I - A presunção da titularidade do direito de propriedade decorrente do previsto no artigo 7º do CRP não abrange a área, os limites, estremas ou confrontações dos prédios descritos no registo predial.
II - Não abrangendo, como já referido, a presunção de titularidade do direito de propriedade decorrente do previsto no artigo 7º do CRP a área e limites dos prédios descritos no registo predial, recai sobre aquele que reclama a propriedade de uma determinada parcela como integrante do seu prédio, alegar e fazer prova de que sobre a mesma praticou atos de posse correspondentes aos de um proprietário por tempo suficiente para por via da usucapião – aquisição originária – ver reconhecido esse mesmo direito de propriedade.
3ª Secção Cível
Relatora – M. Fátima Andrade
Adjunta – Ana Paula Amorim
Adjunto – Nuno Freitas Araújo
Tribunal de Origem do Recurso – T J Comarca do Porto – Jz. Local Cível ...
Apelantes / AA e BB
Sumário (artigo 663º n.º 7 do CPC).
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I- Relatório
AA e BB intentaram a presente ação comum contra CC e DD, peticionando pela procedência da ação que seja proferida decisão a:
“1) Reconhecer-se a Autora como legítima proprietária do prédio urbano inscrito a favor da Autora, sob a atual matriz urbana sob o artigo ...75 da freguesia ..., concelho ..., o prédio urbano composto por terreno destinado a construção, com a área total de 318,50m2, área de implantação do edifício de 156,30 m2 e área bruta de construção de 329,20 m2, com valor patrimonial de € 31.536,05, confrontando a Norte com Rua ..., a Sul EE, a Nascente FF e de Poente com Rua ..., descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o n.º ...54 ...;
2) Condenar os Réus a entregar à Autora a parte do prédio invadido referido no ponto n.º 1 desta peça, bem como a reconhecerem e respeitarem o direito aludido no número anterior;
3) Absterem-se os Réus de e por qualquer meio, direta ou indiretamente, por si ou interposta pessoa, praticar qualquer ato ou facto que impeça a Autora de exercer, de forma livre e desimpedida, os direitos inerentes à sua propriedade, mormente, os direitos de usar, fruir e dispor como entender, como coisa sua que é;
4) Indemnizar a Autora em quantia nunca inferior a 8.000,00 (oito mil euros) por danos morais já causados, bem como os respetivos juros, contados à taxa legal desde a citação até ao pagamento efetivo;
5) Condenar os Réus a pagar à Autora a quantia de 8.000€ (oito mil euros) a títulos de danos patrimoniais já causados, pelas despesas e encargos a suportar com licenças camarárias e reformulação do projeto de arquitetura e construção, bem como os respetivos juros, contados à taxa legal desde a citação até ao pagamento efetivo;
6) Condenar os Réus a pagar aos Autores, a título de sanção pecuniária compulsória, a importância de 50,00 € (cinquenta euros) por cada dia de atraso na remoção das construções ilegais, desde a citação até à entrega efetiva.”
Para tanto alegaram em suma:
- ser a A. proprietária do prédio identificado em 1º da p.i. – inscrito na matriz respetiva sob o nº ...75 e descrito na CRP sob o n.º ...54, sendo os RR. proprietários do prédio descrito em 7º a 9º da p.i., descrito na CRP sob o nº ...12 e inscrito na matriz predial sob o nº ...38;
- confinando o prédio dos RR. com o prédio dos AA., existem construções dos RR. que invadem parcialmente o terreno do prédio dos AA. – construções que já existiam do tempo em que ambos os prédios pertenciam aos pais da autora;
- a mãe da autora em data anterior até a ser proprietária de ambos os prédios, mandou destes fazer um levantamento topográfico identificando os seus limites, bem como as construções existentes e as que seriam a manter.
De tal levantamento resultando nomeadamente a ocupação que é feita pelas construções referidas no prédio da autora e que é esta descreveu nos termos descritos em 20º da p.i.;
- interpelados os RR. a destruir as construções ilegais, recusaram-se invocando respeitarem estas construções os limites do seu prédio.
Mais tendo entrado no prédio dos AA., sem a sua autorização, para rebocarem as paredes da construção em que entretanto introduziram melhoramentos;
- a atuação dos RR. está a prejudicar os AA., causando-lhes danos patrimoniais e não patrimoniais que descreveram e pelos quais formularam pedido indemnizatório.
Termos em que concluíram pela condenação dos RR. nos termos acima indicados.
Devidamente citados, contestaram os RR., em suma impugnando o alegado pelos autores e afirmando ter comprado dos pais da autora o prédio de que são proprietários com a configuração e delimitação que tinha aquando da compra e que é a mesma que hoje tem.
Concluindo pela improcedência da ação.
Após para tanto convidados, aperfeiçoaram os AA. a p.i., especificando as construções que ocupam o seu prédio e respetiva localização, as quais pretendem ver demolidas.
Responderam os RR., impugnando o alegado.
Realizada audiência final, no início da qual foi realizada inspeção ao local, foi após proferida sentença decidindo julgar a ação parcialmente procedente e, em consequência:
“1. Declarar que a Autora é a legítima proprietária de um terreno destinado a construção, sito na Rua ..., no Lugar ... da freguesia de
..., do concelho ..., descrito na conservatória do registo
predial sob o n.º ...54 e inscrito na matriz respetiva sob o nº ...75, correspondendo a terreno destinado a construção que tem as seguintes confrontações: a Norte com GG, a Sul com EE, a Nascente com FF e a Poente com a Rua ...; e
2. Absolver os Réus do demais peticionado.”
“Conclusões:
(…)
Tendo ainda o tribunal a quo emitido pronúncia no sentido de se não verificar as arguidas nulidades da decisão recorrida.
Foram colhidos os vistos legais.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta das formuladas pelos apelantes serem questões a apreciar:
1) nulidade da decisão recorrida;
2) erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
3) erro na aplicação do direito.
O tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:
“1. A Autora é dona e legítima proprietária de um terreno destinado a construção, sito na Rua ..., no Lugar ... da freguesia ..., do concelho ..., descrito na conservatória do registo predial sob o n.º ...54 e inscrito na matriz respetiva sob o nº ...75, correspondendo a terreno destinado a construção que tem as seguintes confrontações: a Norte com GG, a Sul com EE, a Nascente com FF e a Poente com a Rua ....
2. Este terreno adveio à propriedade da Autora, em 10 de Novembro de 2009, por doação dos pais da Autora, por partilha em vida, e em compropriedade com a sua irmã GG, tendo sido desanexado do n.º ...13/20090706.
3. Mais tarde, a 6 de Julho de 2015, a Autora e sua irmã GG procederam à divisão de coisa comum, e celebraram escritura de divisão de coisa comum.
4. Os pais da Autora e avós da Primeira Ré, EE e HH, em 29/04/2015 venderam aos Réus, com reserva do direito de uso e habitação a favor dos vendedores, o prédio urbano sito no Lugar ..., na Rua ..., ..., da freguesia ..., do concelho ..., descrito na conservatória do registo predial do concelho sob o nº ...12 e inscrito na matriz respetiva sob o nº ...38.
5. O prédio dos Réus, sito na Rua ..., tem a área total de 637 m2, 96 m2 de área coberta e 541 m 2 de área descoberta, e é composto por edifício de rés-do-chão e andar para habitação com logradouro.
6. Ambos os prédios integraram a herança deixada por óbito de II e JJ, avós da Autora, da qual a mãe da Autora, EE, era herdeira.
7. Embora tais bens não se encontrassem partilhados, os pais da Autora, EE e HH, utilizavam os dois prédios como se fossem donos dos mesmos.
8. Por outro lado, uma vez que os terrenos eram contíguos, EE e HH não necessitaram proceder à delimitação física de cada um dos prédios, utilizando-os como se de um apenas se tratasse.
9. No interior de ambos os prédios existiam, à data da doação à Autora, vários barracos e construções de chapa e madeira, que em tempos serviram para guardar os animais.
10. Ambos os prédios vieram a ser adjudicados à mãe da Autora, EE, no âmbito do processo de inventário por falecimento dos avós da Autora, por acordo obtido em sede de conferência de interessados, datada de 11 de Março de 2009.
11. Em Dezembro de 2007, EE solicitou, junto do Gabinete de Topografia e Projetos A..., levantamento topográfico dos prédios aqui em causa, com vista à delimitação dos mesmos para a posterior partilha em vida.
12. O aludido levantamento topográfico foi elaborado a pedido e de acordo com as instruções de EE, que ali foi criada desde criança e depois de casar até ao fim da sua vida.
13. De tal levantamento topográfico consta, relativamente ao prédio dos Réus, a área total do terreno de 637,00 m 2, correspondendo a área coberta a 96,00 m 2 e a área descoberta a 541,00 m2.
14. Em momento não apurado, mas posterior ao levantamento topográfico, foi colocada uma marca de tom vermelho/alaranjado nas pedras, bem como um tubo branco colocado no alinhamento de tal marca, que, de acordo com o levantamento, faziam a marcação dos limites dos prédios dos Autores e dos Réus.
15. Em data prévia à doação, alguns dos barracos e construções em madeira acima referidos foram melhoradas para residência de filhos da EE, irmãos da Autora.
16. Após a doação do terreno à Autora e à sua irmã, algumas das construções continuaram a ser utilizadas pelos pais da Autora e, posteriormente, pelos Réus.
17. Parte de tais barracos e construções de chapa e madeira que continuaram a ser utilizados pelos pais da Autora e, posteriormente, pelos Réus, abrangem a área que, de acordo com a delimitação constante do levantamento topográfico, integra o terreno dos Autores, sendo que a restante parte ocupa o terreno que, nos termos de tal levantamento, pertence aos Réus.
18. Tais construções localizam-se na parte sul do prédio dos Autores e norte do prédio dos Réus, ocupando uma área aproximada de 30 m2.
19. No dia 20/02/2016, os Réus encontravam-se a realizar obras de melhoramento das construções acima descritas.
20. Nessa altura os Autores interpelaram o Réu DD a parar a obra que estava a fazer, mas este prosseguiu com a execução da mesma.
21. Em consequência, os Autores chamaram as autoridades policiais ao local.
22. A Autora, em Março de 2016, expôs a situação à Câmara Municipal ..., solicitando a remoção das construções em causa, por ilegais.
23. A Câmara Municipal veio a decidir, em 08/05/2017, que as construções em apreço não necessitavam de licenciamento municipal, motivo pelo qual não careciam de ser demolidas.
24. Por carta registada com Aviso de Receção, datada de 06/03/2018, a Autora interpelou os Réus para retirarem as construções que, no entender da própria, invadiam a sua propriedade.
25. Os Réus responderam por carta remetida em 22/03/2018, na qual negaram que as construções integrassem área de terreno que não lhes pertencia.
26. Posteriormente, os Réus rebocaram as paredes de tais construções.
27. Após, a Autora participou à GNR que os Réus haviam entrado na sua propriedade para efetuarem o reboco das paredes.
28. Os Autores pretendem dar início à construção de uma habitação no seu terreno tendo, para o efeito, solicitando licenciamento, que corre termos com o n.º 26/11.
29. Em virtude da existência das construções acima referidos, os Autores encontram-se impossibilitados de dar início à sua construção.
30. Os Autores suportaram o montante de € 6.854,20 com os custos necessários para a habilitação do respetivo licenciamento camarário, designadamente o projeto de construção a ele junto.
31. Os Autores sentem-se nervosos, agitados, ansiosos e humilhados pelo facto de não poderem iniciar a sua construção em virtude dos barracos e construções acima referidos.”
O tribunal a quo julgou ainda não provada a seguinte factualidade:
“1. Que os pais da Autora, EE e HH, tenham referido perante todos os filhos que as construções antigas existentes, originalmente em chapa e madeira, seriam para demolir, por se encontrarem parcialmente no terreno da Autora.
2. Que os Réus, em data não apurada, tenham entrado no terreno da Autora para rebocar as suas paredes.”
1) Cumpre em primeiro lugar apreciar se a decisão recorrida padece das nulidades que lhe foram imputadas pelos recorrentes.
Em causa a alegada nulidade por contradição entre a decisão e a fundamentação, tornando aquela absolutamente ininteligível, ambígua e obscura. De outro a nulidade por omissão de pronúncia [vide conclusões 15ª, 23ª, 24ª, 42ª, 43ª, 47ª, 59ª, 63ª a 68ª e 82ª a 84ª].
Nos termos do artigo 615º, nº 1 do CPC:
“É nula a sentença quando:
(…)
c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”
Estando as nulidades da sentença previstas de forma taxativa no artigo 615º do CPC é pacificamente aceite que estas respeitam a vícios formais decorrentes “de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal e que se mostrem obstativos de qualquer pronunciamento de mérito”[1], motivo por que nas mesmas se não incluem quer os erros de julgamento da matéria de facto ou omissão da mesma, a serem reapreciados nos termos do artigo 662º do CPC, quando procedentes e pertinentes, quer o erro de julgamento derivado de errada subsunção dos factos ao direito ou mesmo de errada aplicação do direito[2].
A nulidade por vício da contradição previsto na al. c) do nº 1 do artigo 615º do CPC – sanciona a contradição entre a decisão e seus fundamentos ou a ininteligibilidade/obscuridade da decisão.
Em causa, a verificação de um vício expositivo da decisão alvo de censura.
Devendo a decisão ser, num procedimento silogístico, a conclusão lógica deduzida de premissas anteriores, verifica-se o vício da contradição quando os fundamentos antes expostos conduziriam a decisão oposta à seguida. Ou a ininteligibilidade da decisão quando a mesma não for percetível.
Assim caraterizado este vício e analisados os argumentos apontados pelos recorrentes para fundamentar o mesmo, resulta claro não lhes assistir razão.
Com efeito os recorrentes convocam o vício da ininteligibilidade da decisão por referência ao que entendem ser um erro de julgamento (vide conclusão 14ª); ou por referência ao que entendem ser um erro na subsunção jurídica (vide conclusão 15ª). Raciocínio que prosseguem nas conclusões 23ª, 24ª, ou na 47ª, 63ª ou 67ª .
Porém e como já referido, nas nulidades de sentença não se incluem quer os erros de julgamento da matéria de facto ou omissão da mesma, a serem reapreciados nos termos do artigo 662º do CPC, quando procedentes e pertinentes, quer o erro de julgamento derivado de errada subsunção dos factos ao direito ou mesmo de errada aplicação do direito.
Implicando, como tal, a total improcedência da arguida nulidade com fundamento no previsto na al. c) do nº 1 do artigo 615º do CPC.
Arguida também a nulidade por omissão pronúncia a que se reporta a al. d) do mesmo nº 1 do artigo 615º, importa ter presente que a verificação da mesma depende do não conhecimento [ou conhecimento para além no caso do excesso] de todas as questões que são submetidas a apreciação pelo tribunal, ou seja, de todos os pedidos, causas de pedir ou exceções cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo conhecimento de outra(s) questão(ões). Não se confundindo questões com argumentos ou razões invocadas pelas partes em sustentação das suas pretensões.
Encontra este dever a sua consagração legal no disposto no artigo 608º nº 2 do CPC.
Sendo ainda de distinguir questões a resolver (para efeitos do artigo 608º nº 2 do CPC) da consideração ou não consideração de um facto em concreto que e quando se traduza em violação do artigo 5º nº 2 do CPC, deverá ser tratado em sede de erro de julgamento e não como nulidade de sentença [3].
Tendo presentes estes considerandos e o alegado pelos recorrentes, uma vez mais se impõe concluir que a arguida nulidade é manifestamente improcedente.
Os recorrentes fundamentaram a nulidade ora em apreciação quer numa alegada não pronúncia da pretensão à remoção das construções e restituição da parcela de terreno que alegaram lhes pertencer (vide conclusão 15ª); quer em erro de julgamento (vide conclusão 47ª); quer omissão de pronúncia quanto ao reconhecimento da propriedade dos AA. sobre a parcela de 30 m2 em discussão invadida pelos RR. (vide conclusão 50ª) ou omissão de pronúncia quanto aos restantes pedidos (vide conclusão 59ª).
No que ao erro de julgamento respeita, é claro que o mesmo não é fundamento de nulidade da decisão como acima já assinalado. Devendo ser apreciado antes em sede de reapreciação da decisão de facto.
Já que no respeita às invocadas não pronúncias dos pedidos formulados e identificados nas conclusões 15ª, 50ª e 59ª, não se entende sequer como os recorrentes podem invocar tal omissão de pronúncia, atendendo ao que consta da sentença recorrida e final segmento decisório.
À parte a procedência do pedido formulado sob o nº 1 pelos AA., o tribunal declarou absolver os RR. de todos os demais pedidos e fê-lo após em sede de subsunção jurídica ter analisado as pretensões formuladas concluindo a final:
“Improcede, pois, o pedido de condenação dos Réus a reconhecer que a faixa de terreno em causa pertence aos Autores, bem como a entregar-lhes tal faixa.
Perante o assim decidido é manifestamente carecida de fundamento a arguida nulidade por falta de pronúncia, pois não só o tribunal apreciou as pretensões formuladas como expressou o sentido decisório da sua improcedência.
Improcede nestes termos a pelos recorrentes invocada nulidade da sentença ao abrigo do disposto no artigo 615º nº 1 al. d) do CPC.
2) Do erro imputado à decisão de facto e da pertinência do seu conhecimento.
Estando em causa a impugnação da matéria de facto, obrigatoriamente e sob pena de rejeição deve o recorrente especificar (vide artigo 640º n.º 1 do CPC):
“a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
No caso de prova gravada, incumbindo ainda ao(s) recorrente(s) [vide n.º 2 al. a) deste artigo 640º] “sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Sendo ainda ónus do(s) mesmo(s) apresentar a sua alegação e concluir de forma sintética pela indicação dos fundamentos por que pede(m) a alteração ou anulação da decisão – artigo 639º n.º 1 do CPC - na certeza de que estas têm a função de delimitar o objeto do recurso conforme se extrai do n.º 3 do artigo 635º do CPC.
Analisadas, quer as conclusões quer o corpo alegatório, resulta a observância dos requisitos exigidos pelo normativo assinalado quanto ao indicado nas als. a) e b) do nº 1 quer na al. a) do nº 2 do artigo 640º do CPC.
O mesmo não se verifica quanto ao exigido pela al. c) do nº 1 do artigo 640º citado.
Com efeito, analisadas quer as conclusões, quer o corpo alegatório, em nenhum momento os recorrentes indicam qual a redação pretendida para os pontos 1 e 2 dos factos não provados que indicaram nas conclusões ser os pontos da decisão de facto por si impugnados.
O que só por si conduz à rejeição da reapreciação da decisão de facto.
Termos em que se rejeita a reapreciação da decisão de facto.
Sem prejuízo do assim decidido e no que respeita aos argumentos invocados pelos recorrentes a propósito da censura apresentada à decisão recorrida, importa ainda afastar a crítica que apontam à atuação do tribunal a quo com base numa omissão de diligência probatória, mais concretamente de “perícia aos prédios aqui em litígio” em respeito pelo princípio do inquisitório.
Não indicam os recorrentes qual seria o objeto de tal perícia que entendem seria imprescindível ao mérito dos autos – mas não requereram - nem se vê qual seria a sua finalidade, já que a improcedência da pretensão formulada pelos mesmos teve como fundamento o não cumprimento do ónus probatório de atos de posse sobre a parcela em questão demonstrativos da aquisição originária por via da usucapião dessa mesma parcela.
Se ocorreu errada subsunção jurídica dos factos ao direito, é questão que respeita ao mérito do recurso. Mas claramente improcede a argumentação dos recorrentes de violação do princípio do inquisitório por parte do tribunal a quo ao não ordenar oficiosamente “prova pericial”.
3) Do erro na aplicação do direito.
Em função do acima enunciado cumpre apreciar de direito, tendo presente que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, não obstante e sem prejuízo do limite imposto pelo artigo 609º quanto ao objeto e quantidade do pedido, não estar o tribunal vinculado às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito [vide artigo 5º nº 3 do CPC].
Tal qual resulta do relatório supra, formularam os AA. recorrentes pedido de:
- reconhecimento do direito de propriedade da A. sobre o prédio descrito em 1º da p.i. e a seu favor registado - propriedade [a que corresponde o pedido formulado sob o ponto 1 da p.i.], acrescenta-se desde já que em si não foi discutida e foi a final reconhecida [vide ponto 1 do segmento decisório da decisão recorrida];
- condenação dos RR. a entregar/restituir à A. a parte do prédio que invadiram, abstendo-se de praticar atos que impeçam a A. de exercer os seus direitos de propriedade sobre tal prédio [vide als. 2 e 3 do pedido formulado pelos AA. e que foi julgado improcedente];
- condenação dos RR. a indemnizar a A. em quantia nunca inferior a € 8.000,00 por danos morais causados à A. com a sua atuação e € 8.000,00 a título de danos patrimoniais igualmente causados com a A. com a sua atuação, bem como a título de sanção pecuniária compulsória a quantia diária de € 50,00 por cada dia de atraso na remoção das construções ilegais [vide als. 4 a 6 do pedido formulado pelos AA. e julgado improcedente].
Condenação esta que pressupõe necessariamente uma demonstrada atuação ilícita por parte dos RR.
Em causa esteve sempre – atento o objeto do processo conformado pelo pedido e causa de pedir delineados pelos autores – a propriedade do prédio que identificaram e em especial, os seus limites - nomeadamente a parcela de terreno discutida nos autos.
Importa assim de forma direta apreciar se os AA. lograram demonstrar, em função da factualidade que vem julgada provada, serem proprietários da parcela que se discutiu nos autos.
O direito de propriedade sobre o prédio em questão foi e bem reconhecido, atendendo ao que vem provado de 1 a 3 dos factos provados – beneficiando os recorrentes da presunção de titularidade sobre o prédio identificado por a seu favor registada a aquisição na CRP (vide o disposto no artigo 7º do C. Registo Predial).
O pomo da discórdia foi na sua essência os limites do prédio em causa, tendo os RR. na sua contestação alegado respeitar o seu prédio e construções nele existentes os respetivos limites. Construções que sempre ali existiram, nada tendo edificado de novo ou ampliado.
Como já referido a propriedade sobre o imóvel que os AA. identificaram como seu foi reconhecida.
Prédio sobre o qual beneficiam da presunção da titularidade do respetivo direito de propriedade decorrente do previsto no artigo 7º do CRP.
Esta presunção, não abrange porém e como é entendimento uniforme da jurisprudência, a área, os limites, estremas ou confrontações dos prédios descritos no registo predial[4].
Quanto a estes limites e concretamente quanto à parcela em causa, incumbia aos recorrentes alegar e fazer prova de que sobre a mesma praticaram atos de posse correspondentes aos de um proprietário por tempo suficiente para, por via da usucapião, meio de aquisição originária do direito de propriedade (independente do direito de propriedade anterior), lhe ser reconhecido o direito de propriedade sobre a mesma, como o peticionaram.
A usucapião é a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo que quando mantida por certo lapso de tempo faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito real a cujo exercício corresponde a sua atuação possessória - artigo 1287º do C.C..
Posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real – 1251º do CC, integrando para os que seguem a conceção subjetivista da posse o corpus – relação material com a coisa e o animus, ou seja a intenção de atuar com a convicção de ser titular do direito real correspondente, como se infere a nosso ver nomeadamente do disposto no artigo 1253º, ao dar relevo à intenção ou modo como é exercido o poder de facto sobre a coisa.
Presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, desde que tenha sido a pessoa em nome de quem esta começou (vide artigos 1252º nº 2 e 1257º nº 2 do CC).
Não beneficiando o requerente da mencionada presunção de posse, cabe-lhe demonstrar a sua aquisição derivada, ou seja conferida pelo anterior ante possuidor, ou então a aquisição por via originária, implicando a atuação reiterada, com publicidade dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito (vide artigo 1263º do CC).
Diz-se titulada a posse fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente quer do direito do transmitente quer da validade substancial do negócio jurídico (artigo 1259º).
Diz-se de boa-fé quando o possuidor ignora ao adquiri-la que lesa o direito de outrem. Presumindo-se de boa-fé a posse titulada e de má-fé a não titulada (artigo 1260º).
No que concerne aos imóveis, e conforme dispõe o artigo 1294º, havendo título de aquisição e registo deste, a usucapião tem lugar: a) quando a posse, sendo de boa-fé, tiver durado por dez anos contados desde a data do registo; b) quando a posse, ainda que de má-fé, houver durado quinze anos contados da mesma data.
Não havendo registo do título de aquisição, mas registo da mera posse – artigo 1295º - a usucapião tem lugar: a) se a posse tiver continuado por cinco anos, contado desde a data do registo e for de boa-fé; b) se a posse tiver continuado por dez anos a contar da mesma data, ainda que não seja de boa-fé.
Sendo que a mera posse só será registada em vista de sentença passada em julgado na qual se reconheça que o possuidor tem possuído pacífica e publicamente por tempo não inferior a cinco anos (n.º 2 do artigo ora em citação).
Finalmente e quando não haja nem registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa-fé, e de vinte anos, se for de má-fé (artigo 1296º).
Tendo presente os pressupostos da usucapião acima expostos e no confronto com os factos dados como provados, atendendo em especial ao constante de 1 a 10 e 15 a 17 dos factos provados, resulta não terem os AA. provado o direito a verem reconhecido o direito de propriedade sobre a parcela em questão por via da usucapião.
Recorda-se que os AA. intentaram uma típica ação de reivindicação, por via da qual requereram o reconhecimento da sua propriedade sobre um prédio que descreveram, mais alegando desse mesmo prédio fazer parte uma concreta parcela de terreno, ocupada por construções dos ora RR.
Parcela que requereram fosse declarado e os RR. condenados a reconhecer que a mesma faz parte do seu prédio.
Na ação de reivindicação é ónus do A. a prova do facto constitutivo da propriedade e da posse por outrem. E ónus do R. a invocação de facto impeditivo da restituição (cfr. art.º 342º nº1 e 2 do C.C).
Propriedade que o A. terá de demonstrar ter adquirido por via derivada ou originária.
Ou seja, é a ação de reivindicação uma ação real de defesa da propriedade.
Não abrangendo, como já referido, a presunção de titularidade do direito de propriedade decorrente do previsto no artigo 7º do CRP a área e limites dos prédios descritos no registo predial, recai sobre aquele que reclama a propriedade de uma determinada parcela como integrante do seu prédio, alegar e fazer prova de que sobre a mesma praticou atos de posse correspondentes aos de um proprietário por tempo suficiente para por via da usucapião – aquisição originária – ver reconhecido esse mesmo direito de propriedade.
Tendo a A. adquirido o prédio em causa por doação de seus pais [partilha parcial em vida], não beneficiam sequer os AA. da dispensa da tradição, entrega ou apreensão material da coisa que é conferida aos sucessores por morte do possuidor, nos termos do disposto no artigo 1255º do CC.
Como tal e para que pudessem invocar a acessão da posse em seu benefício (vide artigo 1256º do CC), unindo a sua à posse dos anteriores proprietários, teriam os AA. de ter provado que ocorreu a transmissão da posse por tradição em qualquer das suas modalidades ou por constituto possessório [vide als. b) e c) do artigo 1263º e 1264º do CC].
O constituto possessório representa uma transmissão da posse por simples consenso, passando o possuidor à posição de simples detentor, com fundamento numa causa que legitima a constituição dessa detenção, regra geral um negócio jurídico entre transmitente e adquirente[5].
Nada disto vem provado. Resultando antes provado que sobre a parcela em questão, ainda antes da doação, foram melhorados alguns barracos e construções para residência de filhos da doadora EE que após a doação assim continuaram a ser utilizados pelos doadores, pais da autora e posteriormente pelos RR.
Concluindo, era aos AA. que incumbia provar terem sobre a parcela em questão praticado atos de posse correspondentes aos de um proprietário por tempo suficiente para por via da usucapião – aquisição originária – ver reconhecido esse mesmo direito de propriedade.
Prova que não lograram fazer.
Pelo que a ação tinha de ser julgada improcedente como foi quer quanto à propriedade e consequente condenação de restituição da parcela em questão. Quer quanto ao pedido indemnizatório que estava totalmente dependente da prova da prática de factos ilícitos pelos RR., não observada.
Toda a argumentação expendida pelos recorrentes relativamente à prova que alegam não foi feita pelos recorridos não colhe, atento o ónus de prova que sobre os AA. recaia e acima analisado.
Uma última palavra para afastar a referência a uma alegada violação dos princípios consignados na Constituição da República Portuguesa, nomeadamente nos artigos 13º, 20º e 202º nº 2 da CRP, por não ter sido assegurado pelo tribunal a quo a defesa dos direitos dos recorrentes ao não aplicar “as normas legais aplicáveis ao caso concreto, bem como ao omitir na decisão proferida quanto ao reconhecimento como sendo da propriedade dos AA e a consequente restituição aos AA. da parcela de terreno de 30 m2 invadida pelos RR, limitou-se a emitir uma decisão de uma forma simples e sintética, sem ter em conta
a) A prova produzida em Julgamento;
b) Os documentos juntos;
c) Os elementos constantes no processo.”
Analisado o articulado das alegações, do mesmo resulta sobre esta questão terem apenas os recorrentes alegado/convocado a violação dos princípios constitucionais nos termos acima citados, por e em suma ser seu entendimento que ocorreu erro de julgamento e omissão de pronúncia.
Sem que na verdade tenham apresentado uma qualquer justificação sobre as razões que conduzem a tal alegada violação.
E mais, sem sequer concluir pelo pedido de declaração de inconstitucionalidade de qualquer norma.
Note-se que por referência ao previsto nos artigos 13º, 20º e 202º nº 2 da CRP, invocam os recorrentes a violação dos princípios constitucionais em tais artigos consagrados - “na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos... e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados” e neste caso essa circunstância não se verifica.”
No entanto não alegam/concretizam de forma objetiva e/ou fundamentada em que termos e por que motivos são estes princípios violados.
A questão da constitucionalidade tem de ser suscitada não só durante o processo, como igualmente de modo processualmente adequado, impondo-se ao recorrente o ónus de delimitação e especificação perante o tribunal da norma objeto de recurso (vide artigo 72º nº 2 da LTC – Lei 28/82 de 15/11).
É entendimento reiterado do Tribunal Constitucional o de que o cumprimento do ónus processual de suscitação processualmente adequada perante o tribunal recorrido (in casu, este tribunal ad quem) «não se basta com o enunciado da única interpretação que se considera conforme à Constituição, ou sequer na explicitação das razões pelas quais se consideram outras interpretações inconstitucionais. Cabe ao recorrente enunciar, com clareza, o exato sentido ou conteúdo da norma que reputa de inconstitucional (…)»
Não se entendendo como cumprido este ónus de “delimitação e especificação pela positiva (…) pela simples «indicação da [alegada] única interpretação tida por constitucionalmente possível, para assim se excluir todas as demais»[6]
Analisada a singela invocação da inconstitucionalidade das normas convocada pelos recorrentes, verifica-se na verdade dirigirem os mesmos, em suma, a sua crítica à decisão recorrida e ao modo como o tribunal a quo aplicou o direito infraconstitucional, sem que tenham feito uma concreta e precisa enunciação do sentido ou conteúdo da(s) norma(s) que reputa(m) inconstitucional(l)(ais)
Concluindo, não foi validamente arguida uma qualquer inconstitucionalidade na interpretação de normas seguidas pelo tribunal a quo de que cumpra em concreto conhecer.
Em face do exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente a presente apelação, consequentemente se mantendo a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Notifique.
(M. Fátima Andrade)
(Ana Paula Amorim)
(Nuno Freitas Araújo)
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[1] Cfr. Ac. STJ de 23/03/2017, nº de processo 7095/10.7TBMTS.P1.S1, in www.dgsi.pt
[2] Vide também Ac. STJ de 30/05/2013, nº de processo 660/1999.P1.S1, sobre a distinção entre nulidade da sentença (no caso por oposição entre os fundamentos e decisão) versus erro de julgamento; ainda Ac. TRP de 24/01/2018, nº de processo 19656/15.3T8PRT.P1 sobre a distinção entre erro ou vício da decisão de facto e nulidade de julgamento. Ambos in www.dgsi.pt.
[3] Neste sentido Francisco Almeida in ob. cit., p. 371; Ac. STJ de 30-09-2010, Relator Álvaro Rodrigues, Ac. STJ de 06/12/2012, Relator João Bernardo e mais recentemente Ac. STJ de 23/03/2017, Relator Tomé Gomes (ambos in www.dgsi.pt/jstj), este último convocando o ensinamento de José Alberto dos Reis in CPC anotado, vol. V, 1981, p. 144-146 sobre a distinção entre erro de julgamento e nulidade de sentença nos seguintes termos (ainda por referência ao anterior 664º do CPC, hoje artigo 5º do CPC e no caso considerando o excesso de pronúncia, mas aplicável por identidade de razões à omissão): “(…) uma coisa é o erro de julgamento, por a sentença se ter socorrido de elementos de que não podia socorrer-se, outra a nulidade de conhecer questão de que o tribunal não podia tomar conhecimento. Por a sentença tomar em consideração factos não articulados, contra o disposto no art. 664.º, não se segue, como já foi observado, que tenha conhecido de questão de facto de que lhe era vedado conhecer.»
[4] Cfr. Ac. STJ de 12/01/2021, nº de processo 2999/08.0TBLLE.E2.S1 in www.dgsi.pt entre outros
[5] Cfr. Comentário ao CC, Direito das Coisas, edição Universidade Católica, em anotação ao artigo 1264º.
[6] Cfr. Ac. T. Constit. Nº 715/2024, processo nº 501/2024 proferido em 10/10/2024, confirmando Decisão Sumária nº 390/2024 in www.tribunalconstitucional.pt e demais decisões no mesmo citado.