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CONTRATO DE SEGURO
INTERPRETAÇÃO DE CLÁUSULAS
DOUTRINA DA IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO
SENTIDO MAIS FAVORÁVEL AO ADERENTE
Sumário
I - Na interpretação das cláusulas do contrato de seguro vale o regime geral do Código Civil (art.ºs 236º e seguintes, do Código Civil), com as especificidades decorrentes dos art.ºs 7º, 10º e 11º da LCCG, pelo que, lançando mão da doutrina da impressão do destinatário que o legislador acolhe naqueles artigos 236º e ss. do Código Civil, deve ser atribuído à declaração o sentido que lhe daria um declaratário comum, medianamente sagaz e diligente, colocado nas mesmas circunstâncias concretas e conhecidas do real declaratário, atendendo ao contexto global do contrato, à natureza do negócio e aos interesses em presença, correspondendo o declaratário normal à figura do tomador médio, sem especiais conhecimentos jurídicos ou técnicos. II - Em caso de dúvida ou ambiguidade insanável, prevalece o sentido mais favorável ao aderente (principio do in dubio contra proferentem ou contra stipulatorem).
Texto Integral
Processo nº 16670/24.1T8PRT.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível do Porto – Juiz 5
Relatora: Teresa Pinto da Silva
1º Adjunto: Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
2º Adjunto: M. Fátima Andrade
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Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da 5ª Secção, Cível, do Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO
AA propôs a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra A..., S.A., pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de €24.780,00 (vinte e quatro mil, setecentos e oitenta euros), a título de indemnização pelo furto e danos nos bens existentes na habitação em causa, acrescido de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da participação de sinistro em 16 de novembro de 2022 até efetivo e integral pagamento.
Alegou, como fundamento, ter celebrado, no dia 7 de maio de 2022, um contrato de seguro multi-risco com a Ré, designado de Casa, Opção Top, com o objetivo de garantir o conteúdo da habitação sita da Rua ..., Porto, para os riscos de danos decorrentes de incêndio, danos por água, inundações, furto ou roubo, entre outros riscos, sendo a Autora locatário desse imóvel e proprietária do seu conteúdo e recheio juntamente com o seu marido BB.
Essa residência foi alvo de furto perpetrado por desconhecidos, no dia 13 de novembro de 2022, que subtraíram diversos objetos, no valor total de € 46.604,00.
A Ré, porém, apenas se propôs liquidar à Autora a indemnização de € 10.900, tendo considerado que os objetos furtados, com exceção da base em acrílico Muji e da pulseira de pele com pedras, se enquadram na categoria de “Joias e Objetos Preciosos”, que apresenta um limite de capital de € 10.000, a qual foi rejeitada pela Autora, uma vez que um dos bens furtados, um relógio de marca e modelo “Rolex Daytona Cosmograph” apresenta o valor de € 14.700, pelo que considera que deveria ter sido enquadrado na cobertura de “Objetos de Valor”, motivo pelo qual sustenta que a Ré excluiu, erradamente, do valor indemnizatório o pagamento desse relógio.
Citada, a Ré apresentou contestação, na qual confirmou a celebração do contrato de seguro e a ocorrência do furto, tal como alegado pela Autora. No entanto, considera que o relógio furtado constitui um bem subsumível na categoria de “Joias e Objetos Preciosos”, pelo que o montante indemnizatório a que está obrigada ascende apenas a € 10.090,00.
Concluiu pelo julgamento da ação em função da prova que vier a ser produzida.
Em 22 de janeiro de 2025, realizou-se a audiência prévia, no decurso da qual o Tribunal a quo proferiu despacho saneador, fixou o objeto do litígio, enunciou os temas da prova e pronunciou-se quanto aos requerimentos probatórios.
Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, com observância das formalidades legais, que se prolongou por duas sessões (22 de maio e 27 de junho de 2025).
Em 31 de julho de 2025, o Tribunal a quo proferiu sentença da qual consta a seguinte decisão:
«Em face do exposto, tendo em conta as já indicadas normas jurídicas e os princípios indicados, julgo a presente ação totalmente procedente, por provada, condenando-se a Ré B..., S.A. a pagar à Autora AA a quantia de € 24.780 (vinte e quatro mil, setecentos e oitenta euros), acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, desde 16/11/2022 até efetivo e integral pagamento.
Custas da ação a cargo da Ré, porque vencida – artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.»
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Inconformada com esta decisão, veio a Ré / Apelante dela interpor o presente recurso, apresentando alegações que finalizou com as seguintes conclusões:
1. A douta sentença recorrida incorreu em manifesto erro de julgamento ao aplicar incorretamente o critério de interpretação das declarações negociais, violando o disposto no artigo 236.º do Código Civil, nomeadamente no que concerne à interpretação das cláusulas contratuais.
2. A interpretação que a apelante entende correta, e que um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, daria ao contrato, é que as cláusulas 1ª, alínea s) e 1ª, alínea r), das condições gerais da apólice são complementares, e não excludentes, com a primeira a configurar uma norma especial e específica para a categoria de “Jóias e Objetos Preciosos”.
3. O relógio Rolex, com o valor de € 14.700, enquadra-se de forma perfeita e completa na definição constante da Cláusula 1ª, alínea s) — “Jóias e Objetos Preciosos” – que inclui expressamente “relógios, incluindo os de valor unitário superior a € 1.000”.
4. A Cláusula 1ª, alínea r), que define “Objetos de Valor”, é uma categoria residual, limitada pela condição de exclusão “Os objetos que, não sendo classificados como Jóias e objetos preciosos…”, o que impede a inclusão do relógio em questão nesta categoria de bens seguros.
5. A interpretação da sentença, ao enquadrar o relógio na categoria de “Objetos de Valor”, torna inútil a ressalva contratual da Cláusula 1ª, alínea r), e a referência a relógios de elevado valor na Cláusula 1ª, alínea s), violando o princípio da especialidade da norma e o princípio de que todas as partes de um contrato devem ter um sentido útil.
6. A correta interpretação do clausulado contratual, segundo as regras de interpretação da declaração negocial, determina que o relógio deve ser enquadrado na categoria de “Joias e Objetos Preciosos”, cujo sublimite de indemnização é de € 10.000,00, o que corresponde à vontade das partes e à justa delimitação do risco contratado.
7. A sentença também incorreu em erro ao condenar a apelante no pagamento de juros de mora a partir da data do sinistro, violando o disposto no artigo 805.º, n.º 3, do Código Civil.
8. A obrigação de pagamento da indemnização, por haver divergência sobre o montante devido, não era líquida, tornando a mora da apelante inexistente até à fixação judicial do valor.
9. A recusa da autora em aceitar o montante de € 10.090,00, proposto de boa-fé pela apelante com base na correta interpretação do contrato, configura uma situação de mora do credor, sendo a autora a única responsável pelo atraso na liquidação da dívida.
10. A sentença recorrida deve ser revogada, na parte em que enquadrou o relógio como “Objeto de Valor” e em que condenou a apelante no pagamento de juros de mora a partir da data do sinistro, sendo substituída por outra decisão que:
a) enquadre o relógio como “Jóia e Objecto Precioso”;
b) limite o pagamento da indemnização devida pelo furto deste bem ao sublimite de €10.000,00;
c) condene a apelante a pagar à autora a quantia de € 10.090,00, que corresponde ao valor total devido pela indemnização do sinistro, à luz do contrato de seguro celebrado pelas partes;
d) absolva a apelante do pedido de pagamento de juros de mora, por se tratar de mora do credor.
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A Autora / Apelada contra-alegou, sustentando a improcedência do recurso e a manutenção da sentença recorrida, concluindo:
I. A recorrente, discordando da interpretação dada pelo tribunal a quo, entende que o “relógio Rolex, com o valor de € 14.700, enquadra-se de forma perfeita e completa na definição constante da Cláusula 1ª, alínea s) - “Joias e Objectos Preciosos” - que inclui expressamente “relógios, incluindo os de valor unitário superior a € 1.000”. (ponto 3, das conclusões do seu recurso), sustentando que a “correta interpretação do clausulado contratual, segundo as regras de interpretação da declaração negocial, determina que o relógio deve ser enquadrado na categoria de “Joias e Objetos Preciosos”, cujo sublimite de indemnização é de € 10.000,00, o que corresponde à vontade das partes e à justa delimitação do risco contratado”. (ponto 6, das conclusões do seu recurso).
II. A sentença objeto de recurso não merece nenhum reparo, nela se fazendo uma correta interpretação quer das cláusulas contratuais em análise, quer das normas legais aplicáveis.
III. Com efeito, o enquadramento do relógio na categoria de “Objectos de Valor”, não suscita nenhuma dúvida, não só porque estamos perante um objeto de alto valor com um risco agravado, mas também porque da cláusula 1ª, alínea r), consta, expressamente, como exemplo destes objetos, os relógios de marca, onde se incluem, sem dúvida, qualquer relógio da marca Rolex.
IV. Como assertivamente explica o tribunal a quo, “qualquer declaratário medianamente sagaz, diligente e prudente, colocado na posição do declaratário real (a Autora) e perante os conceitos e linguagem utilizados na apólice e, em concreto, nas alíneas r) e s), daria às mesmas o sentido de que o relógio furtado – um Rolex Daytona Cosmograph, cujo valor ronda os € 14.000 – é, e não pode deixar de ser, um relógio de marca” (1.º parágrafo, da p. 14, da sentença).
V. Ademais, o relógio não possui na sua composição pedras ou metais precisos ou semipreciosos, pelo que desde logo nunca poderia ser enquadrado na categoria da alínea s).
VI. Ao contrário do que defende a recorrente, não há uma hierarquia de classificação de bens segurados, muito menos foi estabelecida uma norma específica para a categoria de Jóias e Objetos preciosos.
VII. O que ocorre é uma distinção clara entre bens com as características referidas na alínea s) e os bens com as características elencadas na alínea r), das Condições Gerais.
VIII. Pelo exposto, concluímos facilmente que a sentença objeto de recurso não merece qualquer reparo.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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Delimitação do objeto do recurso
Da análise das conclusões vertidas pela Recorrente nas suas alegações, que versam sobre a decisão recorrida e que delimitam o objeto do recurso, estando o Tribunal impedido de conhecer de matérias não incluídas nessas conclusões, com exceção das que sejam de conhecimento oficioso, nos termos do previsto nos artigos 635º, nºs 4 e 5 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões:
1ª Se ocorreu erro de julgamento do Tribunal a quo ao enquadrar o relógio Rolex Cosmograph Daytona furtado na categoria de "Objetos de Valor" (alínea r) das condições gerais da apólice de seguro, com sublimite de € 20.000,00.
2ª Dos juros de mora e respetivo dies a quo
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II – FUNDAMENTAÇÃO Fundamentação de facto
Na sentença recorrida consideraram-se, com interesse para a decisão, os seguintes factos provados e não provados: Factos provados
1. A Autora é locatária de um imóvel sito na rua ..., rés do chão, ... Porto, e proprietária do seu conteúdo e recheio, juntamente com o seu marido, BB.
2. A propriedade do imóvel encontra-se registada a favor da sociedade comercial por quotas “C..., Lda.”.
3. Em 7/5/2022, a Autora e a Ré celebraram contrato de seguro multi-riscos designado “Casa – Opção TOP”, por intermédio da Sociedade de Mediação de Seguros “Expansão Sociedade de Mediação de Seguros, Lda.”, com o objetivo de garantir o conteúdo da habitação descrita no ponto 1) dos factos provados, para os riscos de danos decorrentes de incêndio, danos por água, inundações, furto ou roubo, entre outros riscos.
4. O contrato descrito no ponto 3) dos factos provados encontra-se titulado pela apólice nº ..., com o capital inicial de recheio de € 100.000, com data de início de produção de efeitos em 7/5/2022 e renovações anuais.
5. Para a cobertura específica de Furto ou Roubo, os capitais contratados foram:
- € 100.000 para os bens de recheio em geral;
- € 10.000 para a cobertura específica de furto ou roubo de objetos preciosos;
- € 20.000 para a cobertura específica de furto ou roubo de objetos de valor;
- € 1.000 para a cobertura específica de roubo na pessoa.
6. As condições gerais da apólice e em vigor à data do sinistro estabelecem na Cláusula 1ª, alínea s), a seguinte definição dos sub-limites de indemnização:
“Joias e Objetos Preciosos: Quaisquer objetos, independentemente do seu valor monetário, que incluam na sua composição pedras ou metais preciosos ou semipreciosos, nomeadamente, colares, anéis, brincos, faqueiros de prata ou ouro, salvas de prata, isqueiros, canetas, molduras ou relógios, incluindo os de valor unitário superior a € 1.000, independentemente da sua composição”;
e na alínea r), a seguinte definição dos sub-limites de indemnização:
“Objetos de Valor: Os objetos que, não sendo classificados como Joias e objetos preciosos, constituem pela sua natureza ou valor objetivamente constatáveis um risco agravado, nomeadamente: obras de arte, quadros e esculturas, abafos ou casacos de pele, armas, equipamentos de som e imagem ou de informática, relógios de marca, coleções de qualquer espécie, ou ainda quaisquer antiguidades, objetos raros ou com interesse museológico e velocípedes sem motor com valor igual ou superior a 750€”.
7. A apólice ... não apresenta qualquer franquia na cobertura de furto ou roubo.
8. A Autora pagou sempre pontualmente os prémios de seguro relativos ao seguro em causa.
9. No dia 13/11/2022, pelas 19h45, ocorreu um furto no interior da habitação onde a Autora e o marido tinham os bens garantidos pelo contrato de seguro celebrado com a Ré, sita na rua ..., ... Porto.
10. Em consequência do referido sinistro, foram furtados os seguintes bens com o valor indicado de:
- Base em acrílico Muji e Pulseira Pele com pedras, no valor de € 94;
- 1 Relógio Rolex Cosmograph Daytona, no valor de € 14.700;
- 1 Fio de ouro, no valor de € 500;
- 1 Colar de ouro rosa com brilhantes, no valor de € 600;
- 1 Colar de ouro H Stern, 18 k, coleção Pedras Roladas, no valor de € 5.000;
- 1 Colar de ouro Bashia com pedras e Espírito Santo, no valor de € 450;
- 1 Anel de ouro br Enamel Chaumet, produto David Rosas, no valor de € 1.400;
- 1 Anel de ouro H Stern 18 k com cristal e brilhante, Colecção Justine, no valor de € 3.400;
- 1 Anel de ouro Miguel Almada c/água marinha, no valor de € 1.000;
- 3 Pares de brincos prata dourada e pedra no valor de € 160;
- 1 Anel de ouro Piaget Possession com brilhante, no valor de € 4.000, o que perfaz o valor total de € 31.304.
11. Após avaliação, verifica-se que o Relógio Rolex Cosmograph Daytona apresenta um valor de aquisição atual de € 14.700, o anel de ouro br Enamel Chaumet um valor de aquisição atual de € 1.450, o anel de ouro Miguel Almada um valor de aquisição atual de € 1.450 e o anel quartzo fumado e bis esmalte um valor de aquisição atual de € 782.
12. O valor do anel de ouro Miguel Almada [€ 1.450] foi aceite pela Ré, após avaliação efetuada pelos seus peritos.
13. Este sinistro estava garantido pelo contrato de seguro.
14. Todos estes objetos furtados integravam o conteúdo seguro da apólice ....
15. Os autores do furto provocaram diversos danos, nomeadamente vidros partidos, fechaduras forçadas e grades metálicas danificadas, no valor total de € 4.122,50.
16. Em 14/11/2022 foi efetuada a participação policial.
17. E em 16/11/2022 foi efetuada a respetiva participação do sinistro à Ré.
18. A Autora, durante a peritagem realizada por CC, perito da Ré, prestou toda a colaboração solicitada, nomeadamente enviando-lhe todos os documentos solicitados, tais como a caderneta predial do imóvel, o auto de polícia, declarações de entidades especializadas relativas a alguns dos objetos furtados, fotografias em que a Autora estava a usar anéis e fios furtados.
19. Em 9/5/2023 a Ré emitiu recibo de indemnização com o nº ... no valor de € 10.990 e, para tanto, considerou os seguintes valores:
- Base em acrílico Muji e Pulseira de pele com pedras: € 90;
- Restantes elementos furtados e já elencados, enquadrados na categoria “Joias e Objetos Preciosos”: € 10.000.
20. A Autora não concordou com esta proposta e nunca recebeu da Ré qualquer valor.
21. No âmbito do aludido contrato de seguro, a Autora subscreveu a cobertura intitulada “Furto ou Roubo”, a qual garante as perdas ou danos resultantes de furto ou roubo (tentado ou consumado), praticado no interior do local ou locais de risco, incluindo eventuais garagens e arrecadações quando devidamente fechadas, em qualquer uma das seguintes circunstâncias:
i) Com arrombamento, escalamento e chaves falsas, gazua ou instrumentos semelhantes. No caso de utilização de chaves falsas, apenas ficam garantidas situações comprovadas através de investigação criminal;
ii) Quando o autor ou autores do crime se introduzam ilegitimamente no local ou nele se escondam com intenção de furtar;
iii) Com violência contra pessoas que habitem ou se encontrem no local do risco ou através de ameaças com perigo iminente para a sua integridade física, ou pondo-as, por qualquer maneira, na impossibilidade de resistir.
22. Na sequência da participação de sinistro que a Autora apresentou à Ré, esta ordenou a realização de uma averiguação às causas e às consequências do sinistro de furto que a Autora lhe participou e, na sequência da referida averiguação, a Ré apurou um conjunto de factos e circunstâncias que lhe levaram a concluir que o local de risco mencionado na apólice foi efetivamente objeto de furto, por escalamento e arrombamento, dele tendo sido retirados um conjunto de bens que fazia parte do respetivo recheio. Factos não provados
Todos os restantes factos descritos nos articulados, bem como os aventados na instrução da causa, distintos dos considerados provados - discriminados entre os “factos provados” ou considerados na “motivação” (aqui quanto aos instrumentais) -, resultaram não provados.
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Fundamentação de direito 1ª Se ocorreu erro de julgamento do Tribunal a quo ao enquadrar o relógio Rolex Cosmograph Daytona furtado na categoria de "Objetos de Valor" (alínea r) das condições gerais da apólice de seguro, com sublimite de € 20.000,00
O objeto dos presentes autos reporta-se a um contrato de seguro multi-risco celebrado entre o Autor e a Ré /Recorrente no dia 7 de maio de 2022, com o objetivo de garantir o conteúdo da habitação sita da Rua ..., Porto, para os riscos de danos decorrentes de incêndio, danos por água, inundações, furto ou roubo, entre outros riscos.
Em geral, o contrato de seguro é o contrato pelo qual uma das partes (o segurador), em troca do pagamento de uma soma em dinheiro (prémio) por parte do outro contratante (segurado), se obriga a manter indemne o segurado dos prejuízos que podem derivar de determinados sinistros ou casos fortuitos ou ainda a pagar uma soma em dinheiro ao próprio segurado ou a terceiros.
É o que resulta do disposto no art. 1º, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de abril (doravante RJCS), de acordo com o qual “por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente”.
Trata-se de um negócio formal, solene, que deve ser reduzido a escrito, conforme decorre do disposto no artigo 32.º do RJCS, sendo, em regra, um contrato de adesão, celebrado com base em cláusulas contratuais gerais previamente elaboradas pela seguradora, mas que nem por isso deixa também de se reger pelo princípio da liberdade contratual (cf. art. 11º do dito diploma legal), consagrado no art. 405º, nº 1, do Código Civil, de acordo com o qual as partes têm a faculdade de “(…) fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste Código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver”, na medida em que seguradora e segurado podem integrar cláusulas particularmente negociadas, a que pretendem vincular-se.
A sua interpretação encontra-se sujeita a um regime específico, que conjuga as regras gerais de interpretação das declarações negociais, consagradas nos artigos 236.º a 239.º do Código Civil, com as normas especiais previstas no Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro (Cláusulas Contratuais Gerais).
Dispõe o artigo 10.º deste Decreto-Lei n.º 446/85 que “as cláusulas contratuais gerais são interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam”, o que remete para o regime geral de interpretação previsto no Código Civil.
Por sua vez, o artigo 11º, do citado D.L. estatui, no seu nº1 que “as cláusulas gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real” e no seu nº 2 que “na dúvida prevalece o sentido mais favorável ao aderente”.
Quer isto dizer que na interpretação das cláusulas do contrato de seguro vale o regime geral do Código Civil (art.ºs 236º e seguintes, do Código Civil), com as especificidades decorrentes dos art.ºs 7º, 10º e 11º da LCCG, pelo que, lançando mão da doutrina da impressão do destinatário que o legislador acolhe naqueles artigos 236º e ss. do Código Civil, deve ser atribuído à declaração o sentido que lhe daria um declaratário comum, medianamente sagaz e diligente, colocado nas mesmas circunstâncias concretas e conhecidas do real declaratário, atendendo ao contexto global do contrato, à natureza do negócio e aos interesses em presença, correspondendo o declaratário normal à figura do tomador médio, sem especiais conhecimentos jurídicos ou técnicos.
Acresce que, como já acima referimos, tratando-se de cláusulas contratuais gerais, em caso de dúvida ou ambiguidade insanável, prevalece o sentido mais favorável ao aderente (principio do in dubio contra proferentem ou contra stipulatorem), como decorre do artigo 11.º da LCCG.
Estabelecido o quadro normativo aplicável, importa agora proceder à análise e interpretação das concretas cláusulas contratuais em litígio.
Recordemos, uma vez mais, o teor das mesmas:
* Cláusula 1.ª, alínea r): “Objetos de Valor”:
“Os objetos que, não sendo classificados como Joias e objetos preciosos, constituem pela sua natureza ou valor objetivamente constatáveis um risco agravado, nomeadamente: obras de arte, quadros e esculturas, abafos ou casacos de pele, armas, equipamentos de som e imagem ou de informática, relógios de marca, coleções de qualquer espécie, ou ainda quaisquer antiguidades, objetos raros ou com interesse museológico e velocípedes sem motor com valor igual ou superior a 750€”.
* Cláusula 1.ª, alínea s): “Joias e Objetos Preciosos”:
“Quaisquer objetos, independentemente do seu valor monetário, que incluam na sua composição pedras ou metais preciosos ou semipreciosos, nomeadamente, colares, anéis, brincos, faqueiros de prata ou ouro, salvas de prata, isqueiros, canetas, molduras ou relógios, incluindo os de valor unitário superior a € 1.000, independentemente da sua composição”.
A questão nuclear que se coloca é a seguinte: um relógio da marca Rolex, modelo Cosmograph Daytona, com o valor de € 14.700,00 deve ser enquadrado na categoria de “Jóias e Objetos Preciosos” (alínea s), com sublimite indemnizatório de € 10.000,00 ou na categoria de “Objetos de Valor” (alínea r), com sublimite indemnizatório de € 20.000,00?
A Recorrente sustenta que o relógio em causa deve ser subsumido na primeira categoria (alínea s)), argumentando que:
(i) A alínea s) constitui uma norma especial e específica que inclui expressamente relógios, incluindo os de valor unitário superior a € 1.000,00;
(ii) O relógio em causa, com o valor de € 14.700,00 preenche perfeitamente esta definição;
(iii) A alínea r) configura uma categoria residual, limitada pela condição de exclusão inicial “Os objetos que, não sendo classificados como Jóias e objetos preciosos…”;
(iv) A interpretação do tribunal a quo esvazia de sentido útil esta ressalva contratual e viola o princípio da especialidade.
A Recorrida, por sua vez, defende a manutenção da decisão recorrida, sustentando que:
(i) O relógio Rolex é inequivocamente um “relógio de marca”, expressamente mencionado na alínea r);
(ii) Constitui um objeto de alto valor e risco agravado, enquadrando-se perfeitamente nesta categoria;
(iii) Não possui na sua composição pedras ou metais preciosos ou semipreciosos, requisito essencial da alínea s);
(iv) Não existe hierarquia de classificação, mas sim distinção clara entre as duas categorias.
Cumpre decidir.
Analisando atentamente o teor das cláusulas em confronto, verifica-se, desde logo, que ambas fazem referência a “relógios”, embora em contextos distintos.
A alínea s) menciona “molduras ou relógios, incluindo os de valor unitário superior a € 1.000, independentemente da sua composição”, mas não refere a expressão “relógios de marca”.
A alínea r) refere expressamente “relógios de marca”.
Ora, a primeira questão hermenêutica que se impõe resolver é a de saber se estas menções são concorrentes ou excludentes, isto é, se podem coexistir relógios nas duas categorias ou se, pelo contrário, a inclusão numa exclui automaticamente a inclusão na outra.
A Recorrente pretende fazer valer uma pretensa hierarquia normativa, invocando que a alínea s) seria uma “norma especial” que prevaleceria sobre a alínea r), esta última configurando uma "categoria residual".
Com o devido respeito, não podemos acompanhar este entendimento.
Desde logo cumpre salientar que não estamos perante normas jurídicas em sentido técnico, mas sim perante cláusulas contratuais, definições convencionais estabelecidas pelas partes (rectius, pela seguradora predisponente) para delimitar o âmbito de cobertura de diferentes categorias de bens segurados.
Não é, pois, aplicável ao caso vertente a distinção entre lei especial e lei geral, nem os critérios de resolução de antinomias normativas (lex specialis derogat legi generali), que pressupõem a existência de normas jurídicas, emanadas do legislador.
Estamos, ao invés, perante cláusulas de definição, que visam delimitar, de forma clara e precisa, o âmbito de aplicação de cada uma das categorias de bens segurados, estabelecendo sublimites indemnizatórios distintos para cada uma delas e, nessa medida, ditam desde logo as boas regras da interpretação que haverá que enquadrar o objeto em causa na categoria mais apropriada, na que melhor o define, tendo em conta a totalidade do contrato.
Na definição dessa categoria mais apropriada, importa atender ao critério interpretativo fundamental: o sentido que um declaratário normal, medianamente diligente e sagaz, colocado na posição do declaratário real (no caso, a Autora/segurada), atribuiria a estas cláusulas.
Ora, perante um tomador de seguro comum, sem especiais conhecimentos técnicos ou jurídicos, qual seria o sentido mais natural e imediato das referidas cláusulas?
Vejamos:
A alínea s) define “Jóias e Objetos Preciosos” como “quaisquer objetos, independentemente do seu valor monetário, que inclua na sua composição pedras ou metais preciosos ou semipreciosos”.
Aqui reside, em nosso entendimento, o elemento nuclear, definidor e essencial desta categoria: a composição material do objeto, que deve incluir pedras ou metais preciosos ou semipreciosos. A enumeração exemplificativa que se segue (“nomeadamente, colares, anéis, brincos, faqueiros de prata ou ouro, salvas de prata, isqueiros, canetas, molduras ou relógios”) não faz mais do que ilustrar, de forma não taxativa, alguns dos objetos que, contendo habitualmente na sua composição pedras ou metais preciosos ou semipreciosos, se enquadram nesta categoria.
O que é verdadeiramente relevante e definidor desta categoria não é, pois, o valor do objeto, mas sim a sua composição material com pedras ou metais preciosos ou semipreciosos. O valor é, aqui, irrelevante (“independentemente do seu valor monetário”), sendo o critério distintivo a natureza intrínseca do objeto enquanto jóia ou objeto precioso. E, em particular, no que respeita aos relógios, não se utiliza a expressão “relógios de marca” nessa categoria.
Por seu turno, a alínea r) define “Objetos de Valor” como “os objetos que, não sendo classificados como Jóias e objetos preciosos, constituem pela sua natureza ou valor objetivamente constatáveis um risco agravado”, utilizando-se expressamente nesta alínea a expressão “relógios de marca”.
Aqui, o elemento nuclear e definidor é distinto: não a composição material do objeto (que é irrelevante), mas sim o seu valor e o risco agravado que representa, constando dessa cláusula, quanto aos relógios, a expressão “relógios de marca”.
Esse valor e risco agravado derivará de fatores como sejam: prestígio e reputação da marca, escassez e procura no mercado, estatuto simbólico como objeto de luxo.
A expressão inicial “os objetos que, não sendo classificados como Jóias e objetos preciosos” constitui, efetivamente, uma delimitação negativa, que visa evitar sobreposições e garantir que os objetos já abrangidos pela categoria anterior não sejam incluídos nesta.
Todavia, esta exclusão deve ser corretamente entendida: o que está excluído desta categoria são os objetos que, pela sua composição material em pedras ou metais preciosos ou semipreciosos, se enquadram na categoria de “Jóias e Objetos Preciosos”, e não todos os objetos que possam, de alguma forma, ser subsumidos à enumeração exemplificativa constante da alínea s), sendo certo que, quanto aos relógios, em particular, teremos ainda que ter em consideração o critério acrescido de ser ou não um relógio de marca.
Quando se fala em relógios de marca, o discurso entra no domínio do simbólico: o que se adquire já não é apenas um instrumento preciso, mas também um fragmento de prestígio e de reconhecimento. A cobiça aparece nesse contexto como uma força de aspiração e de imitação. Não se deseja o relógio em si, mas o que ele representa: sucesso, poder, sofisticação. O brilho do metal e o nome gravado no mostrador refletem menos o tempo cronológico e mais o tempo social de quem o ostenta. A cobiça reside, pois, na ilusão de que o valor do objeto possa ser transferido para a pessoa que o possui, transformando-se a sua posse em linguagem.
No entanto, o relógio de marca não é apenas um produto da vaidade humana; é também testemunho de um conhecimento técnico e artístico acumulado. Uma relojoaria tradicional condensada de engenho, de microprecisão e de estética funcional.
As marcas construíram a sua reputação não apenas pela raridade dos materiais que utilizam, mas pela constância da excelência no desempenho.
O nome “de marca” carrega a memória de mestres relojoeiros e o imaginário de gerações.
Os relógios de marca corporizam, assim, um paradoxo moderno: conjugam o mais íntimo dos instrumentos do tempo com o mais exterior dos gestos sociais. São expressões simultâneas da cobiça que move o homem e do conhecimento que o eleva.
Neste contexto, um relógio da marca Rolex, modelo Cosmograph Daytona, com o valor de € 14.700, é, sem dúvida, um relógio de alta relojoaria, de elevado valor comercial, reconhecida qualidade técnica e grande prestígio, e, como tal, enquadra-se perfeitamente na categoria de "Objetos de Valor", por ser, inequivocamente, um “relógio de marca” (expressamente mencionado na alínea r), que “constitui pela sua natureza ou valor objetivamente constatáveis um risco agravado”.
Um relógio Rolex Cosmograph Daytona, com o valor de € 14.700,00 é notoriamente um relógio de marca de luxo, de elevado prestígio no mercado da alta relojoaria, cuja subtração representa um prejuízo significativo para o segurado e um risco agravado para a seguradora.
A marca Rolex é universalmente reconhecida como uma das mais prestigiadas marcas de relojoaria de luxo a nível mundial, e o modelo Cosmograph Daytona é um dos seus modelos icónicos, particularmente cobiçado por colecionadores e conhecedores.
Qualquer declaratário medianamente informado e diligente, colocado na posição da Autora/segurada, ao ler a alínea r) das condições gerais da apólice, e deparando-se com a menção expressa a “relógios de marca”, concluiria, sem margem para dúvidas razoáveis, que um relógio Rolex Cosmograph Daytona se enquadra nesta categoria.
Mais: concluiria que, precisamente por ser um relógio de marca de luxo, de elevado valor e risco agravado, a Seguradora estabeleceu para esta categoria um sublimite indemnizatório superior (€ 20.000) ao da categoria de “Jóias e Objetos Preciosos” (€ 10.000), precisamente porque os objetos de valor (obras de arte, equipamentos de informática, relógios de marca, etc.) tendem a ter valores unitários superiores aos das jóias comuns.
Esta interpretação é confirmada pela própria estrutura e finalidade das cláusulas em análise.
A Seguradora, ao estabelecer sublimites indemnizatórios distintos para diferentes categorias de bens, visa delimitar o seu risco e garantir o equilíbrio do contrato.
Ao fixar um sublimite de € 10.000 para “Jóias e Objetos Preciosos” e um sublimite de € 20.000 para “Objetos de Valor”, a Seguradora está a reconhecer que estes últimos (onde incluiu, expressamente, os “relógios de marca”) tendem a ter valores superiores, justificando um sublimite mais elevado.
Ora, não faria qualquer sentido económico ou lógico que a Seguradora estabelecesse um sublimite inferior (€ 10.000) para uma categoria onde pretendesse incluir relógios de elevado valor (como é notoriamente o caso dos relógios Rolex), quando, ao mesmo tempo, estabelece um sublimite superior (€ 20.000) para a categoria onde expressamente menciona “relógios de marca”.
A interpretação propugnada pela Recorrente conduziria, pois, a um resultado manifestamente irracional e contraditório, incompatível com o princípio da boa fé contratual e com a finalidade económica do contrato de seguro.
Acresce que a argumentação da Recorrente, assente na pretensa prevalência hierárquica da alínea s) sobre a alínea r), não tem em conta que ambas as cláusulas, ao fazerem menção a “relógios” (ainda que em contextos distintos), visam abranger universos de objetos diferentes, delimitados por critérios distintos: (composição material, no primeiro caso; marca, valor e risco agravado, no segundo).
Esta interpretação respeita integralmente::
- A letra das cláusulas - não violenta o texto, antes o interpreta no seu contexto sistemático.
- O critério do declaratário normal - um segurado medianamente diligente, ao ler “relógios de marca” na alínea r), reconheceria imediatamente que um Rolex é, por excelência, um relógio de marca de luxo.
- A racionalidade económica do contrato - justifica-se que o sublimite para “Objetos de Valor” (€ 20.000) seja superior ao de “Jóias e Objetos Preciosos” (€ 10.000), precisamente porque objetos como relógios de marca de luxo, equipamentos informáticos de alta gama, ou obras de arte tendem a ter valores unitários superiores aos de jóias comuns.
Por todo o exposto, entendemos que esta interpretação é a que melhor se coaduna com o critério da impressão do destinatário, com o princípio da boa fé contratual, com a finalidade económica do contrato de seguro e com a estrutura sistemática das cláusulas em análise.
É também a interpretação que foi acolhida pela sentença recorrida, que assim merece a nossa inteira concordância.
Mais se dirá que, ainda que subsistissem dúvidas insanáveis sobre o sentido das cláusulas em causa, sempre prevaleceria, nos termos do artigo 11.º da LCCG, o sentido mais favorável ao aderente, que é, no caso, precisamente o acolhido pela sentença recorrida: o enquadramento do relógio na categoria de “Objetos de Valor”, com sublimite indemnizatório de € 20.000, superior ao da outra categoria (€ 10.000).
Em face do exposto, conclui-se que a sentença recorrida não incorreu em qualquer erro de julgamento ao interpretar as cláusulas contratuais em análise, devendo, nesta parte, ser mantida.
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2ª Dos juros de mora e respetivo dies a quo
A Recorrente insurge-se, ainda, contra a condenação no pagamento de juros de mora desde a data da participação do sinistro (16/11/2022), sustentando que: a obrigação de pagamento da indemnização não era líquida, havendo divergência sobre o montante devido; a mora da seguradora só se constituiu com o trânsito em julgado da sentença que fixou o valor da indemnização e a recusa da Autora em aceitar o montante de € 10.090 proposto pela Seguradora configura mora do credor, sendo a Autora a responsável pelo atraso.
A questão da mora do segurador no pagamento da indemnização encontra-se regulada, em primeiro lugar, pelas normas gerais sobre mora constantes dos artigos 804.º e seguintes do Código Civil.
Nos termos do artigo 805.º, n.º 1, do Código Civil, “o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir”, estabelecendo o n.º 3 do mesmo preceito que “se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número”.
No caso vertente, importa ainda ter em consideração o regime contratual estabelecido, designadamente a Cláusula 25.ª das Condições Gerais da Apólice, sob a epígrafe "Obrigações do Segurador" (documento junto com contestação), onde se estipula o seguinte:
“1. As averiguações e peritagens necessárias ao reconhecimento do sinistro e à avaliação dos danos, devem ser efetuados pelo Segurador com a adequada prontidão e diligência, sob pena de responder por perdas e danos.
2. O Segurador deve pagar a indemnização, ou autorizar a reparação ou reconstrução, logo que concluídas as investigações e peritagens necessárias ao reconhecimento do sinistro e à fixação do montante dos danos, sem prejuízo de pagamentos por conta, sempre que se reconheça que devem ter lugar.
3. Decorridos trinta (30) dias das conclusões previstas no número anterior sem que haja sido paga a indemnização ou autorizada a reparação ou reconstrução, por causa não justificada ou que seja imputável ao Segurador, são devidos juros à taxa legal em vigor sobre, respetivamente, o montante daquela ou o preço médio a valores de mercado da reparação ou reconstrução.”
Resulta desta cláusula contratual que:
a) O segurador deve proceder às averiguações e peritagens necessárias ao reconhecimento do sinistro e à avaliação dos danos “com a adequada prontidão e diligência”, respondendo por perdas e danos em caso de incumprimento (n.º 1);
b) Concluídas as investigações e peritagens, o segurador deve pagar a indemnização “logo que” estejam concluídas, ou seja, de imediato, sem qualquer prazo adicional de tolerância (n.º 2);
c) Todavia, estabelece-se um prazo de tolerância de 30 dias após a conclusão das investigações e peritagens, findo o qual, se não houver sido paga a indemnização “por causa não justificada ou que seja imputável ao Segurador”, são devidos juros à taxa legal em vigor (n.º 3).
No caso dos autos, resulta provado que:
- O furto ocorreu em 13/11/2022.
- A participação à Seguradora foi efetuada em 16/11/2022.
- A Autora prestou toda a colaboração solicitada, enviando toda a documentação necessária .
- Em 9/5/2023, a Seguradora emitiu recibo de indemnização no valor de € 10.990.
É, assim, inequívoco que em 9 de maio de 2023 a Seguradora já havia concluído todas as investigações e peritagens necessárias ao reconhecimento do sinistro e à avaliação dos danos. Com efeito, nessa data, a seguradora não só havia concluído a sua análise como formulou uma proposta concreta de indemnização, quantificando de forma precisa e detalhada o montante que entendia devido.
Ora, nos termos da Cláusula 25.ª, n.º 2, das Condições Gerais, o segurador deve pagar a indemnização “logo que concluídas as investigações e peritagens”. O n.º 3 da mesma cláusula estabelece, todavia, um prazo de tolerância de 30 dias, findo o qual são devidos juros de mora à taxa legal.
Por conseguinte, tendo a Seguradora concluído as suas investigações e peritagens até, pelo menos, 9 de maio de 2023, dispunha de um prazo de 30 dias para proceder ao pagamento da indemnização devida, ou seja, até 8 de junho de 2023.
Não tendo procedido ao pagamento da indemnização devida até essa data, a Recorrente constituiu-se em mora a partir de 9 de junho de 2023, sendo devidos juros de mora, à taxa legal, desde essa data até efetivo e integral pagamento.
Sustenta a Apelante que não incorreu em mora por três ordens de razões: (i) a obrigação não era líquida, face à divergência sobre o montante devido; (ii) agiu de boa fé, propondo o pagamento com base na sua interpretação do contrato; (iii) a recusa da Autora em aceitar o montante proposto configura mora do credor.
Nenhum destes argumentos merece acolhimento.
Quanto à alegada falta de liquidez da obrigação, importa recordar que a própria Seguradora, em 9/5/2023, quantificou de forma precisa e concreta o montante que entendia devido (€ 10.990), demonstrando assim que a obrigação era perfeitamente liquidável e que dispunha de todos os elementos necessários para proceder à sua quantificação.
A circunstância de a Seguradora ter chegado a um montante diferente do efetivamente devido não torna a obrigação ilíquida, sendo certo que a acima referida Cláusula 25.ª, n.º 3, estabelece expressamente que são devidos juros quando a falta de pagamento decorra de “causa não justificada ou que seja imputável ao Segurador”.
Ora, uma interpretação incorreta das cláusulas contratuais por parte da seguradora constitui uma causa imputável ao segurador, não constituindo justificação válida para a falta de pagamento tempestivo da indemnização devida.
Por último, não se verifica, no caso qualquer situação de mora do credor que pudesse exonerar a Recorrente ou justificar o atraso no pagamento.
A mora do credor, prevista nos artigos 813.º e seguintes do Código Civil, pressupõe que o devedor tenha oferecido a prestação devida, nos termos adequados e no lugar próprio, e que o credor, injustificadamente, a tenha recusado. No caso vertente, a Seguradora não ofereceu a prestação devida (€ 24.780), mas apenas uma prestação manifestamente inferior (€ 10.090), correspondente a menos de metade do valor efetivamente devido. A Autora, legitimamente, recusou aceitar este montante como cumprimento integral da obrigação, não podendo tal recusa ser-lhe imputada como mora creditoris.
Estabelecido que a Recorrente incorreu em mora no pagamento da indemnização devida e que não se verifica qualquer situação de mora do credor ou de causa justificativa do não pagamento, resta determinar o respetivo dies a quo dos juros de mora.
A sentença recorrida fixou o início da contagem dos juros de mora em 16/11/2022, data da participação do sinistro à seguradora.
Salvo o devido respeito, tal decisão não pode manter-se, por manifesta violação do regime contratualmente estabelecido na Cláusula 25.ª das Condições Gerais da Apólice, porquanto aí se concede à Seguradora um prazo para proceder às averiguações, peritagens e investigações necessárias, e, posteriormente, um prazo adicional de 30 dias para efetuar o pagamento após a conclusão dessas investigações.
A interpretação acolhida pela sentença recorrida desconsidera por completo o regime contratual estabelecido pelas partes, em violação do princípio da autonomia privada (artigo 405.º do Código Civil) e do princípio pacta sunt servanda, e conduziria a uma solução manifestamente injusta, na medida em que não reconheceria à Seguradora o tempo necessário e razoável para analisar o sinistro, proceder às avaliações periciais e tomar uma decisão fundamentada. Tal interpretação violaria o próprio teor literal e inequívoco da Cláusula 25.ª, n.º 3, que expressamente condiciona o início da contagem dos juros ao “decurso de trinta (30) dias das conclusões” das investigações e peritagens.
Entendemos, assim, que os juros de mora são devidos desde o dia de 9 de junho de 2023, correspondente ao dia seguinte ao termo do prazo de 30 dias contados desde 9/5/2023 (data em que é certo e inequívoco que a seguradora já havia concluído todas as investigações e peritagens necessárias, uma vez que nessa data formulou proposta concreta de indemnização, com quantificação precisa dos valores).
Nesta parte merece censura a sentença recorrida, devendo ser parcialmente revogada.
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Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527º do Código de Processo Civil, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que lhes tiver dado causa, presumindo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção.
Como a apelação foi julgada parcialmente procedente, mercê do princípio da causalidade, as custas serão da responsabilidade da Recorrente e da Recorrida na percentagem de 90% para a Recorrente e 10% para a Recorrida.
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Síntese conclusiva (da exclusiva responsabilidade da Relatora – artigo 663º, nº7, do Código de Processo Civil)
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III - DECISÃO
Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão da 5ª Secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em:
A) Julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pela Apelante A..., S.A., revogando a decisão recorrida na parte em que condenou a Ré/Apelante no pagamento de juros de mora desde 16 de novembro de 2022.
B) Condenar a Ré/Apelante a pagar à Autora/Apelada juros de mora desde 9 de junho de 2023 até efetivo e integral pagamento, confirmando no mais a sentença recorrida.
Custas deste recurso na proporção de 90% para a Ré / Apelante e 10% para a Autora /Apelada.
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Porto, 24 de novembro de 2025
Os Juízes Desembargadores
Teresa Pinto da Silva
Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
Fátima Andrade