SANEAMENTO DO PROCESSO
FALTA DE PROMOÇÃO
NULIDADE INSANÁVEL
Sumário

Sumário:
I. Remetidos os autos ao tribunal, no saneamento do processo, nos termos do art.º 311.º, n.º 1, do C.P.P., o presidente deve conhecer oficiosamente da nulidade insanável da falta de promoção do processo pelo Ministério Público (cfr. art.º 119.º, al. b), do C.P.P.);
II. Os efeitos da declaração de tal nulidade são os estabelecidos no art.º 122.º do C.P.P., o que implica que, verificando-se aquela quanto à totalidade dos factos denunciados, o processo regresse aos serviços do Ministério Público para possa ser suprido o vício;
III. Tal solução não colide com a estrutura acusatória do processo (cfr. art.º 32.º, n.º 5, da C.R.P.), nem com a autonomia do Ministério Público (cfr. art.º 219.º, n.º 2, da C.R.P.).

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa,
I. Relatório:
I.1. Das decisões recorridas:
No âmbito do processo comum singular n.º 1230/24.5T9FNC, que corre termos no Juízo Local Criminal do Funchal – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, foram proferidos dois despachos:
I.1.A. Despacho de 26-05-2025:
Pelo qual, por falta de legitimidade dos assistentes “AA”, BB, CC, DD, EE e FF, para dedução de acusação particular, foi declarada verificada, ao abrigo do art.º 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (C.P.P.), a nulidade insanável prevista no art.º 119.º, al. b), primeira parte, do C.P.P., não foi recebida a acusação particular deduzida pelos assistentes e foi declarada extinta a instância cível, por impossibilidade superveniente da lide nos termos do art.º 277.º, al. e), do Código de Processo Civil (C.P.C.), condenando “o assistente” nas custas na parte crime, e “a demandante” nas custas da parte cível.
I.2.B. Despacho de 13-06-2025:
Pelo qual foi indeferida a irregularidade do despacho de 26-05-2025, arguida pelos assistentes “AA”, BB, CC, DD, EE e FF, e mantida a decisão de 26-05-2025.
I.2. Do recurso:
Inconformados com as referidas decisões, os assistentes “AA”, BB, CC, DD, EE e FF delas interpuseram recurso, extraindo da motivação as seguintes conclusões:
A. Em cumprimento com o disposto no artigo 122.º, n.º 2, do CPP, o Tribunal a quo deveria ter ordenado que o MP deduzisse acusação pública, dado que aderiu à acusação deduzida cautelarmente pelos Recorrentes, desse modo suprindo a falta de promoção processual e sanando também a omissão de pronúncia sobre a questão prévia suscitada, em tempo e em primeiro lugar, pelos ora Recorrentes na sua acusação.
B. Ao não o ter feito, o despacho proferido em 26 de maio de 2025 pelo Tribunal a quo é ilegal, atenta a sua irregularidade, oportunamente invocada pelos Recorrentes (cfr. requerimento apresentado em 2 de junho de 2025), nos termos do disposto no artigo 123.º, n.º 1, do CPP, igualmente com as consequências previstas no artigo 122.º do CPP, devendo, por isso, ser substituído por outro que determine que o processo regresse aos serviços do MP para que seja suprido o vício da falta de promoção do processo, revertida a condenação em custas e, bem assim, a extinção da instância cível e as custas na vertente cível.
C. Mas o referido despacho é também contrária à Constituição, uma vez que a interpretação conjugada dos artigos 119.º, alínea b), 122.º e 311.º, n.º 1, do CPP, no sentido de que, constatada a existência de nulidade insanável, por falta de promoção do processo pelo MP, deve o juiz rejeitar a acusação particular e decidir o arquivamento dos autos, é inconstitucional por violação, designadamente, dos princípios do processo justo e equitativo, da tutela jurisdicional efetiva, da estrutura acusatória do processo e da intervenção do ofendido no processo penal (artigo 20.º, n.os 1, 2 e 4, e 32.º, n.os 1, 5 e 7, da Constituição).
D. Por sua vez, a omissão de pronúncia do MP sobre a questão prévia suscitada pelos Recorrentes na sua acusação consubstancia quer uma nulidade, por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios (em cumprimento dos artigos 48.º e 283.º do CPP), nos termos do disposto no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP, a qual foi suscitada pelos Recorrentes na referida questão prévia, quer uma irregularidade, prevista no artigo 123.º, n.º 2, do CPP, que afeta o valor do ato praticado e põe em causa o princípio da intervenção do ofendido no processo penal (artigo 32.º, n.ºs 1 e 7, da Constituição).
E. Ao não conhecer esses vícios, o despacho do Tribunal a quo proferido em 26 de maio de 2025 é também ilegal, tendo a respetiva irregularidade sido invocada em tempo (no requerimento apresentado pelos Recorrentes em 2 de junho de 2025) ao abrigo do disposto no artigo 123.º, n.º 1, do CPP, com as devidas e legais consequências, entre as quais a requerida remessa dos autos ao MP para pronúncia sobre a questão prévia suscitada em tempo, por via da aplicação do artigo 122.º do CPP.
F. Nem o requerimento de abertura da instrução, nem a intervenção hierárquica se apresentavam como efetivas vias de reação ao despacho que notificou os Assistentes para deduzirem acusação particular. A interpretação conjugada dos artigos 119.º, alínea b), 122.º e 311.º, n.º 1, do CPP, no sentido de que o assistente deve requerer a abertura da instrução ou a intervenção hierárquica, sob pena do arquivamento dos autos, perante uma situação em que, em face de notificação do MP para deduzir acusação particular, o assistente requer expressamente a tomada de posição do Ministério Público com vista à prolação do competente despacho de acusação pública, e, apesar disso, o MP, não se pronuncia sobre essa questão prévia, não deduzindo acusação pública, nem proferindo despacho de arquivamento, mas limitando-se a aderir a uma acusação particular assim deduzida à cautela e a remeter os autos à distribuição em julgamento, é inconstitucional por violação dos princípios do processo justo e equitativo, da tutela jurisdicional efetiva e da intervenção do ofendido no processo penal (artigo 20.º, n.os 1, 2 e 4, e 32.º, n.os 1 e 7, da Constituição).
G. O despacho proferido pelo Tribunal a quo ao abrigo do artigo 311.º, n.º 1, do CPP, deve, pois, ser revogado e substituído por outro que determine a necessária remessa dos autos ao MP, nos termos expostos (cfr. artigos 123.º, n.º 1, e 122.º do CPP).
H. O despacho que indeferiu as irregularidades invocadas pelos Recorrentes, proferido em 13 de junho de 2025, é também ele ilegal, atenta a falta grosseira de fundamentação, que consubstancia uma irregularidade, prevista no artigo 123.º, n.º 2, do CPP, a qual afeta o valor do ato praticado e põe em causa o princípio da intervenção do ofendido no processo penal (artigo 32.º, n.ºs 1 e 7, da Constituição).
I. É o mesmo também ilegal por nele não terem sido declarados os vícios invocados pelos Recorrentes, conforme exposto supra, em particular por não terem sido remetidos os autos para o MP, em cumprimento com o disposto no artigo 122.º do CPP e com o mais elementar princípio do processo penal — o princípio da legalidade.
J. Não há, no processo penal, nenhuma razão lógica para excluir o MP do regime previsto no título V, “Das nulidades” (artigos 118.º e ss. do CPP), do livro II, “Dos atos processuais”, do CPP, nem para que não seja determinado, sempre que possível, ao abrigo designadamente do princípio da economia processual, a repetição de atos processuais pelo MP. Os pressupostos de que o n.º 2, do artigo 122.º, do CPP, faz depender a repetição dos atos inválidos são apenas a necessidade e a possibilidade da repetição e ainda que as despesas respetivas fiquem a cargo de quem deu causa culposamente à nulidade.
K. Pelo que, no caso de o seu conhecimento não se mostrar prejudicado pela decisão a incidir sobre o primeiro segmento do presente recurso, também esse segundo despacho deve ser revogado e substituído por outro que reconheça as irregularidades invocadas e, consequentemente, determine a necessária remessa dos autos ao MP, nos termos vistos.
L. Esse despacho é, também ele, inconstitucional, porquanto a interpretação conjugada dos artigos 119.º, alínea b), 122.º e 311.º, n.º 1, do CPP, no sentido de que, constatada a existência de nulidade insanável, por falta de promoção do processo pelo MP, deve o juiz rejeitar a acusação particular e decidir o arquivamento dos autos, por a remessa ao MP dos autos para que este supra os vícios arguidos contender com a estrutura acusatória do processo e a autonomia do MP viola designadamente o princípio do processo justo e equitativo (artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição) e o princípio da legalidade (artigo 2.º e 29.º da Constituição).
O referido recurso foi admitido por despacho de 11-07-2025.
I.3. Da resposta:
Apesar de o recurso interposto ter sido também notificado ao arguido, na pessoa da sua ilustre defensora, ao mesmo só respondeu o Digno Magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido, concluindo da seguinte forma:
1.Os assistentes insurgiram-se contra os despacho de 26.05.2025, onde a Mma. Juiz a quo não determinou a devolução dos autos ao Ministério Público, face à nulidade insanável verificada, por ilegitimidade dos assistentes para a dedução de acusação particular nos termos do disposto no art.º 285º, n.º 1 do Código de Processo Penal, faco que, no seu entender, era devido atento o disposto no art.º 122º do Código de Processo Penal.
Discordam também do despacho proferido no dia 13.06.2025, o qual entendeu não existir qualquer irregularidade no despacho anterior e manteve a decisão.
2.A posição da Magistrada do MP, na fase de inquérito é criticável, tanto no que diz respeito aos tipos de crime, como à natureza dos mesmos, lapsos que determinaram a escalada de ”equívocos”, nomeadamente a notificação dos assistentes para deduzirem acusação particular e posterior remessa dos autos para julgamento, acompanhando um tipo d crime diverso daquele que havia sido por si dado como verificado.
3.Aparte de todos estes lapsos, os assistentes deduziram acusação particular por um crime de natureza semipública, para o qual não tinham legitimidade.
4.Em momento prévio à dedução desta acusação particular, a magistrada da do Ministério Público convidou os assistentes para, querendo, deduzirem acusação particular relativamente aos crimes de publicidade e calúnia.
5.Estes apresentaram acusação particular e PIC por crime diverso, no seu entender, o tipo aqui em questão (e nosso e da Mma. Juiza a quo também) ser outro.
6.Suciraram esta divergência em “questão prévia “ que não foi atendida, apesar de ter sido requerido que o Ministério Público, tomasse posição.
7.Em vez disso determinou a remessa dos autos à distribuição e cerca de um mês e 15 dias depois, estranhamente, aderiu à acusação particular deduzida, recorde-se: por crime diverso daquele que inicialmente havia configurando.
8.Na altura da Mma.Juíza a quo proferir despacho nos termos do disposto art.º 311º do Código de Processo Penal. Nesta sede decidiu que os assistentes não tinham legitimidade para a dedução de acusação peplo tipo de crime em causa.
9.Sem pretender branquear a actuação do Ministério Público na fase de inquérito, em abono da verdade os assistentes também devem ser criticados porque deduziram uma acusação por um tipo de crime para o qual não foram convidados a fazê-lo (apesar de estarem certos na subsunção dos factos ao direito que fizeram).
10. Concorda-se com os assistentes quando referem a impossibilidade apresentar o RAI como reção ao despacho que os convidou a deduzir acusação particular por crime diverso àquele que entendiam estar em causa nos autos, as podiam, e deviam, tr suscitado a intervenção hierárquica nos termos do disposto no art.º 278º do Código de Processo Penal (vide Ac. do STJ de 17.02.2024).
11. Coloca-se agora a questão do que devia a Mma. Juiz a quo ter feito perante esta situação. Os assistentes entende que deveria ter mandado reenviado os autos ao Ministério Público para sanar a nulidade nos termos do art.º 122º do Código Penal.
12. Com o fundamento da nulidade? Mas o Ministério Público estava convicto, erradamente, que o crime em causa tinha natureza particular, e até determinou a notificação dos assistentes para a dedução de acusação particular.
13. Os juízes não têm a função de fiscalizar a actuação do MP em sede de inquérito. Recordamos os princípios da separação de poderes e do acusatório.
14. Aderindo à jurisprudência do TRG no Ac. de 20.03.2023, o Magistrado do Ministério Público, promoveu que se extraísse certidão integral de todo o processado e se determinasse a remessa ao DIAP do Funchal, a fim de o Ministério Público sanar as nulidades verificadas e, eventualmente deduzir acusação, como forma de obviar o protelar da situação, por ser a forma processual mais correcta. Deste facto foi dado conhecimentos os assistentes. O Novo processo assumiu o numero 1482/25.3T9FNC da 2ª Secção.
Foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação.
I.4. Do parecer:
Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer através do qual propugnou pela procedência do recurso, de acordo com o seguinte:
AA, BB, CC, DD, EE e FF, assistentes nos autos, recorrem do despacho de 26.5.2025 “(...) que, entre o mais, decidiu não conhecer do mérito da causa, não receber a acusação e declarar extinta a instância cível e condenar os Assistentes/Demandante em custas, e, bem assim, do despacho proferido em 13 de junho de 2025, que indefere as irregularidades invocadas pelos Assistentes relativamente ao despacho proferido em 26 de maio de 2025(...)”, pugnando pela sua revogação e substituição por outro que ordene a devolução dos autos ao Ministério Público para que este, querendo, deduza acusação ou na alternativa arquive o processo, com as legais consequências.
O magistrado do Ministério Público na primeira respondeu e concluiu sustentando os despachos impugnados.
Como referido na resposta ao recurso, os Assistentes, a Mmª Juíza “a quo” e Magistrado do Ministério Público na fase de julgamento estão de acordo quanto à natureza semi-pública dos crimes em causa imputados ao arguido.
Certo é também, como resulta dos autos, que realizado o inquérito, foi proferido despacho (artigo 285º /2 do CPP) que concluiu nos seguintes termos “(...) [“Nestas situações concluída a investigação, o Ministério Público tem, como aliás resulta claramente da lei, de dar cumprimento ao disposto no art.º 285, n.º 1 do C.P.P., notificando o assistente para querendo, deduzir acusação particular.”]
Assim sendo, mesmo no caso dos presentes autos em que se entende pela existência da prática por parte dos arguidos de um crime de publicidade e calúnia praticado na pessoa da Assistente, pelo que se torna necessário dar cumprimento ao disposto no art.º 285. n.º 1 do C.P.P.
Como tal, com cópia do presente despacho, notifique a assistente, para, conforme dispõe o art. 285º nº1 do Código de Processo Penal, deduzir, querendo, acusação particular, num prazo de 10 dias, sendo certo que o Ministério Público considera existirem factos que configurem a prática de 1 (um) crime de publicidade e calúnia, previsto no art.º 183.º, com ref. ao artigo 181.º, n.º 1 do C.P.”.
Na sequência, foi apresentada “acusação particular” com apresentação de questão prévia da prévia de onde se tira “Em 22 de julho de 2024, os Assistentes apresentaram queixa-crime contra (...) Alegaram, como não podiam deixar de o fazer os factos narrados na sua Queixa constituíam, pelo menos, a prática do crime de injúrias e de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, previstos e punidos nos artigos 181.º n.º 1, 182.º e 187.º, conjugado com os artigos 181.º, n.º 1, alínea a), e 184.º1, todos do Código Penal (...). Sucede que, ao contrário do que entendeu o MR com o devido respeito, no presente caso verificam-se precisamente as situações referidas nas alíneas a) e b), do n.º 1, do artigo 188.º do CP, porquanto (...)”.
Na mesma peça, se conclui, quanto á matéria penal, “(...) Pelo exposto, praticou o arguido (...), cinco de injúria, p. e p. pelos artigos 181.º n.º 1, 182.º, 183.º, n.º 1 alíneas a) e b), e n.º 2, e 184.º CP.”
E Na sequência da “acusação cautelar” dos assistentes foi proferido o seguinte despacho “Nos termos do disposto no artigo 285.º n.º 4 do CPP, o MP declara que acompanha a acusação particular deduzida.”
Em face do teor da queixa e requerimento apresentados pelos recorrentes é forçoso que concluir nem no despacho prévio à “acusação cautelar” pelos assistentes, nem posteriormente houve pronunciamento quanto à questão relevante com repercussão imediata sobre a marcha do processo e com incidência directa a possibilidade ou oportunidade de intervenção dos assistentes.
A dedução de acusação pelos assistentes em crimes públicos e semi-públicos, desacompanhados (da acusação) do Ministério Público, como é consabido, não pode proceder em face da sua ilegitimidade (artigos 69º /1 e 284º /1 do CPP).
A mera adesão do Ministério Público à acusação dos assistentes no caso de crime semi-público, em face da vacuidade do despacho anteriormente proferido quanto à questão em apreço, consubstancia a nulidade processual insanável prevista no artigo 119º /b) do CPP, sendo de conhecimento oficioso em qualquer fase do procedimento, como resulta do mesmo normativo.
Aliás, não podendo a acusação dos assistentes subsistir, manifestamente não se vê como poderia subsistir a mera declaração de adesão (já de si se nos afigura de legalidade duvidosa a modalidade de mera adesão, em face do disposto no artigo 285º /4 do CPP, segundo o qual, nos crimes particulares, Ministério Público poderá “acusar” pelos mesmo factos) do Ministério Público à acusação de que, à priori, se cria (ainda que infundadamente) dependente.
É que a ausência de despacho em sentido material em que se traduz o não pronunciamento quanto à questão de direito suscitada impede os assistentes de agirem por si, na medida dos direitos processuais que o Código de Processo Penal lhes atribui, isto é, in casu: de requerer a abertura de instrução ou de formalmente requererem a intervenção hierárquica no âmbito do Ministério Público por falta do pressuposto legal (cfr. artigos 278º e 287º /1 do CPP).
Por outro lado, dir-se-á que o presente recurso não perde utilidade (e daí o interesse em agir dos assistentes) pois o inquérito autónomo resultante da certidão extraída, pese embora a razão de ser que a determinou, não é o remédio para crise processual verificada e não estará imune, designadamente às vicissitudes e consequências emergentes do decurso do tempo sobre os actos processuais que necessariamente deverão ser renovados.
Por outro lado ainda, SMO, a declaração da nulidade processual evidenciada por parte do juiz do julgamento ao abrigo do artigo 311º /1 do CPP, não fere o incontestado princípio do acusatório, basilar no nosso ordenamento processual penal (cf. artigo 32º /5 da CRP), não torna o juiz julgador num juiz simultaneamente investigador pois não se trata de imiscuir na investigação, na prova produzida ou a produzir, em matéria indiciária, ou nas opções que caibam ao Ministério Público no âmbito da sua esfera de acção e poderes de investigação ou de decisão discricionária. Assim, tão-pouco contende com a sua autonomia constitucional e estatutariamente consagrada (cf. artigos 219º da CRP e 2º do Estatuto do Ministério Público). De resto, a mesma reparação oficiosa estava ao alcance do Ministério Público dado o horizonte temporal (“em qualquer fase do procedimento”) estabelecido no artigo 119º do CPP (cfr. Código de Processo Penal Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, Coimbra Editora, 2009, pág. 305). Trata-se simplesmente de assegurar a regularidade “externa” do processo nos termos legalmente previstos (artigo 311º /1 a 3 do CPP), sob pena de mal se entender o alcance das disposições em matéria de nulidades processuais que vêm de ser referidas que incidem sobre o procedimento.
O remédio para a evidenciada crise processual passará, não pela solução encontrada, conducente ao mero arquivamento dos autos, ainda que com extracção de certidão para novo inquérito, mas o suprimento da nulidade pela anulação dos actos nulos e a retoma do processado devidamente saneado (cf. assim também, ob. cit. CPP, pág. 306).
Como resulta do artigo 122º, o acto inválido afecta todos os dele dependentes e que por ele possam ser afectados, devendo todos estes serem como tal declarados e ressalvados os que puderem ser aproveitados.
Em face do exposto, afigura-se-nos assistir razão aos assistentes e declarada a nulidade processual detectada, revogando-se o(s) despacho(s) impugnados(s) substituindo-se por outro determine o envio dos autos ao Ministério Público com vista à sua reparação, julgando procedente o recurso.
I.5. Da tramitação subsequente:
Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do C.P.P., nada foi acrescentado.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir.
II. Fundamentação:
II.1. Dos poderes de cognição do tribunal de recurso:
Está pacificamente aceite na doutrina (cfr., por exemplo, MESQUITA, Paulo Dá, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V, 2024, Livraria Almedina, pág. 217; POÇAS, Sérgio Gonçalves, in “Processo Penal – Quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto, Julgar, n.º 10, 2010, pág. 241; SILVA, Germano Marques da, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª edição, 2000, pág. 335) e jurisprudência (cfr., por exemplo, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-02-2024, processo n.º 105/18.1PAACB.S12) que, sem prejuízo do conhecimento oficioso de determinadas questões que obstem ao conhecimento do mérito do recurso (cfr., por exemplo, art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P.), são as conclusões que delimitam o seu objeto e âmbito, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19-10-1995, para fixação de jurisprudência, in Diário da República n.º 298, I Série A, de 28-12-1995, págs. 8211 e segs.3).
Na verdade, se o objeto do recurso constitui o assunto colocado à apreciação do tribunal de recurso e se das conclusões obrigatoriamente devem constar, se bem que resumidas, as razões do pedido (cfr. art.º 412.º, n.º 1, do C.P.P.) e, assim, os fundamentos de facto e de direito do recurso, necessariamente terão de ser as conclusões que identificam as questões que a motivação tenha antes dado corpo, de forma a agilizar o exercício do contraditório e a permitir que o tribunal de recurso identifique, com nitidez, as matérias a tratar.
II.2. Da questão a decidir:
A esta luz, a única questão a decidir é a de saber se o arquivamento do processo é o efeito decorrente da declaração da nulidade insanável de falta de promoção do processo por parte do Ministério Público, prevista no art.º 119.º al. b), do C.P.P., aquando do saneamento do processo nos termos do art.º 311.º, n.º 1, do C.P.P. (cfr. II.4.).
II.3. Ocorrências processuais com relevo para apreciar as questões objeto do recurso:
Ora, com relevo para o definido objeto do recurso, e resultante dos atos processuais a seguir assinalados, importa atentar no seguinte:
II.3.A. Da decisão recorrida de 26-05-2025 (cfr. ref.ª 57218973 de 26-05-2025):
É do seguinte teor do despacho proferido em 26-05-2025:
DESPACHO A QUE ALUDEM OS ARTS. 311º, 311º-A, 311-B DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Autuação correcta como processo comum da competência do TRIBUNAL SINGULAR.
O tribunal é competente.
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EXCEPÇÃO DE ILEGITIMIDADE:
Importa ter presente a seguinte factualidade:
1. Em 22.07.2024:
Foi apresentada queixa crime por AA e na qualidade de membros do ... por CC, DD, EE e FF (posteriormente constituídos na qualidade de Assistentes), contra GG ..., pelos factos ali elencados que os denunciantes qualificam como constituindo os elementos objectivos e subjectivos da prática por este de um crime de injúrias e de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, p.p. nos artigos 181, nº1, 182º e 187º, nº1 conjugados com os artigos 183º, nº1, al. a) e 184º, todos do Código Penal.
2. Em 31.01.2025:
a Digna magistrada do Ministério Público proferiu o despacho: “QUANTO AO CRIME DE PUBLICIDADE E CALÚNIA:
O crime de publicidade e calúnia, previsto no art.º 183.º, com ref. ao artigo 181.º, n.º 1 do C.P, é um crime particular, estando o procedimento criminal dependente não apenas de queixa mas também de acusação particular – cf. art.º 188, n.º 1 do C.P.
No que respeita aos crimes particulares, determina o art.º 285º nº1 do Código de Processo Penal que "findo o inquérito, quando o procedimento depender de acusação particular, o Ministério Público notifica o assistente para que este deduza em 10 dias, querendo, acusação particular", acrescentando o nº2 que "o Ministério Público indica, na notificação prevista no número anterior, se foram recolhidos indícios suficientes da verificação do crime e de quem foram os seus agentes".
“Nos crimes particulares, mesmo que pessoalmente entenda que os indícios são insuficientes ou que essa insuficiência seja óbvia para qualquer jurista mediano, o magistrado do Ministério Público não pode arquivar o inquérito. Os crimes particulares são uma excepção ao principio da oficialidade (...).” – neste sentido João Conde Correia, in Questões Práticas relativas ao arquivamento e à acusação e à sua impugnação, publicações Universidade Católica.
Acrescenta ainda que: “Nestas situações concluída a investigação, o Ministério Público tem, como aliás resulta claramente da lei, de dar cumprimento ao disposto no art.º 285, n.º 1 do C.P.P., notificando o assistente para querendo, deduzir acusação particular.
Assim sendo, mesmo no caso dos presentes autos em que se entende pela existência da prática por parte dos arguidos de um crime de publicidade e calúnia praticado na pessoa da Assistente, pelo que se torna necessário dar cumprimento ao disposto no art.º 285. n.º 1 do C.P.P.
***
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Como tal, com cópia do presente despacho, notifique a assistente, para, conforme dispõe o art. 285º nº1 do Código de Processo Penal, deduzir, querendo, acusação particular, num prazo de 10 dias, sendo certo que o Ministério Público considera existirem factos que configurem a prática de 1 (um) crime de publicidade e calúnia, previsto no art.º 183.º, com ref. ao artigo 181.º, n.º 1 do C.P.”
3. A 21.02.2025:
Vieram os assistentes na sequência daquela notificação deduzir acusação particular e a assistente AA pedido civil, contra o arguido/(demandado, imputando-lhe a pratica de no que diz respeito aos membros do C.A. cinco crimes de injúria, p. e p. pelos artigos 181º, nº1, 182.",183.º, nº1 alíneas a) e b), nº 2, e 184º do CP, e no que diz respeito à AA, um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, p. e p. pelo artigo 187.", nos 1 e 2, alínea a), e 183º, nº 1, alíneas a) e b), e n.º 2, do CP.
Começam por invocar o que denominam de questão prévia, alegando em suma que apresentaram queixa crime contra o arguido alegando os factos que constituíam, pelo menos, a prática do crime de injúrias e de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, previstos e punidos nos artigos 181º, nº1, 182." e187.", nº1, conjugado com os artigos 183º, nº1, alínea a), e 184º, todos do Código Penal cujo procedimento criminal não depende de acusação particular por se situar nas excepções previstas nas al. a) e b) do nº1 do artigo 188º do Código Penal por ser a AA uma empresa pública regional que exerce poderes e sendo os restantes assistentes, funcionários no exercício de poderes de autoridade pública, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 132º, n." 2, alínea l), e 386.", n.1 alínea 8), e nº 2, do CP, pelo que a prossecução do procedimento criminal está dependente da apresentação de Queixa, e não também de acusação particular.
Mais referem os assistentes que deduzem a presente acusação particular à cautela, requerendo expressamente a tomada de posição do Ministério Público, com vista à prolação do competente despacho de acusação pública, tomando como base todos os factos e crimes indiciados nos presentes autos e na acusação particular relatados.
4. Em 21.02.2025:[4]
a Digna magistrada do Ministério Público lavra o despacho seguinte: “Remetam-se os autos à distribuição.”
5. Em 09.04.25:
a Digna magistrada do Ministério Público, proferiu, o seguinte despacho.
“(…) Nos termos do disposto no artigo 285.º n.º 4 do CPP, o MP declara que acompanha a acusação particular deduzida.”
6. E por fim, a Digna magistrada do Ministério Público a 16.05.2025:
“Uma vez que se encontram decorridos os prazos legais previstos nos termos do disposto nos artigos 278.º e 287.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, REMETA os presentes autos à distribuição como Processo Comum para julgamento perante Tribunal Singular.”
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A legitimidade para o exercício da acção penal, enquanto pressuposto processual, constitui uma condição de procedibilidade e da sua verificação ou existência depende a possibilidade de conhecimento do mérito ou fundo da causa. Em matéria de legitimidade para o exercício da acção penal a regra é a de que ela cabe, em princípio, ao Ministério Público, enquanto titular da acção penal – art. 48.º do Código de Processo Penal, de onde resulta que quaisquer outras entidades carecem de legitimidade para, autonomamente e por si só, promoverem o procedimento criminal.
As excepções a esta regra são apenas aquelas que, taxativamente, se prevêem na lei, nomeadamente no art. 49.º (relativamente aos crimes semi-públicos) e 50.º (relativamente aos crimes particulares), ambos do Código de Processo Penal.
Assim, quanto aos crimes semi-públicos apenas se exige que os titulares do direito de queixa (sob o ponto de vista do direito substantivo), exerçam, oportuna e formalmente esse direito. A legitimidade do Ministério Público para promover os termos ulteriores do processo (incluindo a acusação) fica, assim, assegurada. Em suma, nestes crimes, a legitimidade para deduzir acusação pertence apenas e exclusivamente ao Ministério Público (salvaguardando a faculdade conferida ao assistente pelo art. 284.º, n.º 1 do Código de Processo Penal).
No que respeita à “dedução de acusação por adesão” respeita ela às entidades que, embora podendo também deduzir acusação, o fazem depois e na total dependência da acusação deduzida por quem tem legitimidade para tanto, o que ocorre em relação ao assistente, relativamente aos crimes públicos e semi-públicos pelos quais o Ministério Público tenha deduzido acusação – art. 284.º do Código de Processo Penal. da mesma forma nos casos de crimes particulares, em que o Ministério Público não tem legitimidade para, por sua iniciativa, deduzir acusação, também o assistente não tem legitimidade para, independentemente da iniciativa processual do Ministério Público, introduzir a matéria do crime semi-público em julgamento.
Ora, nos processos em que estão em causa crimes de natureza pública ou semi-pública (com a respectiva apresentação de queixa), depois de realizadas as necessárias diligências de prova, o Ministério Público:
- Deduz despacho de arquivamento se se verificarem os pressupostos do artigo 277º, do Código de Processo Penal.
- Ou deduz acusação se se verificarem os pressupostos do artigo 283º, do Código de Processo Penal.
Nos processos em que estão em causa crimes de natureza particular, ou seja, quando o procedimento depender de acusação particular, o Ministério Público notifica o assistente para que este deduza em 10 dias, querendo, acusação particular - artigo 285º, nº1, do Código de Processo Penal e nesta notificação, o Ministério Público indica ainda, se foram recolhidos indícios suficientes da verificação do crime e de quem foram os seus agentes - nº 2 do mesmo preceito.
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No caso que ora nos ocupa, do requerimento de acusação particular apresentado pelos assistentes, constam factos que eles consideram integrarem a prática de crimes de injúrias agravadas, p. e p. pelos artigos 181º, nº1, 182.",183.º, nº1 alíneas a) e b), nº 2, e 184º do Código Penal, e crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, p. e p. pelo artigo 187.", nos 1 e 2, alínea a), e 183º, nº 1, alíneas a) e b), e n.º 2, do Código Penal.
Ora, na visão dos assistentes, qualquer um destes crimes reveste natureza semi-pública, e não particular, pois que quanto aos crimes de injúrias são agravados se a vítima for uma das pessoas elencadas no art. 132.º, al. l) do Código Penal no exercício das suas funções ou por causa delas, tal como decorre do art. 184.º do Código Penal, como é o caso, pelo que de acordo com o art. 188.º do Código Penal “o procedimento criminal pelos crimes previstos no presente capítulo depende de acusação particular”, ressalvando-se, porém, duas excepções, entre as quais os casos previstos no art. 184.º e 187º do Código Penal, sempre que o ofendido exerça autoridade pública, em que o procedimento criminal revestirá natureza semi-pública.
E não se diga que os assistentes se limitaram a obedecer ao despacho proferido pelo Ministério Público, pois cabia-lhes, como conhecedores do direito devidamente representado por Il causídico, contrariá-lo com os meios processuais penais colocados ao seu dispor.
Na verdade, na queixa apresentada pelos assistentes, narram os factos e concluem pela qualificação dos mesmos de um crime de injúrias e de um crime ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, p.p. nos artigos 181, nº1, 182º e 187º, nº1 conjugados com os artigos 183º, nº1, al. a) e 184º, todos do Código Penal.
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O Ministério Público, não veio aclarar a sua posição, nomeadamente quanto à sua discordância sobre a qualificação jurídica da factualidade vertida na queixa apresentada, limitando-se, estranhamente, a referir no seu despacho que entende existirem indícios da pratica pelo arguido de 1 (um) crime de publicidade e calúnia, previsto no art.º 183.º, com ref. Ao artigo 181.º, n.º 1 do C.P. (sic)
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Perante a posição processual do Ministério Público face à qualificação jurídica deste pretenso crime de publicidade e calúnia, previsto no art.º 183.º, com ref. ao artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal, competia aos assistentes, não se conformando com esta posição quanto à qualificação do eventual crime de publicidade e calúnia, requerer a abertura da instrução tendo em vista a sua integração noutros tipos legais (nomeadamente naqueles pelos quais deduziu acusação particular) ou suscitar intervenção hierárquica.
Poderiam ainda em alternativa, deduzir acusação particular, mas tão-somente pelos crimes de natureza particular que entendessem.
Efectivamente, se os assistentes - na sequência da notificação efectuada pelo Ministério Público - entendessem que dos autos resultavam indícios da prática de crimes semi-públicos, o caminho que deveriam ter seguido era o de requererem a abertura de instrução, nos termos do Artº 287º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal.
Mas os assistentes tomaram opção diversa: deduziram acusação particular por crimes que, segundo a sua própria qualificação ou integração jurídica, tem a natureza de crime semipúblico (cinco crimes de injúria, p. e p. pelos artigos 181º, nº1, 182.",183.º, nº1 alíneas a) e b), nº 2, e 184º do CP, e um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, p. e p. pelo artigo 187.", nos 1 e 2, alínea a), e 183º, nº 1, alíneas a) e b), e n.º 2, do Código Penal).
Era exactamente isto que não poderiam fazer: substituir-se ao Ministério Público e deduzirem eles a acusação, pois que tal atribuição está conferida em exclusivo por lei, como aliás referem, ao Ministério Público. (veja-se neste sentido, o ac. do TRG de 14/01/2019 e do TRC de 08/02/2017, in www.dgsi.pt).
Ao fazê-lo, - como foi o caso- deduzindo acusação estando em causa crimes de natureza semi-pública, estavam a praticar um acto que só seria possível nos termos do Artº 284º do Código Processo Penal, ou seja, depois da notificação da acusação previamente deduzida pelo Ministério Público e, assim, também sem a necessária e prévia promoção processual penal, a que alude o Artº 48º do Código Processo Penal.
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Não podemos deixar de (voltar a) estranhar e referir que após a dedução da acusação particular, a Digna Magistrada do Ministério Público, tenha remetido os autos à distribuição… e posteriormente, ela que antes havia entendido que o crime que se perfilava no seu entender era o de publicidade e calúnia, veio então proferir despacho, declarando acompanhar a acusação particular apresentada pelos assistentes (por crimes de natureza semipública) e embora acompanhe, estranhamente, não se pronunciou nem referiu ter tomado conhecimento da questão prévia sugerida pelos assistentes (o que expressamente requereram).
Estamos perante uma situação de ilegitimidade da assistente, por falta de promoção do Ministério Público, o que configura nulidade insanável, nos termos expressamente previstos no Artº 119º, al. b), primeira parte, do Código Processo Penal, a qual deve ser conhecida oficiosamente e declarada em qualquer fase do procedimento, com as consequências determinadas no Artº 122º do Código Processo Penal (cfr., neste sentido, o acórdão de uniformização de jurisprudência do S.T.J. nº 1/2000, de 16/12/1999, in DR Iª Série A, nº 4, de 06/01/2000, bem como o Acórdão da Relação de Évora, de 26/02/2013, Proc. nº 143/09.5T3GDL-A.E1, in www.dgsi.pt.
Conclui-se assim e em suma, pela falta de legitimidade dos assistentes para dedução de acusação particular, na medida em que, revestindo aqueles crimes natureza semi-pública, apenas o Ministério Público estaria investido com legitimidade para prosseguir com a acção penal relativamente aos factos descritos na acusação, o que não sucedeu.
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Pelo exposto, por falta de legitimidade dos assistentes AA, CC, DD, EE e FF, para dedução de acusação particular, declaro verificada, ao abrigo do artigo 311º, nº1 do Código de Processo Penal, a nulidade insanável prevista no Artº 119º, al. b), primeira parte, do Código Processo Penal, o que obsta à apreciação do mérito da causa, não recebendo a acusação particular deduzida pelos assistentes.
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Custas na vertente criminal pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça pelo mínimo legal – art. 515.º, al. f) do Código de Processo Penal.
Declaro extinta a instância cível, por impossibilidade superveniente da lide – art. 277.º, al. e) do Código de Processo Civil.
Custas na vertente civil a cargo da demandante – arts. 4.º, al. n) a contrario do Regulamento das Custas Processuais (RCP) e art. 536.º, n.º 3 doCódigo de Processo Civil.
Notifique.
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Extraia cópia deste despacho e dê conhecimento à Exma. Coordenadora do Ministério Público da comarca da Madeira.
II.3.B. Do requerimento apresentado pelos assistentes em 02-06-2025 (cfr. ref.ª 6334470 de 02-06-2025):
No dia 02-06-2025, os assistentes “AA”, BB, CC, DD, EE e FF apresentaram um requerimento do seguinte teor:
“(…)
I. ENQUADRAMENTO
1. Em fevereiro de 2025, os aqui Assistentes foram notificados pelo Ministério Público («MP») para deduzirem acusação particular quanto ao “crime de publicidade e calúnia”, no prazo de 10 dias, “sendo certo que o Ministério Público considera existirem factos que configurem a prática de 1 (um) crime de publicidade e calúnia, previsto no art. 183.º, com referência ao artigo 181.º, n.º 1, do CP”.
2. Sem prejuízo do cumprimento desse prazo, o qual foi cumprido pelos Assistentes à cautela, no capítulo “questão prévia” da sua peça processual, apresentada em 19 de fevereiro de 2025, os Assistentes advertiram o MP de que a AA é uma empresa pública regional, sendo os demais Assistentes qualificados como “funcionários” para efeitos da lei penal.
3. Ora, assim sendo, sublinharam os Assistentes que tal circunstância determina, nos termos da lei, a qualificação dos crimes em causa como semipúblicos e não como particulares (cabendo a acusação ao MP), pelo que “deduzem a presente acusação particular à cautela, requerendo expressamente a tomada de posição do Ministério Público, com vista à prolação do competente despacho de acusação pública, tomando como base todos os factos e crimes indiciados nos presentes autos e na acusação particular relatados” (cfr. acusação particular apresentada e síntese que integra o despacho deste Tribunal de 26 de maio de 2026, pp. 3 e 4, com sublinhado nosso).
4. Na sequência, sem se pronunciar sobre a referida questão prévia — e sem proferir despacho de arquivamento do inquérito ou deduzir acusação pública —, o MP remeteu “os autos à distribuição” e declarou que “acompanha a acusação particular deduzida” (cfr. despacho do MP de 9 de abril de 2025).
5. Por sua vez, o Tribunal, recebidos os autos, pronunciou-se no despacho ora posto em crise, ao abrigo do disposto no artigo 311.º, n.º 1, do CPP, “sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa”.
6. Entendeu o Tribunal que o MP, ao contrário do que deveria, “não se pronunciou nem referiu ter tomado conhecimento da questão prévia sugerida pelos assistentes (o que expressamente requereram)” e que os Assistentes “substituir[am]-se ao Ministério Público e deduziram eles a acusação”, estando tal atribuição “conferida em exclusivo por lei, como referem, ao Ministério Público”,
7. Considerando, por conseguinte, que “estamos perante uma situação de ilegitimidade da assistente, por falta de promoção do Ministério Público, o que configura nulidade insanável, nos termos expressamente previstos no art. 119.º, al. b), primeira parte, do Código de Processo Penal (…) com as consequências determinadas no art. 122.º do Código de Processo Penal” (p. 8 do referido despacho).
8. Pelo que, a final, ao abrigo do disposto nos artigos 119.º, alínea b), e 311.º, n.º 1, do CPP, decidiu o Tribunal não conhecer do mérito da causa, não receber a acusação e declarar extinta a instância cível e ainda condenar os Assistentes/Demandante em custas.
9. Sucede, porém, que o referido despacho é irregular, nos termos do disposto no artigo 123.º, n.º 1, do CPP, pelos motivos, fundamentos e com as consequências que em diante se explanarão.
II. AIRREGULARIDADE DO DESPACHO PROFERIDO AO ABRIGO DO ARTIGO 311.º DO CPP
10. Confrontado com uma acusação particular deduzida à cautela, como visto, a qual foi remetida pelo MP à distribuição nos termos referidos, o Tribunal optou por declarar verificada uma nulidade insanável (artigo 119.º, alínea b), do CPP), bem sabendo que estamos, desde logo, perante uma questão controvertida na jurisprudência e na doutrina.
11. À parte da questão de saber se, de facto, o vício que decorre da falta de promoção do processo pelo MP é uma nulidade insanável ou uma mera irregularidade, certo é que o Tribunal foi perentório na adoção da tese de que, em casos como o presente, se está perante uma situação de ilegitimidade dos Assistentes,
12. O que configurou como nulidade insanável,
13. Porém, sem devidamente extrair as consequências a retirar da nulidade declarada.
14. Com efeito, o Tribunal reconhece — e bem — que as consequências da nulidade declarada (prevista no artigo 119.º, alínea b), do CPP) são “determinadas no art. 122.º do Código de Processo Penal” (p. 9 do despacho).
15. Não havendo dúvidas de que assim é: “o vício torna-se assim, insanável, i.e., insuscetível de aproveitamento, a tal ponto que todos os atos que dele dependam ficam afetados pelo mesmo vício (v. art. 122.º-1). O ato declarado nulo não gera quaisquer efeitos jurídicos”. Porém, “[t]al não significa que não deva ser repetido para correção e convalidação, se tal ainda for possível e julgado de interesse. O limite é o trânsito em julgado da decisão”2.
16. Isto é, em clara contradição com o regime aplicado, constante do citado artigo 122.º do CPP —, o Tribunal não determinou, como se imporia, as consequências da referida declaração de nulidade.
17. Efetivamente, quer se retire do despacho que o Tribunal entende que o presente processo deve ser arquivado ou que simplesmente se absteve de ordenar a repetição do ato inválido— concretamente, por via da remessa dos auto ao serviço do MP para efeitos de dedução de acusação pública —, certo é que, em ambos os cenários, o tribunal violou o artigo 122.º do CPP.
18. É que o artigo 122.º do CPP dispõe que “as nulidades tornam inválido o ato em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afetar” (n.º 1), mas também que “a declaração de nulidade determina quais os atos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição, pondo as despesas respetivas a cargo do arguido, do assistente ou das partes civis que tenham dado causa, culposamente, à nulidade” (n.º 2), “aproveita[ando] todos os atos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela” (n.º 3).
19. Sucede que, sobre as consequências do ato inválido, não existe qualquer controvérsia (nem na doutrina, nem na jurisprudência).
20. Sem hesitar, a jurisprudência tem entendido que “a repetição do ato é, em regra, o modo de ultrapassar a nulidade, como decorre do disposto no artigo 122º, nº 2 do Código de Processo Penal”3.
21. De igual modo, refere GAMA LOBO, a propósito do artigo 122.º,“em obediência a princípios de celeridade, economia e de máximo aproveitamento dos atos processuais, deve (…) ordenar-se a sua [dos atos declarados nulos] repetição corrigindo-se os vícios, aproveitando-se tudo o que puder ser aproveitado”4.
22. SANDRA OLIVEIRA E SILVA e PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE sublinham, a propósito do artigo 311.º, n.º 1, do CPP, que “os efeitos da declaração destas nulidades são os previstos no artigo 122.º, implicando, caso se mostre necessária a repetição de algum ato, o regresso dos autos aos serviços do MP para suprimento do vício5.
23. Mas mais, num caso em tudo similar ao presente, o Tribunal da Relação de Guimarães entendeu que “instaurado inquérito por crime de natureza semipública, ocorre a nulidade insanável do art. 119 al. c) do CPP se o Ministério Público encerrar o inquérito, determinando a notificação do assistente para deduzir acusação particular e, posteriormente, limitar-se a acompanhar o impulso processual do assistente”, e que, “constatada a existência de tal nulidade, não deve o juiz rejeitar a acusação particular e decidir o arquivamento dos autos, mas declarar a nulidade do despacho de encerramento do inquérito e do processado subsequente e determinar que o processo regresse aos serviços do Ministério Público para que seja suprido o vício6.
24. Em suma, em cumprimento com o disposto no artigo 122.º, n.º 2, do CPP, o Tribunal deveria ter ordenado, expressamente, que o MP deduzisse acusação pública, dado que aderiu à acusação cautelarmente deduzida, desse modo suprindo a falta de promoção processual.
25. Ao não o ter feito, o despacho é irregular nos termos do disposto no artigo 123.º, n.º 1, do CPP, igualmente com as consequências previstas no artigo 122.º do CPP, devendo ser substituído por outro que determine, sem margem para dúvidas, que o processo deve regressar aos serviços do MP para que seja suprido o vício da falta de promoção do processo, revertida a condenação em custas e, bem assim, a extinção da instância cível e as custas na vertente cível.
26. Aliás, a interpretação conjugada dos artigos 119.º, alínea b), 122.º e 311.º, n.º 1, do CPP, no sentido de que, constatada a existência de nulidade insanável, por falta de promoção do processo pelo MP, deve o juiz rejeitar a acusação particular e decidir o arquivamento dos autos, é inconstitucional por violação, designadamente, do princípio do processo justo e equitativo (artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição).
27. E mesmo que assim não fosse, como referido, os Assistentes requereram, a título de “questão prévia” à dedução da sua acusação particular, a tomada de posição do MP, com vista à prolação do competente despacho de acusação pública, e, mesmo assim, o MP, não se pronunciou sobre essa questão prévia, não deduziu acusação pública, nem proferiu despacho de arquivamento, tendo-se limitado a aderir à acusação particular e a remeter os autos à distribuição.
28. A este propósito, o acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ n.º 1/2000, de 16 de dezembro de 1999 (p. 5), citado no despacho deste Tribunal, entende que, em face da notificação indevida para efeitos de dedução de acusação particular, deve o Assistente “arguir, perante o próprio agente do Ministério Público que ordenou a notificação, a omissão da acusação”, o que os aqui Assistentes fizeram.
29. Sucede que também a omissão de pronúncia do MP sobre a referida questão prévia consubstancia quer uma nulidade por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios (o cumprimento dos artigos 48.º e 283.º do CPP), nos termos do disposto no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP, a qual foi arguida em tempo na referida questão prévia suscitada pelos Assistentes na sua acusação particular,
30. Quer uma irregularidade, prevista no artigo 123.º, n.º 2, do CPP, que afeta o valor do ato praticado e põe em causa “em grau elevado, princípios estruturantes do processo ou direitos fundamentais”7, como seja o princípio da intervenção do ofendido no processo penal e as garantias de defesa do arguido (artigo 32.º, n.ºs 1 e 7, da Constituição).
31. Ao não conhecer dos referidos vícios (a nulidade invocada em tempo e a irregularidade que deveria ter sido conhecida oficiosamente), o despacho deste Tribunal proferido em 26 de maio de 2025 é também irregular, ao abrigo do disposto no artigo 123.º, n.º 1, do CPP, o que também aqui se argúi, com as devidas e legais consequências (incluindo a remessa ao MP para pronúncia sobre a questão prévia suscitada em tempo, por via da aplicação do artigo 122.º do CPP).
32. Por fim, diga-se que, ao contrário do que entende o despacho proferido por este Tribunal — nos termos do qual “competia aos assistentes, não se conformando com esta posição quanto à qualificação do eventual crime de publicidade e calúnia requerer a abertura da instrução (…) ou suscitar intervenção hierárquica” (p. 7 do despacho) —, nem o requerimento de abertura da instrução, nem a intervenção hierárquica se apresentavam como efetivas vias de reação ao despacho que notificou os Assistentes para deduzirem acusação particular.
33. Quanto à intervenção hierárquica, seria notória a falta de legitimidade e de interesse em agir dos Assistentes, porquanto não foi proferido nos presentes autos qualquer despacho de arquivamento.
34. Neste sentido, JOÃO PAULO BICHÃO e PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE notam que “sendo notificado nos termos do artigo 285.º, n.º 1, o assistente deve reclamar hierarquicamente do despacho de arquivamento do inquérito quando os elementos de prova existentes no inquérito são insuficientes para o assistente deduzir a acusação particular. Tratando-se de crime público ou semipúblico, o assistente deve reclamar hierarquicamente do despacho de arquivamento do inquérito quando os elementos de prova existentes são insuficientes para ele requerer a abertura da instrução quanto a estes crimes”8.
35. E nenhuma dessas situações se verificou nos presentes autos, faltando, desde logo, um despacho de arquivamento dos autos proferido pelo MP.
36. De igual modo, para que a via do requerimento de abertura da instrução se apresentasse como uma efetiva hipótese de reação (e para que a instrução não fosse inadmissível, ao abrigo do artigo 287.º, n.º 3, do CPP) teriam os Assistentes de ter sido confrontados com a dedução de um despacho de arquivamento proferido pelo MP — “a abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento” (artigo 287.º, n.º 1, do CPP).
37. A este propósito, veja-se ainda, num caso semelhante ao presente, no qual o MP não notificou o assistente para deduzir acusação particular (mas onde, ao contrário do que aqui sucedeu, havia inclusivamente sido proferido despacho de arquivamento), a decisão irrepreensível do Tribunal da Relação do Porto, decidindo que o requerimento de abertura da instrução não é admissível para “conhecer da questão suscitada: não cumprimento pelo MP do disposto no artº 285º1 CPP”.
38. Para esse Tribunal, o que há a fazer é “declarar nulo o despacho de arquivamento e todos os subsequentes, incluindo o despacho sob recurso e determinar a repetição do despacho de encerramento do inquérito em ordem além do mais a que se seja cumprido o disposto no artº 285º CPP omitido, que impediu o assistente de acusar pelo crime particular denunciado”9.
39. Nestes termos, a interpretação conjugada dos artigos 119.º, alínea b), 122.º e 311.º, n.º 1, do CPP, no sentido de que o assistente deve requerer a abertura da instrução ou a intervenção hierárquica, sob pena do arquivamento dos autos, perante uma situação em que, em face da notificação do MP para deduzir acusação particular, o assistente requereu expressamente a tomada de posição do Ministério Público, com vista à prolação do competente despacho de acusação pública, e, mesmo assim, o MP, não se pronunciou sobre essa questão prévia, não deduziu acusação pública, nem proferiu despacho de arquivamento, tendo-se limitado a aderir à acusação particular e a remeter os autos à distribuição, é inconstitucional por violação do princípio da intervenção do ofendido no processo penal10 e por violação das garantias de defesa do arguido (artigo 32.º, n.ºs 1 e 7, da Constituição).
Assim,
40. Ante todo o exposto, deve ser declarada a irregularidade do despacho proferido por este Tribunal ao abrigo do artigo 311.º, n.º 1, do CPP, porquanto foi indevidamente omitida a necessária remessa dos autos ao MP, a qual se impunha nos termos vistos, com vista a que o MP possa, querendo, deduzir acusação pública, e sanando também desse modo a omissão de pronúncia sobre a questão prévia suscitada, em tempo e em primeiro lugar, pelos ora Assistentes (cfr. artigos 123.º, n.º 1, e 122.º do CPP).
TERMOS EM QUE SE REQUER A V. EXA. SEJA DECLARADA, AO ABRIGO DO DISPOSTO NO ARTIGO 123.º, N.º 1, DO CPP, A IRREGULARIDADE DO DESPACHO PROFERIDO EM 26 DE MAIO DE 2025 POR ESTE TRIBUNAL, O QUAL DEVERÁ SER REVOGADO E SUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE DETERMINE, INEQUIVOCAMENTE ATENTOS OS FUNDAMENTOS EXPOSTOS:
i) A REMESSA DOS AUTOS AO MP PARA QUE SEJA DEDUZIDA ACUSAÇÃO PÚBLICA;
E, CONSEQUENTEMENTE,
ii) A REVERSÃO DA CONDENAÇÃO EM CUSTAS DOS ASSISTENTES E, BEM ASSIM, A REVERSÃO DA EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA CÍVEL E DA CONDENAÇÃO EM CUSTAS NA VERTENTE CÍVEL DA DEMANDANTE.
2 Cfr. FERNANDO GAMA LOBO., Código de Processo Penal Anotado, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2019, p. 196, em anotação ao artigo 119.º do CPP, com sublinhado nosso.
3 Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proc. n.º 145/20.0GEALM.L1-5, relator Sandro Oliveira Pinto, de 6 de fevereiro de 2025, disponível em https://www.dgsi.pt/
4 Cfr. FERNANDO GAMA LOBO., op. cit, p. 208, em anotação ao artigo 122.º do CPP.
5 Cfr. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE et all., Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, vol. II, 5.ª edição atualizada, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2023, p. 250, em anotação ao artigo 311.º do CPP.
6 Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proc. n.º 298/13.4TAVCT.G1, relator João Lee Ferreira, de 20 de janeiro de 2014, disponível em https://www.dgsi.pt/, com sublinhado e destaque nosso.
7 Cfr. FERNANDO GAMA LOBO., op. cit, p. 210, em anotação ao artigo 123.º do CPP.
8 Cfr. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE et all., op. cit, p. 166, em anotação ao artigo 278.º do CPP.
9 Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proc. n.º 11715/17.4T9PRT.P1, relator José Carreto, de 12 de maio de 2021, disponível em https://www.dgsi.pt/
10 Cfr. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição portuguesa Anotada, tomo I, 2.ª edição Coimbra, Coimbra Editora, 2010, p. 735, em anotação ao artigo 32.º da Constituição.
II.3.C. Da decisão recorrida de 13-06-2025 (cfr. ref.ª 57337666 de 13-06-2025):
Finalmente, é do seguinte teor o despacho proferido em 13-06-2025:
Vieram os assistentes requerer que seja declarada, ao abrigo do disposto no artigo 123.º, n.º 1, do código de Processo Penal, a irregularidade do despacho proferido em 26 de maio de 2025, o qual deverá ser revogado e substituído por outro que determine, a remessa dos autos ao Ministério Público para que seja deduzida acusação pública e consequentemente, a reversão da condenação em custas dos assistentes e, bem assim, a reversão da extinção da instância cível e da condenação em custas na vertente cível da demandante.
Com o devido respeito não lhes assiste razão.
Se é verdade que se poderá, eventualmente, entender que perante a notificação indevida para efeitos de dedução de acusação particular, deve o Assistente arguir, perante o próprio agente do Ministério Público que ordenou a notificação, a omissão da acusação, também resulta dos autos que aquela notificação não foi indevida pois que a magistrada do Ministério Público qualificou os indícios nos autos como consubstanciadores de crime para o qual não lhe assistia legitimidade para dedução de acusação, por de natureza particular.
Daí que não me cabia devolver os autos para, como pretendem os assistentes, ordenar que o Ministério Público suprisse os vícios anunciados pelos assistentes no requerimento agora em causa e deduzisse acusação pública (ele próprio entendeu não ter legitimidade), por desde logo isso contender com a estrutura acusatória do processo e a autonomia do Ministério Público.
Acresce que não vislumbro que o meu despacho, contra o qual se insurgem os assistentes, seja um acto ilegal e, portanto, traduza uma irregularidade (cfr. 118º, nº2 e 123º do Código de Processo Penal) ou que o seu teor contenha qualquer irregularidade que deva ser suprida, mantendo, portanto, toda a decisão pelos fundamentos ali enunciados.
II.3.D. Da extração de certidão e instauração de inquérito (cfr. ref.ªs 57366488 de 16-06-2025, 57385200 de 24-06-2025, 57465667 de 03-07-2025 e 6392392 de 15-07-2025):
Na sequência da extração de certidão integral de todo o processado requerida pelo Ministério Público foi a mesma foi entregue no Departamento de Investigação e Ação Penal do Funchal e aí registada como inquérito, a que foi atribuído o n.º 1482/25.3T9FNC, pela prática do crime de injúria agravada, tendo em vista a reapreciação da queixa com eventual dedução de nova acusação sem as nulidades detetadas.
II.4. Da apreciação da questão objeto do recurso (cfr. II.2.):
A decisão recorrida proferida em 26-05-2025 (cfr. II.3.A.) declarou verificada a nulidade insanável prevista no art.º 119.º, al. b), do C.P.P., circunstância com que os recorrentes se conformaram e não questionam no recurso em apreço.
Ora, dispõe o citado preceito legal que:
Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:
(…)
b) A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º (…)”
Por sua vez, dispõe o art.º 48.º do C.P.P. que:
O Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49.º a 52.º
Por seu turno, o primeiro dos referidos preceitos legais diz respeito à legitimidade em procedimento dependente de queixa, estipulando o n.º 1 que:
1 - Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas deem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.
Já o referido art.º 50.º do C.P.P. diz respeito à legitimidade em procedimento dependente de acusação particular, sendo que o seu n.º 1 prescreve que:
1 - Quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular.
Ora, por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2000, de 16-12-1999, in Diário da República, I Série – A, n.º 4, de 06-01-2000, págs. 45 a 495, foi fixada a seguinte jurisprudência:
Integra a nulidade insanável da alínea b) do artigo 119.º do Código de Processo Penal a adesão posterior do Ministério Público à acusação deduzida pelo assistente relativa a crimes de natureza pública ou semipública e fora do caso previsto no artigo 284.º, n.º 1, do mesmo diploma legal.
Por outro lado, dispõe também a lei de processo que recebidos os autos no tribunal, no saneamento do processo, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer (cfr. art.º 311.º, n.º 1, do C.P.P.).
O desacordo é apenas quanto ao efeito decorrente da declaração referida nulidade.
No entanto, e quanto a isso, dispõe o art.º 122.º do C.P.P. que:
1 - As nulidades tornam inválido o ato em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afetar.
2 - A declaração de nulidade determina quais os atos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição, pondo as despesas respetivas a cargo do arguido, do assistente ou das partes civis que tenham dado causa, culposamente, à nulidade.
3 - Ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os atos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela.
A declaração de nulidade de um ato processual reconhece que o ato processual em causa era inválido e destrói os efeitos processuais que, apesar de tudo, ele tenha produzido, desta forma restaurando a irrepreensibilidade e legalidade do rito processual (cfr. CORREIA, João Conde, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, Almedina, 2019, pág. 1280).
A invalidade original, que decorre da divergência do ato, de facto, praticado, e o que deveria ser praticado, de acordo com o modelo legal, afeta a sua própria validade jurídica.
Ora, consistindo o fundamento da nulidade declarada nos autos no não exercício da ação penal pelo Ministério Público, o vício no rito processual ocorreu no despacho de encerramento do inquérito pelo qual a magistrada do Ministério Público decidiu encerrar o inquérito, determinando a notificação dos assistentes para deduzirem acusação particular.
Contudo, do regime do regime estabelecido no art.º 122.º do C.P.P. decorre que a invalidade original desse ato deriva, expande-se ou comunica-se aos atos subsequentes que daquele dependem e possam ser afetados pela invalidade daquele, razão pela qual aquele preceito legal estabelece que o juiz, uma vez declarada a invalidade, determina os atos em concreto inválidos e os atos ineficazes originária e subsequentemente, bem como a repetição, se necessária e possível, de alguns desses atos e, por último, aproveita os atos que ainda puderem ser salvos do efeito do ato inválido (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 192/2001, de 08-05-20016).
Não basta, assim, que o ato seja cronologicamente posterior ao ato declarado nulo, tendo este que ser a premissa lógica e jurídica daquele. Contudo, é também necessário que os efeitos do próprio ato subsequente possam ser questionados. Assim, a invalidade derivada só ocorre relativamente aos atos subsequentes ao ato declarado nulo que dele dependam, mas que tenham sido afetados por aquele. Desta forma, para a invalidade derivada exige-se que se verifiquem os dois requisitos (dependência e afetação) cumulativamente, pois um ato pode ser dependente do ato declarado nulo e não ter sido afetado e ter sido afetado, mas não ser dependente daquele (cfr. CORREIA, João Conde, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, Almedina, 2019, pág. 1282).
Assim, perante a referida nulidade, impunha-se declarar inválida a acusação particular deduzida, o que foi feito pelo tribunal recorrido.
Acresce que, por definição, se a única acusação deduzida não é válida, daí necessariamente decorre ficar a “adesão” do Ministério Público àquela sem o mínimo suporte, indispensável para que se constitua a relação jurídica processual-penal, o que forçosamente também a torna inválida.
No entanto, o legislador, preocupado com questões de economia processual, procurou circunscrever os efeitos da declaração de nulidade do ato processual, reduzindo-os ao mínimo indispensável para repor a legalidade processual.
Assim, detetado tal vício quanto à forma dos atos processuais praticados quanto à totalidade dos factos denunciados, mantendo-se válidos todos os demais até então praticados, os autos terão que retomar à fase de inquérito, para que possa ser suprido o vício (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 20-01-2014, processo n.º 298/13.4TAVCT.G17; LATAS, António, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, Almedina, 2022, pág. 40).
Convém ter presente que a situação só aparentemente se assemelha com a subjacente ao acórdão do Tribunal da relação de Guimarães, de 20-03-2023, processo n.º 1466/21.0PBBRG.G18, referido pelo Ministério Público, na resposta ao recurso interposto. Na verdade, aí a referida nulidade apenas se verificava em relação a parte dos factos denunciados, tendo sido ordenada a extração de certidão do processado e a sua remessa aos serviços do Ministério Público para ser suprido o vício quanto a essa parte, prosseguindo os autos na parte restante, não afetada por aquela. Contudo, trata-se de uma solução que nem sequer é unanime na jurisprudência dos tribunais superiores (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 04-06-2025, processo n.º 3139/24.3S3LSB.L1-39).
Segundo o tribunal recorrido não lhe cabia devolver os autos aos serviços do Ministério Público por isso contender com a estrutura acusatória do processo e a autonomia do Ministério Público, argumento que o próprio Ministério Público aprofunda na resposta que apresentou ao recurso interposto, acrescentando que os juízes não têm a função de fiscalizar a atuação do Ministério Público em sede de inquérito que estava convicto, erradamente, que o crime em causa tinha natureza particular.
Afigura-se, contudo, tratar-se se um argumento falacioso. Na verdade, perante uma acusação particular deduzida pelos recorrentes, sem que alguma acusação tenha sido deduzida pelo Ministério Público, que apenas aderiu àquela, o tribunal recorrido só poderia considerar verificada a dita nulidade caso reconhecesse estar perante um crime público ou semipúblico e, assim, que o Ministério Público, ao não deduzir acusação, devendo fazê-lo, violou o dever de promover a ação penal imposto pelo arts. 48.º e 49.º do C.P.P., vício que não ficava sanado pela posterior acusação dos recorrentes a que o Ministério Público aderiu.
Na verdade, nos próprios termos da referida decisão recorrida é a falta de promoção do Ministério Público que determina a invalidade da acusação particular deduzida, por ser formulada por quem não tem legitimidade para a deduzir e, assim, forçosamente, por força da natureza dos crimes que considerou estarem em causa.
Por outro lado, a referida solução em nada colide com a estrutura acusatória do processo penal (cfr. art.º 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa – C.R.P.) e a autonomia do Ministério Público (cfr. art.º 219.º, n.º 2, da C.R.P.).
Na verdade, tendo precisamente em conta a estrutura acusatória do processo penal e o facto de que nele cabe ao Ministério Público o exercício da ação penal orientada pelo princípio da legalidade (cfr. art.º 219.º, n.º 1, da C.R.P.), a devolução dos autos ao Ministério Público, como não poderia deixar de ser, não vincula este a qualquer atitude processual futura por força do despacho judicial que declara verificada a referida nulidade, mantendo total autonomia para aquilatar quais os factos em causa, quais aqueles que considera suficientemente indiciados e, no caso de considerar que alguns o ficaram, qualificar juridicamente os mesmos, bem como, por último, decidir como encerrar o inquérito.
Assim, o procedimento será retomado pelo Ministério Público nos termos que a magistrada titular entender adequados.
É certo também que foi extraída certidão de todo o processado que deu origem a novo inquérito. Contudo, uma vez que a referida nulidade se refere à totalidade dos factos denunciados, estando, aparentemente, o inquérito aqui realizado ultimado, não havendo dúvidas que não há necessidade de repetir qualquer um dos atos processuais realizados até ao referido ato nulo, remeter a resolução para esse novo inquérito é absolutamente contrário às razões de economia processual ínsitas ao estipulado no art.º 122.º do C.P.P. Por outro lado, se é certo que se cabe ao Ministério Público exercer a ação penal, tal tem que ser orientado pelo princípio da legalidade e, assim, também pela observância da lei de processo (cfr. art.º 219.º, n.º 1, da C.R.P.).
Assim, aderindo ao parecer do Ministério Público, deve, pois, ser julgado procedente o recurso interposto, ordenando-se que, em consequência da declaração da nulidade insanável prevista no art.º 119.º, al. b), do C.P.P., os autos sejam devolvidos aos serviços do Ministério Público para que este possa suprir o vício verificado nos termos tidos por convenientes, nomeadamente, querendo, deduzindo acusação, com a subsequente notificação da mesma aos sujeitos processuais, aproveitando-se, nesse caso:
- O pedido de indemnização civil deduzido, competindo ao juiz de julgamento decidir em que medida, por ter sido formulado antes da acusação, o mesmo ultrapassa o objeto desta, podendo, no entanto, no novo prazo, a demandante deduzir outro em substituição daquele; e
- A distribuição, caso se mantenha a mesma forma de processo.
II.5. Das custas:
É devida taxa de justiça pelo assistente se decair, total ou parcialmente, em recurso que houver interposto (cfr. art.º 515.º, n.º 1, al. b), do C.P.P.).
Tendo os assistentes obtido provimento, não são devidas custas.
III. Decisão:
Julga-se totalmente procedente o recurso interposto pelos assistentes “AA”, BB, CC, DD, EE e FF e, mantendo-se o despacho recorrido de 26-05-2025 na parte em que declarou verificada a nulidade insanável prevista no art.º 119.º, al. b), 1.ª parte, do C.P.P. e inválida a acusação particular deduzida, revoga-se o mesmo na parte em que condenou o assistente em custas, determinou a extinção da instância cível e condenou a demandante em custas, bem como o despacho de 13-06-2025, que tal manteve, e, em sua substituição, em consequência daquela nulidade do despacho de encerramento do inquérito, ordena-se a devolução do processo aos serviços do Ministério Público para os fins tidos por convenientes, nomeadamente, para que este possa suprir o vício verificado nos termos em que entender, inclusivamente, querendo, deduzindo acusação, com a subsequente notificação da mesma aos sujeitos processuais, aproveitando-se, nesse caso, o pedido de indemnização civil deduzido, competindo ao juiz de julgamento decidir em que medida, por ter sido formulado antes da acusação, o mesmo ultrapassa o objeto desta, podendo, no entanto, no novo prazo, a demandante deduzir outro em substituição daquele, bem como a distribuição, caso se mantenha a mesma forma de processo.
Sem custas.
Comunique, de imediato, ao inquérito que corre termos no Departamento de Investigação e Ação Penal do Funchal sob n.º 1482/25.3T9FNC.

Lisboa, 02-12-2025
Pedro José Esteves de Brito
Ester Pacheco dos Santos
João Grilo Amaral
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1. https://julgar.pt/wp-content/uploads/2015/10/021-037-Recurso-mat%C3%A9ria-de-facto.pdf
2. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/458ff4110b557ba080258ac5002d2825?OpenDocument
3. https://files.dre.pt/1s/1995/12/298a00/82118213.pdf
4. Na verdade, foi em 27-02-2025 – ref.ª 56755865.
5. https://files.dre.pt/1s/2000/01/004a00/00450049.pdf
6. https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20010192.html
7. https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/53acb372973e410780257c8600343b2d?OpenDocument
8. https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/7ac44a3b84e0ba85802589880035e7aa?OpenDocument
9. https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/1a01541ae978786b80258cb600361594?OpenDocument