PRESTAÇÃO DE SERVIÇO POSTAL
INCUMPRIMENTO
Sumário

I – Mesmo considerando-se que o artigo 12.º, n.º 4, da Lei n.º 17/2012, de 26-04, estatui que, salvo em circunstâncias ou condições geográficas excepcionais previamente definidas, os prestadores de serviço universal devem assegurar uma recolha e uma distribuição dos envios postais abrangidos no âmbito do serviço universal pelo menos uma vez por dia, em todos os dias úteis, não resulta desta norma a imposição ao prestador do serviço postal de uma obrigação de resultado que o vincule perante o remetente a recolher e distribuir a respectiva correspondência no prazo peremptório de um dia útil. Tal norma define, sim, um dever do prestador do serviço postal relacionado com os parâmetros de qualidade do seu serviço e inerentes objectivos de desempenho que devem ser observados, nomeadamente ao nível de prazos de encaminhamento e de regularidade e fiabilidade dos serviços, os quais se encontram sujeitos à supervisão e fiscalização da entidade reguladora da sua actividade – a Autoridade Nacional de Comunicações [ANACOM] –, mas cujo incumprimento (tal como o das suas demais obrigações que genericamente se encontram definidas no artigo 37.º da Lei n.º 17/2012, de 26-04) apenas dá azo à aplicação dos mecanismos sancionatórios previstos nos artigos 48.º e 49.º dessa Lei.
II – O prestador de serviço postal não obrigado contratualmente a entregar a correspondência expedida pelos clientes dentro de um período de tempo fixo pode, ainda assim, incorrer em incumprimento contratual se violar deveres acessórios de conduta que lhe sejam impostos pelos ditames da boa-fé. De todo o modo, quando esse prestador publicita que o prazo de entrega de correio registado para Portugal continental é de “cerca de um dia útil”, só lhe pode ser imputada responsabilidade por má prestação do serviço se a entrega da correspondência se concretizar, por culpa sua, em data que, perante o prazo anunciado, surja como desrazoável, porque não contida dentro da margem de tolerância que o uso da expressão “cerca de um dia útil” permite.

Texto Integral

Processo: 4087/24.2T8VNG.P1

Relator: José Nuno Duarte; 1.º Adjunto: Manuel Fernandes; 2.º Adjunto: José Eusébio Almeida.

Acordam os juízes signatários no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO

A..., Lda., NIPC ...83, instaurou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra B..., S.A., NIPC ...68, pedindo que a R. seja condenada a pagar-lhe a quantia de 5.000,00€, a título de danos patrimoniais, e a quantia de 2.500,00€, a titulo de danos não patrimoniais, ambas acrescidas de juros de mora à taxa legal, vencidos, no valor de 200,00€, e vincendos, até efectivo e integral pagamento.

Para fundamentar o seu pedido, a A. alegou, em síntese, que enviou através dos serviços da R. uma carta a comunicar a uma funcionária sua a cessação, por caducidade, do seu contrato de trabalho, mas que, por a ré se ter atrasado na entrega da mesma, a comunicação não pôde produzir o efeito a que se destinava, o que causou à A. prejuízos patrimoniais e não patrimoniais.

A R. apresentou contestação, pugnando pela sua absolvição.

O processo seguiu os seus regulares termos e, depois de ser encerrada a audiência final, foi proferida sentença com a seguinte parte dispositiva:
a) Decido julgar a presente acção totalmente improcedente e, em consequência, absolver a ré dos pedidos contra si formulados.
b) Condeno a autora no pagamento das custas processuais, nos termos do artigo 527.º do Código de Processo Civil.


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A A. veio recorrer desta decisão, apresentado alegações que foram finalizadas com as seguintes conclusões:
a) A Recorrente remeteu, atempadamente, carta registada com A/R à sua ex-colaboradora, no sentido de fazer cessar por caducidade o seu contrato de trabalho a termo certo;
b) Na verdade, fê-lo com a antecedência mínima, mas que permitiria que, caso fosse expedida sem qualquer vicissitude por parte da Recorrida, a mesma fosse entregue em respeito ao prazo imposto pelo artigo 344º nº 1 do Código do Trabalho.
c) Contudo, a carta expedida em 07/07/2022 apenas foi entregue em 14/07/2022, resultando provado que tal atraso se deveu a erro na leitura do código de barras pela Recorrida, erro esse que apenas pode ser imputável à própria Recorrida e em claro incumprimento das condições contratuais que a própria Recorrida faz questão de publicitar junto dos seus utilizadores.
d) Pese embora a conduta da Recorrente tenha sido a correta, o Tribunal a Quo considerou como facto não provado que a Recorrida estivesse obrigada a entregar o correio registado no dia seguinte ao da sua expedição, mas no entanto, tal obrigação decorre da própria informação disponibilizada pela Recorrida no seu website, onde se anuncia que o prazo de entrega do correio registado em Portugal Continental é de "cerca de um dia útil".
e) Resultou provado que a entrega, ao destinatário, de tal carta registada com A/R, apenas ocorreu no 5º dias útil apos a sua receção para expedição, nos balcões da Recorrida, e que tal apenas ocorreu em virtude de má leitura do código de barras pelo leitor ótico da Recorrida, que levou a que tal carta fosse remetida ao Centro Operacional / Centro de Entregas de ..., quando deveria ter sido remetido para o Centro Operacional /Centro de Entregas ....
f) Tal erro era perfeitamente evitado, pela própria Recorrida, que deveria ter e manter em funcionamento, um eficaz sistema de leitura de códigos de barras, que evitasse o erro agora em apreço, erro esse apenas e só imputável à Recorrida, que não cuidou que o seu equipamento estivesse em boas condições de funcionamento, quando o podia e devia ter feito, e como tal, é a única responsável pelo sucedido.

DO DIREITO E DA RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL DA RECORRENTE
g) Em causa nos autos está um contrato de prestação de serviços, com previsão no artigo 1154º do Código Civil, que dispõe que o “Contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição”.
h) Conforme resulta do artigo 4º, nº 1, alínea d) da Lei 17/2012, integram a actividade de serviço postal as operações de Distribuição, a qual consiste no conjunto de operações realizadas desde a divisão dos envios postais, no centro de distribuição da área a que se destinam, até à entrega aos seus destinatários, pessoas singulares ou colectivas a quem é dirigido um envio postal, e consagra no nº 4 do artigo 12º que os prestadores de serviço universal devem assegurar uma recolha e uma distribuição dos envios postais abrangidos no âmbito do serviço universal pelo menos uma vez por dia, em todos os dias úteis, salvo em circunstâncias ou condições geográficas excecionais previamente definidas pelo ICP-ANACOM;
i) Como resulta do artigo 406º, nº 1, do Código Civil, o contrato deve ser pontualmente cumprido, o que não sucedeu, já que a carta em apreço foi entregue ao destinatário decorridos 5 dias uteis.
j) Estabelece-se, no art. 799.º, n.º 1, do CC, uma presunção de culpa do devedor no âmbito da responsabilidade civil contratual, sendo despicienda a modalidade de culpa, lato sensu, para efeitos de imputação de responsabilidade ao agente, e sem esquecer que a Recorrente beneficia da Presunção Legal ínsita no nº 1 do artigo 799º do Código Civil, por via da violação do contrato já referido (vide art. 798º do CC).
k) A Recorrida, ao anunciar um prazo de entrega de cerca de um dia útil, assume um compromisso com os seus clientes, gerando uma expectativa lícita de cumprimento naquele prazo, da sua obrigação, já que, aliás conforme dispõe o artigo 236º do C.C, um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, apenas podia deduzir das declarações do declarante, como a Recorrente e qualquer normal declaratário utilizador dos serviços da Recorrente, deduziu ou seja, que a entrega de correspondência registada com A/R será feita em um dia útil, não em 5, como foi o caso.
l) A entrega extemporânea da carta de caducidade levou a que a ex-funcionária da Recorrente interpusesse ação para impugnação do despedimento, e como resultado, a Recorrente foi compelida a acordar o pagamento de €5.000,00, o que consubstancia dano diretamente imputável à conduta da Recorrida.
m) Tendo ficado provado que a Recorrente sofreu um prejuízo patrimonial de €5.000,00 e que suportou prejuízos morais, nomeadamente desgaste emocional e dano reputacional, a Recorrida deve ser condenada no pagamento dos montantes peticionados.
Atendendo a tudo o que constitui matéria do presente Recurso, e com o devido respeito, que é muitíssimo, jamais se poderia extrair uma decisão como a constante da Sentença, com base naqueles factos pois os mesmos apontam precisamente para o sentido inverso, motivo pelo qual a prova carreada para os autos e mesmo a matéria de facto provada e assente deveriam levar a que o Tribunal a Quo proferisse Sentença em sentido oposto.

Foram assim violadas as normas previstas nos artigos 236º, 342º, 406º, 563º, 798º e 799º, todos do Código Civil, e artigo 12º nº 4 da Lei 17/2012 (Lei Bases Serviço Postal) todos do Código Civil, o que agora se alega para os devidos e legais efeitos.

Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, e sempre com o mui douto suprimento de V. Exa., deve ser revogada a sentença e substituída por outra que fazendo a melhor interpretação e aplicação da lei aos factos apurados Condene a Recorrida no pedido efectuado pela Recorrente, concedendo-se provimento ao presente Recurso, como é da mais elementar e sábia JUSTIÇA.

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A R. apresentou contra-alegações, formulando, no final, as seguintes conclusões:
a) Interpôs a Recorrente o presente Recurso de Apelação, insistindo que, se não fosse o erro derivado do sistema de leitura de códigos de barras, a carta enviada para a ex-colaboradora não teria sido entregue de forma extemporânea, mas sim no dia 08/07/2022.
b) Os prazos previstos e apresentados aos clientes da Recorrida são meramente indicativos, pelo que não vinculam a Requerida a ter de entregar em um dia útil toda a correspondência que recebe para distribuição.
c) O tribunal a quo deu como não provado o facto de “a ré estar obrigada a entregar o correio registado com A/R no dia útil imediatamente seguinte ao dia da sua expedição.”
d) Ao ser referido que o prazo é de cerca de um dia útil, outra interpretação não pode ser realizada senão a de que este prazo é uma mera estimativa.
e) Na ótica do homem médio, a frase “cerca de um dia útil” não leva a interpretar e concluir que a entrega será realizada em “até um dia útil”.
f) Se só enviou a carta no dia 07/07/2022 por considerar que, caso enviasse por correio registado, certamente chegaria até ao dia 08/07/2022, tal responsabilidade apenas é imputável à própria da Recorrente.
g) Pelo que a Recorrente não tem razão quando alega que foram incumpridas as condições contratuais “ao contrário do que era garantido e expectável face à publicitação efetuada”, pois a Recorrida nunca garantiu nenhum prazo.
h) Veio ainda a Recorrente alegar que a Recorrida incorreu em responsabilidade civil contratual.
i) A conjugação da lei com a informação disponibilizada pela Recorrida aos seus clientes, não vincula a Recorrida a entregar, de forma perentória, as correspondências em um dia útil.
j) Pelo que a indemnização a título de responsabilidade civil só seria devida caso tivesse sido criado um dano à aqui Recorrente derivado de conduta culposa da Recorrida.
k) Tendo em conta que não existe um prazo fixo e legalmente previsto, e ainda tendo em consideração que a carta foi entregue à destinatária com aviso de receção, não houve qualquer incumprimento contratual por parte da Recorrente, nem outra interpretação pode ser daqui retirada.
l) Não existindo um incumprimento contratual por parte da Recorrida, não pode ser atribuída à Recorrente uma indemnização a título de danos patrimoniais derivado de responsabilidade civil contratual.
m) No mesmo sentido, entende a Recorrida não ser, igualmente, devida qualquer indemnização à Recorrente a título de danos não patrimoniais.
n) A Recorrente alega que sofreu “graves transtornos, incómodos e constrangimentos”, contudo os mesmos não são aptos e suficientes para justificar a atribuição de uma indemnização por danos não patrimoniais.
o) Alega ainda a Recorrente que se sente vilipendiada, contudo, as sociedades comerciais apenas têm direito a receber uma indemnização a título de danos patrimoniais indiretos, quando se verifique uma lesão no seu bom nome ou haja uma ofensa do seu crédito.
p) Pelo que, outra opção não resta senão manter como provados todos os factos outrora considerados provados, e manter como não provados os factos considerados como não provados por parte do Tribunal a quo na Sentença recorrida, os quais demonstram que a Recorrida cumpriu com todas as obrigações e deveres a que se encontrava adstrita.
q) Concludentemente, deverá a Sentença proferida pelo Tribunal a quo ser mantida, confirmando-se a absolvição da Recorrida dos autos.
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, deverá ser negado provimento ao recurso a que se responde nos termos supra exarados e, em consequência, ser mantida a sentença de absolvição proferida a 18-12-2024.
Só assim se fazendo a tão costumada JUSTIÇA.

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O recurso foi admitido por despacho, que o classificou como sendo de apelação e lhe atribuiu efeito meramente devolutivo, ordenando a sua subida imediata, nos próprios autos, a este Tribunal da Relação.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos recorrentes, sem prejuízo da apreciação por parte do tribunal ad quem de eventuais questões que se coloquem de conhecimento oficioso, bem como da não sujeição do tribunal à alegação das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (cf. artigos 5.º, n.º 3, 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código do Processo Civil), há apenas uma questão a tratar:

→ se a Ré deve indemnizar a Autora por motivos de incumprimento contratual.


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III – FUNDAMENTAÇÃO


A) Dos factos

Para a decisão a proferir, há que atender, ante a ausência de qualquer impugnação no âmbito do recurso interposto, aos factos que foram expressos na decisão recorrida, a saber:

Factos provados
1. A autora exerce a actividade comercial de comércio a retalho em supermercados e hipermercados e à qual corresponde o CAE 47111, mediante a exploração de um supermercado de médias dimensões, sob a Insígnia ... em ....
2. A ré é uma sociedade que, nos termos consagrados no Decreto-Lei n.º 448/99, de 4 de Novembro, é concessionária do serviço postal universal e tem como objecto a exploração dos serviços públicos de correios, nos termos do Decreto-Lei n.º 87/92, de 14 de Maio.
3. A autora, mediante contrato individual de trabalho, admitiu AA, pelo prazo de seis meses, que teve o seu início a 24/01/2022 e teria o seu termo a 24/07/2022.
4. AA intentou contra a aqui autora acção que que correu termos sob o Proc. nº 8579/22.0T8VNG, na Comarca do Porto, Juízo do Trabalho de Vila Nova de Gaia Juiz 1, no âmbito da qual as partes celebraram acordo.
5. A autora, no dia 07/7/2022, mediante recurso aos serviços postais prestados pela ré, remeteu a AA uma carta registada com aviso de recepção, onde lhe comunicava que, uma vez chegado ao termo do contrato de trabalho, este caducava.
6. No website da Ré consta a seguinte informação: “Correio registado (…) Prazo de entrega para Portugal continental, cerca de um dia útil”.
7. A carta registada com aviso de recepção enviada pela ré a AA foi-lhe entregue no dia 14/07/2022, ou seja, no terceiro dia útil posterior ao da expedição.
8. A aludida carta enviada pela Autora teve o seguinte percurso:





9. A carta foi primeiramente enviada pela ré para o Centro Operacional / Centro de Entregas de ..., no primeiro dia útil posterior ao envio, e em 11/07/2022, o segundo dia útil posterior ao envio, para o Centro Operacional / Centro de Entregas ....
10. Tal procedimento da ré deveu-se à má leitura do código de barras pelo leitor óptico, o que obrigou a ré a fazer a selecção manual.
11. A carta saiu para entrega no dia 12/07/2022, tendo a mesma sido conseguida a 14/7/2022.
12. AA intentou contra a autora acção de processo comum para impugnação judicial de despedimento, fundada na inobservância do prazo de pré-aviso da caducidade do contrato de trabalho, que correu termos sob o Proc. nº 8579/22.0T8VNG, Comarca do Porto, Juízo do Trabalho de Vila Nova de Gaia Juiz 1, no qual a aqui autora celebrou acordo com a autora com o valor de 5.000,00 €.
13. Aquando da celebração dos contratos de prestação de serviços com os seus clientes, a autora coloca à sua disposição um talão de aceitação de prazo de doze meses dentro do qual os clientes podem apresentar uma reclamação junto da mesma.
14. A ré tentou a entrega da carta enviada pela autora a AA no terceiro dia útil posterior ao da expedição, o dia 12 de Julho de 2022, não tendo a destinatária aberto a porta.
15. A ré tentou entregar a carta novamente no dia 13 de Julho de 2022, não tendo a destinatária aberto a porta.
16. Após as duas tentativas frustradas de entrega, a ré colocou a carta no ponto de entrega da loja CRR de ... para que fosse levantada.
17. A destinatária da carta levantou a carta no dia 14 de Julho de 2022.

Factos não provados
a. A ré está obrigada a entregar o correio registado com A/R no dia útil imediatamente seguinte ao dia da sua expedição.
b. Em virtude da conduta da ré, a autora viu o seu nome lesado perante AA e perante as Instâncias Judiciais.


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A recorrente, apesar de não ter impugnado a decisão sobre a matéria de facto, requereu a rectificação do lapso que consta da redacção do facto provado 7 quando aí se diz que o dia 14/07/2022 é o terceiro dia útil posterior ao da expedição da carta registada e, não, o quinto dia útil posterior à data do envio da carta, pois esta, como resulta do facto provado 5, foi expedida no dia 07/7/2022.
O lapso apontado é manifesto e apreende-se a partir da simples leitura da factualidade que foi fixada na sentença recorrida.
Como tal, ao abrigo do disposto nos artigos do Código Civil, determina-se a rectificação requerida, passando, por via disso, a teor do facto provado 7 a ser o seguinte:
«7. A carta registada com aviso de recepção enviada pela ré a AA foi-lhe entregue no dia 14/07/2022, ou seja, no quinto dia útil posterior ao da expedição».

B) Do direito

Uma vez que resulta da factualidade provada que a R. se vinculou perante a A. a prestar um serviço de entrega de uma carta remetida pela A. para a então sua funcionária AA, mostra-se pacífico que foi celebrado entre as partes um contrato de prestação de serviços, definido no artigo 1154.º do Código Civil como sendo aquele em que uma das partes se obriga a prestar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.

Peticionando a A., ora recorrente, que a R. seja condenada a pagar-lhe uma indemnização para ressarcimento dos danos que sofreu em virtude de a mesma não ter cumprido adequadamente a prestação a que estava obrigada, importa focar a análise jurídica do caso, desde logo, no princípio geral da responsabilidade contratual, estabelecido no artigo 798.º do Código Civil e do qual decorre que os pressupostos de que depende a obrigação de indemnizar a cargo do devedor são: o facto ilícito (o incumprimento de uma obrigação contratual, por acção ou omissão); a culpa (a imputação subjetiva do incumprimento ao devedor); o dano (o prejuízo causado ao credor pelo incumprimento); e o nexo de causalidade (a relação de causa e efeito entre o facto ilícito e o dano).

De acordo com as regras de distribuição do ónus da prova (cf. artigo 342.º do Código Civil), incumbe ao credor fazer prova dos factos constitutivos do direito que invoca, pelo que, desde logo, no caso sub judice, competia à A. demonstrar que se verificou um facto ilícito, ou seja, que a R. não cumpriu, como devia, a sua obrigação contratual.

Para tal, a A. alegou que a R., devido à informação que publicita no seu website, estava vinculada a entregar a carta registada com aviso de recepção que remeteu para AA no prazo de um dia útil, mas que, incumprindo tal obrigação, a R. só entregou a mesma no quinto dia útil subsequente à expedição.

Resulta dos factos provados que, efectivamente, a carta em causa foi expedida no dia 7-07-2022 e só foi recepcionada pela destinatária no dia 14-07-2022, o quinto dia útil subsequente à data do envio.

Considera-se, no entanto, não estar provado que, tal como a A. alegou, a R. estivesse vinculada contratualmente a entregar a missiva no prazo de um dia útil subsequente à sua expedição, tanto mais que no website da Ré apenas consta a seguinte informação: “Correio registado (…) Prazo de entrega para Portugal continental, cerca de um dia útil”. Ou seja, a R. não publicita que efectua a entrega em Portugal Continental do correio registado num prazo fixo (um dia útil), mas apenas num prazo indicativo (cerca de um dia útil). A utilização do advérbio “cerca de” (que, no contexto em que é utilizado, tem o significado de “à volta de”, “aproximadamente”, ou “perto de” [1]), não deixa margem para dúvidas quanto ao facto de a Ré não publicitar, nem assumir, o compromisso de entregar a correspondência postal no aludido prazo de um dia. Concorda-se, por isso, com a posição que, quanto a esta questão, foi tomada pelo tribunal a quo.

De igual forma, concorda-se com o entendimento, também expresso na sentença recorrida, de que a Lei n.º 17/2012, de 26 de Abril – onde está definido o regime jurídico aplicável à prestação de serviços postais (e que, tal como actualmente, estava em vigor à data dos factos) – não estabelece prazos fixos ou mínimos de entrega do correio postal. Com efeito, mesmo considerando-se que o artigo 12.º, n.º 4, da referida Lei estatui que, salvo em circunstâncias ou condições geográficas excepcionais previamente definidas, os prestadores de serviço universal devem assegurar uma recolha e uma distribuição dos envios postais abrangidos no âmbito do serviço universal pelo menos uma vez por dia, em todos os dias úteis, não resulta desta norma a imposição ao prestador do serviço postal de uma obrigação de resultado que o vincule perante o remetente a recolher e distribuir a respectiva correspondência no prazo peremptório de um dia útil. Tal norma define, sim, um dever do prestador do serviço postal relacionado com os parâmetros de qualidade do seu serviço e inerentes objectivos de desempenho que devem ser observados, nomeadamente ao nível de prazos de encaminhamento e de regularidade e fiabilidade dos serviços, os quais se encontram sujeitos à supervisão e fiscalização da entidade reguladora da sua actividade – a Autoridade Nacional de Comunicações [ANACOM] –, mas cujo incumprimento (tal como o das suas demais obrigações que genericamente se encontram definidas no artigo 37.º da Lei n.º 17/2012, de 26-04) apenas dá azo à aplicação dos mecanismos sancionatórios previstos nos artigos 48.º e 49.º dessa Lei, nomeadamente, no caso de violação do disposto no n.º 4 do artigo 12.º (bem como do incumprimento dos parâmetros de qualidade de serviço e dos objectivos de desempenho estabelecidos nos termos do n.º 1 do artigo 13.º), à imputação ao prestador de responsabilidade contra-ordenacional (cf. artigo 49.º, n.º 1, als. c) e e) da Lei n.º 17/2012, de 26-04).

O regime jurídico aplicável à prestação de serviços postais, aprovado pela Lei n.º 17/2012, de 26-04, apesar de enunciar no seu artigo 10.º ser seu objectivo assegurar a existência e a prestação do designado serviço universal que, com vista a satisfazer as necessidades da população e das actividades económicas e sociais, garanta a oferta de serviços postais de qualidade, disponíveis de forma permanente em todo o território nacional, a preços acessíveis a todos os utilizadores, não impõe prazos peremptórios para o prestador proceder à entrega da correspondência expedida pelos utilizadores, reservando para serviços de valor acrescentado (designados de serviços de correio expresso), a aceitação, tratamento, transporte e distribuição, com celeridade acrescida, de envios postais que, mediante remuneração suplementar, podem incluir, entre o mais, o cumprimento de prazos de entrega predefinidos (cf. artigo 12.º, n.º2, al. a)).

Não obstante o que se acaba de afirmar apontar decisivamente para a exclusão da responsabilidade contratual que a A. veio imputar à R. na presente acção, é óbvio que o prestador de serviços postais, tal como postula o artigo 762.º do Código Civil, tem que agir, ao nível do cumprimento das suas obrigações, segundo os ditames da boa-fé, respeitando, por isso deveres acessórios de conduta que, se não forem observados, o fará incorrer, igualmente, em incumprimento contratual. Neste contexto, pode ter pertinência a argumentação que a A. avançou no sentido de que a R., “[a]o anunciar um prazo de entrega de cerca de um dia útil, assume um compromisso com os seus clientes, gerando uma expectativa lícita de cumprimento naquele prazo, da sua obrigação, já que, aliás conforme dispõe o artigo 236º do C.C, um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, apenas podia deduzir das declarações do declarante, como a Recorrente e qualquer normal declaratário utilizador dos serviços da Recorrente, deduziu ou seja, que a entrega de correspondência registada com A/R será feita em um dia útil, não em 5”.

Este argumentário, no entanto, esbarra desde logo no facto de se afigurar que, contrariamente ao sustentado pela A., qualquer declaratário medianamente avisado e cuidadoso (e é esse o “declaratário normal”) que se confronte com a informação veiculada no website da R. que o prazo de entrega em Portugal continental de correio registado é de “cerca de um dia útil”, certamente, não entenderá que a entrega de correspondência desse tipo que por si seja expedida ocorrerá seguramente no prazo de um dia útil; se ele gerar a expectativa de que isso acontecerá, essa sua expectativa não será razoável, nem legítima.

Não se nega, de qualquer modo, que o prazo anunciado de “cerca de um dia útil” é substancialmente diferente de um prazo de cinco dias úteis, prazo este que, perante aquele, surge, sem dúvida, como desrazoável, porque não contido dentro da margem de tolerância que o uso da expressão “cerca de um dia útil” permite. Ainda assim, emerge dos factos provados que a R. só não entregou a carta enviada pela autora no terceiro dia útil posterior ao da expedição, porque, nesse dia, 12-07-2022, a respectiva destinatária, AA, não abriu a porta da sua residência, facto este que voltou a acontecer no dia seguinte, 13-07-2022, quando a R. tentou novamente entregar na carta. Assim, porque o retardamento da entrega da carta entre 12-07-2022 e 14-07-2022 não é imputável à R., sempre se teria que laborar com base na responsabilidade da R. por uma dilação, ao nível do prazo de entrega da carta, não de cinco, mas de apenas três dias úteis. Ora, assim sendo, torna-se bem mais difícil justificar que esse prazo não se contém, ainda, dentro da margem de tolerância que o uso da expressão “cerca de um dia útil” permite, tanto mais que no nosso ordenamento jurídico são diversas as normas que estabelecem a presunção de que as notificações efectuadas por via postal se concretizam “no terceiro dia posterior ao do seu envio, ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o não seja” (cf., entre outros, os artigos 248.º, n.º 1, e 249.º, n.º 5, do Código do Processo Civil, bem como o artigo 113.º, n.º 2 do Código do Processo Penal).

De todo o modo, independentemente do juízo que se faça sobre se é ou não razoável que uma parte cumpra uma obrigação no prazo de três dias depois de anunciar publicamente que a sua prestação será cumprida no prazo de cerca de um dia, não podemos olvidar que o eventual incumprimento de uma obrigação por violação dos deveres impostos pela boa-fé contratual só pode ser declarado pelo tribunal perante situações concretas que estejam devidamente suportadas em termos factuais. Não basta a formulação de um juízo abstracto sobre a má-fé do devedor, é necessário que estejam demonstrados factos concretos que suportem a conclusão de que o devedor agiu de má-fé. É que, desdobrando-se a concretização prática do princípio da boa-fé em dois princípios fundamentais, o da tutela da confiança legítima e o da primazia da materialidade subjacente [2], necessário se torna para se afirmar um incumprimento contratual por má-fé que, no mínimo, esteja devidamente caracterizado em termos de factos qual foi a fonte da situação de confiança e qual foi a expectativa concreta que a mesma gerou, única forma de se aferir da legitimidade desta e se, efectivamente, se verificou uma situação de frustração de um estado de confiança merecedor de tutela jurídica. Ora, no caso dos autos, não só não se vislumbra que a A., tal como lhe competia, tenha alegado tal factualidade (pois, no essencial, limitou-se a invocar nos seus articulados que havia um prazo obrigacional definido de um dia útil), como também, após o julgamento, não se encontra fixada matéria de facto bastante para se fazer a aferição necessária para se concluir que in casu a R., no âmbito do cumprimento das suas obrigações contratuais, violou os deveres que a boa-fé lhe impunham.

De todo o modo, mesmo que se viesse a concluir que a R., por ter entregue a carta expedida pela A. na data em que o fez, não prestou a sua obrigação contratual segundo os ditames da boa-fé e que, atenta a presunção de culpa estabelecida no artigo do Código Civil, ocorreu um facto ilícito que lhe é imputável, nem assim, no caso dos autos, haveria fundamento para atribuir à A. a indemnização que peticiona. Tal acontece porque, conforme já mencionado supra, só pode haver responsabilidade indemnizatória do devedor se, a par dos demais pressupostos que decorrem do disposto no artigo 798.º do Código Civil, estiver demonstrada a existência de um nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano.

No caso dos autos, a A. provou ter sofrido um dano no valor de 5.000,00 euros, montante que pagou à sua ex-funcionária AA, no âmbito do acordo que obteve com ela no processo de impugnação judicial de despedimento que ela interpôs com base na inobservância do prazo de pré-aviso da caducidade do respectivo contrato de trabalho.

Sucede que resulta também dos factos provados que a A. havia admitido AA como sua trabalhadora por força da celebração com ela de um contrato individual de trabalho pelo prazo de seis meses, que teve o seu início a 24/01/2022 e teria o seu termo a 24/07/2022, caso não fosse comunicada a caducidade desse contrato com a antecedência prevista na lei. Ora, como o artigo 344.º, n.º 1, do Código do Trabalho estabelece que “o contrato de trabalho a termo certo caduca no final do prazo estipulado, ou da sua renovação, desde que o empregador ou o trabalhador comunique à outra parte a vontade de o fazer cessar, por escrito, respectivamente, 15 ou oito dias antes de o prazo expirar”, mostra-se evidente que a comunicação enviada para AA através da carta expedida em 7-07-2022 só produziria os efeitos pretendidos pela A. se a tal carta fosse entregue logo no dia seguinte – a sexta-feira, dia 8-07-2022 – pois, se o fosse em qualquer outro dia útil subsequente, essa data já se situaria dentro dos 15 dias anteriores à data do termo do contrato. Como, porém, a A. não se vinculou a entregar a carta no prazo de um dia útil, nem lhe era exigível que, por imperativos de boa-fé, a entrega se concretizasse nesse prazo, mesmo que se viesse a considerar que a A. cometeu um ilícito contratual devido ao retardamento que se verificou quanto à entrega da carta remetida para AA, não se verificaria o necessário nexo de ligação causal entre o facto ilícito e o dano cuja ressarcimento foi peticionado. A R., como se refere, aliás, na sentença recorrida, “agiu de forma temerária e arriscada”, pois seria “mais judicioso” enviar a carta com maior antecedência e, logo, ora não se pode considerar também que foi frustrada uma situação de confiança legítima, ou seja, um estado de confiança subjectivo de alguém que tomou as precauções necessárias para que, por ignorar estar a lesar posições alheias, possa beneficiar com apelo aos ditames da boa-fé de uma vantagem que, de outro modo, não lhe seria atribuída.

Por tudo o explanado, é forçoso decidir no sentido da confirmação da decisão recorrida.

A recorrente, atento o seu decaimento, deve suportar as custas da apelação (cf. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código do Processo Civil).


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IV – DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, acorda-se em:


a) negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida;

b) condenar a recorrente no pagamento das custas da apelação.

Notifique.


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SUMÁRIO

(Elaborado pelo relator nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do C.P.C.)

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Acórdão datado e assinado electronicamente

(redigido pelo primeiro signatário segundo as normas ortográficas anteriores ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990)

Porto 24/11/2025.

José Nuno Duarte

Manuel Domingos Fernandes

José Eusébio Almeida

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[1] Vide «Dicionários Porto Editora» <URL: https://www.infopedia.pt/>.
[2] Sobre estes conceitos e demais pressupostos teóricos e operativos do princípio da boa-fé, vide o estudo de referência de A. Menezes Cordeiro, ínsito, entre outras publicações, em Teoria Geral do Direito Civil, 1.º vol., 2.ª ed. revista e actualizada, AAFDL, 1987, pp. 355 a 413, cuja actualidade não foi abalada, quanto ao enquadramento teórico do instituto, pelos desenvolvimentos inerentes ao dinamismo dos tempos.