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DISTRIBUIÇÃO
SECÇÕES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO
COMPETÊNCIA MATERIAL
Sumário
I - O fator decisivo para a atribuição da competência às diferentes secções especializadas do Tribunal da Relação decorre da natureza cível, criminal, laboral, das questões colocadas concretamente para escrutínio. II - Estando em causa, numa execução, apurar de uma eventual insuficiência do título executivo, as matérias a tratar atêm-se com questões de natureza cível, devendo, assim, caber às Secções Cíveis do Tribunal da Relação a apreciação e decisão do recurso subsequente àquela decisão. III – A esta atribuição de competência não obsta a circunstância de o documento que deu origem ao título executivo ser uma certidão de dívida pelo não pagamento de uma coima no âmbito de uma contraordenação estradal, nem impede que, num eventual outro recurso deste mesmo processo executivo, possa ser conferida competência às Seções Criminais caso a nova questão colocada revista natureza criminal.
Texto Integral
Processo: 717/24.4Y9PRT.P1.P1-A
I – Relatório
O presente conflito de distribuição surge no âmbito de uma ação executiva intentada ao abrigo do disposto no art.º 185.º-A do Código da Estrada pelo Ministério Público para cobrança coerciva de uma coima por contraordenação rodoviária, a qual foi decretada por decisão administrativa.
A execução corre termos no Juízo Local de Pequena Criminalidade do Porto - Juiz 2,
Uma vez distribuída a dita ação ainda na 1ª instância, a Mma. Juiz titular proferiu despacho, ora sob recurso, no qual foi decidido o seguinte, na parte pertinente:
“(...) analisada a certidão dada à execução, constata-se que a mesma no que concerne à descrição da infração apenas descreve a contraordenação que deu lugar à aplicação da coima, data, hora e local em que a mesma se verificou sem identificar como devia o veículo com que a mesma foi praticada, sendo que, tal é requisito essencial do título executivo (...).
Esta necessidade, compreende-se pelo aquilo que aludimos, designadamente que a apresentação do título executivo tem uma função garantística, ou seja, a de informar o executado sobre a dívida em concreto em cobrança de modo a que o mesmo possa exercer a sua defesa.
(...) Só dessa forma é que o título executivo revelará com segurança a existência do crédito em que assenta o valor reclamado na execução, permitindo ao executado a possibilidade de contestar a existência da dívida.
(...) Deste modo, decorrendo do disposto no art.º 726º, n.ºs 1 e 2, al a) do Código de Processo Civil, que a falta de título executivo dá lugar ao indeferimento liminar do requerimento executivo, o que pode ser oficiosamente conhecido, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados (o que, no caso, ainda não ocorreu), nos termos do preceituado no art.º 734º, n.º 1 do Código de Processo Civil e sem necessidade de assegurar o contraditório, face à simplicidade, da ausência de título (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16/05/2023, processo n.º12021/22.8T8PRT-A.P1, Relator Rui Moreira, disponível para consulta em www.dgsi.pt) rejeita-se a presente execução.”
Inconformado com o indeferimento liminar decretado, o exequente - Ministério Público - interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, pedindo a revogação da decisão de rejeição da execução e a sua substituição por outra que determine o prosseguimento dos termos do processo.
O recurso foi admitido como de apelação, segundo o regime processual civil decorrente dos arts. 644.º, n.º 1, 645.º, n.º 1, al. a), 647.º, n.º 1, 852.º, 853.º, n.ºs 1, 2, al. b), e 3, todos do CPC, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
A Exma. Sra. Desembargadora da Seção Criminal a quem foi sorteado o recurso como relatora declarou a incompetência material da Secção Criminal para os termos do presente recurso, entendendo caber tal competência às Secções Cíveis deste Tribunal da Relação. Por sua vez, o Exº Juiz Desembargador Relator da 3º secção cível desta Relação proferiu despacho no âmbito do qual se determinou “a devolução do processo à Secção Criminal deste Tribunal da Relação do Porto de onde proveio” o que teve como consequência o envio por parte da Exma. Sra. Desembargadora da Seção Criminal do presente processo a esta Presidência para resolução do conflito.
Estando em causa um conflito de distribuição – e não de competência – o mesmo tramitou-se, de modo análogo, ao regime de conflito de competência previsto nos artigos 111º a 113º do Código do Processo Civil o qual se revela adequado, desde logo, por haver permitido o exercício do contraditório.
Neste conspecto, pronunciou-se, nos termos do artigo 112º, nº2 do CPC, o Ministério Público no sentido que a competência material para resolver o recurso pertence às secções cíveis do TRP.
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II - Fundamentação Aplicável
Como é consabido e reiterando o por nós decidido em conflito anterior (Decisão Singular de 27 de novembro de 2023, processo nº 706/16.2T9VFR-A.P1-A, disponível em dgsi.pt), em sede de competência relativa às secções dos tribunais da Relação, como também do Supremo Tribunal da Justiça, o fator decisivo para a atribuição da competência decorre da natureza cível, criminal, laboral das questões colocadas para escrutínio dos tribunais superiores; seguem, assim, critérios materiais e não processuais ou de natureza do processo.
Este entendimento vem sendo uniformemente perfilhado e tem a sua origem nas normas aplicáveis – artigos 54º a 56º por remissão do artigo 74º todos da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 57/2025, de 24/07 na versão mais recente). Decorre ainda da orientação consensual do nosso Supremo Tribunal, plasmada nomeadamente no Acórdão do STJ de 14 de Julho de 2010, relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar e que pode ser consultado, online, na seguinte ligação: https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ca0a72ff6c912cfe802577a50 051e104?OpenDocument
Explicitando, temos que a jurisdição dos tribunais superiores - Supremo Tribunal de Justiça e Relações - é exercida “segundo as modalidades de repartição de competência entre as diversas formações estabelecidas pelas leis de organização judiciária”.
A dimensão organizativa das Secções parte, nos termos legais, de um modelo de competência em razão da matéria.
Em conclusão, a solução a adotar no caso em apreço decorre do apuramento da natureza jurídica (penal ou cível) do litígio “sub judice”.
Esta uma decorrência do modelo de competência em razão da matéria consagrado na lei portuguesa muito por força da prevalência que o nosso sistema legal confere à especialização. Esta sobrepõe-se a uma distinção segundo a natureza dos processos ou mesmo segundo o tipo de tribunal – civil, criminal – de onde provém o recurso deduzido.
Daí que seja possível que um recurso de uma sentença de uma instância criminal possa ser apreciado, na Relação ou no Supremo, por um coletivo de juízes de uma seção especializada cível e vice-versa (no mesmo sentido do ora propugnado, vejam-se acórdãos do STJ de 13.11.2013, processo nº 9001/09.2TDPRT.P1.B.S1 e processo nº 41/09.2TOLSB.L1-A.S1 de 26.04.2012, ambos disponíveis em dgsi.pt).
Este modelo tem as vantagens decorrentes da especialização nomeadamente do melhor apetrechamento técnico daqueles chamados a decidir embora enfrente também as desvantagens provindas do carácter casuístico da determinação da competência que obriga à ponderação das matérias específicas em litígio, independentemente da natureza do processo ou da jurisdição especializada do tribunal recorrido.
Pois bem.
Pendem nesta Relação um conjunto significativo de recursos idênticos a este, tendo inclusivamente sido já proferida uma decisão por um coletivo de uma Seção Cível o qual aceitou ser competente em razão de matéria.
Nesse acórdão, relativo ao processo 5293/24.5Y9PRT.P1, datado de 13-10-2025, disponível no sítio da dgsi, é feita uma abordagem detalhada sobre o objeto do litígio. Indica-se que o título dado à execução é uma certidão emitida nos termos do disposto no artigo 185.º-A do Código da Estrada e questiona-se se a mesma será suficiente para observar o disposto na alínea b) do nº 2 do artigo 185.º-A do Código da Estrada, a saber: “descrição da infração, incluindo dia, hora e local em que foi cometida”. Conclui-se que, de facto, “a descrição da infração imputada ao executado constante da certidão exequenda, é insuficiente para caraterizar a concreta ação do executado violadora das regras do Código da Estrada.” Entende-se que “esta insuficiência é facilmente suprível, seja com uma certificação complementar, seja mediante o oferecimento de certidão do auto de notícia que deu origem ao processo contraordenacional em que veio a ser proferida a decisão administrativa titulada pela certidão exequenda.”
Deste modo, decidiu-se, na parcial procedência do recurso, revogar a decisão recorrida a qual se substituiu por outra que convida o exequente, face ao disposto no nº 4 do artigo 726º do Código de Processo Civil, a suprir a apontada insuficiência do título exequendo, no prazo de dez dias.
Como se alcança da descrição sucinta efetuada, a questão em apreço tem, efetivamente, natureza estritamente cível.
Quer se conclua que existe uma insuficiência insuprível do título executivo – como entende a sentença recorrida – que se decida que a dita insuficiência é suprível – como entendeu o acórdão descrito – quer se conclua, com o Ministério Público, que o título dado à execução não padece de qualquer insuficiência, sempre estaremos perante matéria de natureza civil.
Não estará, portanto, em causa apreciar da conformidade da decisão administrativa de aplicação de coima por infração rodoviária em função dos preceitos que regulam a matéria contraordenacional; o que se discute circunscreve-se ao título executivo, no caso saber se a certidão de dívida (assim designada pelo art. 185º-A do Código da Estrada), emitida após o trânsito da decisão que lhe deu origem e dela, neste sentido, completamente apartada, pode, ou não, ser tida como título executivo.
Dito de outra forma: não estamos perante a apreciação dos requisitos de uma decisão contraordenacional relativos à aplicação de uma coima, mas, em sede diversa, encontramo-nos perante a dúvida de saber se um dado documento – uma certidão – pode ser considerado um título executivo.
E este apuramento, repita-se, reveste uma natureza jurídica cível.
Nada releva, a nosso ver e sempre salvo melhor opinião, que o exequente seja o Estado e que na origem da dívida esteja um processo contraordenacional.
Por isso, à luz da primazia da competência material e sendo esta uma questão exclusivamente cível, os juízes dessa área especializada devem ser chamados a dirimir o conflito.
Dir-se-á, com lógica, que, no futuro, nada impede que, neste mesmo processo, o executado venha a invocar, por exemplo, a prescrição da coima, que esta questão seja apreciada em primeira instância e que dessa decisão venha a ser interposto recurso o qual, necessariamente, caberia então às Seções Criminais desta Relação apreciar.
Dir-se-á até poder acontecer, no limite, que, num único recurso, se discuta a insuficiência do título executivo – questão exclusivamente cível - e concomitantemente a prescrição da coima – questão de natureza jurídica penal – situação que, a nosso ver, implicaria que o recurso fosse integralmente apreciado pelas Seções Criminais.
Existe, efetivamente, no regime legal consagrado, uma incerteza que apenas a apreciação singular do caso concreto permite resolver.
Este casuísmo - felizmente apenas ocasional - na definição das competências apresenta, como aventamos acima, inconvenientes vários, sobretudo em termos de previsibilidade e certeza jurídicas.
Mas, no nosso entendimento, em nome do princípio da especialização – claramente dominante na nossa organização judiciária – optou-se, legislativamente, por esta solução a qual implica que a tramitação do presente recurso, tal como a de todos os demais de natureza idêntica a este, caiba ao coletivo sorteado da Seção Cível.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se atribuir a presente tramitação recursal ao coletivo cível a quem o processo foi sorteado.
Notifique.
Comunique-se, através do Secretariado da Presidência, a todos os Exmos. Srs. Desembargadores das Seções Cíveis e Criminais para os fins por estes tidos por convenientes nomeadamente no que diz respeito aos processos de que sejam titulares e onde se discuta questão idêntica à dos autos.
Publique-se no sítio da DGSI.
Porto, 5/12/2025
José Igreja Matos
[Presidente do Tribunal da Relação do Porto]