INVENTÁRIO
PARTILHA DO PATRIMÓNIO COMUM DO CASAL
CONTA BANCÁRIA COMUM
TRANSFERÊNCIAS
COMPENSAÇÕES
Sumário


1- A partilha deve abranger o património comum existente à data da propositura da ação de divórcio, incluindo os bens e direitos então pertencentes ao casal.
2- Assim, há que atender aos créditos e débitos entre os patrimónios próprios e comum existentes à data da partilha, mesmo que constituídos em data anterior ao da propositura da ação de divórcio.
3- Se um cônjuge durante o período que antecedeu o divórcio transfere montantes da conta bancária comum, que o casal destinara ao pagamento de um empréstimo, para conta bancária própria, apropriando-se desse valor, para proveito próprio e exclusivo, contra a vontade do outro cônjuge, constitui-se na obrigação de repor essa quantia ao património comum.
4- Esse valor deve ser incluído na relação de bens como um crédito do património comum sobre o património do cônjuge que sonegou a quantia.
5- Na nova configuração do inventário, os factos constitutivos alegados no articulado da reclamação (artigo 1104.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil) consideram-se admitidos por acordo se não forem contraditados no articulado de resposta (artigo 1105.º do mesmo diploma), salvo se essa admissão estiver em oposição com a contestação no seu conjunto ou com o que foi referido no requerimento inicial, ou ainda se o facto não admitir confissão ou exigir prova documental (artigos 574.º, n.º 2, e 587.º do Código de Processo Civil).

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Apelação (em separado) n.º 6276/21.2T8GMR-A.G1, proveniente do Juízo de Família e Menores de Guimarães (J...) do Tribunal Judicial da Comarca de Braga

Recorrente e cabeça de casal: AA
Recorrida e reclamante: BB
Autos de: apelação por apenso a inventário para partilha dos bens comuns

I - Relatório

BB intentou contra AA autos de inventário para partilha dos bens comuns do casal, por apenso à ação de divórcio.
--relação de bens

O cabeça de casal apresentou a relação de bens em 29.06.2022, indicando, além de outras, as seguintes verbas:
i.Saldo bancário existente na conta poupança n.º ...61, sedeada na Banco 1..., S.A., no valor de 8.960.39 €;
ii. Fundos de investimento — Conta de ativos financeiros n.º ...01, na Banco 1..., S.A., no valor de 5.492.66 €, acrescentando “tudo conforme resulta do extrato bancário junto aos autos pela interessada em 05.05.2022.”
--reclamação de bens
A Requerente reclamou da relação de bens, em 08.09.2022.
Afirmou, em síntese, no que respeita aos depósitos bancários, que o casal deixou de fazer vida em comum em julho de 2021. Acordaram que do dinheiro existente na conta bancária de ambos (74.842,79 €), a quantia de 25.950,00 € seria transferida para o cabeça de casal, por se tratar de um bem próprio, a quantia de 33.979,80 € seria utilizada para pagar o valor do crédito à habitação que à data se encontrava em dívida e o valor remanescente (14.912,99 €) seria dividido por ambos em partes iguais. No entanto, além da quantia de 25.950,00 €, o cabeça de casal transferiu para si o montante de 30.514,09 €, sem liquidar o crédito à habitação. Remeteu estas afirmações para o extrato bancário junto aos autos em 05.05.2022.
Defendeu o aditamento dos seguintes saldos à verba cinco da relação de bens:
“Saldo bancário existente na conta caderneta ...00, sedeada na Banco 1..., S.A. no valor de 3.925,65 €:
Saldo bancário existente na conta extrato ...30, sedeada na Banco 1..., S.A. no valor de 30.514,09 €.”
-- resposta
Na resposta que apresentou, a 12.10.2022, o cabeça de casal limitou-se, quanto a esta matéria, a afirmar que mantinha toda a materialidade vertida na relação de bens por si apresentada em 29.06.2022.
--decisão recorrida
Em 15.05.2023, foi proferido o despacho que decidiu:
“Caso, entretanto, pelo decurso do tempo, as partes não tenham obtido a colaboração da entidade terceira a que se referiram, o processo terá de prosseguir, com base nas seguintes premissas:
1 — Apesar de nunca terem sido juntas aos autos as descrições prediais na competente C.R.P. resultou da análise do extrato bancário (cujo desentranhamento pedido pelo cabeça de casal se indefere) junto aos autos aos 05/05/2022 que havia um credor hipotecário, tendo o mesmo sido citado por despacho de 04/07/2022;
2 — O montante do passivo a considerar será o da data da efetiva partilha;
3 — O montante transferido pelo cabeça de casal, de 25950 Euros, é bem próprio deste (admitido por ambos);
4 — Tendo presente o declarado pelas partes aos 17/12/2021 na conferência de conversão do divórcio em divórcio por mútuo consentimento, bem como a não indicação de prova pelo cabeça de casal relativamente ao invocado montante de 17000 Euros de compensação sobre a interessada para compra do automóvel, indefere-se tal pedido de compensação;
5 — Tendo em conta o declarado aos 17/12/2021 bem como a documentação junta a estes autos, e reportando-se o tribunal ao início de agosto de 2021, os montantes a considerar para efeito de partilha são:
.a −3925,65 Euros (saldo), da conta Banco 1... ...00;
.b — 8960,39 Euros (depósito a prazo) da conta Banco 1... ...61 (admitido até por ambos);
.c — 5492,66 Euros (instrumentos financeiros) da conta Banco 1... ...01 (admitido até por ambos);
.d — saldo / transferência pelo cabeça de casal, no montante de 30514,09 Euros na conta Banco 1... ...30
6 — Deverá a interessada decidir se pretende produção de prova atinente à exclusão das verbas cama de casal e duas mesinhas de cabeceira ou se desiste da mesma;
7 — O recheio será licitado ou sorteado.
Notifique-se e demais D.N.”

Em 7.06.2023o cabeça de casal interpôs recurso deste despacho.
O mesmo apresenta as seguintes
conclusões:
“1. Foi com muito espanto que o recorrente recebeu o despacho de que ora recorre, o qual, para além dos vícios de que padece, designadamente, a falta de fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão e o facto de os fundamentos apresentados estarem em oposição com a decisão, incorre em erro no julgamento da matéria de facto e de direito, que levou à prolação de uma decisão que se reveste de uma injustiça desmedida, nada habitual ao Julgador que a proferiu.
2. Para o que aqui releva, diz-se no despacho recorrido o seguinte: «5 - Tendo em conta o declarado aos 17/12/2021 bem como a documentação junta a estes autos, e reportando-se o tribunal ao início de agosto de 2021, os montantes a considerar para efeito de partilha são: a) 3925,65 Euros (saldo), da conta Banco 1... ...00; //(…) d) saldo / transferência pelo cabeça de casal, no montante de 30514,09 Euros na conta Banco 1... ...30 » – negrito e sublinhado nossos.
3. Fundamenta o Tribunal esse entendimento «[n]o declarado aos 7/12/2021 bem como a documentação junta a estes autos, e reportando-se o tribunal ao início de agosto de 2021».
4. Embora não decorra claro do despacho, o recorrente subentende que, ao referir-se «ao declarado no dia 17/12/2021», o Tribunal pretende reportar-se às declarações prestadas pelas partes na tentativa de conciliação e lavradas em acta.
5. Quanto ao declarado aos 17/12/2021, recorrente e recorrido afirmaram que eram bens comuns os ali indicados:«C) Relação de bens comuns: A autora e o réu acordam que são comuns os seguintes bens:ATIVO // Verba n.º 4 // O saldo activo, bem como aplicações existentes, à data de 17/12/2021, na Banco 1..., nas contas com os seguintes números: ...00, ...30, ...61, ...01, ...06.» – negrito e sublinhado nossos.
6. Como decorre do extracto bancário junto pela recorrida no requerimento com a REFª ...88, apresentado em 05/05/2022 e resulta do alegado no requerimento com a REFª: ...74, apresentado em 08/09/2022, o valor de 30.514,00 € deixou de constar da conta bancária do extinto casal em 31.08.2021.
7. Ou seja, «à data de 17/12/2021», data a que as partes fazem referência na tentativa de conciliação, esse valor não constava nas contas do extinto casal, nem pelos mesmos foi indicada como sendo um bem comum.
8. Relativamente à documentação junta a estes autos, como decorre do extracto bancário junto pela recorrida no requerimento com a REFª ...88, apresentado em 05/05/2022 e resulta do alegado no requerimento com a REFª: ...74, apresentado em 08/09/2022, o valor de 30.514,00 € deixou de constar da conta bancária do extinto casal em 31.08.2021.
9. Assim, o recorrente não retira do declarado aos 17/12/2021, por si só, nem da sua conjugação com documentação junta a estes autos, as conclusões a que chega este Tribunal.
10. Sucede que, não sendo os presentes autos um processo de jurisdição voluntária, impõe-se ao Tribunal a fundamentação ou a motivação fáctica dos actos decisórios através de exposição concisa e completa das razões ou circunstâncias que o levaram a optar num determinado sentido (e não em qualquer outro), devendo o Tribunal, no despacho recorrido indicar ou especificar as razões ou circunstâncias que o levam a optar por ter como referência as declarações das partes lavradas em acta.
11. Ou seja, embora tenha decidido tomar em consideração tais declarações, o Tribunal, sem explicar o seu processo de raciocínio, entendeu que deveria fixar as quantias monetárias a partilhar tendo por referência o “início de agosto de 2021” e não a data indicada de 17 de Dezembro de 2021.
12. Mas há mais: por não ter demonstrado o iter que seguiu, o recorrente não compreende o que levou o Tribunal recorrido a reportar-se ao início de agosto de 2021, sendo, porém, certo que, caso fosse sua intenção retroagir os efeitos do divórcio à data da separação de facto entre os cônjuges, esta deveria ter sido requerida por qualquer dos cônjuges, ter sido provada no processo e fixada por sentença, o que não sucedeu!
13. Pelo que, como se supra expôs, não se compreende o raciocínio seguido pelo Tribunal a quo para se reportar a tal data e, dessa forma, decidir que se tratam de verbas comuns do extinto casal.
14. Com efeito, o despacho recorrido não concretiza, nem fundamenta, ainda que minimamente, a conclusão a que chega, nem o raciocínio que fez para ali chegar, limitando-se a apresentar fundamentos absolutamente vagos e genéricos, remetendo para declarações prestadas em determinada data e para documentos dos autos, não concretizando quaisquer factos que permitam alcançar o raciocínio.
15. Tudo isto dificulta e impossibilita, de foram irremediável e absolutamente notória, a tarefa do recorrente em apresentar uma defesa estruturada, não sabendo (nem tendo como saber!) em concreto os fundamentos de facto e de direito que suportam a decisão, para que a possa contradizer.
16. Destarte, porque a fundamentação de facto e de direito do despacho sob censura se revela gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto e de direito, encontra-se o mesmo ferido de nulidade, nos termos previstos no artigo 615.º, n.º 1, b) do CPC.
17. Não obstante não se compreende o sentido e o alcance da decisão, por mera cautela de patrocínio, não resta outra alternativa ao recorrente que não a de manifestar a sua posição quanto aos escassos fundamentos apresentados, na medida em que os mesmos se encontram em clara contradição com a decisão proferida.
18. Como supra se disse, em 17/12/2021, realizou-se a tentativa de conciliação, na qual as partes compareceram pessoalmente e acompanhadas pelos respectivos mandatários.
19. Declararam as partes o que tiveram por conveniente quanto aos alimentos entre cônjuges, à utilização da casa de morada de família e, quanto à relação de bens comuns, o referido no ponto 5. das conclusões.
20. De imediato, foi proferida sentença que decidiu, entre o mais: «Uma vez que os cônjuges continuam a manter o propósito de se divorciarem, por mútuo consentimento, tornando-se impossível a conciliação, e depois de apreciados os acordos juntos, que acautelam os interesses de cada um dos cônjuges, homologamo-los e decretamos a dissolução do casamento, por divórcio por mútuo consentimento, do casamento celebrado entre BB e AA, conforme a certidão do assento de casamento de fls. 7 e 7v.» – negrito e sublinhado nossos.
21. Não foi invocada a falsidade da acta, nem no momento, nem supervenientemente, nos termos e para os efeitos do 451.º CPC.
22. Em suma, na tentativa de conciliação realizada no dia 17/12/2021, as partes, pessoalmente e acompanhadas pelos seus mandatários, acordaram, livremente, serem comuns os saldos bancários activos, à data de 17/12/2021, tendo tal acordo sido homologado por sentença.
23. Ora, como decorre do extracto bancário junto pela recorrida no requerimento com a REFª ...88, apresentado em 05/05/2022 e resulta do alegado no requerimento com a REFª: ...74, apresentado em 08/09/2022, o valor de 30.514,00 € deixou de constar da conta bancária do extinto casal em 31.08.2021.
24. Ou seja, «à data de 17/12/2021», data a que as partes fazem referência na tentativa de conciliação, esse valor não constava nas contas do extinto casal, nem pelos mesmos foi indicada como sendo um bem comum.
25. Assim, o recorrente não só não retira de tais declarações, por si só, as conclusões a que chega este Tribunal, como entende que este extrai delas a conclusão contrária.
26. No despacho recorrido deve o Tribunal indicar ou especificar as razões ou circunstâncias que o levam a optar por ter como referência as declarações das partes lavradas em acta, decidindo, no entanto, em sentido contrário às mesmas.
27. Ou seja, embora tenha decidido tomar em consideração tais declarações, o Tribunal, sem explicar o seu processo de raciocínio, entendeu que deveria fixar as quantias monetárias a partilhar tendo por referência o “início de agosto de 2021” e não a data indicada de 17 de Dezembro de 2021.
28. Raciocínio que, para além do aqui recorrente não poder deixar de discordar, entende que é contraditório, na medida em que à data de 17/12/2021 os saldos bancários a partilhar não coincidem com os do início de agosto de 2021.
29. Para além disso, e como se disse já supra, o recorrente não compreende o que levou o Tribunal recorrido a reportar-se ao início de Agosto de 2021, sendo, porém, certo que, caso fosse sua intenção retroagir os efeitos do divórcio à data da separação de facto entre os cônjuges, esta deveria ter sido requerida por qualquer dos cônjuges, ter sido provada no processo e fixada por sentença, o que não sucedeu!
30. Na verdade, não está provada no processo a data da separação de facto entre os cônjuges, muito menos fixada por sentença.
31. Pelo que, como se supra expôs, não se compreende o raciocínio seguido pelo Tribunal a quo para se reportar a tal data e, dessa forma, decidir que se tratam de verbas comuns do extinto casal.
32. Destarte, porque os fundamentos de facto e de direito conduziam, de acordo com um raciocínio lógico, a resultado oposto ao que foi decidido, ou seja porque a decisão tomada justifica uma decisão precisamente oposta à tomada, ocorre contradição ou oposição entre os fundamentos de facto e de direito e a decisão judicial, encontrando-se a mesma ferido de nulidade, nos termos previstos no artigo 615.º, n.º 1, c) do Código do Processo Civil.
33. Para o caso de não se entender que estamos perante um vício formal, sempre se dirá que a matéria vertida no presente recurso consubstancia um erro de apreciação na matéria de facto.
34. Com efeito, o recorrente entende que o Tribunal a quo faz uma errada interpretação das declarações prestadas no dia 17/12/2021, em sede de tentativa de conciliação.
35. Pois, embora tenha decidido tomar em consideração tais declarações, entendeu que deveria fixar as quantias monetárias a partilhar tendo por referência o “início de agosto de 2021” e não a data indicada de 17 de dezembro de 2021.
36. Raciocínio que, para além do aqui recorrente não poder deixar de discordar, entende que é contraditório, na medida em que à data de 17/12/2021 os saldos bancários a partilhar não coincidiam com os do início de Agosto de 2021.
37. Pelo que, como se supra expôs, não se compreende o raciocínio seguido pelo Tribunal a quo para se reportar a tal data e, dessa forma, decidir que se tratam de verbas comuns do extinto casal.
38. De facto, a decisão do Tribunal funda-se na existência de provas que conduzem a um resultado probatório diferente daquele que foi acolhido na sua própria decisão.
39. Nessa medida, deverá o Tribunal ad quem considerar os meios de prova constantes dos autos, confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, em face do que estará o Tribunal ad quem em condições de afirmar a existência de um erro de apreciação e valoração da prova por parte do tribunal de primeira instância.
40. Os documentos juntos pela recorrida não provam, nem tão pouco indiciam que tais bens são comuns do casal.
41. Desde logo, pelo facto de, deles, não se retirar a proveniência do saldo bancário !!
42. E, consequentemente, não permitirem concluir se são bens próprios do recorrente ou bens comuns do casal.
43. Tanto assim que é o próprio Tribunal reconhece no despacho recorrido que as partes não lograram obter a colaboração da entidade terceira (a instituição bancária),
44. E, por essa razão, não dispõe o Tribunal, neste momento, de elementos que confirmem ou infirmem a proveniência.
45. Ora, dispõe o artigo 1109.º do Código Civil, que «Na falta de acordo dos interessados sobre as questões controvertidas, o juiz procede à realização das diligências instrutórias necessárias para decidir as matérias que tenham sido objeto de oposição ou de impugnação.»
46. Assim, deveria o Tribunal ter ordenado as notificações que se impusessem no sentido de serem juntos aos autos os extractos bancários de todas as contas e aplicações ou instrumentos financeiros existentes em nome do recorrente, desde a data em que ainda se encontrava solteiro (2001) até à data referida nos requerimentos apresentados pela recorrida (Agosto de 2021),
47. Por apenas com tal junção poder considerar-se terem sido realizadas as diligências instrutórias necessárias que permitam os autos prosseguirem os seus trâmites legais, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 1109.º do Código de Processo Civil.
48. Para além do exposto, o recorrente não compreende o que levou o Tribunal recorrido a reportar-se ao início de Agosto de 2021, sendo, porém, certo que, caso fosse sua intenção retroagir os efeitos do divórcio à data da separação de facto entre os cônjuges, esta deveria ter sido requerida por qualquer dos cônjuges, ter sido provada no processo e fixada por sentença, o que não sucedeu!
49. É o que dispõe o artigo 1789.º, n.º 2, do Código Civil, com a epígrafe «Data em que se produzem os efeitos do divórcio»: «2. Se a separação de facto entre os cônjuges estiver provada no processo, qualquer deles pode requerer que os efeitos do divórcio retroajam à data, que a sentença fixará, em que a separação tenha começado.»
50. Porém, não está provada no processo a data da separação de facto entre os cônjuges, muito menos fixada por sentença.
51. Pelo que, como se supra expôs, não poderia o Tribunal a quo se reportar-se a tal data e, dessa forma, decidir que se tratam de verbas comuns do extinto casal.
52. Incorreu, assim, o Tribunal a quo em erro no julgamento da matéria de direito, que cumpre ao Tribunal ad quem expurgar.!”

*
 Por despacho de 31.10.2023, esse recurso foi admitido no tribunal a quo, com subida em separado e efeito suspensivo, tendo dado origem ao presente apenso B. Em 9.01.2024, este Tribunal considerou que o incidente da reclamação à relação de bens apresentada pela cabeça de casal ainda se encontrava a decorrer, pelo que o apenso só deveria subir com eventuais recursos de apelação referidos na al. b) do n.º2 do art.º 1123.º do Código de Processo Civil.
Veio a ser interposto outro recurso, sobre a decisão proferida a 29-01-2024, que determinou nova subida deste apenso. Esse recurso já obteve decisão definitiva e que não cumpre por esse motivo voltar a apreciar essa decisão.
O processo de inventário correu termos, sendo proferidas múltiplas outras decisões sobre a reclamação de bens, pelo que já é possível conhecer do recurso da decisão proferida em 15.05.2023.
*
II - Objeto do recurso

Sem a iniciativa do interessado não há impugnação da decisão; é o recorrente que define o que pretende ver alterado.
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações (cf. artigo 635.º, n.º 4, do Código de Processo Civil). São essas conclusões que definem a área de intervenção do tribunal de recurso, exercendo função semelhante à do pedido ou das exceções.
O recorrente pode restringir o objeto do recurso diretamente, no requerimento em que o interpõe, ou indiretamente, ao não incluir nas conclusões todos os segmentos do decisório, insurgindo-se apenas contra alguns deles.
Por outro lado, a interposição do recurso é dirigida contra a decisão e não contra a motivação.
Como refere Abrantes Geraldes, em Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4.ª ed., pág. 105: “(…) a motivação da sentença, para efeitos de limitação do objeto do recurso, só ganha inequívoco realce com a norma do artigo 636.º, que permite à parte recorrida, apesar da sua concordância com o resultado, introduzir nas contra-alegações a reponderação do modo como o tribunal resolveu determinadas questões de facto ou de direito com interferência naquele resultado, se, afinal, for dada razão ao recorrente.”
Ou seja, se o recorrente concordar com a decisão, mas não com a sua fundamentação, não pode recorrer — exceto no caso especial em que responda a um recurso interposto pela contraparte.
O tribunal de recurso também não pode decidir questões novas, salvo se estas se tornarem relevantes em função da solução jurídica adotada ou se disserem respeito a matéria de conhecimento oficioso, desde que os autos contenham os elementos necessários à sua apreciação (artigo 665.º, n.º 2, do mesmo diploma).

concretização
Embora o Recorrente se revolte quanto a todo o processo de raciocínio da decisão apelada, no que toca à decisão apenas se insurge contra dois pontos: as alíneas a) e d) do ponto 5 da decisão.
São, pois, estas alíneas que constituem o objeto do recurso, como resulta do disposto no artigo 635.º, n.º 4, do Código de Processo Civil.

Face às conclusões apresentadas, importa, em consequência, analisar e decidir as seguintes
questões:

.1- Se as alíneas a) e d) do ponto 5 da decisão padecem dos seguintes vícios: falta de fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão e contradição entre os fundamentos e o decidido;
.2- Se deveriam ser incluídas no acervo de bens comuns a partilhar as quantias de 3.925,65 €, referente à conta Banco 1... n.º ...00, e de 30.514,00 €, referente à conta Banco 1... n.º ...30.
Para este segundo ponto, cumpre determinar o momento relevante para a fixação dos bens a partilhar e apreciar se, como defende o recorrente, o tribunal deveria ter oficiado no sentido de obter todos os extratos bancários existentes em nome do recorrente desde a data em que este se encontrava solteiro até 2021.

III - Fundamentação de Facto

O despacho recorrido não fixou nenhuns factos.

Há, pois, que indicar os factos que relevam para a questão em causa neste recurso, os quais resultam dos documentos autênticos juntos aos autos e do acordo tácito das partes face ao teor dos articulados:

.1-- Em 25 de novembro de 2021, a Requerente propôs ação de divórcio contra o ora cabeça de casal.
.2-- A decretação do divórcio teve lugar em 17 de dezembro de 2021.
.3-- Nessa data, ambos declararam ser bem comum “o saldo ativo, bem como as aplicações existentes, à data de 17/12/2021, na Banco 1..., nas contas com os seguintes números: ...00, ...30, ...61, ...01 e ...06.”
.4-- As contas bancárias tituladas pelo cabeça de casal na Banco 1... apresentavam, no período de 1 a 31 de agosto de 2021, os seguintes valores: “Referência a Banco 1...: ...13: Total EUR — 74.842,79 €, sendo: À Ordem ... 60.389,74 €; Prazo/Poupança — 8.960,39 €; Instr. Financeiros — 5.492,66 €; Conta Caderneta ...00 — 3.925,65 €; Conta Extrato ...30 — saldo disponível 56.464,09 €; ... ...61 — 8.900,39 €; Conta de Ativos Financeiros 0363....61.944 0001 — 5.492,66 €”, conforme extrato emitido por essa entidade em setembro de 2021.
.5-- No dia 31 de agosto de 2021, o cabeça de casal transferiu da Conta Extrato ...30 a quantia de 30.514,09 € para outra conta exclusivamente titulada por si, fazendo-a exclusivamente sua.
.6-- Essa transferência foi efetuada sem qualquer autorização e contra a vontade da Reclamante.
.7-- Os cônjuges haviam acordado, em data anterior à transferência referida em 5), pensando no divórcio e em como poderiam fazer a partilha, que esse valor seria utilizado para pagar o crédito à habitação.
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Motivação da matéria de facto provada

O facto referido no ponto 1) resulta do requerimento inicial do processo de divórcio, do qual estes autos são apenso.
Os factos constantes dos pontos 2) e 3) encontram-se comprovados na ata da conferência de conversão do divórcio, realizada na mesma data, cuja certidão se encontra junta aos autos.
Os factos dos pontos 4) e 5) decorrem do extrato bancário emitido pela Banco 1..., junto aos autos pela Reclamante em 5 de maio de 2022, cujo teor foi aceite pelo Recorrente, que não o impugnou, antes remetendo para o mesmo na relação de bens apresentada, afirmando:
“Tudo conforme resulta do extrato bancário junto aos autos pela interessada em 05/05/2022.”
Os factos indicados nos pontos 6) e 7) resultam da admissão por acordo, conforme o disposto nos artigos 1104.º, n.º 1, alínea d), e 1105.º do Código de Processo Civil, tendo sido alegados na reclamação de bens e não impugnados pelo cabeça de casal na resposta.
Com efeito, na nova configuração do inventário, os factos constitutivos alegados no articulado da reclamação (artigo 1104.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil) consideram-se admitidos por acordo se não forem contraditados no articulado de resposta (artigo 1105.º do mesmo diploma), salvo se essa admissão estiver em oposição com a contestação no seu conjunto ou com o que foi referido no requerimento inicial, ou ainda se o facto não admitir confissão ou exigir prova documental (artigos 574.º, n.º 2, e 587.º do Código de Processo Civil).
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IV - Fundamentação de Direito

.1 - Das nulidades da decisão
As causas de nulidade da sentença estão taxativamente previstas no artigo 615.º n.º 1 do Código de Processo Civil e são de caráter formal, dizendo respeito a desvios no procedimento ocorridos na sentença que impedem que se percecione uma decisão de mérito do concreto litígio: não se confundem com todas as situações que podem inquinar uma sentença ou despacho e conduzir à sua revogação.
Não abarcam todas e quaisquer falhas de que uma sentença ou um despacho podem padecer: têm que traduzir-se na falta de assinatura do juiz, na omissão total dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; ininteligibilidade da decisão por oposição entre esta e os fundamentos, ambiguidade ou obscuridade; omissão de pronúncia sobre pedidos, causas de pedir ou exceções que devessem ser apreciadas ou conhecimento de questões de que não se podia tomar conhecimento; condenação em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido. Atingem as decisões por razões de natureza mais formal, sem averiguar da sua razão, legalidade ou bondade.
Por outro lado, porquanto se estipula no artigo 665.º n.º 1 do Código de Processo Civil que ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação, a sua consequência resume-se, em regra, à substituição da decisão proferida pela solução que venha a ser obtida no tribunal de apelação, com resultado semelhante ao qualquer se obtém com a normal apreciação da decisão impugnada objeto do recurso.

.a) A nulidade fundada na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil: Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão
Quanto à falta de alicerçagem da decisão, é de relevância primordial salientar que, quer as sentenças, quer os despachos, têm que ser fundamentados, divergindo, no entanto, o grau de exigência de fundamentação em função da complexidade da situação.
Processualmente a exigência de fundamentação das decisões judiciais tem ampla utilidade, quer na fase decisória, obrigando o tribunal que a profere a verificar e controlar a sua própria decisão, quer posteriormente, permitindo a sua reapreciação através de recurso.
Este dever incorpora uma garantia integrante do próprio conceito de Estado de direito democrático, visto que tem em vista um conjunto de objetivos que lhe são fundamentais: contribui para a eficácia das decisões, conseguindo-se o seu respeito, não pela força da autoridade, mas pela razão com que convence, sendo, pois, um fator de legitimação do poder judicial; permite o controlo da decisão, possibilitando a sindicância do processo lógico e racional que lhe esteve na base, impedindo, desta forma, decisões arbitrárias e garantindo a transparência do processo decisório e o respeito da independência e da imparcialidade que deve presidir ao poder judicial, garantindo implicitamente o direito a um processo justo e equitativo. Assim, este princípio tem tutela no artigo 6.º da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem, das Liberdades Fundamentais, no artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e 205.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e é especificada no artigo 154.º do Código de Processo Civil.
A omissão do dever de fundamentação é causa de nulidade da decisão nos termos da alínea b) do artigo 615.º do Código de Processo Civil, que se reporta às sentenças, mas que é extensivo aos despachos nos termos do artigo 613.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

.b) A nulidade fundada na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil: Os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
Esta nulidade remete para a incompreensibilidade da decisão, seja pela ambivalência ou falta de clareza na expressão, seja pela contradição, como ocorre quando a fundamentação do despacho aponta num certo sentido contraditório com o que vem a decidir-se. Ocorre, então, quando a decisão proferida seguiu um caminho oposto daquele que apontava os fundamentos em que se baseou de tal modo que a mesma se torna impossível de perceber.
Não é, pois, equivalente a um erro de julgamento, nem se fundamenta no desacerto de uma decisão.
Como refere Alberto dos Reis, esta nulidade verifica-se «quando a sentença enferma de vício lógico que a compromete (…)», quando «a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto» –“Código de Processo Civil Anotado”, Coimbra Editora, 1984, volume V, página 141 e, enquanto vício de natureza processual, não se confunde com o erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide mal – ou porque decide contrariamente aos factos apurados ou contra lei que lhe impõe uma solução jurídica diferente.”
Como tem sido reiteradamente afirmado na doutrina e na jurisprudência, não há que confundir entre nulidades de decisão e erros de julgamento. “As primeiras (errores in procedendo) são vícios de formação ou atividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão, isto é, trata-se de vícios que afetam a regularidade do silogismo judiciário) da peça processual que é a decisão, nada tendo a ver com erros de julgamento (errores in iudicando), seja em matéria de facto seja em matéria jurídico-conclusiva (direito). As nulidades ditam a anulação da decisão por ser formalmente irregular, as ilegalidades ditam a revogação da decisão por estar desconforme ao direito aplicável aos factos (destituída de mérito jurídico).”, como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07/04/2019, no processo n.º 5762/13.2TBVFX-A.L1.S1(sendo este e os demais acórdãos citados sem menção de fonte, consultados in dgsi.pt com a data na forma ali indicada: mês/dia/ano).
Assim, em regra, não basta que a aplicação do direito aos factos dados como provados não conduza à decisão obtida na sentença para se concluir pela verificação da nulidade.

Concretização

 A sentença contém apenas uma lista do que denomina “premissas” que decidem, em parte, o que faz parte do acervo hereditário, questão que estava em disputa entre as partes. Não apresenta um relatório, uma lista dos factos em que assenta, as razões por que considerou tais factos assentes e porque decidiu dar como boas tais “premissas”.
Como vimos, apenas estão em causa duas alíneas do ponto 5 dessas premissas, com o seguinte teor:
os montantes a considerar para efeito de partilha são:
.a −3925,65 Euros (saldo), da conta Banco 1... ...00;  (…)
.d — saldo/ transferência pelo cabeça de casal, no montante de 30514,09 Euros na conta Banco 1... ...30”
No que nos importa aqui, a decisão não contém uma descrição dos factos em que se funda, porque os entendeu dar como provados, não faz aplicação do Direito aos factos, nem explica as conclusões que deles retira para elencar as “premissas”.
Não se consegue vislumbrar qualquer contradição entre fundamentos e decisão, porque não encontramos nenhuma fundamentação.
Assim, procede a nulidade fundada na falta de fundamentação do despacho.
Há que sanar tal nulidade, com a fixação dos factos relevantes para a apreciação desta questão, motivando-os, o que já fizemos supra e aplicando o Direito, apreciando das razões de discordância do Recorrente e se as suas pretensões têm cabimento.
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2 - Da determinação dos valores a incluir na relação de bens: Da inclusão das quantias de 3.925,65 € referente ao saldo da conta Banco 1... ...00 e da quantia de 30.514,09 € referente a “saldo / transferência pelo cabeça de casal da conta Banco 1... ...30”
O Recorrente, nas suas conclusões, apenas se insurge, em concreto, quanto à inclusão destes valores aditados à relação de bens.
O seu argumento central assenta na ideia de que a relação de bens deveria reportar-se à data da conferência de conversão do divórcio.
Vejamos, então, quais os critérios relevantes neste recurso para a inclusão das verbas na relação de bens.

-- As consequências patrimoniais do divórcio e o inventário subsequente
O divórcio dissolve o casamento, fazendo cessar as relações patrimoniais entre os cônjuges; sempre que o regime de bens foi um regime de comunhão, a partilha é a forma a que há que recorrer para proceder à divisão do património comum que se criou com o casamento.
O inventário subsequente ao divórcio destina-se, numa primeira linha, a pôr termo à comunhão de bens resultante do casamento, a relacionar os bens que integram o património conjugal e a servir de base à respetiva liquidação, tendo em vista a data em que cessaram as relações patrimoniais entre os cônjuges.   Mas também é no processo especial de inventário que se liquidam as responsabilidades mútuas e as dívidas do casal. (cf. artigo 1133.º do Código de Processo Civil e artigos 1688.º, 1689.º e 1789.º Código Civil).
O processo de inventário após o divórcio não visa apenas a partilha dos bens comuns dos cônjuges, mas também a extinção definitiva das obrigações entre eles e com terceiros. Isso implica sempre a identificação de todos os bens, sejam eles próprios ou comuns, bem como dos créditos correspondentes.
É durante a partilha que os cônjuges recebem os seus bens pessoais e a sua parte no património comum. É também durante a partilha que os créditos de um sobre o outro, ou do património comum sobre o outro, bem como os dos credores do património comum, se tornam exigíveis. (cf o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06 de maio de 2008 no processo 202-E/1999.C1)
Nessa partilha, em que se dividem os patrimónios de cada cônjuge e os bens comuns (em regra, conforme o regime de bens que vigorou durante o casamento, com as exceções previstas nos artigos 1719.º e 1790.º do Código Civil), o objetivo essencial é obter um equilíbrio entre os diversos patrimónios, de modo a evitar o enriquecimento de um deles à custa do outro.
Ora, ao efetuar-se a partilha há que considerar as alterações que o património comum sofreu ao longo do tempo, por ser impossível partilhar bens que não o compõem ou deixar na comunhão bens que o passaram a compor.
Neste património integram-se os créditos  perante terceiros ou mesmo perante os cônjuges, como é exemplo o disposto no artigo 1967.º do Código de Processo Civil, que manda atender até aos pagamentos de dívidas comuns que qualquer cônjuge tenha feito com o seu património ou o inverso, quando por dívidas de um cônjuge tenha respondido o património comum.
Os efeitos patrimoniais do divórcio retrotraem-se ao momento da propositura da ação, nos termos do artigo 1789.º n.º 1 e 2, do Código Civil.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vol. IV, 2.ª ed., p. 561), esta disposição visa evitar que “um dos cônjuges seja prejudicado por atos de insensatez, prodigalidade ou vingança praticados pelo outro, desde a propositura da ação, sobre valores do património comum”.
Por isso, a partilha deve abranger o património comum existente à data da propositura da ação de divórcio, incluindo os bens e direitos então pertencentes ao casal.
Mas, como vimos, também há que atender aos créditos e débitos entre os patrimónios próprios e comum existentes à data da partilha, mesmo que constituídos em data anterior ao da propositura da ação de divórcio.
 Como diz o n.º 1 do artigo 1689.º do Código de Civil: “Cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus herdeiros recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património”.
Assim, como se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Setembro de 2023, proferido no processo nº 947/17.5T8CVL-C.C1.S1, desta norma extrai-se um princípio geral que obriga às compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges, e entre estes e o património comum, sempre que um deles, no final do regime, se encontre enriquecido em detrimento de outro, repondo-se, assim, o reequilíbrio patrimonial.
É já ampla a jurisprudência que entende que deve ser relacionados os bens que os cônjuges tenham sonegado do património comum: cf o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Setembro de 2023, proferido no processo nº 947/17.5T8CVL-C.C1.S1, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21 de Março de 2024, proferido no processo nº 431/19.2T8AND.P1 e o  acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28 de janeiro de 2025 no processo 367/22.0T8CNF-B.C1.
(Embora no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26 de maio de 2022 se afirme que “Os movimentos em conta bancária comum, tanto os anteriores como os posteriores a essa data da proposição da acção são irrelevantes para o inventário, já que não influem na partilha.”, na sua fundamentação segue, do nosso ponto de vista, no sentindo que propomos: “O levantamento do dinheiro de uma conta bancária do casal e a sua destinação em data anterior ao referido momento integra um ato de administração de bem comum, constituindo uma violação desses deveres patrimoniais a má administração de bens do casal - art. 1678º/1, 2 e 3, 1ª parte, do CC -, ou a inobservância da regra da administração extraordinária conjunta dos bens comuns - art. 1678º/3, 2ª parte, do CC. O cônjuge que administra bens comuns está, em regra, isento da obrigação de prestar contas - art. 1681º/1 do CC -, mas responde pelos danos causados pelos actos praticados, com dolo, em prejuízo do património comum ou do outro cônjuge, ou com inobservância das regras de administração desses bens - art. 1681º do CC.”).
Postas estas considerações, entremos no caso concreto.

concretização
É praticamente pacífico na jurisprudência que a relação dos bens comuns apresentada para efeitos de divórcio, subscrita por ambos os cônjuges e na qual cada um reconhece que os bens nela incluídos são bens comuns e não bens próprios, tem natureza confessória.
Essas declarações, todavia, não afastam a possibilidade de prova da existência de outros bens a partilhar, quando tal não resulte claro do seu conteúdo. Produzem prova plena apenas quanto ao que nelas foi expressamente declarado.
No presente caso, as partes afirmaram que eram comuns os saldos existentes em 17 de dezembro de 2021, em diversas contas bancárias, sem, contudo, especificar os respetivos valores. Impõe-se, portanto, concretizar esses valores.

a.) Da alínea a) da premissa 5: Do valor de 3.925,65 € da caderneta ...00
O cabeça de casal, ao apresentar a relação de bens, baseou-se nos valores constantes do extrato bancário emitido pela Banco 1... (Banco 1...), referente a setembro de 2021, cujo teor se encontra reproduzido no ponto 3 da matéria de facto provada.

A reclamante também se reportou a esse extrato como representativo dos valores a partilhar. Salientou, no entanto, duas diferenças ocorridas entre a data do extrato e a data a considerar para a partilha:
1. um levantamento efetuado no início de agosto, no montante de € 25.950,00, referente a quantia reconhecida como bem próprio do cabeça de casal, o que ambas as partes aceitaram;
2. outro levantamento realizado no final de agosto, no valor de € 30.514,09, efetuado contra a vontade da reclamante, que o cabeça de casal não refutou.

Enfim, as partes nos articulados que apresentaram manifestaram concordância quanto ao extrato bancário que refletia os saldos a considerar na partilha, bem como que a mesma contava com a alteração dessas transferências.
O Recorrente veio apenas agora, em sede de recurso, questionar essa correspondência: fê-lo tardiamente, visto que já precludiu a faculdade para a impugnação. Assim, tal constitui matéria nova que não põe em causa o que aceitou anteriormente.
Daqui se conclui que não havia fundamento para o tribunal ordenar, oficiosamente, a obtenção de novos extratos bancários, por as partes estarem de acordo quanto aos termos em que aquele correspondia aos valores a atentar.
Por outro lado, não compete ao tribunal diligenciar pela junção de prova que cabe aos interessados apresentar, salvo se estes necessitarem de auxílio judicial para o efeito ou se o tribunal ficar com uma dúvida que não possa suprir de outra forma — situações que se não verificam.
Logo, considerando que o extrato demonstra que a conta caderneta n.º ...00 apresentava o saldo de € 3.925,65, não subsistem dúvidas de que tal montante integra o património comum, impondo-se, nessa parte, confirmar a decisão recorrida.
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b) Da alínea d) da premissa 5 — saldo/transferência efetuada pelo cabeça de casal, no montante de € 30.514,09, na conta Banco 1... n.º ...30
Dos pontos 4 e 5 da matéria de facto provada resulta que, em 31 de agosto de 2021, o cabeça de casal, contra a vontade da reclamante, transferiu a quantia de € 30.514,09 das contas bancárias onde o então casal depositava valores pertencentes ao património comum para uma conta exclusivamente titulada por si.
A movimentação dessa quantia , proveniente de uma conta cujo saldo era comum — que, ainda que houvesse dúvida, se presumiria comum, nos termos do artigo 1725.º do Código Civil —,  para uma conta exclusivamente sua, sem autorização e contra a vontade e o acordado com o seu cônjuge, corresponde a um ato voluntário pelo qual o cabeça de casal se apropriou dessa quantia que era comum, contra a vontade e o acordado com a reclamante e a fez a sua, movimentando-a desse património comum para o seu património próprio, sabendo necessariamente que prejudicava o património comum.
Assim, mesmo sem necessidade de fazer aqui operar o instituto da responsabilidade civil, previsto no artigo 483.º do Código Civil, face  ao disposto no artigo 1689.º, nº 1 do mesmo diploma, constituiu-se na obrigação de restituir tal quantia ao património comum no momento em que cessaram as relações patrimoniais fundadas no casamento.
Mesmo que assim se não entenda, porque o cônjuge administrador responde pelos danos que culposamente causar ao outro ou ao casal, no exercício da sua administração, se tiver agido com intenção de o prejudicar, nos termos do artigo 1681.º do Código Civil, dúvidas não há quanto a essa obrigação.
Como consequência, esta dívida deve constar da relação de bens.
Embora a quantia tenha origem nas contas bancárias referidas no ponto 4 da matéria de facto provada, não pode ser incluída como parte dessas contas, devendo figurar autonomamente como dívida do cabeça de casal para com o património comum.
Portanto, nesta parte procede a reclamação de bens, embora com alteração na sua formulação.
Enquanto a cabeça de casal solicitou que fosse aditada a verba sob a forma:

“iv. Saldo bancário existente na conta extrato n.º ...30, sedeada na Banco 1..., S.A., no valor de 30.514,09 €, correspondente ao valor da transferência efetuada em 31.08.2021 sem autorização da Requerente”,
deverá constar, em substituição, a seguinte redação:
“Dívida do património próprio do cabeça de casal para com o património comum, no valor de 30.514,09 €, correspondente à transferência não autorizada efetuada em 31.08.2021 do saldo bancário existente na conta extrato n.º ...30, sedeada na Banco 1..., S.A.”
Assim, onde na decisão se escreveu “.d — saldo/ transferência pelo cabeça de casal, no montante de 30514,09 Euros na conta Banco 1... ...30”, há ressalvar que este valor corresponde a uma dívida do cabeça de casal para com o património comum.
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Em face o exposto, há que confirmar a decisão na parte recorrida com esta correção na classificação da verba.

V - Decisão

Pelos fundamentos acima expostos, julga-se a apelação parcialmente procedente e, em consequência:
- altera-se a alínea d) do ponto 5 da decisão recorrida, passando a constar:
“Dívida do património próprio do cabeça de casal para com o património comum, no valor de € 30.514,09, correspondente à transferência não autorizada efetuada em 31.08.2021 do saldo bancário existente na conta extrato n.º ...30, sedeada na Banco 1..., S.A.”
- mantém-se, no mais, o decidido.
Custas da apelação pelo Recorrente, que saiu vencido no essencial (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Notifique.
Guimarães, 20 de novembro de 2025

Sandra Melo
Conceição Sampaio
Margarida Pinto Gomes