materiais que se destinariam a arranjar os veículos, determinado dessa forma os ofendidos à prática de atos que lhe causaram prejuízo patrimonial, que se traduziu em, ao acreditarem que o dinheiro de que entregavam ao arguido, cientes que o arguido as utilizaria para comprar os materiais necessários à reparação.
58. O arguido representou e previu todas as circunstâncias em que atuou, fazendo de forma livre, deliberada e determinado a praticar tais factos na vontade de os praticar com o sentido e consciente do correspondente desvalor, o que quis.
59. O arguido conhecia o caracter ilícito e criminalmente censurável das suas condutas, sabendo que as mesmas eram proibidas e por lei punidas e, não obstante, quis levá-las a efeito O arguido AA, constituiu-se autor material na forma consumada e em concurso real:
60. NUIPC 1131/21.9PARGR - Um crime de burla, p.p. pelo art. 217º1 do CP e - Um crime de furto, p.p. pelo art. 203º. do CP NUIPC 349/21.9PCRGR - Um crime de burla, p.p. pelo art. 217º1 do CP, - Um crime de abuso de confiança, p.p. pelo art. 205º1 do CP, NUIPC 1954/21.9PBPDL - Um crime de burla, p.p. pelo art. 217º1 do CP, - Um crime de abuso de confiança, p.p. pelo art. 205º1 do CP, NUIPC 738/22.1PARGR - Um crime de burla, p.p. pelo art. 217º1 do CP e - Um crime de abuso de confiança, p.p. pelo art. 205º1 do CP, NUIPC 969/20.9PARGR: - Um crime de burla, p.p. pelo art. 217º1 do CP e -Um crime de furto simples, p.p. pelo art. 203º.1 do CP NUIPC 886/20.2PARGR - Um crime de burla, p.p. pelo art. 217º1 do CP, - Um crime de abuso de confiança, p.p. pelo art. 205º1 do CP, NUIPC 1181/21.5PARGR - Um crime de burla, p.p. pelo art. 217º1 do CP, NUIPC 583/21.1PARGR - Um crime de burla, p.p. pelo art. 217º1 do CP, NUIPC 943/21.8PARGR - Um crime de burla, p.p. pelo art. 217º1 do CP, NUIPC 824/21.5PARGR - Um crime de burla, p.p. pelo art. 217º1 do CP, NUIPC 901/21.2PARGR - Um crime de burla, p.p. pelo art. 217º1 do CP
*** Em suma, a única questão a decidir é a seguinte:
Saber se a acusação deveria ter sido rejeitada, por ser manifestamente infundada, relativamente aos crimes de furto e de burla, num caso porque não estaria descrito o elemento subjectivo e no outro porque não estariam elencados os elementos objectivos, mormente o engano ou a astúcia.
De harmonia com o disposto no artigo 311º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal, quando o processo é remetido para julgamento sem ter havido instrução, a acusação pode ser rejeitada, se for considerada manifestamente infundada, o que, nos termos do nº 3 do referido artigo, acontecerá quando: a) Não contenha a identificação do arguido; b) Não contenha a narração dos factos; c) Não indique as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; d) Os factos não constituam crime.
Encontramos jurisprudência abundante sobre este tema, mormente nos tribunais da Relação e desde há muitos anos.
Escolhemos apenas alguns dos acórdãos publicados e que nos pareceram mais relevantes nesta matéria e que dão respaldo a posição que defenderemos e que é, adianta-se, desde já, que a Mma Juiz a quo não poderia ter rejeitado a acusação como o fez. Ac da RL de 7/12/2010, processo 475/08.0TAAGH.L1-5, inwww.dgsi.pt I – Quando o juiz rejeita a acusação por manifestamente infundada considerando que os factos não constituem crime mediante uma interpretação divergente de quem deduziu essa acusação viola o princípio acusatório. II - Face a este princípio, ao proferir o despacho a que alude o art. 311º, nº 2 CPP, o tribunal só pode rejeitar a acusação por manifestamente infundada, por os factos não constituírem crime, quando a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora de um crime, juízo que tem de assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada. III - Uma opinião divergente, como a manifestada pelo M.º. Juiz recorrido, apoiada numa análise do contexto em que ocorreram os factos, por muito válida que seja, não assegura o princípio do acusatório, conduzindo a uma manifesta interferência no âmbito das competências da entidade a quem cabe acusar, por quem está incumbido do poder de julgar, pois traduz-se na formulação de um pré-juízo pelo juiz de julgamento sobre o mérito da acusação. IV - Sendo descritos na acusação factos susceptíveis de ofender a honra e consideração da assistente (diz-se que o arguido a considerou “destemperada, de manipular a filha, de não tratar bem a filha e de a coisificar, e bem assim de ser causadora de conflitos”), não pode afirmar-se de forma inequívoca que os factos que dela constam não constituem crime Ac da RP de 8/09/2010, processo 313/08.3PRPRT.P1, inwww.dgsi.pt I - A acusação considera-se manifestamente infundada por inexistência de factos que constituam crime quando, inequivocamente, faltem elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito penal ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante. II - De igual passo, só a total ausência de indicação de meios de prova é que releva para que a acusação haja de ser considerada manifestamente infundada. III - A omissão, no inquérito, do exame pericial com vista à determinação da percentagem do princípio activo presente no estupefaciente detido pelo arguido, não transforma, no caso concreto, a acusação em manifestamente infundada, nem os factos deixam, automaticamente e por via disso, de constituir crime Ac da RE de 15/10/2013, processo 321/12.0TDEVR.E1, inwww.dgsi.pt I - Os poderes do juiz (de julgamento) sobre a acusação, antes do julgamento, são limitados. II - O conceito de acusação “manifestamente infundada”, assente na atipicidade da conduta imputada, implica um juízo sobre o mérito de uma acusação que, formalmente válida, possa ser manifestamente desmerecedora de julgamento, não justificando o debate. III - Mas a alínea d), do nº 3 do art. 311º do Código de Processo Penal não acolhe um exercício dos poderes do juiz que colida com o acusatório; o tribunal é livre de aplicar o direito, mas não pode antecipar a decisão da causa para o momento do recebimento da acusação, devendo apenas rejeitá-la quando ela for manifestamente infundada, ou seja, quando não constitua manifestamente crime. IV - Se os factos narrados realizam crime segundo uma corrente jurisprudencial significativa, não pode a acusação ser considerada como manifestamente infundada Ac da RE de 18/11/2014, processo 596/07.6TASTB-A.E1, inwww.dgsi.pt I – O Juiz, a quem incumba proferir o despacho de recebimento ou rejeição da acusação, com fundamento em os factos nela alegados não constituírem crime, apenas deve lançar mão do poder de rejeição nas situações em que seja patente a inaptidão dos factos descritos nesta peça processual para preencher a tipicidade da norma incriminadora, em qualquer interpretação plausível desta, pois só nessa hipótese a sujeição do arguido a julgamento público seria suscetível de redundar num vexame inútil sem sentido. II - Nos casos que se afigurem duvidosos ou «de fronteira», o Juiz deve optar por viabilizar o prosseguimento dos termos do processo, quanto mais não seja porque o ulterior debate sobre a vertente jurídica da causa poderá proporcionar um melhor enfoque da questão ou mesmo a deliberação do Tribunal Coletivo, quando o julgamento tenha que decorrer perante um órgão judicial com essa composição, como sucede no caso presente, já para não falar da eventualidade de o Magistrado, a quem couber decidir do recebimento ou rejeição da acusação, vir a ser colocado em minoria, dentro do Coletivo de Juízes. Ac da RC de 24/03/2021, CJ, Ano XLVI, tomo II, pg. 43 I - A rejeição da acusação, por manifestamente infundada, pressupõe que os factos aí narrados não consagram, de forma inequívoca, pacífica e incontroversa, qualquer conduta qualificável como crime. II - Contendo a acusação todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal, não pode o Juiz rejeitar a acusação por entender que os factos narrados não constituem crime de difamação, atendo o seu teor objectivo, no contexto em que as imputações foram feitas, quando a veracidade dos factos concorrentes para tal contextualização se mostram controvertidos. Ac da RG de 12/04/2021, CJ, Ano XLVI, tomo II, pg. 297 I - A irrelevância penal dos factos, para efeitos de apreciação de uma acusação como manifestamente infundada, tem de ser indiscutível, inequívoca, incontroversa, evidente. II - Não sendo inequívoco o juízo feito a respeito da atipicidade da conduta imputada à arguida, o juiz não pode julgar do mérito da acusação, ajuizando sobre a atipicidade da conduta imputada, aquando do despacho de saneamento do processo. Ac da RE de 11/10/2022, processo 431/18.0PBRLV.E1, inwww.dgsi.pt I - O Juiz, a quem incumba proferir o despacho de recebimento ou rejeição da acusação nos termos do art.º 311º CPP, apenas deve lançar mão do aludido poder de rejeição nas situações em que seja patente a inaptidão dos factos descritos nesta peça processual para preencher a tipicidade da norma incriminadora, em qualquer interpretação plausível desta, pois só nessa hipótese a sujeição do arguido a julgamento público seria suscetível de redundar num vexame inútil sem sentido. II - A ausência de menção na acusação sob escrutínio, nos termos do art.º 311 CPP, de que o arguido agiu com consciência da ilicitude, não constitui motivo de rejeição da mesma, pois aquela consciência da ilicitude não é elemento constitutivo dos tipos criminais definidos pela lei penal, perante o normativo constante do art.º 17.º do CP; ao contrário, é a inconsciência da ilicitude que, em certas circunstâncias que revelem que a mesma não pode ser censurada ao agente, pode excluir a culpa e, por essa via, a responsabilidade criminal.
Diz-se no despacho recorrido, relativamente ao crime de furto, que se encontra omisso o elemento especial subjetivo da ilicitude do tipo, maxime a intenção ilegítima de apropriação por parte do arguido.
No que respeita à subtração, ou seja o ato de retirar a coisa e levá-la consigo, a acusação descreve que o arguido foi buscar o veículo, que sabia não ser seu, e que agia contra a vontade da sua dona, ao local onde se encontrava estacionado, não o devolveu e ficou na sua posse. Por conseguinte, afigura-se caraterizada e descrita de facto a ação objetiva típica do crime de furto, a subtração da coisa móvel alheia.
Quanto à especial intenção de apropriação, diz na acusação que O arguido sabia que o veículo já não lhe pertencia, facto que não o demoveu de dele se apoderar, contra a vontade e no desconhecimento do legitimo dono, o que quis.
Deste modo, os factos estão devidamente descritos, tanto o elemento objetivo como o elemento subjetivo, pelo que relativamente ao crime de furto, o despacho deverá ser revogado.
No que concerne aos crimes de burla, funda-se o despacho na circunstância de em momento algum da acusação serem apresentados elementos objetivos que descrevam de que modo é que se processou o engano ou a astucia que o arguido terá provocado, relativamente a cada um dos ofendidos.
Na acusação afigura-se que o ardil criminoso que carateriza a ação típica do crime de burla, no caso concreto, se consubstancia no convencimento de que os trabalhos de reparação teriam de ser pagos antecipadamente, que era preciso dinheiro para as peças, o que determinou os clientes a entregarem o dinheiro pretendido ao arguido, que agiu apenas com o propósito de fazer suas tais quantias em dinheiro.
Por outro lado, o arguido praticou todos os atos vindos de referir, com conhecimento e consciência da ilicitude das suas condutas e com o propósito conseguido de, assim, obter um benefício ilegítimo em detrimento dos ofendidos.
Deste modo, será forçoso concluir que os factos descritos na acusação são idóneos para submeter o arguido a julgamento e que não se configura uma situação em que seja manifesta a irrelevância penal dos factos, para efeitos de apreciação de uma acusação como manifestamente infundada.
Importa ainda dizer que, de qualquer forma, não se vislumbra que a acusação pudesse ser recebida quanto a alguns crimes e não quanto a outros, desde logo porque não é o juiz de julgamento que “escolhe” os crimes que entende dever julgar, pois tal viola o princípio do acusatório, mas também porque assim, em última análise, poderia criar-se uma situação em que se procedesse a uma alteração de qualificação jurídica sem cumprimento das formalidades previstas no artigo 358º, n.º3 do CPP.
Deverá, pois, o recurso ser julgado procedente.
3. Decisão:
Assim, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto pelo MP, revogando-se a decisão na parte em que rejeitou a acusação quanto aos crimes de furto e de burla, devendo ser proferido despacho que, quanto a esses crimes, receba a acusação.
Sem custas.
Notifique.
Lisboa, 19 de Novembro de 2025
Cristina Isabel Henriques
Rosa Vasconcelos
João Bártolo