IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REJEIÇÃO
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
RESTITUIÇÃO DA COISA
Sumário

I - A falta de indicação nas conclusões das alegações da factualidade impugnada e a ausência de enunciação da resposta que se pretende seja dada à matéria impugnada tanto no corpo das alegações como nas conclusões constituem fundamento para rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto, ex vi artigo 640º, nº 1, alínea a) e c), do Código de Processo Civil.
II - Demonstrada a titularidade da coisa reivindicada por parte do reivindicante, a restituição dessa coisa só pode ser recusada se o detentor beneficiar de um título oponível ao reivindicante.

Texto Integral

Processo: 1659/23.6T8PVZ.P1

Sumário do acórdão proferido no processo nº 1659/23.6T8PVZ.P1 elaborado pelo relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:

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Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório

Em 20 de outubro de 2023, com referência ao Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim, Comarca do Porto, AA e BB instauraram a presente ação declarativa sob forma comum contra CC pedindo que o réu seja condenado a:

a) reconhecer que são donos da fração autónoma designada pela letra Y” com entrada pela Rua ... e Rua ..., destinada a habitação, de tipologia T3, no rés do chão esquerdo com um lugar de aparcamento na garagem coletiva designada pela letra da fração, a qual faz parte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., Rua ..., ... e Rua ..., em ..., na União de freguesias ..., ... e ..., do concelho de Matosinhos, descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos no n.º ...84 da freguesia ..., inscrito na respetiva matriz urbana sob artigo ...55, com o valor patrimonial correspondente à fração de € 39 960,55;

b) a restituir-lhes a fração autónoma reivindicada, livre de pessoas e coisas;

c) a abster-se de praticar qualquer ato turbador do direito de propriedade dos autores sobre a fração reivindicada;

d) pagar-lhes uma indemnização pela privação do uso do imóvel, no valor de € 1.000,00 (mil euros) mensais, desde 11 de fevereiro de 2022 (data da notificação para a restituição) até à entrega efetiva do imóvel em causa livre de pessoas e coisas aos autores.

Para substanciar as suas pretensões os autores alegaram que são donos de uma fração autónoma designada pela letra “Y” com entrada pela Rua ... e Rua ..., destinada a habitação, de tipologia T3, no rés-do-chão esquerdo com um lugar de aparcamento na garagem coletiva designada pela letra da fração, a qual faz parte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., Rua ..., ... e Rua ..., em ..., na União de freguesias ..., ... e ..., do concelho de Matosinhos, descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos no n.º ...84 da freguesia ..., inscrito na respetiva matriz urbana sob artigo ...55, com o valor patrimonial correspondente à fração de € 39 960,55, fração que adquiriram por doação do réu, pai de ambos e da mãe de ambos, achando-se inscrita a aquisição do direito de propriedade da referida fração a favor dos autores; por carta registada, datada de 11 de fevereiro de 2022, os autores notificaram o réu de que deveria proceder à desocupação da referida fração, no prazo de 30 dias e que iriam proceder à regularização das dívidas de condomínio e proceder ao pagamento mensal do mesmo; até à presente data o réu não procedeu à entrega da fração.

Citado, CC comprovou ter requerido apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e de nomeação e pagamento de compensação a patrono, sendo proferido despacho a declarar interrompido o prazo para apresentação de contestação.

Em 05 de abril de 2024, AA requereu a junção aos autos de escritura pública de divisão de coisa comum e nos termos da qual a fração autónoma reivindicada lhe foi adjudicada na totalidade.

Em 11 de junho de 2024, os Serviços da Segurança Social informaram ter sido concedido ao réu apoio judiciário na modalidade de pagamento faseado de taxa de justiça e demais encargos com o processo e de nomeação e pagamento faseado de compensação a patrono.

Em 11 de julho de 2024, CC contestou alegando que, aquando da doação da fração reivindicada, os autores acordaram verbalmente com o réu que este poderia permanecer a residir no imóvel até ao seu falecimento, mediante o pagamento do restante mútuo referente ao imóvel à Banco 1..., o IMI do mesmo, as quotas de condomínio e a liquidação total de uma dívida que existia perante o Condomínio, dívida que veio a ser totalmente paga pelo réu, à Cooperativa A... e, posteriormente, à B... CONDOMINIO, inicialmente por transferência direta para a conta do Condomínio, e, à posteriori, por transferência bancária para o autor BB,  ...46, que se encarregaria de entregar o valor ao condomínio, concluindo pela total improcedência da ação.

A audiência prévia foi dispensada, fixou-se o valor da causa no montante de € 59 960,55, proferiu-se despacho saneador tabelar, identificou-se o objeto do litígio, indicaram-se os factos que já se podiam considerar assentes e enunciaram-se os temas da prova.

A audiência final realizou-se numa sessão e em 31 de janeiro de 2025 foi proferida sentença[1] que terminou com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, julgo a presente ação intentada por AA e BB parcialmente procedente e, em consequência, decide-se condenar o réu CC a reconhecer que o autor AA é donos e legítimos proprietários da fração autónoma melhor identificada no ponto 1 dos factos provados, condenando ainda o réu a restituir a esse autor essa fração autónoma, livre de pessoas e coisas e a abster-se de praticar qualquer ato turbador do direito de propriedade.

Decide-se, ainda, condenar o réu a pagar aos autores o valor de €800,00 (oitocentos euros) por mês desde 11 de fevereiro de 2022 até fevereiro de 2024, bem como condená-lo a pagar ao autor AA esse montante mensal desde março de 2024 e até efetiva entrega.

Em 05 de março de 2025, inconformado com a sentença cujo dispositivo precede, CC interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. Vem o presente Recurso interposto da Sentença proferida nos autos do processo supra identificado que julgou procedente o pedido dos Autores e, consequentemente, condenou o Réu.

2. A douta Sentença recorrida merece reparo, devendo consagrar as alterações suprarreferidas e refletidas nas presentes conclusões.

3. O objeto do presente Recurso limita-se à questão de apurar se o Tribunal “a quo” decidiu corretamente relativamente à existência, ou não, de um acordo entre as partes que permitiu a permanência do Recorrente no imóvel.

4. É convicção do Recorrente de que, após a Superior apreciação, o sentido do acórdão venha a demonstrar o verdadeiro sentido da Justiça!

5. Conforme convicção do Recorrente, este poderia permanecer no imóvel caso cumprisse com todas as obrigações referentes ao imóvel, sendo eles o pagamento do mútuo restante, o pagamento de uma dívida relativa ao condomínio, as respetivas quotas e o imposto municipal sobre o imóvel.

6. Este efetivamente liquidou o mútuo existente, tendo o próprio Recorrido AA confirmado este facto.

7. Quanto à dívida existente em prol do condomínio, esta foi discutida no âmbito do processo n.º 2051/24.0T8PRT, que correu os seus termos no Juízo Local Cível do Porto – J3, onde a Administração do Condomínio referiu que já não existia qualquer dívida.

8. Relativamente às quotas de condomínio, como referido nas transcrições acima apresentadas e de acordo com a tabela apresentada, o Recorrente, até ao ano de 2023, inclusive, pagava as mesmas diretamente às empresas que estariam adstritas à administração do condomínio e, desde então, faz transferências diretamente para o Recorrido BB.

9. Resta apenas verificar a situação do IMI.

10. O Recorrente, no primeiro ano, pagou o imposto após receber o respetivo documento do Recorrido BB.

11. Nos anos posteriores, verificou sempre a situação junto da repartição de finanças, quitando qualquer valor, quando este existisse, caso já tivesse sido pago, fazia transferências bancárias para os Recorridos com os valores entregues.

12. Atualmente, após a escritura de divisão de coisa comum, o imóvel foi adjudicado ao Recorrido AA, encontrando-se isento de IMI.

13. Demonstrando que o Recorrente cumpriu, na íntegra, com o acordo que havia celebrado com os Recorridos, não se podendo aceitar o entendimento do Tribunal a quo, transcrito no articulado 20.

14. Caso não se entenda que estamos perante um direito de usufruto, não registado, podemos estar no âmbito de um contrato de comodato.

15. Contrato este que não está sujeito a forma escrita, considerando-se celebrado pela entrega do imóvel, permitindo que o comodatário habite a fração.

16. Sendo que, o contrato de comodato termina quando o fim para que o bem é emprestado seja atingido.

17. Contudo, neste caso prevê-se, tal como foi acordado, que a utilização do imóvel pelo comodatário tenha lugar até à sua morte.

18. Não estamos, então, perante uma obrigação contratual essencial do comodatário no que toca à restituição (obrigação que, por definição, ele nunca poderia cumprir) mas perante um termo final, certo na sua verificação, mas cujo momento em que ocorrerá é impossível de determinar.

19. Como tal, verifica-se que o Recorrente ocupa o imóvel de forma legítima, pelo que não tem obrigação de o restituir aos Recorridos, pelo menos até à sua morte.

20. Ora, perante o exposto, não subsistem dúvidas de que a decisão merece reparo, restando a sua alteração para que se possa efetivar a pertinente Justiça!

AA respondeu ao recurso pugnando pela sua total improcedência.

O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e no efeito suspensivo.

Colhidos os vistos dos restantes membros do coletivo, cumpre agora apreciar e decidir.

2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil

2.1 Da impugnação da decisão da matéria de facto;

2.2 Dos reflexos da eventual alteração da decisão da decisão da matéria de facto[2] e da existência de título para detenção da coisa reivindicada.

3. Fundamentos

3.1 Da impugnação da decisão da matéria de facto

No corpo das suas alegações, o recorrente parece manifestar a sua discordância relativamente ao segundo facto não provado (veja-se o ponto 4 do corpo das alegações), embora depois centre a sua argumentação na questão do pagamento do restante do mútuo, das quotas do condomínio e do IMI, transcrevendo para tanto parte das suas declarações e das do autor, nas passagens que localiza na gravação e transcreve e remetendo para prova documental junta aos autos, pressupondo, deste modo, a existência do acordo por si alegado na contestação e focando o dissídio entre as partes apenas na questão do incumprimento do mencionado acordo (vejam-se os pontos 7 a 9, 14 a 11 e 21 e 22, todos do corpo das alegações).

O ponto de facto aparentemente impugnado tem o seguinte conteúdo:

- Aquando da doação mencionada no ponto 2 dos factos provados os autores acordaram verbalmente com o réu que este poderia permanecer a residir no imóvel até ao seu falecimento, mediante o pagamento do restante mútuo referente ao imóvel à Banco 1..., o IMI do mesmo, as quotas de condomínio e a liquidação total de uma dívida que existia perante o Condomínio.

O tribunal a quo motivou a resposta negativa a este ponto de facto da forma que segue:

Ora, esta factualidade não foi dada como provada por ausência de prova (ponto 2 dos factos não provados).

Com efeito, embora o réu tenha dito que ele e a sua ex-mulher doaram a fração aos filhos mediante esse acordo, a verdade é que o seu depoimento não foi corroborado por qualquer outro meio de prova, tendo, até, sido totalmente contrariado pelo depoimento da sua ex-mulher que negou categoricamente que tal acordo tenha existido, assim como o autor AA também o negou.

Salientamos que do depoimento do autor, bem como da mãe deste (ex-mulher do réu) resultou claro que, após a doação que foi feita pelos pais aos filhos, estes permitiram que o réu ali continuasse a habitar uma vez que o mesmo estaria a assumir o pagamento das despesas, designadamente com o condomínio da fração.

A verdade é que, no início do ano de 2022, tiveram conhecimento que o réu não estaria a pagar ao condomínio, razão pela qual entenderam que não fazia qualquer sentido o réu ali continuar a habitar já que os autores estavam a residir em casa arrendada e, simultaneamente, teriam que pagar o condomínio da habitação que o réu mantinha.

É certo que o réu veio a juízo dizer que, nos termos do acordo que fez com os filhos, ele se manteria no imóvel até ao seu falecimento assumindo o pagamento do mútuo, do condomínio e do IMI, tendo sempre cumprido com esse pagamento.

Ora, efetivamente o autor reconheceu em audiência que o seu pai terá pago o valor que estava em falta relativamente ao mútuo bancário.

Referiu, no entanto, que não fez o pagamento das dívidas de condomínio.

A testemunha DD (companheira do autor BB) explicou, de forma clara e isenta, que em janeiro de 2022 terá recebido uma carta dirigida ao companheiro a anunciar uma penhora por dívidas de condomínio da fração, o que motivou o envio da carta mencionada no ponto 3 dos factos provados.

Resultou claro do depoimento desta testemunha que o réu, ao contrário do que referiu, não pagou integralmente o condomínio da fração em causa.

Não foi, assim, feita prova segura da existência do acordo invocado pelo réu.

Atendendo ao depoimento da ex-mulher do réu ficou este tribunal convencido que os autores toleraram inicialmente que o réu permanecesse na fração que lhes foi doada porque o mesmo estava a pagar as dívidas respeitantes à fração e que, quando se aperceberam que, afinal, não o estava a fazer, designamente, não estava a pagar as despesas de condomínio, entenderam interpelar o réu para lhes entregar a fração visto que não iriam permanecer numa situação em que estavam a pagar renda para uma habitação para eles viverem e, simultaneamente, a pagar despesas de outra habitação que estava a ser ocupada pelo pai sem qualquer contrapartida.

Ademais, salientamos que o réu, não obstante juntar documentos que comprovam que terá pago algumas dívidas de condomínio, não provou que pagou todas as quotas, sendo certo que os documentos juntos aos autos em 7/10/2024 – emails do condomínio – comprovam que o réu não procedeu ao pagamento de todas as quotas.

Cumpre apreciar e decidir.

A impugnação da decisão da matéria de facto sujeita o impugnante a variados ónus processuais que, em caso de inobservância, implicam a rejeição dessa pretensão na parte em que ocorra tal “incumprimento”[3].

Assim, em primeiro lugar, o impugnante deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto impugnados (artigo 640º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Civil), especificação que também deve ser feita nas conclusões das alegações de recurso já que se trata de elementos conformadores do objeto do recurso[4].

Em segundo lugar, o recorrente deve indicar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada que sustentem a sua pretensão de alteração da decisão da matéria de facto (artigo 640º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Civil), especificação que não tem de constar das conclusões do recurso[5].

Em terceiro lugar, o impugnante deve especificar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (artigo 640º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Civil), especificação que dominantemente se tem entendido não ter que constar das conclusões das alegações[6].

Em quarto lugar, fundando-se a impugnação da decisão da matéria de facto em meios de prova que hajam sido gravados, o recorrente deve, sob pena de imediata rejeição do recurso na parte em que se verifique a inobservância do ónus, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (artigo 640º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Civil)[7].

No caso em apreço, verifica-se que o recorrente não indica nas conclusões das suas alegações qualquer facto impugnado e, além disso, nem no corpo das alegações nem nas conclusões enuncia a resposta que pretende seja dada ao facto não provado aparentemente impugnado no corpo das alegações.

Deste modo, pode concluir-se, com segurança, que o recorrente não observa os ónus previstos nas alíneas a) e c) do nº 1 do artigo 640º, do Código de Processo Civil, inobservância que determina a rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto[8].

Pelo exposto, rejeita-se a impugnação da decisão da matéria de facto, mantendo-se intocada a factualidade julgada provada pelo tribunal recorrido.

3.2 Fundamentos de facto exarados na sentença recorrida e que se mantêm atenta a rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto aparentemente pretendida pelo recorrente

3.2.1 Factos Provados


3.2.1.1

A fração autónoma designada pela letra “Y” com entrada pela Rua ... e Rua ..., destinada a habitação, de tipologia T3, no rés do chão esquerdo com um lugar de aparcamento na garagem coletiva designada pela letra da fração, a qual faz parte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., Rua ..., ... e Rua ..., em ..., na União de freguesias ..., ... e ..., do concelho de Matosinhos, descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos no n.º ...84 da freguesia ..., inscrito na respetiva matriz urbana sob artigo ...55, está registada na Conservatória do Registo Predial a favor dos autores através da ap. ...60 de 2021/06/17.

3.2.1.2

No dia 24 de maio de 2021 foi outorgada a escritura pública de doação cuja certidão se encontra junta com a petição inicial, na qual ficou a constar que CC e EE declararam doar aos seus filhos, os aqui autores, a fração id. em 1 [3.2.1.1], em comum e em partes iguais.

3.2.1.3

Em 11 de fevereiro de 2022, os autores, através de uma advogada, interpelaram o réu para proceder à entrega da fração identificada em 1 [3.2.1.1] no prazo de 30 dias através da carta cuja cópia se encontra junta com a petição inicial sob doc. 5[9].

3.2.1.4

O réu ocupa essa fração contra a vontade dos autores, não tendo entregue a mesma, não obstante a carta referida em 3 [3.2.1.3].

3.2.1.5

Em 07 de março de 2024 foi outorgada uma escritura de divisão de coisa comum cuja cópia se encontra junta aos autos em 05 de abril de 2024, através da qual foi adjudicada ao autor AA a fração identificada no ponto 1 [3.2.1.1].

3.2.2 Factos não provados


3.2.2.1

O valor de mercado das rendas praticadas no arrendamento de uma fração com as caraterísticas da mencionada no ponto 1 [3.2.1.1] dos factos provados ascende a € 1 000,00.

3.2.2.2

Aquando da doação mencionada no ponto 2 [3.2.1.2] dos factos provados os autores acordaram verbalmente com o réu que este poderia permanecer a residir no imóvel até ao seu falecimento, mediante o pagamento do restante mútuo referente ao imóvel à Banco 1..., o IMI do mesmo, as quotas de condomínio e a liquidação total de uma dívida que existia perante o Condomínio.

4. Fundamentos de direito

Dos reflexos da eventual alteração da decisão da decisão da matéria de facto e da existência de título para detenção da coisa reivindicada

A impugnação da decisão da matéria de facto aparentemente requerida pelo recorrente no corpo das alegações foi rejeitada por inobservância dos ónus previstos nas alíneas a) e c) do nº 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil, mantendo-se intocada a factualidade julgada provada pelo tribunal recorrido.

Neste circunstancialismo, importa verificar se o recorrente tem título para ter o gozo da coisa reivindicada, como ele afirma.

Cumpre apreciar e decidir.

O recorrente sustenta que tem o gozo da fração reivindicada por força de um usufruto não registado e, ainda que assim não se entenda, sempre a factualidade provada integra um contrato de comodato com termo final coincidente com o óbito do recorrente.

O direito de usufruto é um direito real de gozo (artigo 1439º do Código Civil) e a sua constituição válida depende da observância de forma escrita (artigos 22º, alínea a) do decreto-lei nº 116/2008 de 04 de julho e 220º, do Código Civil).

O registo da aquisição do direito de usufruto é mera condição de eficácia contra terceiros (artigo 4º, nº 1, do Código do Registo Predial) e não supre a falta de forma legal.

Da factualidade provada não resulta que tenha havido qualquer acordo entre as partes no sentido da reserva do usufruto vitalício da fração reivindicada, a favor do recorrente, codoador, tal como não resulta que tenha sido acordada a concessão ao recorrente do gozo da fração reivindicada, a título gratuito e até ao termo da sua vida.

Pelo contrário, não se provou que aquando da doação da fração reivindicada os autores tenham acordado verbalmente com o réu que este poderia continuar a residir no imóvel até ao falecimento deste, mediante o pagamento do restante mútuo referente ao imóvel à Banco 1..., o IMI do mesmo, as quotas de condomínio e a liquidação total de uma dívida que existia perante o Condomínio (ponto 3.2.2.2 dos factos não provados).

Neste circunstancialismo, sendo inquestionável a titularidade do direito de propriedade sobre a fração reivindicada a favor do recorrido AA (pontos 3.2.1.1 e 3.2.1.5 dos factos provados), a restituição da coisa só pode ser recusada se acaso se demonstrar um caso em que legalmente isso seja admitido (artigo 1311º, nº 2, do Código Civil), ou seja, a recusa da restituição só pode ocorrer na eventualidade do detentor da coisa provar ter título para tanto oponível ao reivindicante.

Pelo exposto, conclui-se que o recorrente não beneficia de nenhum dos títulos invocados para obstar à reivindicação, pelo que o recurso improcede, devendo ser confirmada a sentença recorrida.

As custas do recurso são da responsabilidade do recorrente, pois que a sua pretensão recursória improcedeu totalmente (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), mas sem prejuízo do apoio judiciário de que goza o recorrente.

5. Dispositivo

Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto por CC e, em consequência, confirma-se a sentença proferida em 31 de janeiro de 2025, nos segmentos impugnados.

Custas do recurso a cargo do recorrente, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso, mas sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia o recorrente.


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O presente acórdão compõe-se de onze páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.

Porto, 24/11/2025.

Carlos Gil

Ana Paula Amorim

Jorge Martins Ribeiro

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[1] Notificada às partes mediante expediente eletrónico elaborado em 04 de fevereiro de 2025.
[2] No corpo das alegações, a título subsidiário, o recorrente questiona o montante que foi condenado a pagar a título de privação do gozo da fração reivindicada (vejam-se os pontos 23 a 30 do corpo das alegações). Porém, essa questão não consta das conclusões, razão pela qual não se pode dela conhecer.
[3] As aspas justificam-se na medida em que a não observância de um ónus processual não constitui a violação de um dever jurídico, a prática de um ato ilícito, mas antes o não acatamento de prescrições de ordem processual que determinam desvantagens processuais para o sujeito processual que não observa essas determinações.
[4] Sobre esta exigência veja-se Recursos em Processo Civil, António Santos Abrantes Geraldes, 8ª Edição Atualizada, Almedina 2024, página 228, alínea a) do ponto 77.2 e nota 372.
[5] A propósito veja-se Recursos em Processo Civil, António Santos Abrantes Geraldes, 8ª Edição Atualizada, Almedina 2024, página 228, alínea b) do ponto 77.2 e nota 373.
[6] Neste sentido veja-se Recursos em Processo Civil, António Santos Abrantes Geraldes, 8ª Edição Atualizada, Almedina 2024, página 229, alínea d) do ponto 77.2 e nota 376.
[7]  Recursos em Processo Civil, António Santos Abrantes Geraldes, 8ª Edição Atualizada, Almedina 2024, páginas 228 e 229, alínea c) do ponto 77.2 e nota 373.
[8] Atente-se ainda que se acaso o referido acordo se pudesse considerar válido, a prova do mesmo estava sujeita às limitações probatórias previstas no nº 1 do artigo 394º do Código Civil.
[9] Na parte pertinente ao conhecimento do objeto do recurso, o conteúdo desta carta, datada de 11 de fevereiro de 2022, remetida por FF, Advogada, ao réu, subordinada ao assunto “2ª via para Notificação d e desocupação da fracção”, é o seguinte: “Exmo. Senhor; Os meus respeitosos cumprimentos. Tendo sido mandatada pelos actuais proprietários da fracção autónoma “Y”, sou a informar que atendendo à avultada dívida de quotas de condomínio que recia sobre a fracção e os anteriores proprietários, ou seja V.ª Ex.ª e a sua ex-esposa perante o condomínio do prédio, e não possuindo V.ª Ex.ª título para ocupar a identificada fracção, mais uma vez notifico de que deverá proceder à desocupação da referida fracção, que indevidamente ocupa, entregando-a aos proprietários livre de pessoas e bens, no prazo máximo de 30 dias. Mais fica notificado de que a partir da data do registo da Doação na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos, os actuais proprietários vão proceder ao pagamento das quotas mensais do condomínio.