EMPRÉSTIMO BANCÁRIO A SOCIEDADE COMERCIAL
LIVRANÇA
ASSINATURA DO GERENTE COMO AVALISTA
EXECUÇÃO CONTRA O AVALISTA
PERSI
HABILITAÇÃO
Sumário

I – Estando subjacente à livrança subscrita por uma sociedade comercial representada nesse ato pelo executado enquanto sócio gerente, o qual simultaneamente foi avalista da mesma, um “contrato de mútuo e de hipoteca” traduzindo uma operação bancária de empréstimo concedido à sociedade comercial, o dito executado não tinha a natureza/qualidade jurídica de “Cliente Bancário Consumidor” para efeitos de, em caso de incumprimento, ser obrigatória a sua integração em Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (“PERSI”) previsto no Decreto-Lei nº 227/2012, de 25/10.
II – Os habilitados como sucessores duma parte falecida, vêm assumir a posição processual que esta tinha, prosseguindo em lugar desta os termos da causa.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

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Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]


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            1 – RELATÓRIO

Banco 1... ,S.A.”, melhor id. nos autos, interpôs em 19.03.2024 execução sumária para pagamento de quantia certa contra AA, também melhor id. nos autos, e outros, apresentando como título executivo uma livrança subscrita pela também executada “A..., LDA.”, e avalizada pelos também executados BB, CC e dito AA, no valor de € 9.996,96, emitida em 28/06/2007 e vencida em 06/02/2023, livrança essa que se destinou a garantir o bom pagamento das obrigações emergentes de uma operação bancária de empréstimo concedida pela Exequente à Executada “A... LDA.”, a qual se venceu por falta de cumprimento das obrigações assumidas.

De referir que o título executivo tinha como relação subjacente um contrato de mútuo e de hipoteca, celebrado a 28-06-2007, entre a Exequente e a sociedade Executada mutuária “A..., LDA.”, representada, também, pelo falecido AA, na qualidade de sócio-gerente, e que pelo contrato de mútuo a Exequente entregou, naquela data, à sociedade Executada a quantia de € 65.000,00 que esta se obrigou a restituir de forma remunerada e fraccionada nos termos constantes do contrato, sendo certo que pelo contrato de hipoteca, a dita sociedade Executada hipotecou a favor da Exequente a propriedade da sua fracção autónoma n.º 5902/19... – ..., em garantia do cumprimento das suas obrigações para com a Exequente nomeadamente as resultantes do celebrado contrato de mútuo, e sucedendo que essa fracção autónoma encontrava-se apreendida e em liquidação no Processo de Insolvência da sociedade Executada e os créditos aqui exequendos da Exequente encontram-se graduados na Insolvência para pagamento pelo produto da venda da fracção autónoma.

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Sucedeu que o dito Executado AA havia falecido a ../../2021, mas apenas veio a ser dado conhecimento de tal aos autos em 06.06.2024, e junto o assento de óbito a 18.06.2024.

Instaurado oportunamente incidente de habilitação de herdeiros, veio em 20.12.2024 a ser proferida sentença através da qual se determinou a modificação subjetiva da instância, prosseguindo a ação executiva contra a herança indivisa deixada, assegurando a representação desta os Habilitados DD (Herdeira) e EE (Herdeiro), em representação, por sucessão, da herança indivisa do dito falecido Executado AA.

Esta sentença foi devidamente notificada e transitou em julgado a 05.02.2025.

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Em 11.02.2025, os Habilitados DD e EE vieram deduzir Oposição à Execução por Embargos de Executado.

Nos mesmos suscitaram as questões da “Exceção dilatória/PERSI”, da “prescrição”, da “Impugnação” e do “Enriquecimento sem Causa”, concluindo no sentido de que deve ser dada procedência aos embargos, «(…) absolvendo-se os executados da instância executiva ou, quando assim se não entenda, sendo os embargos julgados procedentes, por provados, com as necessárias consequências legais.»

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Apreciando a situação em sede de despacho liminar, o Exmo. Juiz de 1ª instância veio a Indeferir liminarmente os Embargos de Executado, sendo que, para o que ora diretamente releva, proferiu a seguinte decisão relativamente ao segmento do “PROCEDIMENTO EXTRAJUDICIAL DE REGULARIZAÇÃO DE SITUAÇÕES DE INCUMPRIMENTO (PERSI)”:

«Sustentam os Embargantes que a Execução é inadmissível [art.º 18.º/1/b)] pois nunca o falecido AA foi integrado no Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) previsto no Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25/10.

Conforme resulta do art.º 2.º do DL.227/2012, este diploma legal, logo, o PERSI por ele instituído, apenas se aplica aos contratos de crédito bancário taxativamente enumerados nas 5 alíneas do n.º 1 do art.º 2.º.

Por outro lado, mesmo que estivéssemos perante um dos contratos de crédito bancário previstos no art.º 2.º/1, o PERSI também só é aplicável se o beneficiário do crédito for um Cliente Bancário Consumidor na definição do art.º 3.º/a), isto é, se o beneficiário do crédito for um Consumidor na acepção dada pelo art.º 2.º/1 da Lei de Defesa do Consumidor [Lei n.º 24/96, de 31/07], ou seja, se for uma pessoal singular que contrai um crédito para uma finalidade não profissional.

No caso concreto:

O contrato de mútuo em causa não se inclui nos contratos enumerados no art.º 2.º/1 do DL.227/2012, logo, o contrato não se encontra sujeito ao PERSI;

A beneficiária do crédito é uma sociedade comercial, logo, não é um Cliente Bancário Consumidor, à luz do art.º 3.º/a) do mesmo diploma legal.

Por outro lado, mesmo que o contrato em causa fosse subsumível ao DL.227/2012 e o beneficiário do crédito fosse um Cliente Bancário Consumidor, nunca o falecido AA poderia estar abrangido pelo PERSI, pois actuou apenas e só como Avalista da Livrança subscrita e entregue em branco com função de garantia, não se tendo assumido como fiador da mutuária, logo, não estaria abrangido pelo art.º 21.º do DL.227/2012. E mesmo que estivesse abrangido, o PERSI só é aplicável ao fiador caso este solicite a sua aplicação [art.º 21.º/2 do DL.227/2012].

Em conclusão, é totalmente improcedente este fundamento de EE.»

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Inconformados com esse indeferimento liminar dos seus Embargos de Executado, apresentaram DD e EE recurso de apelação contra o mesmo, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

«1) Foi a exequente que chamou ao processo – no âmbito do incidente de habilitação de herdeiros – os embargantes/herdeiros, pessoas singulares, sendo o seu património individual que será objeto de penhoras, visando o pagamento da dívida exequenda a instituição de crédito.

2) Por este motivo se entende ser aplicável ao presente caso – e, por isso, passível de prévia verificação de cumprimento de requisitos – o D.L. n.º 227/2012, de 25/10,

3) normativo que impôs princípios e normas a observar pelas instituições de crédito na prevenção e na regularização das situações de incumprimento de contratos de crédito pelos clientes bancários, instituindo uma rede extrajudicial de apoio aos clientes no âmbito da regularização dessas situações.

4) A partir do momento em que os embargantes/herdeiros foram, nessa qualidade, chamados ao processo como co-executados, passaram a ocupar a posição de reais clientes bancários da exequente sujeitos, por consequência, à observância por esta do vertido no diploma indicado.

5) O PERSI aplica-se a situações de incumprimento que se reportem a contratos de crédito – cfr.,art. 2.º, n.º 1 – a clientes bancários que assumam a qualidade de consumidores, na aceção dada pela Lei de Defesa do Consumidor – cfr., art. 3.º, alínea a).

6) Pretende-se com tal diploma que as instituições de crédito, perante incumprimento do consumidor, apresentem propostas de regularização adequadas à situação financeira daquele, como forma de resolução do litígio extrajudicial, promovendo consequentemente o cumprimento pontual do contrato e evitando o recurso imediato à via judicial.

7) Tendo o cliente bancário a garantia de que a instituição de crédito está impedida de resolver o contrato de crédito com fundamento em incumprimento, de intentar ações judiciais/executivas tendo em vista a satisfação do seu crédito, conforme consta do art. 18.º do mencionado diploma legal.

8) A falta de integração obrigatória do cliente bancário consumidor no PERSI, constitui impedimento legal do recurso à ação executiva para satisfação do crédito originado no âmbito da indicada relação contratual – cfr., art. 18.º, n.º 1, al. b) do indicado diploma legal.

9) Pese embora a dívida em causa provenha de crédito concedido a uma sociedade comercial, tendo os gerentes e cônjuges, a nível individual, prestado o seu aval em livrança, deviam estes ter sido integrados no indicado procedimento especial –

10) e, por força do chamamento aos autos dos recorrentes, efetuado pela exequente no âmbito do incidente de habilitação de herdeiros, os próprios recorrentes: não consta alegado, ou dos autos, que a exequente tenha cumprido o PERSI.

11) A exequente estava obrigada a integrar os executados – rectius, primeiramente os devedores/avalistas, e por força do óbito do avalista AA, os aqui executados/recorrentes – no PERSI, antes de intentar a presente ação executiva.

12) Não tendo a recorrida agido em conformidade, entende-se ocorrer exceção dilatória, insuprível, nos termos do disposto no artigo 18.º n.º 1, alínea b) do D.L. n.º 227/2012, de 25/10.

13) Ao não efetuar interpretação das normas jurídicas aplicáveis ao caso sub judice, supra indicadas, conforme vertido nos embargos de executado deduzidos, a sentença recorrida apresenta erro de julgamento.

14) A sentença recorrida violou o vertido no art. 2.º, n.º 1 da Lei n.º 24/96, de 31/07, e nos arts. 3.º, al. a) e 18.º n.º 1, alínea b) do D.L. n.º 227/2012, de 25/10, ao desconsiderar os embargantes como efetivos consumidores na aceção legal – por terem sido chamados ao processo, pessoas singulares, pelo exequente/recorrido – e ao não considerar aplicável, como devido, o PERSI ao caso em análise.

Termos em que, deve o presente recurso ser recebido e julgado procedente e, por consequência, revogar-se a douta sentença recorrida, decidindo-se pela procedência dos prévios embargos de executado deduzidos, só assim se fazendo

JUSTIÇA!»

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Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

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           O Exmo. Juiz a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando pela sua subida.

           Solicitadas e obtidas informações complementares certificadas à 1ª instância, nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

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           2QUESTÕES A DECIDIR: o âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 635º, nº4 e 639º do n.C.P.Civil – e, por via disso, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, as questões são:

- desacerto da decisão que julgou totalmente improcedente o fundamento de embargos de executado da “Exceção dilatória/PERSI” [porque tinha havido incumprimento por parte da Exequente da obrigação de integrar em PERSI primeiramente os devedores/avalistas, e por força do óbito do avalista AA, os aqui executados/recorrentes]?

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3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos necessários à presente decisão são, no essencial, os que decorrem do Relatório supra.

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4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Questão traduzida em aferir do desacerto da decisão que julgou totalmente improcedente o fundamento de embargos de executado da “Exceção dilatória/PERSI”

Recorde-se que a decisão recorrida foi no sentido da total improcedência desse fundamento.

Que dizer?

Salvo o devido respeito – e releve-se o juízo antecipatório! – entendemos que a decisão recorrida ajuizou com inteiro acerto, decisivamente por tal corresponder à incontornável consequência de não ser claramente aplicável o procedimento PERSI à situação ajuizada.

Senão vejamos.

Na verdade, como enfatizado no segmento da decisão ora sob recurso, o Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (“PERSI”) previsto no Decreto-Lei nº 227/2012, de 25/10 apenas se aplica aos contratos de crédito bancário taxativamente enumerados nas 5 alíneas do nº 1 do art. 2º.

Sucedendo que o “contrato de mútuo e de hipoteca” subjacente à livrança que foi apresentada como título executivo, manifestamente não se incluía nesse elenco.

Sendo igualmente certo e insofismável que nem o primitivo Executado AA, nem os Habilitados DD e EE tinham a natureza/qualidade jurídica de “Cliente Bancário Consumidor”.

Aliás, do normativo jurídico que contempla a definição de “consumidor” a considerar para este efeito, resulta incontroversamente a sem razão dos recorrentes.

Na verdade, no art. 3º do citado Decreto-Lei nº 227/2012, de 25/10, preceitua-se que «Para efeitos do presente decreto-lei, entende-se por:
a) «Cliente bancário» o consumidor, na aceção dada pelo n.º 1 do artigo 2.º da Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei n.º 24/96, de 31 de julho, alterada pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, que intervenha como mutuário em contrato de crédito;»

Sucedendo que o dito artigo 2.º da Lei de Defesa do Consumidor é muito claro no seu nº1 a preceituar que «Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.»

Ora, estando em causa nos presentes autos obrigações emergentes de uma operação bancária de empréstimo concedida pela Exequente à Executada “A... LDA.”, manifestamente que não havia aqui nenhum “Cliente Bancário Consumidor” a considerar.

Ademais, a linha de argumentação dos Recorrentes assenta em vários outros erros de enquadramento jurídico.

Senão vejamos.

Desde logo, temos que a Executada nos autos é efetivamente a Herança indivisa de AA, a qual se encontra na ação executiva representada pelos Habilitados ora Embargantes DD e EE.

Dito de outra forma: estes últimos não são “executados” nos autos.

Daqui decorre que enquanto não for efetuada a partilha da dita herança indivisa, não obstante a legitimidade para serem demandados nesta ação judicial destinada a exigir um crédito sobre a herança indivisa, mormente por via da sua habilitação para o efeito, os herdeiros, individualmente/pessoalmente, não têm qualquer legitimidade direta pelo pagamento (nem mesmo até ao limite do que receberem em herança).

Com efeito, em situação de herança indivisa não partilhada, e estando nos autos como “habilitados”, os herdeiros aqui Embargantes/recorrentes apenas asseguram a representação da herança indivisa do falecido Executado AA, tendo nessa medida que reconhecer a existência do crédito sobre a herança e a ver satisfeito esse crédito pelos bens da herança.[2]

O que tudo serve para dizer que os Embargantes ora recorrentes, enquanto “habilitados”, vieram assumir a posição de outrem, prosseguindo em lugar deste os termos da causa.

Donde, também por aí, é completamente desajustado estarem a invocar que tinham o direito de ser integrados no procedimento PERSI…

Atente-se que a execução foi instaurada em 19.03.2024, e os mesmos apenas passaram a figurar nos autos em 20.12.2024 [data da prolação da sentença de habilitação dos mesmos]!

Improcedem assim as alegações recursivas e o recurso.

                                                           *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA (…).

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6 – DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se, a final, pela improcedência do recurso, mantendo-se o a decisão recorrida nos seus precisos termos.

Custas do presente recurso a cargo da Exequente/recorrente.

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Coimbra, 20 de Novembro de 2025

Luís Filipe Cravo

João Moreira do Carmo

Carlos Moreira



[1] Relator: Des. Luís Cravo
   1º Adjunto: Des. João Moreira do Carmo
   2º Adjunto: Des. Carlos Moreira
[2] Vide o acórdão do TRC de 28.01.2010, proferido no proc. nº 81/09.1TBCHV.P1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.