I – Nos termos do nº 1 do art. 1689º do C.nCivil, a partilha a realizar por dissolução do casamento não se limita aos bens que integram o património comum, ao tempo da propositura da ação de divórcio, antes nela também se tem de levar em conta aquilo que cada um dos cônjuges dever a esse património.
II – É o próprio funcionamento da partilha e a sua finalidade que exigem um sistema de compensação entre patrimónios, para evitar o eventual enriquecimento de um dos cônjuges à custa do património comum, pelo que, fazem parte do património comum do (ex)casal, com vista à partilha subsequente ao divórcio, não apenas os bens existentes à data do pedido de divórcio, mas também aqueles bens que ao património comum devem ser conferidos por um dos ex-cônjuges.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]
Em autos de autos de Inventário para partilha dos bens comuns do casal formado por AA e BB, sequente ao divórcio de ambos, esta última, Requerente nos autos, para o que ora diretamente releva, suscitou que deviam ser relacionados os depósitos bancários no Banco 1... como uma única verba no montante de € 161.865,65, tendo a interessada levantado € 70.000,00 e o cabeça-de-casal feito seu o remanescente no valor de € 91.865,65.
O Cabeça de Casal, AA, admitiu por escrito os levantamentos referidos, contudo, referiu que os mesmos foram feitos na pendência do casamento; mais alegou que a interessada transferiu para a conta da sua irmã a quantia de € 70.000,00, e o cabeça-de-casal transferiu apenas a quantia de € 62.600,00 para a conta da sua mãe e resgatou a quantia de € 20.000,00; mais alegou que apenas levou a mais a quantia de 6.300€ (152.600€ : 2 = 76.300€ - 70.000€ = 6.300€ ), valor esse do crédito da interessada; referiu ainda que as contas bancárias, tanto à ordem como as de prazo, eram tituladas e movimentadas por ambos os cônjuges, e em proveito do ex-casal, não correspondendo à verdade que o cabeça-de-casal exauriu tal conta, inexistindo qualquer intenção de se apropriar de dinheiro do casal e qualquer comportamento doloso da sua parte.
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Apenas foi junto pelas partes prova documental, sendo que ambos os interessados estão de acordo em que devem ser relacionados saldos de contas bancárias, ainda que apresentem divergência quanto ao montante a relacionar – o cabeça-de-casal sustenta que deve ser relacionado o montante global de € 152.600,00, enquanto a interessada reclamante invoca que tal valor é de € 161.865,65.
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Através de despacho judicial proferido na sequência, em que o Exmo. Juiz a quo elegeu, no que ora releva, como questão a decidir, «1) da relacionação dos depósitos bancários no Banco 1... como uma única verba no montante de € 161.865,65, no pressuposto de a interessada ter levantado a quantia de € 70,000.00, tendo o cabeça-de-casal feito seu o remanescente de € 91.865,65; ou da sua relacionação nos termos requeridos pelo cabeça-de-casal, como € 152.600,00», foi proferida decisão no sentido de que em acréscimo ao “decidido pela Srª Notária a 27-01-2019”, e às “verbas reconhecidas pelo cabeça-de-casal na resposta à reclamação à relação de bens”[2] apenas deviam ser relacionados os seguintes depósitos bancários:
«1. O saldo existente na conta do Banco 2... em 10.10.2017 no valor de € 459,32 (quatrocentos e cinquenta e nove euros e trinta e dois cêntimos).
2. O saldo existente na conta n.º ...74-.. do Banco 1..., em 10.10.2017, no valor de € 209,12 (duzentos e nove euros e doze cêntimos).»
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Irresignada com essa decisão, a interessada BB interpôs recurso de apelação da mesma, cujas alegações finalizou com as seguintes conclusões:
«1. Por terem respaldo nos documentos juntos pelo C.C., deverá ampliar-se a tábua dos factos provados com o aditamento da seguinte matéria:
al. 10) A 22-09-2017, o cabeça-de-casal transferiu a quantia de € 8.221,51, da conta do Banco 1... n.º ...02, titulada pelos ex-cônjuges e partes deste processo para a conta de sua mãe, CC.
al. 11) A 25-09-2017, o cabeça-de-casal transferiu a quantia de € 4.500,00, da conta do Banco 1... n.º ...02, titulada pelos ex-cônjuges e partes deste processo para a conta de sua mãe, CC.
al. 12) A 25-09-2027, o cabeça-de-casal procedeu ao levantamento em numerário da quantia de € 3.500,00, da conta do Banco 1... n.º ...02, titulada pelos ex-cônjuges e partes deste processo.
al. 13) O cabeça-de-casal fez suas as quantias referidas nas al.s 4), 5), 11), 12) e 13).
2. Ainda que ambos os cônjuges tenham levantado as quantias das contas bancárias cerca de um mês anterior à dissolução do casamento por divórcio e tituladas por ambos, tais quantias deverão ser relacionadas no inventário como bem comum.
3. Ao não ter decidido da forma como é pugnada no presente recurso, o tribunal à quo violou e fez errada interpretação e aplicação do disposto nos art.ºs infringem os artigos 516º, 1689º, 1724º e 1725º do CCivil.
NESTES Termos, e nos demais supridos por Vossas Excelências,
Deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a douta sentença no segmento recorrido.
Assim de fazendo,
JUSTIÇA. »
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Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.
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Na sequência processual, o Exmo. Juiz de 1ª instância prosseguiu com a admissão do recurso e fixação do seu efeito (como “suspensivo”, nos termos do nº3 do art. 1123º do n.C.P.Civil).
Nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
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2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:
- impugnação da decisão sobre a matéria de facto [no sentido de que devem ser aditados 4 novos pontos de facto ao elenco dos factos “provados”, com a redação que enuncia];
- desacerto da decisão [pugnando no sentido de que deviam ser relacionadas no inventário, como bem comum dos cônjuges, as quantias das contas bancárias tituladas por ambos levantadas pelos mesmos cerca de um mês anterior à dissolução do casamento por divórcio].
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3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado/fixado como “provado” pelo tribunal a quo, ao que se seguirá o elenco dos factos que o mesmo tribunal considerou/decidiu que “não se provou”, sem olvidar que tal enunciação poderá ter um carácter “provisório”, na medida em que o recurso tem em vista a alteração parcial dessa factualidade.
Tendo presente esta circunstância, são os seguintes os factos que se consideraram provados no tribunal a quo:
«1) AA e BB casaram entre si a ../../1993, sem convenção antenupcial, tendo o casamento celebrado entre ambos sido dissolvido por divórcio, por decisão de 13-10-2017, transitada em 13-10-2017, proferida pela Conservatória do Registo Civil ..., sendo o pedido de divórcio na Conservatória datado de 10-10-2017.
2) A 19-09-2017, a interessada BB transferiu a quantia de € 70.000,00 da conta do Banco 1... n.º ...02, titulada pelos ex-cônjuges e partes deste processo, para a conta titulada por DD, com o n.º ...16, fazendo sua tal quantia.
3) A 20-09-2017, o cabeça-de-casal retirou a quantia de € 62.600,00, da conta do Banco 1... n.º ...02, titulada pelos ex-cônjuges e partes deste processo para a conta de sua mãe.
4) No dia 20-09-2017, o cabeça-de-casal resgatou o montante de € 20.000,00 de valores mobiliários, relativamente à conta de títulos ..., no Banco 1..., titulada pelos ex-cônjuges e aqui partes neste processo.
5) À data do pedido de divórcio e do decretamento deste, a conta do Banco 1... n.º ...02 tinha o saldo de cerca de € 209,12.
6) A 13-09-2017, a conta bancária no Banco 2... apresentava um saldo de € 6.132,54.
7) A 10-10-2017, a conta bancária no Banco 2... apresentava um saldo de € 459,32.
8) Na resposta à reclamação de bens, datada de 08-10-2018, o Cabeça-de-Casal AA, reconheceu a existência de:
«n) O saldo existente na conta do Banco 2... em 10.10.2017 era à data da entrada do pedido de divórcio na CRC era de 459,32€ conforme extractos que se apresentarão na conferência preparatória;
o) O saldo existente na conta n.º ...74-.. do Banco 1..., na data anteriormente indicada, era de 209,12€, conforme extractos que se apresentarão na conferência preparatória;»
9) Na resposta à reclamação de bens, datada de 08-10-2018, o Cabeça-de-Casal AA, verteu:
«No referente às aplicações financeiras, apenas existiam acções do Banco 1... que o cabeça de casal resgatou no valor total de 20.000,00€».»
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Sendo consignado o seguinte em termos de factos “não provados” pelo tribunal a quo:
«a) O cabeça-de-casal levantou o remanescente da conta bancária do Banco 1..., no montante de € 91.865,65, fazendo sua tal quantia.
b) O cabeça-de-casal ocultou a existência dos depósitos bancários no Banco 1... com o deliberado propósito de os subtrair à partilha.
c) O cabeça-de-casal procedeu a um número não concretamente apurado de levantamentos na conta bancária do Banco 2..., deixando apenas na conta a quantia de € 82,26 a 16-10-2017.»
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3.2 – A primeira ordem de questões que com precedência lógica importa solucionar é a que se traduz na impugnação da decisão sobre a matéria de facto [no sentido de que devem ser aditados 4 novos pontos de facto ao elenco dos factos “provados”, com a redação que enuncia]
Que dizer?
Como é bom de ver, estão em causa nos três primeiros pontos de facto alegadas transferências de montantes monetários, feitas pelo cabeça de casal, da conta do Banco 1..., titulada pelos ex-cônjuges, sendo que mais concretamente está em causa o parcial de € 8.221,51 [a 22-09-2017], o de € 4.500,00 [a 25-09-2017], e o de € 3.500,00 [a 25-09-2027], sendo certo que os dois primeiros destes montantes teriam sido transferidos «para a conta de sua mãe, CC».
Assim como está em causa, no quarto ponto de facto, que o cabeça de casal «fez suas» as ditas quantias (a par das outras a cuja transferência procedeu).
Recorde-se que o Exmo. Juiz a quo fundamentou a sua convicção quanto à “não prova” destas factualidades com o argumento de «não ter sido produzida prova suficientemente consistente relativamente aos mesmos», e com a «ausência de prova no sentido da sua verificação»
Que dizer?
Salvo o devido respeito não lhe assiste integral razão.
É certo que a “prova” nos presentes autos, como flui do já supra exposto, era apenas a prova documental.
Mas a tal importava acrescer o acordo das partes: recorde-se que ambos os interessados estavam de acordo em que deviam ser relacionados saldos de contas bancárias, ainda que apresentassem divergência quanto ao montante a relacionar.
Ora é por assim ser que, da conjugação da prova documental junta (a saber, “extracto de movimentos” bancários) com a posição das partes, resulta efetivamente um desacerto no que se deu como “provado” (e correspetivamente como “não provado”).
Na verdade, confrontando o dito extrato bancário que consta a fls. 26 vº e 27 (da versão em papel dos autos de recurso), relativo à conta do Banco 1... n.º ...02, titulada pelos ex-cônjuges ambos aqui interessados, constata-se que existe mais uma “TRF CC”, realizada no dia “2017-09-25”, do montante de € 4.500,00, que se traduziu num débito nessa conta.
Ora se assim é, atendendo à posição de princípio das partes nos autos, no sentido de deverem ser relacionados as quantias transferidas por cada um deles, por reconhecerem que cada um deles «fez suas» as mesmas, encontra-se feita nesse particular uma tal prova, pois que se tratou de “TRF CC” [que resulta dos autos ser a mãe do cabeça de casal].
Já o mesmo se não diga quanto aos outros dois montantes em causa: quanto ao parcial de € 8.221,51 [a 22-09-2017], pela razão liminar e decisiva de que se tratou de um movimento a “crédito” na conta; e quanto ao parcial de € 3.500,00 [a 25-09-2027], por apenas resultar do extrato bancário que se tratou de um “Levantamento Numerário”, sem qualquer identificação de quem foi o autor do mesmo ou o seu beneficiário.
Importa, assim, proceder apenas ao aditamento ao elenco dos factos “provados” do dito montante de € 4.500,00, através do aditamento do ponto de facto que passa a figurar com a seguinte numeração e teor:
«4-A) A 25-09-2017, o cabeça-de-casal retirou a quantia de € 4.500,00, da conta do Banco 1... n.º ...02, titulada pelos ex-cônjuges e partes deste processo, para a conta de sua mãe, fazendo sua tal quantia.»
Por outro lado, também se reconhece razão à interessada ora recorrente na crítica quanto aos demais levantamentos feitos pelo cabeça de casal que constam dos factos “provados” relativamente à omissão neles de que este «fez suas» as quantias a que os mesmos se reportam – isso foi admitido pelo próprio nos autos, na conjugação de que se tratou igualmente de “TRF CC” (isto é, para conta da sua mãe), como flui da consulta do já citado extrato bancário quanto à quantia de € 62.600,00.
Donde a reformulação da redação dos pontos de facto “provados” sob “3)” e “4)”, os quais passam a figura sob a seguinte forma:
«3) A 20-09-2017, o cabeça-de-casal retirou a quantia de € 62.600,00, da conta do Banco 1... n.º ...02, titulada pelos ex-cônjuges e partes deste processo, para a conta de sua mãe, fazendo sua tal quantia.»
«4) No dia 20-09-2017, o cabeça-de-casal resgatou o montante de € 20.000,00 de valores mobiliários, relativamente à conta de títulos ..., no Banco 1..., titulada pelos ex-cônjuges e aqui partes neste processo, fazendo sua tal quantia.»
Nestes termos, mais restritos, procedendo a impugnação à decisão sobre a matéria de facto.
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4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Importa nesta sede aferir do invocado desacerto da decisão [pugnando no sentido de que deviam ser relacionadas no inventário, como bem comum dos cônjuges, as quantias das contas bancárias tituladas por ambos levantadas pelos mesmos cerca de um mês anterior à dissolução do casamento por divórcio].
Recorde-se que na decisão recorrida o Exmo. Juiz a quo perfilhou o entendimento jurídico de que «(…) não se verifica a necessidade do mecanismo especial das compensações, pois não se operou, juridicamente, qualquer transferência de valores do património comum do casal para o património próprio do cônjuge marido ou da interessada: os valores levantados da conta do Banco 1... e da conta de títulos, antes do divórcio não perderam a sua qualidade de bens comuns do casal para se integrarem no património próprio de cada um dos cônjuges.
Numa perspectiva jurídica, o património próprio de cada um dos cônjuges não ficou enriquecido, nem o património comum ficou correlativamente empobrecido, pois os bens em apreço nunca perderam a qualidade de bens comuns.
O mecanismo especial das compensações visa reconstituir o valor dos patrimónios mediante o reconhecimento de créditos de compensação em favor de cada património empobrecido.»
Que dizer?
Com esta linha de argumentação, o Exmo. Juiz a quo perfilhou um dos entendimentos existentes nesta matéria – a saber, aquele que sustenta que o património comum do casal que pode e deve ser partilhado é integrado pelos bens e direitos existentes à data da propositura da ação de divórcio[3] – o que fez por considerar ser o que melhor se ajustava à situação dos autos, mas sem omitir a existência do outro entendimento.
Sucede que face ao quadro fáctico que agora se considerou ser o efetivamente apurado, consideramos que a razão está do lado da interessada/recorrente, a qual, desde já se diga, se encontra alinhada com o dito outro entendimento que foi desconsiderado.
Este distinto entendimento sustenta, com base no nº1 do art. 1689 C.Civil, que os bens a partilhar são não apenas os que existam à data da propositura da ação de divórcio, mas também aqueles bens que ao património comum devem ser conferidos por um dos cônjuges.
Senão vejamos.
Conforme expendido em douto aresto no sentido deste segundo entendimento, a argumentação que está na sua base do mesmo é, no essencial, a de que por força do «(…) princípio geral de compensação, em associação ao princípio geral de proibição do enriquecimento, na fase da liquidação da comunhão, cada um dos cônjuges deve conferir ao património comum tudo o que lhe deve. O cônjuge devedor deverá, assim, compensar nesse momento o património comum pelos benefícios obtidos no seu património próprio com sacrifício dos bens comuns.
(…)
Em virtude de a alienação do automóvel e de o levantamento do dinheiro terem sido feitos, na constância do casamento, cerca de cinco meses antes de a ação de divórcio ser proposta, sem o consentimento do outro cônjuge, surgiu no património comum do casal um crédito correspondente ao valor atualizado do automóvel e do dinheiro.
O cônjuge cabeça de casal (também cônjuge administrador no caso do dinheiro: artigo 1678.º, n.º 2, al. a), do Código Civil) terá, assim, que compensar, no momento da partilha, no processo de inventário, o património comum, integrando no ativo da comunhão o valor do levantamento de 22.500, 00 euros, a não ser que demonstre, mas é a ele que cabe o ónus da prova, que o dinheiro foi utilizado em proveito comum do casal.
(…)
A aplicação de um princípio geral que obriga às compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges e a massa patrimonial comum sempre que um deles, no momento da partilha, se encontre enriquecido em detrimento do outro, permite evitar esta situação de desigualdade. Senão fosse assim, verificar-se-ia um enriquecimento injusto de um dos cônjuges à custa do património comum, resultado avesso à vontade do legislador e incoerente com o regime jurídico global da partilha, centrado no respeito pela regra da metade consagrada no artigo 1730.º do Código Civil, norma inderrogável conforme Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02-02-2022 (proc. n.º 322/13.0TVLSB.E1.S1) e num princípio geral de compensação de patrimónios, também aceite pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 21-04-2022 (proc. n.º 463/13).
(…)
Os bens em litígio – o dinheiro levantado pelo cônjuge cabeça de casal e os dois automóveis – devem ser relacionados e objeto de partilha, a fim de se proceder às compensações entre patrimónios, executando-se a regra da metade, sem enriquecimento do património próprio de nenhum dos cônjuges à custa do património comum.»[4]
Não vemos como dissentir desta linha de entendimento.
É que nos termos do nº 1 do art. 1689º do C.Civil, a partilha a realizar por dissolução do casamento não se limita aos bens que integram o património comum, ao tempo da propositura da ação de divórcio, antes nela também se tem de levar em conta aquilo que cada um dos cônjuges dever a esse património.
Ora se assim é, temos que é o próprio funcionamento da partilha e a sua finalidade que exigem um sistema de compensação entre patrimónios, para evitar o eventual enriquecimento de um dos cônjuges à custa do património comum.
Sendo certo que como já foi doutamente sustentado a este propósito «(…) deve entender-se que o património empobrecido tem um direito a uma compensação no momento da dissolução do regime, em qualquer situação em que se verifique o enriquecimento de uma das massas patrimoniais à custa da outra, mesmo que não exista uma norma legal específica a ressalvar expressamente a correspondente compensação.
A não ser assim, verificar-se-ia um enriquecimento injusto da comunhão à custas do património de cada um dos cônjuges ou de um destes à custas daquela.
Estas compensações entre as várias massas patrimoniais existentes nos regimes de comunhão visam, ao fim e ao cabo, a reintegração do equilíbrio patrimonial quebrado pelo fluxo de valores entre as massas, através das correcção das situações em que uma delas se enriqueceu em detrimento da outra. O mecanismo das compensações é, assim, mais uma das manifestações do princípio da equidade que rege as relações patrimoniais entre os cônjuges.»[5]
De referir que, consabidamente, ao saldo das contas bancárias aplica-se o disposto no art. 516º, do C.Civil, e daí que nas relações internas entre os vários contitulares presume-se que todos têm uma pretensão a idêntica percentagem do saldo, quer este seja positivo, quer seja negativo.[6]
Do mesmo modo, também dispõe o art. 166º, nº4, alínea d) do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo DL nº298/92 de 31.12., que «(…) na ausência de disposição legal em contrário, presumem-se pertencerem em partes iguais aos titulares os saldos das contas colectivas, conjuntas ou solidárias.».
Revertendo estes ensinamentos ao acaso ajuizado, na medida em que resultou nele expressamente apurado que cada um dos interessados fez levantamentos cerca de 1 mês antes do pedido de divórcio de ambos, sem que qualquer deles tivesse logrado provar que era titular da totalidade, ou de percentagem maior, no que diz respeito às quantias monetárias ou valores mobiliários existentes na conta do Banco 1..., acrescendo que não resultou provado que as quantias ou valores por cada um deles levantadas tivesse permanecido no património comum, mas antes que cada um «fez suas» as mesmas, impõe-se a sua relacionação, tendo em vista serem objeto de partilha.
Ademais, salvo o devido respeito pelo entendimento contrário, esta solução que se está a adotar é a única que permite realizar uma partilha equitativa do património comum do casal e repor o equilíbrio económico posto em causa pelo cônjuge administrador e por isso a ela aderimos.
Na verdade, parece-nos excessivo – donde, injusto! – impor ao outro cônjuge que, para frustrar a tentativa de enriquecimento ilegítimo do cônjuge administrador, lance mão de uma eventual ação de responsabilidade civil em que tenha de provar que este agiu com a intenção de lhe causar prejuízo (segmento final do nº 1 do artigo 1681.º do Código Civil), sabendo-se como é de prova difícil esse facto subjetivo...
Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, se conclui pela revogação parcial da decisão recorrida, ordenando-se que para além dos saldos bancários existentes que se determinaram ser relacionados, sejam ainda relacionados todos os montantes que se apuraram terem sido levantados por cada um dos interessados da conta do Banco 1... melhor identificados nos pontos de facto “provados” sob “2)”, “3)”, “4)” e “4-A)”.
Nestes termos e limites procedendo as alegações recursivas e o recurso.
*
5 – SÍNTESE CONCLUSIVA (…).
*
6 – DISPOSITIVO
Pelo exposto, decide-se, a final, dar parcial procedência à apelação e, consequentemente, ordena-se que, para além dos saldos bancários existentes que a decisão recorrida determinou que fossem relacionados, sejam ainda relacionados todos os montantes que se apuraram terem sido levantados por cada um dos interessados da conta do Banco 1..., melhor identificados nos pontos de facto “provados” sob “2)”, “3)”, “4)” e “4-A)”.
As custas do recurso serão suportadas por ambas as partes, na proporção de ½ para cada uma.
Coimbra, 20 de Novembro de 2025
José Fonte Ramos
Vítor Amaral
[1] Relator: Des. Luís Cravo
1º Adjunto: Des. Fonte Ramos
2º Adjunto: Des. Vítor Amaral
[2] Cf. requerimento de 8.10.2018.
[3] Vide nesse sentido o acórdão do STJ de 2.05.2012 (proferido no proc. nº 238/06.7TCGMR-B.G1.S1), e o acórdão do STJ de 26.11.2014 (proferido no proc. nº 2009/06.1TBAMD-B.L1.S1), estando ambos estes arestos acessíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[4] Trata-se do acórdão do STJ de 14.07.2022, proferido no proc. nº 4106/20.1T8VNG-B.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj; no mesmo sentido, inter alia, o acórdão do STJ de 20.09.2023 (proferido no proc. nº 947/17.5T8CVL-C.C1.S1) e o acórdão do STJ de 29.10.2024 (proferido no proc. nº 431/19.2T8AND.P1.S1), estando ambos estes arestos igualmente disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[5] Assim por RITA LOBO XAVIER, in “Limites à Autonomia Privada na Disciplina das Relações Patrimoniais entre os Cônjuges”, a págs. 396-398.
[6] Cf. MARGARIDA LIMA REGO, in “Código Civil Anotado”, I, Livª Almedina, 2017, a págs. 680, e na jurisprudência, inter alia, os acórdãos do STJ de 22.02.2011 (proferido no proc. nº 1561/07. 9TBLRA.C.1.S.1) e de 24.05.2022 (proferido no proc. nº 4482/20.6T8LSB.L1.S1), estando ambos estes arestos disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.