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ACUSAÇÃO
NARRAÇÃO DOS FACTOS
FURTO
VALOR DA COISA
REJEIÇÃO
Sumário
Sumário: 1 – A acusação deve conter os factos atinentes e subsumíveis aos elementos objetivos e subjetivos típicos do crime imputado, decorrendo tal exigência da estrutura acusatória do processo penal e garantias de defesa que ao arguido são conferidas nos termos do disposto no art. 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa. 2 – A indicação a que se refere a al. b), do n.º 3, do artigo 283.º, do Código de Processo Penal (narração dos factos) constitui elemento fundamental para garantia do direito de defesa do arguido, que só poderá ser efetivo com o adequado conhecimento dos factos imputados, das normas que integrem e das consequências sancionatórias que determinem. 3 – Não obstante a possibilidade da desqualificação do furto em razão do valor (art. 204.º, n.º 4 do CP), em caso de não ser possível quantificar o valor das coisas de que o arguido se pretendeu apropriar, tal, sem descaracterizar o objeto do processo, apenas se traduzirá num diferente enquadramento jurídico, a integrar em julgamento, não sendo a circunstância de a acusação não conter esse valor, por si só, fundamento de rejeição.
Texto Integral
Em conferência, acordam os Juízes na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
1. No Juízo Central Criminal de Lisboa – Juiz 5, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, a Mma. Juíza proferiu despacho no qual decidiu rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido AA.
2. Recurso Ministério Público
Inconformado com aquela decisão, veio o Ministério Público interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
1. O artigo 283º, n.° 3, do Código de Processo Penal, estipula que a acusação deduzida pelo Ministério Público, contém, sob pena de nulidade os requisitos constantes das alíneas a) e b), ou seja, as indicações tendentes à identificação do arguido e a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
2. Os pontos 1, 2, 3 e 7 da acusação correspondem a descrição de tal factualidade à prática de um crime de roubo, previsto e punível pelo artigo 210º, n.º 1, do Código Penal.
Já os pontos 4, 5, 6 e 8 espelham a prática, pelo arguido, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo artigo 143º, n.º 1, do Código Penal.
Ressalta a existência, relativamente aos pontos acima referidos, de duas resoluções criminosas, autónomas e distintas, com diferentes enquadramentos jurídicos que constam já da acusação e que tutelam bens jurídicos diversos.
Na verdade, quando o arguido actua do modo descrito nos pontos 4, 5 e 6, já tem na sua posse o telemóvel do ofendido BB e, via disso, pelo que já incorreu na prática do tipo legal previsto no artigo 210º, n.º 1 do Código Penal.
E, a partir desse momento, o arguido formula uma outra resolução criminosa, ou seja, quando o ofendido já se encontra em fuga, o arguido vai no seu encalço e desfere-lhe chapadas na face e efectua “uma manobra de imobilização comumente conhecida como “mata-leão”, pelo que quis e conseguiu ofender o corpo do ofendido BB, incorrendo, desta feita, na prática de um crime de ofensa à integridade física simples, prevista e punível pelo artigo 143º, n.º 1, do supra mencionado normativo legal.
Termos em que se conclui que, os factos descritos na acusação e acima descritos, integram os elementos, tanto objectivos como subjectivos, dos ilícitos roubo e ofensa à integridade física simples.
3. Quanto à factualidade integradoras de um crime de furto qualificado, na forma tentada, previsto e punível pelos artigos 22º, n.º 1, 23º, 203º, n.º 1 e 204º, n.º 2, alínea e), do Código Penal, se é certo que não consta da acusação a menção dos bens existentes no interior da tabacaria e respectivos valores, todavia, é mencionado o “arrombamento”, qualificativa que lhe é imputada.
Todavia, diversa qualificação jurídica, sempre poderá e deverá realizar-se após realização de audiência de discussão e julgamento, reportando-se tal a uma alteração não substancial de factos.
Entende-se, assim, que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, determinando-se o recebimento da acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido AA.
3. O arguido apresentou resposta, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida, mas sem formular conclusões.
4. Parecer
Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de dever ser dado provimento ao recurso, acompanhando e aderindo à argumentação oferecida pela Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª instância.
5. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (doravante designado CPP), não foi apresentada resposta.
6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Objeto do recurso
De acordo com o estatuído no art. 412.º do CPP e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem deve apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no art. 410.º n.º 2 CPP.
No caso concreto, conforme as conclusões da respetiva motivação, cumpre apreciar e decidir a seguinte questão:
• Da suficiência da acusação quanto à descrição da prática pelo arguido de um crime de roubo, de um crime de ofensa à integridade física simples e de um crime de furto qualificado na forma tentada, de molde à sua introdução em juízo.
2. Despacho recorrido.
É do seguinte teor o despacho recorrido (transcrição):
O Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum, e perante tribunal colectivo, de AA, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de roubo, na forma consumada, p. e p. pelo art. 210º, nº 1, do Código Penal, de um crime de ofensa à integridade física simples, na forma consumada, p. e p. pelo art. 143º, nº 1, do Código Penal, e de um crime de furto qualificado, na forma tentada, p. p. pelos art.s 22º, nº 1, 23º, 203º, nº 1, e 204º, nº 2, al. e), do Código Penal.
Da leitura da acusação, e no que tange ao crime de ofensa à integridade física simples, depreende-se que a factualidade subjacente a tal ilícito terá consistido no facto de o arguido ter puxado o telemóvel do bolso da camisa do ofendido BB, tendo-lhe apertado a mão, e, depois de o ter alcançado após a fuga do mesmo, lhe ter desferido chapadas na face e tentado imobilizá-lo através de um “mata-leão”. Mais refere a acusação que “o arguido quis fazer seu o telemóvel de BB, bem sabendo que atuava contra a vontade deste, representando e querendo usar a força contra a pessoa da ofendida, como meio instrumental e necessário para se apoderar do telemóvel, o que logrou. Agiu ainda com o firme propósito de ofender o corpo e o bem-estar físico de BB, o que efectivamente conseguiu.»
Ora, é inequívoco que a acusação confunde o preenchimento dos tipos objectivos dos crimes de ofensa à integridade física e roubo, pois que, ao mesmo tempo que afirma que o arguido quis fazer seu o telemóvel do ofendido, aduz que o uso da força física consistiu num meio “instrumental e necessário” para se apoderar de tal objecto. Na verdade, o tipo objectivo do crime de ofensa à integridade física simples consiste na lesão do corpo ou da saúde de outrem, devendo a intenção e vontade do agente ser dirigida à concretização de tal lesão.
Relativamente ao crime de roubo, são elementos constitutivos do tipo objectivo do ilícito a subtracção ou o constrangimento a que seja entregue coisa móvel alheia, mediante a utilização de violência contra uma pessoa, a ameaça com perigo iminente para a vida ou a integridade física ou a colocação da pessoa na impossibilidade de resistir. Face a estes dados prévios, é evidente que o crime de ofensa à integridade física simples imputado ao arguido não tem concretização factual no texto acusatório, não se mostrando tal concretização satisfeita com a asserção aí contida de que “agiu ainda com o firme propósito de ofender o corpo e o bem-estar físico de BB, o que efectivamente conseguiu”. Na verdade, é incompressível e até ininteligível que se alegue que o uso da força física contra o ofendido foi instrumental e necessário à apropriação do telemóvel deste e, ao mesmo tempo, que se sustente, sem mais, que o arguido agiu com o firme propósito de ofender o corpo e o bem-estar físico do ofendido, autonomizando esse propósito do intuito de se apoderar, através do emprego de violência, do objecto pertencente ao ofendido.
É evidente, pois, que inexistem factos narrados na acusação que permitam a integração do arguido no ilícito tipificado no art. 143º, nº 1, do Código Penal.
Por outro lado, quanto ao crime de furto qualificado imputado ao arguido, nenhuma referência é feita, na acusação, quanto ao valor dos bens e valores, existentes no interior do estabelecimento comercial, de que o arguido se pretendeu apropriar. Ora, a norma do n.º 4 do art.º 204.º do Código Penal consubstancia um contratipo, um pressuposto negativo da aplicação da norma incriminadora. Se o valor da coisa furtada não exceder o da unidade de conta “não chega sequer a preencher-se o tipo qualificador, remetendo-se o comportamento proibido para o tipo matricial” (José Faria Costa Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra 1999, pág. 87). Assim, para que alguém possa ser condenado por um crime de furto qualificado (no caso pela circunstância constante da al. e) do n.º 2) é não só necessário que se demonstrem os factos que integram a previsão da respetiva circunstância qualificativa, mas também que dos mesmos resulte que o valor dos objetos furtados é superior à UC. No caso em apreço, sendo a acusação totalmente omissão quanto ao valor dos bens e valores em causa, inexiste descrição factual que possibilite a recondução da conduta imputada ao arguido ao tipo qualificado constante da al. e) do nº 2 do art. 204º do Código Penal.
Dispõe o art. 311º, do Código de Processo Penal (C.P.P.), que:
«1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre nulidades ou outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2 – Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a. De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
(…)
3 – Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
(…)
b) Quando não contenha a narração dos factos.».
Ora, conforme se afirmou no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.02.2019, proferido no processo nº 8/16.4PASCR.L1-9, disponível em www.dgsi.pt, «a narração dos factos é, na sua essência, a descrição dos factos que integram os elementos objectivos e subjectivos de um crime, sem os quais o arguido não pode vir a ser condenado por algum crime em pena ou medida de segurança».
E na verdade, a omissão de descrição, na acusação, dos factos essenciais para a integração de determinado tipo de crime não pode ser colmatada ou suprida na fase de julgamento, conforme se decidiu no acórdão do STJ de fixação de jurisprudência nº 1/2015 (in DR de 27.01.2015): “A falta de descrição, na acusação, de elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzam no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade fáctica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrado, em julgamento, por recurso ao mecanismo do artº 358º do CPP”.
No caso em apreço, e conforme já se explicitou supra, os factos contantes da acusação não são aptos ao preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos dos tipos legais de crimes de ofensa à integridade física simples e de furto qualificado na forma tentada aí mencionados, pelo que, sendo a mesma manifestamente infundada, impõe-se a sua rejeição.
Por conseguinte, por manifestamente infundada, rejeito a acusação deduzida pelo Ministério Público, nos termos do disposto no art. 311º, nº 2, al. a), e nº 3, al. b), do CPP.
Sem custas.
Notifique.
3. Elementos relevantes
É do seguinte teor a acusação pública proferida nos autos (transcrição parcial):
(…)
1. No dia ... de ... de 2023, pelas 23h30m, o arguido, na ..., o arguido dirigiu-se a BB e CC, que se encontravam a sair de casa.
2. De seguida, meteu uma das suas mãos no bolso frontal da camisa de BB, e puxou o telemóvel que este ali tinha guardado, da marca …, modelo …, no valor de € 120,00 (cento e vinte euros).
3. Apercebendo-se da intenção do arguido, BB tentou segurar o telemóvel, no entanto aquele apertou a mão de BB, que, temendo pela sua integridade física, acabou por largar o telemóvel, e encetar fuga, na companhia de CC, sendo perseguidos pelo arguido.
4. Assim que o arguido alcançou BB começou a desferir-lhe chapadas na face, enquanto, com o outro braço, lhe tentava fazer uma manobra de imobilização comumente conhecida como “mata-leão”.
5. Neste momento, CC segurou os braços do arguido, o que permitiu a BB fugir.
6. Não obstante os esforços de CC em imobilizar o arguido, este conseguiu escapar, encetando nova perseguição a BB, que logrou esconder-se nas escadas de acesso ao metro da Alameda, evitando que aquele o encontrasse.
7. O arguido quis fazer seu o telemóvel de BB, bem sabendo que atuava contra a vontade deste, representando e querendo usar a força contra a pessoa da ofendida, como meio instrumental e necessário para se apoderar do telemóvel, o que logrou.
8. Agiu ainda com o firme propósito de ofender o corpo e o bem-estar físico de BB, o que efetivamente conseguiu.
9. No dia ... de ... de 2023, pelas 03h15m, o arguido dirigiu-se à tabacaria “...”, sita na ..., com o propósito de daí subtrair bens e valores.
10. Na concretização desse propósito, o arguido começou a levantar as grades de acesso à loja, que se encontravam fechadas, ma não trancadas, e acedeu ao pátio interior.
11. Aí chegado, começou a desferir pontapés no vidro da loja, com o intuito de o partir para aceder ao interior, o que apenas não logrou atenta a intervenção de transeuntes que impediram a ação do arguido, e o impediram de sair do pátio até à chegada da Polícia de Segurança Pública.
12. O arguido atuou com o objetivo de fazer seus, contra a vontade dos proprietários, bens e valores que estivessem dentro daquele estabelecimento comercial, acedendo sem autorização ao pátio interior, com intenção de partir o vidro e introduzir-se no interior, o que apenas não logrou por razões alheias à sua vontade.
13. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei.
Com as condutas acima descritas cometeu o arguido AA, dolosamente, em autoria material e em concurso efetivo:
i. Um crime de roubo, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal;
ii. Um crime de ofensa à integridade física simples, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal; e
iii. Um crime de furto qualificado, na forma tentada, p. e p.e pelos artigos 22.º, n.º 1, 23.º, 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, al. e), todos do Código Penal.
(…)
4. Apreciando
Formula o Digno recorrente pretensão no sentido de fazer introduzir em juízo a peça acusatória objeto de rejeição.
Vejamos.
A acusação foi rejeitada ao abrigo do disposto no art. 311.º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. b), do CPP, por se ter entendido que os factos dela constantes “não são aptos ao preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos dos tipos legais de crimes de ofensa à integridade física simples e de furto qualificado na forma tentada aí mencionados (…)”.
Porém, sendo certo mostrar-se o arguido igualmente acusado pela prática de um crime de roubo, nada diz o despacho recorrido quanto a este último ilícito, ficando pois por justificar a rejeição total da acusação, pois que a conclusão quanto à sua rejeição apenas se refere aos crimes de ofensa à integridade física simples e de furto qualificado na forma tentada.
De qualquer forma, sabemos que a acusação deverá conter os factos atinentes e subsumíveis aos elementos objetivos e subjetivos típicos do crime imputado, decorrendo tal exigência da estrutura acusatória do processo penal e garantias de defesa que ao arguido são conferidas nos termos do disposto no art. 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
Os factos aduzidos na acusação terão, pois, que ser suficientes para permitirem a subsunção jurídico-penal a ilícito penal típico, de modo a que se conclua que o agente cometeu o(s) crime(s) cuja norma jurídica se enuncia.
No que respeita à narração dos factos, preceitua a al. b), do n.º 3, do artigo 283.º, do Código de Processo Penal, que a acusação deve conter a “narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”.
Essa indicação constitui elemento fundamental para garantia do direito de defesa do arguido, que só poderá ser efetivo com o adequado conhecimento dos factos imputados, das normas que integrem e das consequências sancionatórias que determinem.
Ora, no caso dos autos é evidente que existem factos narrados na acusação que permitem a integração da conduta do arguido no ilícito tipificado no art. 210.º, n.º 1 do Código Penal, a saber, os pontos 1, 2, 3 e 7 dessa peça processual, pois que a descrição de tal factualidade corresponde à prática de um crime de roubo.
Já quanto ao mais, também nós identificamos, à semelhança do Ministério Público, uma segunda resolução criminosa, perfeitamente autónoma e distinta, descrita nos pontos 4, 5, 6 e 8 e que, a comprovar-se, traduz a prática pelo arguido de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal.
É que não é verdadeiro, ao contrário do referido pelo tribunal a quo, que a factualidade subjacente a tal ilícito terá consistido, para além do mais, no facto de o arguido ter puxado o telemóvel do bolso da camisa do ofendido BB, tendo-lhe apertado a mão, pois que isso ainda corresponde ao crime de roubo.
Ao invés, como bem faz notar o Digno recorrente, “quando o arguido atua do modo descrito nos pontos 4, 5 e 6, já tem na sua posse o telemóvel do ofendido BB e, via disso, pelo que já incorreu na prática do tipo legal previsto no artigo 210º, n.º 1 do Código Penal.
E, a partir desse momento, o arguido formula uma outra resolução criminosa, ou seja, quando o ofendido já se encontra em fuga, o arguido vai no seu encalço e desfere-lhe chapadas na face e efectua “uma manobra de imobilização comumente conhecida como “mata-leão”, pelo que quis e conseguiu ofender o corpo do ofendido BB, incorrendo, desta feita, na prática de um crime de ofensa à integridade física simples, prevista e punível pelo artigo 143º, n.º 1, do supra mencionado normativo legal.”
Posto isto, e neste particular, asiste razão ao Digno recorrente, pois que os elementos objetivos e subjetivos de ambos os ilícitos constam da acusação, de forma autónoma e distinta, reclamando, por isso, diferente enquadramento jurídico-penal.
Por outro lado, quanto ao crime de furto qualificado sob a forma tentada, a que correspondem os pontos 9 a 12 da acusação, independentemente de não ser feita qualquer referência ao valor dos bens, tal não pode, por si só, ser fundamento de rejeição da peça acusatória, ainda mais quando é certa a menção ao “arrombamento”, qualificativa que lhe é imputada.
É que não obstante a possibilidade da desqualificação do furto em razão do valor (art. 204.º, n.º 4 do CP), em caso de não ser possível quantificar o valor das coisas de que o arguido se pretendeu apropriar, tal, sem descaracterizar o objeto do processo, apenas se traduzirá num diferente enquadramento jurídico, a integrar em julgamento.
Em outras palavras, a acusação é autossuficiente quanto aos factos pertinentes aos tipos de crimes imputados, razão pela qual se impõe a revogação a decisão recorrida e a sua substituição por outra que determine o recebimento da acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido AA.
Em suma, é procedente o recurso, impondo-se a revogação do despacho recorrido.
III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando, em consequência, o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que determine o recebimento da acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido AA.
Sem custas.
Notifique.
*
Lisboa, 2 de dezembro de 2025
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal)
Ester Pacheco dos Santos
João António Filipe Ferreira
Ana Lúcia Gordinho