DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
VALORAÇÃO DA PROVA
RECUSA EM PRESTAR DEPOIMENTO
Sumário

I - A tese que não admite a valoração das declarações para memória futura da vítima, no caso de sobrevir em audiência a recusa em prestar depoimento, coloca o centro da discussão no art.356º do CPP, em particular o nº6 deste preceito, contudo, no regime jurídico dessas declarações o disposto no art.356º do CPP é meramente residual, não definindo os traços essenciais dessa prova, não indo além da possibilidade da leitura em audiência nos termos do nº3 deste preceito.
II - As declarações para memória futura, enquanto prova antecipada (cfr.art.271º nº1 “in fine” do CPP) têm um valor autónomo e diverso ao regime das permissões do art.356º, ou seja, podem ser valoradas enquanto tal, não estando dependentes da sua leitura para valerem como prova, situando-se, por isso, ao largo do disposto no art.355º nº2 do CPP.
III - Carece de fundamento legal, o juiz do julgamento em audiência, reinquirindo a vítima, tornar a conceder-lhe o direito a recusar-se a responder nos termos do art.134º do CPP, faculdade e opção que já havia exercido em diligência que por definição e antecedência é integrante da audiência, com o mesmo valor probatório.

(Sumário da responsabilidade do Relator)

Texto Integral

Processo: 981/24.9PBAVR.P1

Acordam em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

Em processo comum com intervenção de Tribunal Singular que correu termos no Juízo Local Criminal de Aveiro do Tribunal da Comarca de Aveiro, procedeu-se a julgamento com observância das formalidades legais. Foi proferido acórdão, julgando do seguinte modo:
Por todo o exposto, decide-se:
CONDENAR o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, n.º 1, als. a) e c), e n.º 2, al. a), do Cód. Penal, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão efectiva.
Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) U.C.’s.
Fixam-se honorários à Sra. Intérprete de Língua Gestual (BB) no valor total de 3 (três) UC’s, como sendo 1 (uma) UC por cada uma das suas três intervenções em audiência de julgamento, sendo o valor a adiantar pelo IGFEJ e a entrar em sede de custas a final.
Boletim ao registo criminal.
Após a leitura da presente sentença, proceder-se-á ao respectivo depósito.
Registe e notifique.
Após trânsito, extraia-se certidão da presente sentença, com nota de trânsito, e remeta-se a mesma ao processo n.º ..., deste mesmo Juízo Local Criminal de Aveiro (J2), para os fins que aí sejam tidos como adequados, nomeadamente atendendo a que o arguido cometeu o crime aqui em causa durante o período de suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada em tal processo.”.

*
Não se conformando com a sentença o arguido AA veio interpor recurso, com os fundamentos constantes da motivação, concluindo da seguinte forma:
1. O arguido não se conforma com a sentença proferida nos autos, que o condenou na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, pela pratica de um crime de violência doméstica
2. O presente recurso versa matéria de facto e de direito.
3. Visa a impugnação da matéria de facto vertida nos pontos F, G, H, I, J, L, M, N, O, P, Q, R, S, T, dos Factos Provados, que se pugna ver considerados não provados.
4. A impugnação está relacionada com a valoração feita pelo tribunal das declarações para memória futura, prestadas em fase de inquérito, pela ofendida que em julgamento se recusou validamente a depor, nos termos do art. 134,º n.º 1, al, b) do CPP.
5. Por valorar as declarações para memória futura, prestadas em fase de inquérito, pela ofendida que em julgamento se recusou validamente a depor, nos termos do art. 134,º n.º 1, al, b) do CPP, o julgador violou a proibição de valoração de provas contida no art. 355.º do CPP, o n.º 5 do artigo 33.º da Lei 112/2009 e o art. 356.º, nº 6 do CPP.
6. As declarações para memória futura prestadas em sede de inquérito constituem, de facto e de direito, uma prova pre-constituída que não carece de leitura e/ou reprodução, sempre e quando não seja possível ou admitida a convocação a julgamento de quem as prestou sem colocar em causa a sua saúde física e psíquica.
7. A convocatória da ofendida para prestar declarações em sede de audiência de julgamento foi tempestiva e fundadamente requerida pela defesa e admitida pelo tribunal, sem qualquer oposição do Ministério Público, dando-se por essa via por assente e em concreto do interesse e viabilidade da prestação de declarações da ofendida em julgamento sem comprometer a sua saúde física e psíquica.
8. As menções jurisprudenciais sobre a desnecessidade de leitura em julgamento dos depoimentos prestados para memória tem como pressuposto que a leitura seja permitida, ou seja, desde que a leitura não esteja vetada por proibição legal.
9. A falta de advertência à testemunha do dever de falar com verdade sob pena de incorrer em responsabilidade criminal, falta de juramentação da testemunha e falta de juramentação da tradutora/intérprete de língua gestual, mesmo que não arguidas na diligência, devem ser tidas em conta aquando da valoração da prova pelo julgador.
10. As falhas de comunicação entre a intérprete de língua gestual e a ofendida na, sinais exteriorizados de parcialidade, rispidez durante o exercício do contraditório por parte da entidade que presidiu a diligencia de tomada de declarações para memória futura, e introdução do auto da diligência de factos que não aconteceram, devem ser tidas em conta aquando da valoração da prova pelo julgador.
11. A decisão condenatória que determinou pelo cumprimento de pena de prisão efetiva aplicada ao arguido deverá ser revogada e substituída por outra que determine pela suspensão da execução da pena de prisão.
NESTES TERMOS,
e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá a matéria de facto impugnada dar-se por não provada e por consequência absolvido o arguido, ou Revogada a decisão que condenou o arguido em pena de prisão efetiva, substituindo-a por outra que determine pela aplicação da suspensão da pena de prisão.
Com o que será feita inteira justiça.
*
O MP em primeira instância respondeu ao recurso, referindo em síntese:

I – Do objecto do recurso
Nos presentes autos foi o recorrente condenado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, nº 1 als a) e c) e n.º 2 al a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 3 (meses) de prisão efetiva.
Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso, alegando, em síntese:
A ) - Impugnação da matéria de facto vertida nos pontos F, G, H, I, J, L, M, N, O, P, Q, R, S, T, dos Factos Provados, os quais deveriam ter sido dados como não provados - violação da proibição de valoração da prova – art. 355º do CPP;
- indevida valoração das declarações para memória futura;
- inveracidade do auto de declarações para memória futura;
B ) - inadequação da pena de prisão efectiva, a qual deveria ter sido suspensa na sua execução.
Vejamos, pois, o que se nos oferece rebater, sendo certo que o objecto do recurso é delimitado pelas correspondentes conclusões, vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Março de 1991, apud Manuel Lopes Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal anotado e comentado, Almedina, 14ª ed., 2004, p. 836: “O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação”.
II – Posição do Ministério Público
A ) - Impugnação da matéria de facto vertida nos pontos F, G, H, I, J, L, M, N, O, P, Q, R, S, T, dos Factos Provados
CC, ofendida nos presentes autos, prestou declarações para memória futura em fase de inquérito no dia 19.09.2024, nos termos e para os efeitos do artigo 33º da Lei n.º112/2009, de 16 de Setembro, e do artigo 271º do Código de Processo Penal (CPP), as quais foram gravadas em registo audiovisual.
A requerimento do arguido em sede de contestação, e por se ter entendido como relevante para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, a ofendida foi convocada para prestação de declarações também em audiência de julgamento, nos termos e para os efeitos do n.º 7 da referida Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, e do n.º 8 do aludido art.º 271º do CPP. Nessa ocasião, em virtude de ser cônjuge do arguido, optou por não prestar declarações em audiência de julgamento, nos termos do art. 134º, n.º 1, al. a), do CPP.
Não obstante a recusa em depor em audiência julgamento, as declarações para memória futura prestadas pela ofendida em inquérito foram valoradas pelo Tribunal A Quo para formar a sua convicção, as quais, conjugadas com a demais prova, conforme resulta da motivação da sentença, conduziram à condenação do recorrente.
Insurge-se o recorrente com a valoração realizada pelo Julgador, defendendo que ao proceder dessa forma, violou a proibição de valoração de provas contida no art.355.º do CPP, o n.º 5 do artigo 33.º da Lei 112/2009 e o art. 356.º, nº 6 do CPP, atenta a circunstância da ofendida ter recusado, validamente, a prestação de depoimento em audiência de julgamento.
Todavia, afigura-se-nos não assistir razão ao recorrente.
Conforme resulta da sentença, e também conforme alegado no recurso, existem duas correntes jurisprudenciais opostas no que respeita à questão, ou seja, quanto à possibilidade de valoração das declarações para memória futura prestadas pela vítima que se recusa a depor em sede de audiência de julgamento, sendo uma no sentido da impossibilidade da valoração e outra no sentido da sua valoração, não a considerando prova proibida, tendo sido esta última, e bem, a corrente perfilhada na sentença recorrida.
Com efeito, e tal como referido na sentença, as declarações para memória futura, como previstas no art. 271º do CPP, tratam-se de prova antecipada, pré constituída, a ter em conta em audiência de julgamento e não de prova recolhida no inquérito e/ou instrução, visando a avaliação e ponderação por parte do Julgador, conjuntamente com a demais prova produzida, na formação da sua convicção.
No caso das vitimas de violência doméstica, especialmente vulneráveis, como é o caso, com a prestação de declarações para memória futura procura evitar-se aquelas situações em que o agressor exerça a sua influência ou domínio, existente muitas das vezes, em termos de fazer com que aquelas não falem por forma a evitar ou minorar os efeitos aquando da submissão do agressor à avaliação e acção judicial.
Atento o disposto no art.º 24.º do Estatuto da Vítima, aplicável às vítimas de violência doméstica (art. 2º), estas têm o direito de prestar declarações para memória futura e não devem ser chamadas a depor em audiência a não ser que tal se mostre essencial para a descoberta da verdade e não colocar em causa a saúde física ou psíquica da pessoa que o deva prestar. No presente caso, o depoimento em audiência de julgamento foi requerido pelo recorrente, com a não oposição do Ministério Público, considerando o Tribunal Aquo ser o mesmo relevante com vista à descoberta da verdade material e boa decisão da causa, não tendo sido colocado em risco a saúde física e/ou psíquica da vítima. E ao contrário do que defende o recorrente, afigura-se nos que a circunstância da vítima se ter recusado a depor em audiência não exclui a possibilidade do Tribunal as valorar, conjugando-as com a demais prova produzida, como de resto se fez na sentença recorrida.
Sob pena de, a entender-se como o recorrente, estar encontrada a solução para se arredar as declarações para memória futura desde, e sempre que, requerido novo depoimento da vítima, esta se recuse a depor, nos termos do art.134,º n.º 1, al, b) do CPP.
Tal interpretação não permitiria a realização da justiça, colocando de parte elementos de prova antecipadamente constituídos, quer seja no sentido da condenação ou da absolvição. Este não foi, seguramente, o espírito do legislador ao consagrar a possibilidade das declarações para memória futura. A circunstância da ofendida ter recusado a prestação de depoimento, não impedia que as suas declarações para memória futura fossem apreciadas pelo Tribunal, da forma como o fez, em obediência ao Princípio da Livre Apreciação da Prova, uma vez que não se trata de prova proibida. A solução propugnada pelo recorrente, ao defender que aquelas declarações não deveriam ter sido valoradas, conduziria, isso sim, a erro de julgamento, por erro na livre apreciação das provas, por não ter levado em consideração o teor da recolha antecipada de prova.
Assim, analisadas as declarações para memória futura prestadas pela ofendida CC, conjugadas com a demais prova constante dos autos, nomeadamente os relatórios periciais realizados na sua pessoa, as fotografias onde se visionam os ferimentos produzidos, não deixam margem para dúvidas de que, efectivamente, o recorrente praticou os factos dados como provados na sentença recorrida e que ora são colocados em causa pelo mesmo, não existindo violação da proibição de valoração de prova.
Por conseguinte, a sentença recorrida não violou o disposto nos arts. 355º e 356º, n.º 6 do CPP, ambos do CPP, bem como o art. 33º, n.º 5 da Lei n.º112/2029, estando correctamente julgados os factos dados como provados, devendo o recurso improceder, nessa parte.
Alega, ainda, o recorrente que, aquando da realização das declarações para memória futura, “a ofendida não foi, efetivamente, advertida do dever de responder com verdade às perguntas que lhe fossem dirigidas sob pena de incorrer em responsabilidade criminal, nem lhe foi tomado juramento. – arts. 132, nº 1 al, b) e d) e 91.º do CPP. E à intérprete de língua gestual nomeada à ofendida, cidadã surdo-muda de nacionalidade chinesa (tal como o arguido é surdo-mudo de nacionalidade chinesa) não foi tomado o devido compromisso de honra. – art. 91, n.º 2, 3 e 4 do CPP.”
Mais alega na sua motivação que “A questão que se pretende suscitar com o ponto 2, nas derivações descritas nos subpontos 2.1 e 2.2, não é propriamente a relacionada com questões de nulidades sanáveis, insanáveis ou meras irregularidades, a defesa não arguiu as ilegalidades no procedimento, o Ministério Público tampouco, e a magistrada judicial terá certamente agido conforme ditado pela sua consciência.”
Ora, relativamente a tal questão, quer a circunstância da ofendida não ter sido advertida do dever de responder com verdade às perguntas que lhe fossem dirigidas sob pena de incorrer em responsabilidade criminal, quer o facto de não lhe ter sido tomado juramento, o que realmente não foi (o que resulta da audição das declarações), quer a circunstância de inexistir compromisso de honra por parte da intérprete de linguagem gestual, não corresponde, e tal como bem alegado pelo recorrente, a uma questão de nulidade sanável ou insanável. E, assim é, uma vez que não constam do elenco legal que as prevê nos arts. 119º e 120º, ambos do CPP. No entanto, tais circunstâncias poderiam configurar irregularidades, nos termos do art. 123º do mesmo diploma legal, ao contrário do que alega o recorrente, sendo certo que não foram arguidas em tempo oportuno, estando, por isso, sanadas.
No entanto, o recorrente vai mais além das eventuais nulidades ou irregularidades verificadas naquela diligência de declarações para memória futura.
Com efeito, afirma o recorrente na motivação do recurso que “consultado o Auto de Diligência foi, inveridicamente (negrito e sublinhado nosso), feito constar o seguinte:
“ De imediato teve início a presente audiência com o depoimento da OFENDIDA CC, nascida em ../../1980, nacional de China, NIF - ..., Autorização de residência - ..., Passaporte - ..., domicílio: Rua ..., ... Aveiro. Questionada nos termos do art.º348.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, disse ser mulher do arguido. Advertida pela Mm.ª Juiz nos termos e para os efeitos previstos na al. a)- do n.º 1 e n.º 2 do art.º 134.º do Código de Processo Penal, na sequência de tal advertência tendo pela mesma sido dito pretender prestar depoimento. Prestou juramento legal, tendo a Mm.ª Juiz advertido a testemunha de que deve depor com verdade sob pena de, não o fazendo, incorrer em responsabilidade criminal (cfr. art.º 91.º, n.os 1 e 3 do Código de Processo Penal e art.º 360.º do Código Penal), e depôs “Mais afirma “que do Auto de Diligência, destinado a fazer fé quanto aos termos em que se desenrolou o ato processual, se tenha feito constar um facto que não aconteceu: “Prestou juramento legal, tendo a Mm.ª Juiz advertido a testemunha de que deve depor com verdade sob pena de, não o fazendo, incorrer em responsabilidade criminal (cfr. art.º 91.º, n.os 1 e 3 do Código de Processo Penal e art.º 360.º do Código Penal), e depôs “ .
Portanto, o que efectivamente vem alegado pelo recorrente é a desconformidade do que se fez constar no auto de declarações para memória futura com aquilo que aconteceu em tal diligência, ou seja, uma divergência entre a realidade e o que foi atestado naquele documento. Sendo que a alegada desconformidade corresponde, na verdade, à falsidade do documento, o que o recorrente não arguiu expressamente, mas antes o fez de forma enviesada.
Ora, como alegado pelo recorrente “a redacção do auto é realizada pelo funcionário de justiça sob a direcção da entidade que presidir o ato,” pelo que estamos no âmbito dos documentos autênticos, como previsto nos arts. 369º e ss do Código Civil (CC).
A consequência a retirar, segundo o recorrente, é a seguinte: “Atento o exposto, a convicção da defesa aponta que o tribunal “a quo” terá valorado indevidamente as declarações pera memória futura prestadas pela ofendida ao não ter advertido das faltas ao procedimento e ao normal exercício do contraditório com inegáveis repercussões na fiabilidade da prova produzida, pelo que, os factos ora impugnados, porque considerados provados com base nessa prova, deverão ser reapreciados e dados por não provados por força da aplicação do princípio “ in dúbio pro reo”.
Todavia, não tem razão o recorrente, pois a retirar-se alguma consequência, não será em termos da valoração da prova. Na verdade, na sequência daquela desconformidade alegada pelo recorrente, de inveracidade do teor do auto, ou falsidade, a mesma teria de ser arguida em tempo oportuno e nos termos do art. 372º do CC, o que não foi.
Ou seja, nos termos do art. 451º, n.º 2 do CPP por aplicação ex vi do art. 4º do CPP, no prazo de 10 dias a contar daquele em que deva entender-se que a parte teve conhecimento do acto.
Sendo que, a considerar-se que o recorrente, naquele momento processual (inquérito), não teve conhecimento do mesmo, por não ter acesso ao processo, como refere, o certo é que o teve posteriormente e antes da audiência de julgamento.
Com efeito, resulta dos autos que o recorrente foi regularmente notificado da acusação, não tendo requerido a abertura de instrução, bem como foi regularmente notificado para contestar, nos termos dos arts. 311º A e 311º B, ambos do CPP, tendo, nesses momentos processuais, pleno acesso ao processo. Inclusivamente tinha acesso na fase de inquérito, previamente à dedução de acusação, mediante requerimento para o efeito, uma vez que não foi sujeito a segredo de justiça, nos termos do art. 86º, n.º 2 do CPP. Na pior das hipóteses, deveria aquela desconformidade, ou falsidade, ter sido arguida no início da audiência de julgamento, o que não aconteceu. Pelo que, não tendo sido arguida naqueles termos, não existe qualquer consequência a retirar da inveracidade a que fez referência o recorrente, ou falsidade, no que respeita ao teor daquele auto, muito menos em termos de apreciação da prova.
Pelo que, também aqui, deverá improceder o recurso interposto pelo recorrente.
Tudo o mais que vem alegado pelo recorrente no que concerne àquela diligência, nomeadamente a forma como a mesma foi conduzida pela Sr.ª Juíz que a presidiu, deveria ter sido arguido em tempo, o que não foi, pelo que nada mais a este respeito se afigura acrescentar.
B) Da suspensão da execução da pena de prisão
Defende o recorrente que o cumprimento efectivo da pena de prisão que lhe foi aplicada se demonstra desajustado, devendo a pena ser suspensa na sua execução.
Pese embora se compreendam as considerações alegadas pelo recorrente, pois está em causa a sua reclusão, entendemos que não lhe assiste razão.
Conforme resulta da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, nomeadamente do ponto D), o recorrente foi condenado:
“D) No âmbito do processo n.º ..., o qual correu os seus termos no Juízo Local Criminal de Aveiro (J2), por sentença proferida a 20 de Setembro de 2022, transitada em julgado em 14 de Novembro de 2022, o aqui arguido AA foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, na pessoa da mesma CC, na pena de 2 anos e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de 2 anos e 10 meses, com regime de prova que, além de outras tarefas e reuniões a realizar para alcançar esse desiderato que fossem fixadas pela DGRSP, contemplasse:
i) a realização de, pelo menos, quatro reuniões com técnicos da DGRSP ou com pessoa idónea pelos mesmos indicada que sensibilizem o arguido para o carácter desvalioso da sua conduta, a fim de evitar a prática de novos factos desta índole, as quais deverão ter, necessariamente, presente um intérprete de língua gestual;
ii) a colaboração com os técnicos de reinserção social na execução do plano que vier a ser elaborado, prestando todas as informações solicitadas, respondendo às convocatórias e recebendo as visitas que aqueles entendam necessárias e pertinentes.”
Ora, pese embora tal condenação, em que também foi vítima CC, o recorrente voltou a praticar factos de igual natureza sobre a pessoa daquela, circunstância essa a que o Tribunal “a quo” teve, necessariamente, de dar relevância no tipo de pena a aplicar e o seu modo de execução, como, aliás, se impunha.
Estipula o art. 70º do CP que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena de prisão e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”
O normativo legal em apreço define o critério de orientação que o tribunal deve adoptar sempre que ao crime corresponda pena privativa ou não privativa da liberdade, privilegiando a aplicação desta última e, no seu âmbito, de entre o leque legalmente estabelecido, optar-se por aquela que se demonstrar mais adequada ao caso concreto e seja passível de realizar as finalidades da punição, dependendo a escolha da pena de considerações de prevenção geral e especial. Deverá, pois, na tarefa da escolha da pena a aplicar, o julgador de ter em conta os princípios basilares da necessidade, proporcionalidade e adequação, somente assim se alcançando uma solução justa em termos de punição e reprovação da conduta criminosa.
Revertendo ao caso dos autos, decidiu o Tribunal “a quo” condenar o arguido em pena de prisão efectiva por considerar que somente esta satisfaz as exigências de prevenção geral e especial.
Ora, entendemos que não poderia ser outra a solução a adoptar, uma vez que as exigências em termos de prevenção especial são elevadas, ou elevadíssimas, como referido na sentença recorrida.
Com efeito, ao praticar os factos dados como provados na sentença recorrida, e na pendência da suspensão da execução da pena aplicada naqueles outros autos, fica bem demonstrado que o recorrente não interiorizou a gravidade e censurabilidade da sua conduta anterior, revelando incapacidade de se determinar em conformidade com as normas do direito, bem como incapacidade de se abster da prática de ilícitos criminais. Poder-se-á concluir que a condenação não logrou atingir, de todo, as finalidades principais em termos de prevenção especial, designadamente de ressocialização, reabilitação e adaptação face ao direito instituído, pelo que a aplicação da pena de prisão efectiva se afigura a única adequada, necessária e proporcional.
O Tribunal A Quo considerou, e bem, que as finalidades da pena apenas serão conseguidas através do cumprimento efectivo da pena de prisão, concluindo que o recurso às penas de substituição, em concreto, a suspensão da execução da pena, já não se revela adequado e suficiente ao preenchimento das finalidades da punição, não sendo já possível efectuar um juízo de prognose favorável em termos de lhe suspender a pena.
Com o que concordamos, tendo em conta os factos dados como provados na sentença, pois que somente a pena de prisão efectiva se afigura adequada, necessária e proporcional, não existindo qualquer censura a fazer à decisão recorrida quanto à escolha da pena e sua execução, ao contrário do que é alegado pelo recorrente, sendo que, atenta a anterior condenação, é manifestamente evidente que o mesmo demonstra uma personalidade adversa ao Direito, circunstância essa que, obviamente, sopesou na decisão proferida pelo Tribunal a quo.
Assim, temos para nós que a sentença recorrida, ao contrário do que defende o recorrente, encontra-se correctamente elaborada, não tendo violado quaisquer normas ou princípios legais.
Termos em que, ao julgarem improcedente o recurso, mantendo a douta sentença recorrida, farão V.ªs Excelências a habitual justiça.
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Neste tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, referindo em síntese que:
I. Do objeto do recurso
Delimitado pelas respetivas conclusões, são objeto do recurso as seguintes as questões
1. A impugnação da factualidade provada nas als. F) a T), com fundamento em proibição de valoração de provas, nos termos dos artigos 355º e 356º, nº 6 do CPP e artigo 33º, nº 5 da Lei nº 112/2009 e porquanto a ofendida se recusou validamente a depor.
2. A falta de advertência à testemunha que prestou declarações para memória futura do dever de falar com verdade, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal, a falta de juramentação da testemunha a falta de juramentação da tradutora/intérprete de língua gestual, mesmo que não arguidas na diligência, deviam ser tidas em conta aquando da valoração da prova pelo julgador.
3. A não suspensão da execução da pena de prisão.
II. A Ilustre Procuradora da República na primeira instância apresentou exaustiva e muito bem fundamentada resposta ao recurso, demonstrando assertivamente que o recurso não merece provimento.
III. Cumprindo apreciar nos termos e para os efeitos do artigo 416º do CPP, também se nos afigura que o recurso deve ser julgado totalmente improcedente. Como muito bem se anota quer na sentença recorrida quer na resposta, a jurisprudência encontra-se dividida relativamente à valoração das declarações para memória futura nos casos em que a testemunha, tendo sido chamada à audiência de julgamento, usa da faculdade de recusar o depoimento que lhe é concedida pelo artigo 134º do CPP.
A divisão jurisprudencial deu já lugar à instauração de recurso extraordinário de fixação de jurisprudência no Proc. nº 57/21.0GACDR.C2-A.S1, que se encontra pendente no Supremo Tribunal de Justiça e onde já foram julgados verificados todos os pressupostos de admissibilidade do recurso, conforme Ac. proferido em 17/09/2025, publicado no site da dgsi..
Perfilhamos, sem dúvidas, a tese jurisprudencial segundo a qual a opção de testemunha que em julgamento por crime de violência doméstica, não pretender prestar declarações, “não tem efeitos retroativos nem afasta as declarações para memória futura anteriormente prestadas, momento em que lhe foi garantido o exercício do direito a que se refere o artigo 134.º do Código de Processo Penal”.
E isto porque, sem embargo do respeito pela tese contrária, se nos afigura ser a posição mais consentânea com a letra e o espírito da lei.
Subscrevem-se, por conseguinte e sem reservas, os argumentos expendidos na sentença recorrida e na resposta ao recurso.
Em processos por crimes de violência doméstica, por força do estatuto de vítima especialmente vulnerável, a que se reportam os artigos 87-A/1-b) do CPP e 2º-b) da Lei 112/2009, de 16/9, é aplicável o regime especial decorrente dos artigos 21º/2- d) e 24º/6 da Lei 130/ 2015 de 04/09, (Estatuto da Vítima) relativo à prestação de declarações para memória futura, segundo o qual as vítimas só deverão prestar depoimento em audiência de julgamento se tal for “indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a respectiva saúde física ou psíquica”. Quer-se, com isto, significar que, nestes casos, a tomada de declarações para memória futura é a regra - art.º 33.° n.°1 da Lei 112/2009, de 16 de setembro – e a presença da vítima em julgamento é sempre uma exceção. E a exceção até tem que ser sempre justificada.
A regra é a valoração da prova pré-produzida integrada pelas declarações prestadas para memória futura, sendo irrelevante a circunstância da vítima posteriormente se recusar a depor, por esta posterior recusa não ser legalmente suscetível de retirar eficácia a prova validamente produzida.
As declarações para memória futura são, para todos os efeitos, prova produzida em audiência de julgamento, ainda que antecipadamente, sujeita às mesmas formalidades legais e, por conseguinte, sujeita aos mesmos critérios de valoração da demais prova produzida no julgamento. Nestes termos e sob pena de se frustrar a ratio legis do regime legal das declarações para memória futura, não pode uma posterior recusa de depoimento retirar eficácia a um meio de prova validamente produzido e assim subtrai-lo à apreciação do julgador.
E é muito frágil o contra-argumento de que se não podem ler em audiência declarações anteriormente prestadas por quem em audiência se recusou validamente a depor, pois que é apodítico que esta proibição de reprodução se reporta a declarações prestadas em inquérito ou em instrução e não em audiência de julgamento “antecipada”.
Quanto às irregularidades apontadas às declarações para memória futura, como muito bem se anota na resposta, não foram arguidas no ato, apesar de nele o arguido recorrente se encontrar devidamente representado, tal como, de resto, esteve em todas as diligências posteriores.
E tais alegadas irregularidades não inquinam a prova produzida nem a tornam proibida e como, no julgamento da matéria de facto, vigora o princípio da livre apreciação da prova, previsto no art. 127º do C. Processo Penal, segundo o qual, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente e não havendo, como não há, qualquer impedimento à valoração das declarações para memória futura, podia o Tribunal recorrido fundamentar a sua convicção no referido depoimento.
Por fim e quanto à não suspensão da execução da pena de prisão, tem-se por manifesto, na consideração dos antecedentes criminais do arguido e da circunstância dos factos terem sido praticados durante o período de suspensão da execução pela prática do mesmo tipo de crime contra a mesma ofendida, que é impossível a formulação do juízo de prognose favorável de que o artigo 50º do Código Penal faz depender a suspensão da execução da pena, nem assim se daria satisfação às finalidades da pena, a saber a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade - art.º 40.º, n.º 1, do Código Penal.
Para aplicação da rogada pena de substituição, é necessário que se não coloque irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e é também necessário que o tribunal se convença, ponderada a personalidade do arguido, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e circunstâncias do mesmo, que a ameaça da pena evitará a repetição de comportamentos delituosos.
No caso concreto é evidente que o arguido não aproveitou a oportunidade que anteriormente lhe foi dada, pelo que, face à reiteração do seu comportamento, se impõe concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não são suficientes para o afastar da prática do mesmo tipo de crime.
A tanto acrescem as fortes razões de prevenção geral no que ao crime de violência doméstica diz respeito, atentos os conhecidos números referentes a este tipo de criminalidade.
Nestes termos e pelo demais aduzido na resposta apresentada na primeira instância conclui-se que o recurso do arguido deve ser julgado improcedente
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Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal, nada mais foi acrescentado de relevante.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
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II. Objeto do recurso e sua apreciação.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.

É assim composto:
- pela impugnação da factualidade provada nas als. F) a T), com fundamento em proibição de valoração de provas, nos termos dos artigos 355º e 356º, nº 6 do CPP e artigo 33º, nº 5 da Lei nº 112/2009.
- A falta de advertência à testemunha que prestou declarações para memória futura do dever de falar com verdade, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal, a falta de juramentação da testemunha a falta de juramentação da tradutora/intérprete de língua gestual, influindo na valoração da prova pelo julgador.
- pretende a suspensão da execução da pena de prisão.
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Do enquadramento dos factos.
Para julgamento em processo comum e com intervenção do tribunal singular, o Ministério Público deduziu acusação contra
AA, filho de DD e EE, nascido a ../../1978, natural da República Popular da China, casado, lojista, com domicílio Rua ..., lote n.º ..., fracção 1º esqº, Aveiro,
imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, als. a) e c), n.º 2, al. a), e n.os 4 a 6, do Cód. Penal.
O arguido deduziu contestação oferecendo o merecimento da acusação, requerendo que CC fosse novamente ouvida em audiência de julgamento (não obstante as declarações para memória futura já por si anteriormente prestadas) e arroloando prova testemunhal.
Após o recebimento da acusação e a designação de datas para julgamento, não sobreveio qualquer nulidade, excepção ou questão prévia que cumpra conhecer e que obste à apreciação do mérito, tendo-se procedido à audiência de discussão e julgamento com observância das formalidades legais.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
A) DOS FACTOS
1. FACTUALIDADE PROVADA
Discutida a causa, resultaram provados, com relevância para a decisão final, os seguintes factos:
A) O arguido AA e CC são ambos naturais da República Popular da China e casados entre si, desde 2002, tendo fixado residência na Rua ..., n.º ..., 1º trás, em Aveiro.
B) Fruto de tal relação nasceram dois filhos, como sendo FF e GG, os quais não residem com os progenitores, mas sim com os respectivos avós paternos.
C) O arguido e CC são ambos surdos-mudos e comunicam entre si primordialmente através de linguagem gestual.
D) No âmbito do processo n.º ..., o qual correu os seus termos no Juízo Local Criminal de Aveiro (J2), por sentença proferida a 20 de Setembro de 2022, transitada em julgado em 14 de Novembro de 2022, o aqui arguido AA foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, na pessoa da mesma CC, na pena de 2 anos e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de 2 anos e 10 meses, com regime de prova que, além de outras tarefas e reuniões a realizar para alcançar esse desiderato que fossem fixadas pela DGRSP, contemplasse: i) a realização de, pelo menos, quatro reuniões com técnicos da DGRSP ou com pessoa idónea pelos mesmos indicada que sensibilizem o arguido para o carácter desvalioso da sua conduta, a fim de evitar a prática de novos factos desta índole, as quais deverão ter, necessariamente, presente um intérprete de língua gestual; ii) a colaboração com os técnicos de reinserção social na execução do plano que vier a ser elaborado, prestando todas as informações solicitadas, respondendo às convocatórias e recebendo as visitas que aqueles entendam necessárias e pertinentes.
Os factos que em tal sentença foram dados como provados foram designadamente os seguintes:
1. A ofendida CC e o arguido AA, naturais da República Popular da China, são casados e residiram juntos numa habitação sita na Rua ..., n.º ..., 1º Trás, em Aveiro;
2. Ambos são surdos mudos e comunicam entre si através de língua gestual.
3. Possuem dois filhos em comum, FF, com 10 (dez) anos de idade, e GG, com 15 (quinze) anos de idade, que residem, desde data não concretamente apurada, mas, pelo menos, desde 27/10/2020 junto com os avós paternos.
4. No dia 27/10/2020, em hora não concretamente apurada, mas antes das 20h00m, no interior da residência identificada em 1., a ofendida encontrava se na cozinha a confeccionar a refeição e o arguido, por razões não concretamente apuradas, agarrou o seu pescoço e apertou-o, agarrou-a pelo cabelo, empurrou-a contra a parede e contra a porta, fazendo embater a sua cabeça contra as mesmas, e desferiu-lhe um número não concretamente apurado de murros na face, causando-lhe dores.
5. Nessa sequência, pelas 23h55m, a ofendida deslocou-se ao Centro Hospitalar ... e foi assistida à 01h40m, apresentando hematoma facial esquerdo, hematoma facial frontal direito e hematoma no joelho esquerdo.
6. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido descrita em 4., a ofendida sofreu:
6.1. na cabeça:
6.1.1. escoriação na metade direita da região frontal, medindo 3,5cm x 1cm de maiores eixos;
6.1.2. equimose violácea com áreas rosadas, bipalpebral e malar à esquerda com acentuado edema subjacente, medindo 8cm x 5cm; 6.1.3. movimentos oculares mantidos, desencadeando dor;
6.1.4. pupilas isocóricas e isoreactivas;
6.1.5. três escoriações na região peri-orbitária esquerda no quadrante supro-medial, a maior com 0,3cm de diâmetro;
6.2. No membro superior direito:
6.2.1. equimose azulada, no terço médio da face posterior do braço, medindo 4cm x 3cm;
6.2.2. equimose rosada no terço proximal da face posterior do antebraço, medindo 2,5cm x 1cm;
6.2.3. equimose rosada no bordo cubital do punho, medindo 2,5cm x 1,5cm;
6.3. No membro superior esquerdo:
6.3.1. duas equimoses azuladas no terço médio do braço, a maior na face posterior com 2cm x 1cm;
6.3.2 três equimoses rosadas na mão, a maior no terço distal da face dorsal, em correspondência com a 4ª e 5ª articulação metacarpoflângica, medindo 2cm de diâmetro;
6.4. No membro inferior esquerdo:
6.4.1. equimose azulada na face anterior do joelho e terço proximal da face anterior da perna, medindo 8cm x 6cm e
6.4.2. equimose azulada no terço médio da face anterior da perna, medindo 5cm x 3cm.
7. As lesões descritas em 6. determinaram um período de quinze dias de doença, com dez dias de afectação da capacidade para o trabalho.
8. Em data e em hora não concretamente apuradas, mas posterior a 27/10/2020 e anterior a 28/11/2020, no interior da residência enunciada em 1., o arguido, por razões não concretamente apuradas, desferiu murros no corpo da ofendida, agarrou o seu pescoço e apertou-o e empurrou-a contra a parede, causando-lhe dores.
9. Como consequência directa e necessária da conduta descrita em 8., a ofendida apresentava, em 27/11/2020, no membro superior direito, equimose arroxeada e amarelada, no terço médio da face lateral do braço, medindo 5,5cm de comprimento por 3,5cm de largura.
10. No dia 28/11/2020 a ofendida foi encaminhada para instituição de acolhimento destinada a vítimas de violência doméstica, a qual abandonou em 04/12/2020, regressando para a residência identificada em 1..
11. Todos estes comportamentos que o arguido praticou contra a ofendida fizeram com que esta se sentisse amedrontada e receosa.
12. O arguido AA agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de, valendo-se da sua superioridade física, molestar o corpo e a saúde da ofendida, o que conseguiu com o comportamento descrito supra, ofendendo-a, humilhando-a, causando-lhe medo, humilhação e inquietação, vivendo a mesma em sobressalto, tendo receado pela sua vida e integridade física, bem sabendo que esta era sua esposa e mãe dos seus filhos, que com a mesma coabitava e que lhe devia amparo, protecção e respeito.
13. Não desconhecia, o arguido, o carácter ilícito e criminalmente censurável da sua conduta.
E) No dia 22 de Março de 2024, à hora de almoço, no interior da residência de ambos, identificada supra, quando CC se encontrava a servir uma refeição, o arguido provou a comida e, como não gostou da mesma, partiu vários objectos que aí se encontravam.
F) No dia 3 de Agosto de 2024, pelas 2:36 horas, o arguido proveio do exterior para a habitação e bateu à porta da mesma.
G) CC, que até então se encontrara a dormir, acordou e abriu a porta ao arguido.
H) Nesse momento, o arguido entrou no interior da habitação e puxou um fio que CC trazia ao pescoço, tendo-o partido, assim como agarrou os dois braços de CC com força e apertou-os.
I) Nesse momento, o arguido exigiu que CC lhe cozinhasse uma refeição, o que esta recusou.
J) O arguido dirigiu-se ainda nesse momento a CC e desferiu-lhe vários murros nos braços e um pontapé na perna direita, bem como lhe puxou o cabelo.
L) Após, o arguido saiu da mencionada habitação e dirigiu-se para a cidade do Porto.
M) Como as condutas do arguido descritas em H) a J), CC, além de ter sentido dor, apresentou hematomas no pescoço, nos braços e numa perna, designadamente:
- No pescoço: equimose de coloração arroxeada, na face lateral esquerda, com 4cm x 1cm;
- No membro superior direito: equimose de coloração arroxeada e esverdeada, na metade superior da face lateral do braço, com 10cm x 5cm; equimose de coloração esverdeada, na face posterior do cotovelo, com 2,5cm x 2cm;
- No membro superior esquerdo: equimose de coloração arroxeada e esverdeada, na face lateral do braço, com 10cm x 8cm; equimose de coloração esverdeada na face posterior do cotovelo, com 6cm x 4cm.
- No membro inferior direito: equimose de coloração esverdeada, em toda a face anterior da perna; equimose de coloração esverdeada, na face posterior do cotovelo, com 2,5cm x 2cm.
N) Tais condutas do arguido provocaram ainda medo em CC, a qual não só receia pela sua saúde física, mas até mesmo pela sua vida.
O) Ao agir da forma supra descrita, quis o arguido ofender CC, na sua integridade física e saúde mental, humilhá-la, criar-lhe medo e inquietação e limitá-la na sua liberdade pessoal, actuando de modo a atingir a sua dignidade, bem sabendo que a sua conduta era idónea a produzir tais resultados, o que conseguiu.
P) O arguido sabia que, ao agir como agiu, causava sofrimento psicológico a CC, traduzido em medo, angústia e ansiedade, não se coibindo de a atingir fisicamente da forma como atingiu, querendo efectivamente atentar contra a sua saúde e bem-estar, magoá-la, humilhá-la e causar-lhe medo.
Q) Sabia também o arguido que devia respeito e consideração a CC, por ser casado com a mesma e por esta ser a mãe dos seus filhos, e, ainda assim, não se coibiu de praticar os factos descritos, querendo, efectivamente, ofender a sua dignidade pessoal, atentar contra a sua saúde, humilhá-la, ofendê-la e intimidá-la, diminuindo-lhe a sua liberdade, o que acabou por se concretizar.
R) Bem sabia ainda o arguido que, actuando da forma como actuou, no interior da residência de ambos, durante a noite, diminuía as capacidades de defesa de CC, o que lhe foi indiferente. S) O arguido também não desconhecia a condição de saúde de CC, a qual é surda-muda, o que diminui ainda mais as suas possibilidades de defesa, sendo-lhe também tal circunstância indiferente.
T) O arguido conhecia os factos e agiu sempre de forma consciente, livre e voluntária, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.
U) Com o emergir do presente processo, e em face das medidas de coacção que aqui lhe foram aplicadas, o arguido foi temporariamente acolhido na residência dos seus pais, sita na Rua ..., n.º ..., 1º esqº, ... Aveiro, onde pernoitava em condições precárias, pela falta de espaço e infra-estruturas adequadas.
V) No presente, volvidos vários meses desde tal situação, o arguido e CC voltaram a partilhar a habitação do casal supra referida, mas fazendo vida separada, sem vivência marital.
X) O arguido encontra-se no essencial desempregado, tendo tido como última ocupação a de lojista, num estabelecimento situado na Av. ..., em Aveiro.
Z) O arguido recebe de subsídios um total aproximado de €550,00 por mês, montante semelhante ao que recebe CC, a qual se encontra igualmente desempregada.
AA) O arguido tem vindo a ser acompanhado pela DGRSP no âmbito de outros processos, mais concretamente no processo n.º 411/18.5PBAVR e no processo n.º ..., tendo mostrado adesão à intervenção da Justiça, cumprindo satisfatoriamente a pena que lhe foi aplicada no primeiro processo, de prestação de trabalho a favo da comunidade, e continuando a colaborar igualmente no segundo processo, tratando-se este de uma suspensão de execução de pena de prisão, por crime de violência doméstica cometido sobre a mesma CC.
AB) A habitação onde o arguido e CC residem foi adquirida pelo pai do arguido e registada em nome do filho mais velho do arguido, como estratégia usada pela família para protecção do património, prevenindo alguma acção menos reflectida por parte do arguido e/ou da esposa.
AC) Tal habitação trata-se de um apartamento de tipologia T1, onde um dos ocupantes dorme no quarto e o outro na sala, situação que resultou da intermediação familiar, atendendo à falta de alternativa habitacional.
AD) Ainda que não paguem renda de casa, as restantes despesas domésticas e alimentares absorvem o rendimento disponível do arguido e de CC, não existindo capacidade para constituir poupança.
AE) No presente, o arguido encontra-se em acompanhamento por parte da DGRSP no âmbito da suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada no supra aludido processo n.º ..., sendo que, neste contexto, o arguido tem comparecido sempre que convocado e acedido a trabalhar temáticas subjacentes à tipologia criminal subjacente, ainda que com limitações derivadas de questões relacionadas com diferenças culturais e da problemática da surdez, pelo que não se mostrou exequível a inserção do arguido no Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD), nem o uso de algumas das metodologias aí constantes.
AF) Para além do referido em D), o arguido foi também já condenado no âmbito do processo n.º 411/18.5PBAVR, do Juízo Local Criminal de Aveiro, pela prática no dia 5 de Março de 2018 de um crime de ameaça agravada, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de €6,00, no total de €480,00, posteriormente substituída pela prestação de 80 horas de trabalho a favor da comunidade. Tal condenação transitou em julgado no dia 16 de Maio de 2022 e a respectiva pena foi já declarada extinta no dia 4 de Novembro de 2024.
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2. FACTUALIDADE NÃO PROVADA
Da audiência de discussão e julgamento resultou como não provado que:
1) No dia 3 de Agosto de 2024, o arguido tenha apertado com força o pescoço de CC.
2) E tenha o arguido torcido os braços de CC com força.
3) E tenha o arguido arrastado CC até à cozinha.
4) CC tenha sentido dificuldade em respirar e tenha apresentado arranhões na cabeça em consequência de quaisquer condutas do arguido.
5) CC tenha bloqueado o contacto de telemóvel do arguido, mas este último tenha continuado a tentar contactar consigo, através de recados que tenha feito chegar pelos seus familiares.
6) O arguido tenha pretendido ofender especificamente a honra e consideração de CC.
7) O arguido tenha praticado actos contra CC enquanto esta se encontrasse ainda a dormir.
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3. MOTIVAÇÃO
A respeito da convicção do Tribunal, diremos antes do mais que o arguido optou por se remeter ao silêncio em audiência de julgamento, sendo certo, contudo, que, a requerimento do Ministério Público nesse sentido, foram aí ouvidas as declarações que o arguido prestou no 1º interrogatório judicial de arguido detido a que o arguido foi sujeito nestes autos no dia 14 de Agosto de 2024, conforme consta do respectivo auto de fls. 151 a 160, sendo por isso tais declarações aqui valoradas, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 357º, n.º 1, al. b), e n.º 3, e no artigo 356º, n.os 8 e 9, ambos do Cód. de Proc. Penal.
Por seu turno, quanto a CC, diremos antes do mais que a mesma prestou declarações para memória futura em fase de inquérito no passado dia 19 de Setembro de 2024, nos termos e para os efeitos do estabelecido no artigo 33º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, e do artigo 271º do Cód. de Proc. Penal, conforme consta do respectivo auto de fls. 192 a 194, tendo tais declarações sido gravadas em registo audiovisual, conforme consta do respectivo DVD afixado na contracapa do 2º volume dos autos.
Posteriormente, a requerimento do arguido em sede de contestação e por se ter entendido como relevante para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, a mesma CC foi convocada para prestação de declarações também em audiência de julgamento, nos termos e para os efeitos do estabelecido no n.º 7 da supra referida Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, e do n.º 8 do aludido artigo 271º do Cód. de Proc. Penal. Contudo, nesse momento, por ser esposa do arguido, a mesma CC optou já por não prestar quaisquer declarações na audiência de julgamento, na decorrência do direito que lhe assiste nesse sentido, previsto no artigo 134º, n.º 1, al. a), do Cód. de Proc. Penal.
Como tal, a questão que aqui terá de ser colocada é a de saber se a circunstância de CC se ter recusado validamente a depor em audiência de julgamento determina ou não que deixem de poder ser valoradas as declarações que anteriormente prestou para memória futura em fase de inquérito, sabendo-se que a este respeito existem correntes jurisprudenciais em ambos os sentidos opostos.
Na verdade, quanto a esta questão pode ser consultado, por exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13 de Novembro de 2024, relatado por Paula Pires no âmbito do processo n.º 272/23.2GAPRD.P1, disponível em www.dgsi.pt, no qual se cita e analisa abundante jurisprudência a este respeito e em ambos os sentidos. Como aqui vem proficientemente resenhado, as duas correntes opostas a considerar são, no essencial, as seguintes:
- uma corrente no sentido de que nestes casos se mostra inviabilizada a valoração das declarações para memória futura que foram prestadas, directamente por força do disposto no artigo 356º, n.º 6, do Cód. de Proc. Penal, isso o impondo a efectiva tutela do direito a recusar-se a depor e assim não contribuir para a eventual condenação do arguido com quem a testemunha tenha vinculação familiar e que constitui a razão da outorga dessa faculdade, sendo certo que dispõe tal artigo 356º, n.º 6, do Cód. de Proc. Penal, que “É proibida, em qualquer caso, a leitura do depoimento prestado em inquérito ou instrução por testemunha que, em audiência, se tenha validamente recusado a depor”;
- outra corrente defensora de que, uma vez prestadas as declarações para memória futura, e desde que no correspondente acto tenham sido feitas à testemunha as advertências devidas, renunciando à faculdade de não depor e com efeito prestando-as, o facto de em audiência para que seja convocada a testemunha inverter a posição e manifestar uma tal recusa não pode já apagar o valor da prova que com aquelas primeiras declarações ficara validamente constituída e que, assim, deve ser ponderada em conjugação com a restante prova e segundo os critérios da lógica e da experiência comum.
Da nossa parte, analisada a questão, lidos os argumentos em ambos os sentidos e com total respeito pela posição contrária, entendemos enveredar pela segunda das posições supra elencadas, e não pela primeira, pelo que, em consequência, iremos aqui valorar as declarações para memória futura que foram prestadas por CC nestes autos, apesar de a mesma ter sido posteriormente convocada para novo depoimento em audiência de julgamento e aí se ter validamente recusado a depor.
Na verdade, os argumentos essenciais que seguimos a este respeito e neste sentido, são, por um lado, a circunstância de as declarações para memória futura constituírem declarações prestadas em audiência aberta antecipadamente para esse efeito, perante um juiz e com todas as garantias de defesa próprias do julgamento, garantindo-se plenamente o exercício do contraditório, como se extrai do disposto no artigo 271º do Cód. de Proc. Penal, tratando-se por isso de prova antecipada e não de simples prova recolhida no e para o inquérito ou na e para a instrução, para onde parece apontar muito mais claramente o disposto no n.º 6 do artigo 356º do Cód. de Proc. Penal.
Dito de outra forma, entendemos que as declarações para memória futura constituem prova pré-constituída, adquirida em audiência de julgamento antecipada parcialmente, a valorar juntamente com a restante prova e sujeitas, tal como a grande maioria das provas, à livre apreciação do julgador. Como tal, quer a testemunha exerça o seu direito de recusa a depor ou, ao contrário, a ele renuncie prestando depoimento, não pode mais tarde querer exercer em sentido diverso o mesmo direito com efeitos retroactivos, pois ele já foi exercido. Já produziu efeitos probatórios: as declarações uma vez prestadas constituem prova a valorar; são prova já constituída, não podendo ser excluídas do universo probatório a valorar pelo juiz, por simples vontade da testemunha.
Aliás, note-se que nem tampouco ao arguido é permitido excluir da valoração do tribunal as declarações que haja prestado anteriormente com observância do disposto no artigo 141º do Cód. de Proc. Penal, como, aliás, expressamente sucede até nos presentes autos, em que o arguido se recusou a prestar depoimento em audiência de julgamento, mas foram ouvidas e serão valoradas as declarações que anteriormente prestou em sede de 1º interrogatório judicial de arguido detido.
Como tal, entendemos que, mesmo que em audiência de julgamento a testemunha exerça o seu direito ao silêncio ou preste declarações em sentido contrário ao anteriormente declarado, tal não inviabiliza nem retira a possibilidade e o dever de o julgador apreciar todas as declarações na sua globalidade, de forma conjugada com a restante prova e as valorar de harmonia com as regras da experiência e da lógica. Parece-nos que nenhuma razão existe para que uma testemunha possa transformar uma prova prévia e legalmente obtida através do instituto das declarações para memória futura, em prova proibida, como (com todo o respeito) defende alguma jurisprudência. As regras materiais e processuais sobre a validade ou aquisição da prova não podem nem estão dependentes da vontade dos particulares, sob pena de a Justiça, um dos pilares do Estado de Direito Democrático, ser afinal, nada mais nada menos, que dependente da vontade e dos caprichos dos particulares, que poderiam colocar em marcha todo o aparelho judiciário para, como qual castelo de cartas, cair pela base sem qualquer efeito, pese embora todos os elementos constantes dos autos permitissem fazer claramente melhor e mais esclarecida e avisada justiça, seja ela, aliás, condenatória ou absolutória.
Finalmente, sem prescindir, também nos parece que a tese segundo a qual a testemunha (e neste caso vítima), que tendo prestado declarações para memória futura, opte por não prestar depoimento quando chamada a audiência, transformando as suas anteriores declarações para memória futura em prova proibida, contraria a natureza pública do crime de violência doméstica aqui em causa, permitindo-se o mesmo efeito que uma desistência de queixa, com mais força até, pois redunda as mais das vezes em decisão absolutória com efeitos de caso julgado, contrariando-se indirectamente lei expressa, o espírito do legislador e os bens jurídicos que se pretendem proteger.
Em suma, é por estas razões que, como já o dissemos, decidimos expressamente valorar (em conjugação, obviamente, com toda a demais prova) as declarações para memória futura que foram prestadas por CC nestes autos, no mesmo sentido que, aliás, se decidiu no supra citado acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13 de Novembro de 2024, relatado por Paula Pires no âmbito do processo n.º 272/23.2GAPRD.P1, e que aqui, com a devida vénia, seguimos de perto.
Isto posto, prosseguindo e concretizando então, quanto ao que se deu como provado sob os itens A) a C), pensamos que não existiu qualquer controvérsia a este respeito, encontrando-se o arguido e CC perfeitamente de acordo e em sintonia entre si quanto a estes factos.
Quanto ao que se deu como provado sob o item D), é manifesto que constam de fls. 28 a 49 dos autos a acusação que foi deduzida e a sentença que foi proferida no âmbito do processo n.º ... que aqui se refere, para além de a correspondente condenação do arguido neste último processo resultar também do respectivo CRC junto a fls. 257 a 259.
Quanto ao que se deu como provado sob o item E), a respeito do sucedido no dia 22 de Março de 2024, pensamos que as declarações para memória futura prestadas por CC são mais do que suficientemente claras, credíveis e esclarecedoras neste sentido, conjugadas com as fotografias do local (cozinha da residência) que a mesma juntou aos autos a fls. 128 a 130 e novamente a fls. 190 e 191, as quais documentam bem o estado em que tal local ficou após esta actuação por parte do arguido.
De todo o modo, quanto a estes mesmos factos, o arguido depôs em sede de 1º interrogatório judicial no sentido de que efectivamente provou a comida que a sua esposa CC havia cozinhado e considerou a mesma demasiado salgada, pelo que partiu o prato no solo, ou seja, no essencial confirmando também estes factos, ainda que os estragos que são visíveis nos aludidos registos fotográficos de fls. 128 e 130, 190 e 191 denunciem a quebra no solo de mais do que um simples prato de comida.
Continuando, quanto ao que se deu como provado sob os itens F) a N) como sucedido no dia 3 de Agosto de 2024, mais uma vez nos fundamos nas declarações para memória futura prestadas por CC neste sentido, as quais a nosso ver descreveram de forma clara, convincente e expressiva estes factos, sendo certo que as lesões físicas por si sofridas por via desta ocorrência (item M)) se encontram claramente espelhadas nos registos fotográficos da própria obtidos pela PSP e juntos a fls. 117 a 122, bem como no relatório de perícia médico-legal de fls. 75 e 76.
É certo que o arguido se pronunciou quanto ao aqui sucedido de forma algo diversa, sem que deixasse de assumir o contexto prévio, o momento e o local dos factos como aqui se deram como provados, confessando até ter existido um confronto físico entre si e CC. Disse, contudo, que CC é que investiu fisicamente em primeiro lugar contra si, desferindo-lhe murros e um pontapé, momento em que o arguido se teria então limitado a puxar CC por um braço e feito com que esta embatesse contra uma parede, de tal forma que CC teria sofrido lesões físicas apenas num braço e numa perna, de apenas um dos lados do seu corpo.
Ora, como se vê, para além desta que constitui até uma confissão parcial por parte do arguido quanto aos factos aqui em causa, parece-nos que as declarações de CC quanto ao aqui sucedido nos merecem bem maior credibilidade do que as prestadas pelo arguido, não só na medida em que CC não apresenta qualquer interesse pessoal no desfecho dos presentes autos (ao contrário do que sucede em relação ao arguido), quer sobretudo porque a real extensão e dispersão por todo o corpo das lesões físicas evidentes apresentadas por CC e documentadas nos autos se mostram muito mais compatíveis e consentâneas com a dinâmica destes factos narrada por CC do que com a dinâmica narrada pelo arguido.
Ainda assim, demos como não provados os factos constantes dos itens 1) a 4), relativos a esta mesma ocorrência, na medida em que nem o arguido os confessou, nem os mesmos foram narrados de forma clara ou neste sentido pela própria CC, nem foram sustentados por qualquer outro meio de prova.
A talhe de foice, quanto ao que demos como não provado sob o item 5), pareceu-nos que nenhuma prova foi produzida neste sentido; quanto ao não provado sob o item 6), não existe qualquer facto objectivo do qual se conclua que o arguido tenha ofendido a honra e consideração de CC, pelo que jamais poderia resultar como provado que o arguido tivesse agido com tal intenção; e quanto ao que demos como não provado sob o item 7), pensamos que resultou claro de ambas as declarações prestadas pelo arguido e por CC que esta última apenas se encontrava a dormir no momento imediatamente prévio à ocorrência dos factos alusivos ao dia 3 de Agosto de 2024, e não durante a execução dos factos propriamente dita por parte do arguido, pois resultou evidente que, no momento inicial, o arguido se encontrava no exterior da habitação e bateu à porta para entrar, tendo então CC acordado e ido abrir a porta ao mesmo.
Prosseguindo, quanto ao que se deu como provado sob os itens O) a T), a respeito do conhecimento e intencionalidade do arguido nas suas actuações, são aqueles que nosso ver resultam de forma clara dos demais factos objectivos que demos como provados, analisados à luz das regras da experiência comum, nada nos levando a concluir que o conhecimento e intencionalidade do arguido fossem quaisquer outros diversos dos provados, antes pelo contrário.
Continuando, já em jeito de conclusão, quanto aos factos que demos como provados sob os itens U) a AE), a respeito da actual condição pessoal, familiar e sócio-económica do arguido, trata-se do que resulta do relatório social a seu respeito elaborado pela DGRSP e constante dos autos com a ref. n.º 17561063, de 01-04-2025. E quanto aos antecedentes criminais do arguido (item AF)), trata-se do que consta do respectivo CRC junto a fls. 257 a 259, para além da sentença proferida no processo n.º ... e supra referida a respeito do item D), constante de fls. 35 a 49.
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B) DA ANÁLISE DOS FACTOS E DA APLICAÇÃO DO DIREITO
1. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL
Vem o arguido acusado da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, als. a) e c), n.º 2, al. a), e n.os 4 a 6, do Cód. Penal.
Dispõe então tal artigo 152º, n.º 1, als. a) e c), do Cód. Penal, já na sua redacção actual dada pela Lei n.º 57/2021, de 16 de Agosto, e já vigente à data da consumação e cessação dos factos aqui em causa (em 3 de Agosto de 2024), que “1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
c) A progenitor de descendente comum em 1º grau;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”.
Por seu turno, o aludido n.º 2, al. a), da mesma norma (também já na sua redacção actual dada pela Lei n.º 57/2021, de 16 de Agosto), mais nos diz que “2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima;
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.”.
Por outro lado ainda, os n.os 4, 5 e 6, da mesma norma legal (também na sua redacção actual), estabelecem que: “4 - Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
6 - Quem for condenado por crime previsto no presente artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 a 10 anos.”.
A introdução do crime de maus-tratos já em 1982, no nosso ordenamento jurídico visou reprimir criminalmente, além do mais, formas de violência no seio familiar, na sequência de uma consciencialização ético-social da gravidade de tais comportamentos violadores de alguns direitos fundamentais das pessoas.
Assim sendo, a ratio dirigiu-se à protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, podendo dizer-se que o bem jurídico protegido é a saúde, enquanto bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental e que pode ser afectado por uma variedade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade (neste sentido, Comentário Conimbricense do Código Penal, I vol. pág. 332). A função da incriminação é assim de prevenir as frequentes formas de violência no âmbito da família, da educação e do trabalho.
A reforma do Código Penal efectuada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, introduziu importantes alterações ao regime até aí existente, passando a incriminar a par dos maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos. Conforme refere Taipa de Carvalho, (Código Penal Conimbricense, Coimbra, Tomo I, pág. 332), a ratio do tipo não está na protecção da comunidade familiar, conjugal, (...), mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana. O âmbito punitivo deste tipo de crime inclui os comportamentos que lesam esta dignidade.
Após a revisão legislativa levada a cabo pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, no tipo legal de crime em causa, esclareceu-se o que vinha sendo, precisamente a maior querela interpretativa anteriormente suscitada, que consistia, precisamente em saber se se exigia uma actuação reiterada do agente, repetindo sucessivamente condutas, alongando a violação típica no tempo, mesmo que por actuações diversas ou se bastava um único acto isolado, desde que a sua gravidade fosse tamanha que por si só, fosse adequado a atingir a dignidade do visado, isoladamente. E é precisamente neste último sentido que vai a actual previsão legislativa: basta um único acto para se integrar o tipo legal de crime em referência, desde que o mesmo, por si só, atinja o bem jurídico violado. Este consubstanciar-se-á, pois, na perpetração de qualquer acto de violência que afecte, por alguma forma, a saúde física, psíquica e emocional da vítima, diminuindo ou afectando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa realidade conjugal igualitária.
Com a revisão legislativa trazida pela Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, foi acrescentada ainda a simples e designada “relação de namoro” como podendo igualmente servir de base às condutas típicas aqui em causa, para além da relação de casamento e de união de facto que já antes constavam do preceito legal.
Por seu turno, a Lei n.º 44/2018, de 9 de Agosto, veio introduzir ainda uma nova agravação do crime aqui em causa para os casos em que o seu agente difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento.
Finalmente, a última e mais recente redacção do artigo 152º do Cód. Penal é a actualmente dada pela Lei n.º 57/2021, de 16 de Agosto, veio introduzir uma nova modalidade típica de cometimento do crime aqui em apreço, que agora consiste em “impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns”, assim como veio introduzir um novo tipo específico de vítima do crime aqui em causa, como podendo agora ser qualquer pessoa menor que seja descendente do agente do crime ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c) da mesma norma, ainda que com ele não coabite.
Enfim, revertendo então ao caso concreto para averiguarmos do preenchimento do tipo objectivo da incriminação aqui em causa, resulta da matéria de facto provada designadamente que o arguido é casado com CC desde o ano de 2002, tendo sido já anteriormente condenado num outro processo judicial anterior pela prática de um crime de violência doméstica cometido contra esta mesma sua esposa, por factos cometidos entre 27 de Outubro de 2020 e o mais tardar 28 de Novembro de 2020, tendo tal condenação anterior transitado em julgado no dia 14 de Novembro de 2022. Sucede que, já posteriormente a todas estas datas e nomeadamente já após o trânsito em julgado da sua aludida condenação anterior, ou seja, claramente numa resolução criminosa autónoma e renovada, mais se provou agora que no dia 22 de Março de 2024, à hora de almoço, no interior da residência do arguido e de CC, quando esta última se encontrava a servir uma refeição, o arguido provou a comida e, como não gostou da mesma, partiu vários objectos que aí se encontravam, assim tendo causado medo, inquietação e humilhação na sua esposa.
Por seu turno, mais se provou que no dia 3 de Agosto de 2024, pela 2:36 horas, o arguido proveio do exterior para a habitação e bateu à porta da mesma. CC, que até então se encontrara a dormir, acordou e abriu a porta ao arguido. Nesse momento, o arguido entrou no interior da habitação e puxou um fio que CC trazia ao pescoço, tendo-o partido, assim como agarrou os dois braços de CC com força e apertou-os. Nesse momento também, o arguido exigiu que CC lhe cozinhasse uma refeição, o que esta recusou. O arguido dirigiu-se também ainda nesse momento a CC e desferiu-lhe vários murros nos braços e um pontapé na perna direita, bem como lhe puxou o cabelo, o que fez com que CC, além de ter sentido dor, tenha apresentado diversos hematomas no pescoço, em ambos os braços e numa perna.
Enfim, perante estes elementos, e sobretudo tendo em conta a gravidade desta segunda ocorrência, embora sem se descurar a sua conjugação com a primeira, pensamos que as condutas do arguido que aqui se deram como provadas preenchem todos os elementos objectivos do crime de violência doméstica pelo qual o arguido veio acusado, nomeadamente nos termos do disposto no n.º 1, al. a), e n.º 2, al. a), do artigo 152º do Cód. Penal, sem prejuízo de o arguido ter actuado também contra pessoa em relação à qual tem descendentes em comum em 1º grau, e por isso as suas condutas se integrarem também na previsão da alínea c) do mesmo artigo 152º, n.º 1, do Cód. Penal.
Relativamente ao elemento subjectivo, trata-se de uma infracção necessariamente dolosa, sendo o dolo usualmente conhecido como o conhecimento e vontade de preenchimento do tipo objectivo de ilícito (elementos cognitivo e volitivo).
Ora, no caso concreto resultou como provado que o arguido quis ofender CC, na sua integridade física e saúde mental, humilhá-la, criar-lhe medo e inquietação e limitá-la na sua liberdade pessoal, actuando de modo a atingir a sua dignidade, bem sabendo que a sua conduta era idónea a produzir tais resultados, o que conseguiu; que o arguido sabia que, ao agir como agiu, causava sofrimento psicológico a CC, traduzido em medo, angústia e ansiedade, não se coibindo de a atingir fisicamente da forma como atingiu, querendo efectivamente atentar contra a sua saúde e bem-estar, magoá-la, humilhá-la e causar-lhe medo; que sabia também o arguido que devia respeito e consideração a CC, por ser casado com a mesma e por esta ser a mãe dos seus filhos, e, ainda assim, não se coibiu de praticar os factos aqui descritos, querendo, efectivamente, ofender a sua dignidade pessoal, atentar contra a sua saúde, humilhá-la, ofendê-la e intimidá-la, diminuindo-lhe a sua liberdade, o que acabou por se concretizar; que bem sabia ainda o arguido que, actuando da forma como actuou, no interior da residência de ambos, durante a noite, diminuía as capacidades de defesa de CC, o que lhe foi indiferente; que o arguido também não desconhecia a condição de saúde de CC, a qual é surda-muda, o que diminui ainda mais as suas possibilidades de defesa, sendo-lhe também tal circunstância indiferente; e que o arguido conhecia os factos e agiu sempre de forma consciente, livre e voluntária, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida. Assim, igualmente não existe qualquer dúvida acerca do preenchimento do tipo subjectivo deste ilícito por parte do arguido, sob a forma de dolo directo.
Finalmente e ainda, nenhuma causa se vislumbra que exclua a ilicitude, a culpa ou a punibilidade da conduta do arguido, pelo que, por todo o exposto, terá o mesmo de ser condenado pela prática do crime de violência doméstica pelo qual veio acusado, como a final se decidirá.
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2. DO TIPO E MEDIDA CONCRETA DAS PENAS APLICÁVEIS:
O crime de violência doméstica pelo qual o arguido vai aqui condenado é punível com a pena principal de 2 a 5 anos de prisão, se pena mais grave não couber por força de outra disposição legal, e ainda com as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de 6 meses a 5 anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica. Ora, sendo certo que, a título principal, apenas se encontra prevista a possibilidade de aplicação de uma pena de prisão, a determinação da sua medida concreta, dentro da moldura abstracta prevista na lei, far-se-á atendendo ao grau de culpa documentado nos factos e às exigências de prevenção geral e especial que, no caso, se mostrem relevantes, tomando em linha de conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido - cfr. artigo 71º, n.os 1 e 2, do Cód. Penal.
Tal medida concreta, situada entre um máximo ditado pela culpa e um mínimo reclamado pelas exigências de prevenção geral positiva, resultará, em cada caso, das necessidades de realização dos fins que a prevenção especial positiva se destina a assegurar. A medida da pena será, pois, determinada dentro de uma moldura de prevenção, funcionando a culpa do agente, como limite máximo inultrapassável - cfr. artigo 40º, nº.s 1 e 2 do Código Penal; neste sentido, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, Lisboa, 1993, págs. 227 e ss. e Ac. S.T.J. de 29.03.95, “in” B.M.J. 445º-163.
No caso dos autos, haverá antes do mais que determinar, em face dos critérios referidos, qual a medida concreta da pena principal de prisão cuja aplicação ao arguido se afigure como justa, adequada e proporcional.
Ao nível das exigências de prevenção geral, as mesmas são elevadas, atenta a frequência e reiteração com que o presente tipo de crime é praticado generalizadamente nos dias de hoje, constituindo um verdadeiro flagelo para tantas e tantas famílias, razões inclusivamente pelas quais nos últimos anos o legislador penal tem vindo a endurecer progressivamente a tutela penal deste tipo de situações, chegando mesmo ao ponto de criminalizar a este nível situações de mero namoro, e outras em que o agressor e o ofendido já nem sequer vivam juntos ou mantenham qualquer relação afectiva à data dos factos. E mais se regista que nos últimos tempos tem ocorrido um aumento exponencial do número de vítimas mortais em consequência da prática deste tipo de crime, com a elevada repercussão e impacto social daí decorrentes.
Quanto a razões de prevenção especial, terá de ser aqui relevado em sentido manifestamente agravante a circunstância de o arguido ter cometido o crime de violência doméstica pelo qual vai aqui condenado durante o período de suspensão da execução de uma pena de prisão que lhe foi aplicada em processo judicial anterior pela prática de um crime absolutamente idêntico, em circunstâncias totalmente semelhantes, e contra a mesma pessoa ofendida. E isto para além do demais antecedente criminal que o arguido já apresentava também à data dos factos aqui em causa, pela prática de um crime de ameaça agravada, o qual constitui também um crime cometido contra pessoas.
Quanto à culpa que o arguido patenteia nos factos, é este, como se disse, o limite máximo inultrapassável da medida concreta da pena, o qual se traduz no juízo de censura que é lícito formular-se acerca da conduta do agente. A este respeito, entendemos que o grau de culpa ou censurabilidade da conduta do arguido é algo agravado pela circunstância de ter cometido o crime aqui em causa contra uma pessoa que padece de surdez-mudez, como era do óbvio conhecimento do arguido, e que por isso via aumentada a respectiva fragilidade, sem prejuízo de o arguido padecer também ele de uma condição idêntica, mas que pensamos que não afasta o que acabámos de dizer.
Enfim, aqui chegados, por tudo quanto se acaba de dizer, julgamos justa, adequada e proporcional a aplicação ao arguido de uma pena principal de 2 anos e 3 meses de prisão.
Isto posto, resulta ainda, contudo, do artigo 50º do Cód. Penal que a pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos é suspensa na sua execução se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, o tribunal concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, sendo que tal suspensão pode ser sujeita a diversos deveres ou regras de conduta.
Por seu turno, mais nos diz ainda o artigo 34º-B da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, que “A suspensão da execução da pena de prisão de condenado pela prática de crime de violência doméstica previsto no artigo 152º do Código Penal é sempre subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova, em qualquer caso se incluindo regras de conduta que protejam a vítima, designadamente, o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio.”.
Ora, no nosso caso concreto, funciona aqui mais uma vez de forma extremamente penalizadora para o arguido a circunstância de ter cometido o crime aqui em causa durante o período de suspensão da execução de uma pena de prisão que lhe foi aplicada em processo judicial anterior, pela prática de um crime absolutamente idêntico, cometido em circunstâncias totalmente similares e contra a mesma vítima, assim demonstrando o arguido (a nosso ver) que não interiorizou de forma alguma a censura, a gravidade e a advertência que lhe decorreram dessa sua anterior condenação.
Por seu turno, mais nos parece que, por muito que se perscrute, não se identificam quaisquer circunstâncias que nos permitam neste caso efectuar qualquer espécie de juízo de prognose favorável em relação ao aqui arguido e que por alguma forma nos pudessem levar a concluir que (novamente) a simples censura da condenação e a ameaça de cumprimento de pena de prisão efectiva pudessem ser suficientes para afastar o arguido da prática de novos crimes. Pelo contrário, o arguido não apresentou qualquer crítica ou autocensura para a sua conduta e continua a residir na mesma habitação da ofendida do crime aqui em causa, ainda que em quartos separados e com vidas separadas, mas sempre num contexto que se mostra altamente propício para que novos factos como aqueles aqui em causa possam a qualquer momento voltar a suceder.
Assim, entendemos que nada mais nos resta do que decidir no sentido da não suspensão da execução da pena de prisão aqui aplicada ao arguido, concluindo-se então pelo seu necessário cumprimento efectivo.
Por seu turno, mais entendemos também que no caso concreto não é pertinente nem adequada a aplicação ao arguido de qualquer das penas acessórias que se encontram legalmente previstas para este tipo de crime de violência doméstica, designadamente atendendo à natureza e forma de execução da pena principal de prisão efectiva que lhe vai já aplicada.
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3. DO ARBITRAMENTO DE INDEMNIZAÇÃO À VÍTIMA:
Aqui chegados, diz-nos ainda o artigo 21º, n.os 1 e 2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, a propósito da protecção das queixosas do crime de violência doméstica, que:
“1 - À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável.
2 - Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.”.
Por seu turno, mais nos diz então tal artigo 82º-A do Cód. de Proc. Penal, que:
“1 – Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da queixosa o imponham.
2 - No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório.
3 - A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em acção que venha a conhecer de pedido civil de indemnização.”.
No presente caso concreto, em face de tudo quanto supra resultou exposto, concluiu-se no sentido de que o aqui arguido AA cometeu um crime de violência doméstica contra a vítima CC, sendo certo que esta última não deduziu qualquer pedido de indemnização civil nos presentes autos, nem existe qualquer conhecimento de que o haja feito em separado.
No entanto, a vítima manifestou em audiência de julgamento que renunciava expressamente a qualquer indemnização por parte do arguido, e por isso a mesma não lhe irá ser fixada (cfr. acta da audiência de julgamento com a ref. n.º 139130489, de 06-06-2025).
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III. DECISÃO: (…)”
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Cumpre apreciar.
Apreciando a impugnação nos termos do art.412º nº3 do CPP, a qual constitui o ponto central do objeto do recurso, cabe estabelecer os pressupostos dos poderes de cognição do Tribunal Superior.
Como realçou o STJ, no acórdão de 12-06-2008, Proc. nº 07P4375 (in www.dgsi.pt) a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e ás concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, restrita á indagação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo á sua correcção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b), do nº 3, do citado artº 412º).
Com efeito, no Acórdão da Relação de Évora, de 1 de Abril de 2021 (processo n.º 360/08-1.ª, www.dgsi.pt) sustentou-se «Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente

Não basta ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para que o tribunal de recurso tenha de fazer «um segundo julgamento», com base na gravação da prova.
O poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação. O recurso com esses fundamentos apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância [cfr. Germano Marques da Silva, in Forum Iustitiae, Ano I, Maio de 1999].
Com efeito, «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros» [cfr, neste sentido, Ac. do STJ de 15-12-2005, Proc. nº 05P2951 e Ac. do STJ de 9-03-2006, Proc. nº 06P461, acessíveis em www.dgsi.pt]
O Tribunal de recurso, apreciando os fundamentos da impugnação da matéria de facto e os meios de prova indicados nos termos do art.412º nº3 do CPP (quando conste do objecto de recurso), deve aferir se o Tribunal “a quo” apreciou e interpretou os meios de prova conforme os padrões e as regras da experiência comum (a regra da experiência expressa aquilo que normalmente acontece, é uma regra extraída de casos similares), não extraindo conclusões estranhas ou fora dos depoimentos, subsistindo sempre um plano de convencimento do Tribunal a quo, segundo a livre convicção do julgador que não cabe a este Tribunal de recurso reformular.
Em sede de apreciação da prova rege o princípio da livre apreciação, expressamente consagrado no artigo 127.º do C.P.P.
Este princípio impõe que a apreciação da prova se faça segundo as regras da experiência comum e em obediência à lógica. E se a convicção do Tribunal “a quo” se estribou nestes pressupostos, como já se enfatizou, o Tribunal “ad quem” não pode sindicar ou sobrepor outra convicção.
Com as limitações que decorrem da falta de mediação e da impugnação parcelar dos factos, o Tribunal de recurso somente poderá alterar a decisão de facto quando se “imponha” (usando a expressão legal), ou seja, quando o processo decisório de reconstituição do acontecer histórico da 1ª Instância se fundou fora da razoabilidade em juízos destituídos de lógica, ou distintos dos padrões da experiência comum.
Ponderando agora as divergências suscitadas pelo recorrente, sustenta o mesmo serem incorretamente julgados como provados os factos constantes dos pontos F, G, H, I, J, L.M,N,O,P,Q,R, S, T, quando o Tribunal se baseou essencialmente na valoração das declarações para memória futura da ofendida, quando esta se recusou a prestar depoimento em audiência (uma vez convocada para tal), circunstância que tornou aquelas declarações prova proibida, não podendo por isso ser valoradas.
Sobre a admissibilidade da valoração das declarações para memória futura da vítima, como prova, após a mesma recusar depor em audiência de julgamento, quando novamente chamada a depor, a Jurisprudência tem divergido, extremando posições em polos opostos.
De um lado, face à recusa da vítima em depor, quando novamente reinquirida em audiência de julgamento, uma parte dos arestos dos Tribunais Superiores sustenta a proibição dessa prova, neste sentido, entre outros pode ver-se o Ac. TRL 23/03/2022, processo 150/21.0PALSB.L1-3, o qual sustenta “I - Num processo tendo por objecto a prática de crime de violência doméstica, em que a ofendida se recusa em audiência de julgamento a prestar declarações sobre esse mesmo objecto, não pode ser valorado o seu depoimento anteriormente prestado nos autos, mesmo aquele prestado para memória futura, no decurso do inquérito ou da instrução – porque assim o exige o preceituado no art. 356.º/6, do CPP. II - Com efeito, nada tendo sido estabelecido legalmente em sentido contrário, deve prevalecer o disposto no art. 356.º/6, do CPP, porquanto deve triunfar a autonomia da testemunha e os valores que subjazem ao seu direito de recusar prestar depoimento em julgamento, que lhe é conferido legalmente, em detrimento da procura da verdade.”
No mesmo sentido no Ac.TRL de 14/09/2021 no processo nº20/21.1SXLSB.L1-3 escreveu-se “A decisão sobre a tomada de declarações para memória futura não pode ser vista como um meio de evitar ou propiciar que a vítima exerça o direito de se recusar a depor porque a vítima tem (como o arguido), esse direito a qualquer momento em que tenha de depor ou queira depor, ainda que, sendo apenas ofendida, seja ouvida como testemunha. É o que resulta do disposto no n.º 6 do artigo 356.º do CPP e do artº 134º nº1 a) e b) CPP. O artº 356º não inibe a leitura/valoração das declarações para memória futura, mas também não pode inibir o direito a recusar-se a depor acrescendo que a lei é rigorosa quando diz que é proibida, em qualquer caso, a leitura de depoimento nessas circunstâncias.
Poderia argumentar-se que o que o legislador pretendeu foi proibir a leitura nos casos de recusa a depor, mas não a apreciação das declarações prestadas para memória futura.
Mas, o que temos perante nós, já que entendemos que nem têm de ser lidas as declarações, é que havendo proibição expressa de leitura das declarações de quem se recusa a depor, o legislador está a impedir que essa prova seja valorada.
Há um reforço de não leitura já expresso pelo legislador no artº 271º nº 8, no qual nos diz que a tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento.
E há um duplo travão a que tais declarações sejam valoradas como prova na situação dos autos, ou seja, quem as prestou recusa-se a depor em audiência dando lugar como que a uma inutilidade superveniente das mesmas declarações, que o próprio anula retirando-as do âmbito da apreciação da prova. Ou seja, apenas dos meios de prova permitidos e, as declarações para memória futura, após a recusa a depor em audiência, já não podem ser consideradas meios de prova. O Tribunal não tem de as referir na sua fundamentação, nem pode fazê-lo.”

Em sentido contrário, militam vários outros acórdão, dos quais destacamos o Ac. TRP de 14/12/2022, processo 82/21.1GBOAZ.P1, onde se defende que “I - A produção antecipada da prova de julgamento, embora derrogue o princípio da imediação, previsto no art. 355.º, do CPP, é obrigatória nos casos dos crimes contra a liberdade e de autodeterminação sexual de menor (cfr. art. 271.º, n.º 2, do mesmo Código), desde as alterações produzidas pela Lei n.º 48/2007, de 29/08, e sob impulso nos demais casos em que poderão estar em causa vitimas especialmente vulneráveis; é um ato sempre presidido por um juiz e segue trâmites próprios de um julgamento, quer quanto à gravação, quer quanto à liberdade para querer depor, embora não inviabilize a repetição do depoimento em audiência, se este for possível e não tiver contraindicações de natureza física ou psicológica por parte do declarante, não sendo obrigatória a sua reprodução em audiência, uma vez que se trata de prova pré constituída que tem livre acesso à consulta, estando na disponibilidade de todos os intervenientes, que assim se podem defender, ficando cumprido o contraditório.
II - Nos crimes contra a autodeterminação sexual de menor e também de violência doméstica, a prestação de declarações radica numa “opção protetora” do ordenamento jurídico justificada pela especial vulnerabilidade do ofendido; com efeito, visa-se não só assegurar a genuinidade e a credibilidade das declarações prestadas, mas também, no quadro das recomendações do direito europeu sobre a matéria, mitigar o efeito de vitimização secundária que a repetição das inquirições inelutavelmente comporta.
III - Mesmo que em audiência a vítima exerça o seu direito ao silêncio ou preste declarações em sentido contrário ao anteriormente declarado, tal não inviabiliza nem retira a possibilidade e o dever de o julgador as apreciar, de forma conjugada com a restante prova, e as valorar de harmonia com as regras da experiência e da lógica.
No mesmo sentido o Ac. TRL 20/04/2022, do processo 37/21.6SXLSB.L1-3, veio sustentar-se que “A tomada de declarações para memória futura nos termos do art. 271.º, não prejudica a prestação de depoimento em audiência, sendo possível e não coloque em causa a saúde física ou psíquica do depoente.
O art. 24.º, n.º 6, do Estatuto da Vítima, regula a prestação de declarações para memória futura, de forma autónoma do art. 271.º, é expresso na preferência por estas declarações e pela excecionalidade do depoimento em audiência, apenas podendo ter lugar o depoimento em audiência se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.
O art. 271.º não exige qualquer avaliação da essencialidade da prestação do depoimento em audiência. É claro na opção por este. O art. 356.º, não se refere às declarações para memória futura a que se refere e regula o art. 24.º do Estatuto da Vítima.
Por força do disposto no art. 24.º do Estatuto da Vítima, aplicável às vítimas de violência doméstica atento o disposto no seu art. 2.º, estas têm o direito de prestar declarações para memória futura, com observância do ali preceituado, e não devem ser chamadas a depor em audiência a não ser que tal se mostre essencial para a descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar (pressupostos cumulativos).
As declarações para memória futura constituem prova pré-constituída, adquirida em audiência de julgamento antecipada parcialmente, a valorar após a produção da restante prova e sujeitas, tal como a grande maioria das provas, à livre apreciação do julgador.
Uma vez explicitada a prerrogativa nesta norma prevista, e exercido o direito de recusa a depor ou ao contrário a ele renunciar prestando depoimento, não pode mais tarde a testemunha que tem a qualidade de vítima, querer exercer em sentido diverso o mesmo direito com efeitos retroativos, pois ele já foi exercido.
Já produziu efeitos probatórios: as declarações uma vez prestadas constituem prova a valorar; são prova já constituída não podendo ser excluídas do universo probatório a valorar pelo juiz, por vontade da vítima. As regras materiais e processuais sobre a validade ou aquisição da prova não podem nem estão dependentes da vontade dos particulares, sob pena de a justiça, um dos pilares do Estado de Direito Democrático, ser afinal, nada mais nada menos, que dependente da vontade e dos caprichos dos particulares, que poderiam colocar em marcha todo o aparelho judiciário para como qual castelo de cartas cair pela base sem qualquer efeito, pese embora todos os elementos constantes dos autos permitissem fazer justiça (seja ela condenatória ou absolutória). O art. 356.º do CPP não contém qualquer referência ao art. 24.º do Estatuto da Vítima, legislação especial, razão pela qual não lhe é aplicável o seu n.º 6.”

Feito este excurso, não se deve perder de vista que, por opção do legislador, o ambiente processual das declarações para memória futura que tem por finalidade a garantia de conservação da prova (assim como a proteção das fontes da prova), visa recriar os termos da audiência de julgamento, com aproximação do contraditório pleno (embora sem publicidade), sendo obrigatória a presença do MP, do defensor e, onde o juiz, que toma as declarações (com perguntas adicionais das partes), é o representante antecipado do Tribunal que irá valorar as declarações. O valor da prova produzida nestas declarações “(…) assume exactamente a mesma força que o da prova produzida em audiência de julgamento.” (ver Mouraz Lopes, A Tutela da Imparcialidade Endoprocessual no Processo Penal Português, pág. 161).
A primeira corrente jurisprudencial acima referida, coloca o centro da discussão no art.356º do CPP, em particular o nº6 deste preceito, para sustentar a proibição da valoração das declarações para memória futura, no caso de sobrevir em audiência a recusa em prestar depoimento, contudo, como veremos, no regime jurídico das declarações para memória futura o disposto no art.356º do CPP é meramente residual, não participando nem definindo os traços essenciais dessa prova.
Para se deslindar a questão, cumpre ponderar que a remissão do art.271º nº6 do CPP (para além de outras disposições) para o disposto no art.356º do CPP na parte correspondente, é puramente residual, pouco mais respeita do que à possibilidade da leitura desse depoimento em audiência de julgamento nos termos do nº3 desse preceito, se for necessário confrontar esse depoimento com a ofendida reinquirida em audiência (neste sentido ver Paulo Dá Mesquita in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, 2ª edição, Coimbra, 2022, p.1015), sendo uma remissão que não tem que ver com o regime substancial desta prova, contrariamente ao que sustenta a corrente jurisprudencial primeiramente elencada. As declarações para memória futura, enquanto prova antecipada (cfr.art.271º nº1 “in fine” do CPP) têm um valor autónomo ao regime das permissões do art.356º, ou seja, podem ser valoradas enquanto tal, não estando dependentes da sua leitura para valerem como prova, situando-se, por isso, ao largo do disposto no art.355º nº2 do CPP (assim “excecionando” o princípio da imediação da prova pelo julgador [embora relativamente, diremos nós, porquanto parte essencial da imediação é restabelecida pelo acesso do julgador à gravação e vídeo das declarações para memória futura, desse modo assistindo ao depoimento]). Assim, o disposto no art.355º nº2 do CPP aplicar-se-á aos depoimentos de todas as outras testemunhas, contidos em outros atos processuais situados em fases anteriores, estes sim, necessitando das permissões do art.356º, para poderem ser apreciados como prova pelo julgador.
A questão é que, a inserção sistemática da regra prevista no nº6 do art.356º reporta-se expressamente à permissão da leitura ou reprodução em audiência de julgamento de autos e declarações, quando, consabidamente, o valor das declarações para memória futura, pela sua especificidade encontra-se, nesta parte, fora do regime previsto no aludido art.356º do CPP, podendo ser valoradas independentemente deste regime de permissões, não tendo as mesmas que ser lidas em audiência para que possam ser valoradas (isso mesmo foi determinado pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência de 11/10/2017As declarações para memória futura, prestadas nos termos do art. 271.º, do CPP, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 355.º e 356.º, n.º 2, al. a), do mesmo Código.».).
Vista a questão no seu reverso, a proibição prevista no nº6 do art.356º do CPP, em consonância com o regime geral das permissões deste preceito, é a proibição de leitura de depoimentos, e não a proibição de valoração das declarações para memória futura. Por essa mesma razão, a expressão literal do aludido número “em qualquer caso” (e são muitas as permissões previstas no art.356º do CPP) é irrelevante para o caso, porquanto, apenas se reporta à proibição de leitura, circunstância que não interfere com o regime jurídico das declarações para memória futura.
Por outro lado, o nº6 do art.356º do CPP, na recusa a depor, estabelece a primazia da audiência de julgamento sobre outras fases anteriores, porém, e mais uma vez, a declarações para memória futura, têm o valor de prova antecipada, situada e equiparada à audiência de julgamento, pelo que, nem essa primazia existe.
Em rigor, na advertência feita nos termos do art.134º nº1 alínea b) do CPP aquando das declarações para memória futura, e dispondo-se a vítima aí a prestar declarações, estas, a partir de então, são prova constituída, merecendo especial destaque a circunstância das vítimas especialmente vulneráveis, como são o caso das vítimas de violência doméstica (a vítima de violência doméstica é sempre especialmente vulnerável, por força do disposto nos artigos 67º-A nº 1 al. a) i), n.º 3, 1º al. j) e l), todos do Código de Processo Penal, sendo a prestação de declarações para memória futura um direito seu, como se verifica do disposto nos art.ºs 21.º, n.º 2, al. d) do Estatuto da Vítima, para além de, por natureza, um acto judicial que consubstancia uma antecipação da audiência de julgamento, sujeito à observância do seu formalismo dentro do possível). Com efeito, neste regime jurídico a regra é a sua audição tão só em sede de declarações para memória futura, relegando para o estatuto de exceção a eventual reinquirição em audiência, como forma de evitar a vitimização secundária, neste sentido, ver Ac TRL de 25/05/2023 (relatora Drª Maria Perquilhas) quanto ao crime de violência doméstica “…a tomada de declarações para memória futura são e devem ser a regra, devendo realizar-se no mais curto espaço de tempo a seguir à prática dos factos, se possível dentro das 72 horas seguintes (para proteção da vítima, melhor recolha de prova, já que o depoimento mais próximo da ocorrência dos factos será o que corresponderá à tradução mais fiel dos acontecimentos, processo tem natureza urgente, evita a revitimização, e protege a vítima contra pressões, represálias ou qualquer forma de intimidação por parte do agressor)”.
Mesmo assim, no caso da vítima tornar a ser reinquirida em audiência, nos termos do art.271º nº8 do CPP, do art.33º nº7 da Lei nº112/2009; ou mais propriamente nos termos mais estritos do art.24º nº6 do Estatuto da Vítima (Lei 130/2015, a qual prevê só se for indispensável à descoberta da verdade e desde que não ponha em causa a saúde física e psíquica da pessoa), não faz o menor sentido, e é procedimento incorreto, o juiz do julgamento em audiência, reinquirindo a vítima, tornar a conceder-lhe o direito a recusar-se a responder nos termos do art.134º do CPP, faculdade e opção que já havia exercido em diligência que por definição e antecedência é integrante da audiência, com o mesmo valor probatório. Da mesma forma, uma testemunha quando presta depoimento na 1ª sessão de audiência, feita a advertência do art.134º nº1 do CPP, não se recusando a prestar depoimento; e prolongando-se esse depoimento para a 2ª sessão de julgamento, ou mesmo que termine o seu depoimento, se voltar a ser reinquirida noutra sessão, por ser superveniente essa necessidade, não pode a mesma, ser novamente advertida nos termos do art.134º nº1 do CPP e aí recusar-se a prestar depoimento, uma vez que já havia tomado validamente a sua posição numa diligência com força de prova, e que por princípio antecipa os termos da audiência, o que a vincula, sob pena de subversão do sistema processual.
Uma vez prestadas as declarações para memória futura, aí se assumindo a opção por prestar declarações, nada permite que, na reinquirição em audiência de julgamento, se torne a perguntar à testemunha ofendida, com a advertência dos termos da possibilidade de recusa prevista no art.134º nº1 alínea b) do CPP.
Conclui este Tribunal de recurso que foi lícita a valoração feita pelo Tribunal “A Quo” das declarações para memória futura da ofendida, as quais não enfermam de qualquer proibição na sua valoração respeitante aos arts.355º nº2 e 356.º, nº 6 do CPP, “ex vi” art.33º nº3 da Lei nº112/2009.
De igual modo, cabe também apreciar a preterição de formalidades que o recorrente lhe aponta, concretamente, quando sustenta não haverem sido cumpridas as formalidades respeitantes à “falta de advertência à testemunha do dever de falar com verdade sob pena de incorrer em responsabilidade criminal, falta de juramentação da testemunha e falta de juramentação da tradutora/intérprete de língua gestual”, respeitantes aos arts.132, nº 1 al, b) e d) e 91.º do CPP assim, pretendendo colocar em crise a credibilidade e valoração retirada desse depoimento pelo Tribunal “A Quo”.
Também com o mesmo objetivo invoca naquilo que chama de “limitações/condicionamentos ao exercício do direito ao contraditório”, apresentando transcrições de onde pretende elucidar essa quebra do contraditório.
Apreciando, constata-se não ter sido invocado, expressamente, o vício de irregularidade pela preterição das aludidas formalidades, até porque já seria intempestiva a referida invocação, pelo que antes, se pretende colocar em crise, o valor probatório das declarações para memória futura pelas apontadas falhas, mas sem que, discuta, no mesmo passo, o conteúdo do próprio testemunho. No fundo, aquilo que se pretende atacar, seria, designadamente, se a vítima foi tendenciosa, se mentiu, ou se teve quebras na sua credibilidade enquanto testemunha, e se, para isso contribuiu, a preterição das referidas formalidades, ou alegada diminuição do contraditório, no entanto, para essa exegese, para além do ambiente de informalidade imposto pelo nº3 do art.33º da Lei nº112/2009, impunha-se que houvessem sido cumpridos os respetivos ónus de impugnação nos termos do art.412º nºs3 e 4 do CPP, quanto ao concreto conteúdo do depoimento da testemunha. Isto é, pretendendo-se impugnar o julgamento dos pontos F, G, H, I, J, L, M, N, O, P, Q, R, S, T, dos factos provados, e visando-se as declarações para memória futura da testemunha ofendida, impunha-se que houvessem sido transcritos os trechos do seu depoimento, por referência a cada um dos referidos pontos de facto, cuja credibilidade se mostrasse afetada, designadamente pela falta de cumprimento das referidas formalidades.
Assim, para além de não se haverem cumprido os aludidos ónus de impugnação, o que torna esta inoperante, deve asseverar-se que o Tribunal de recurso ouviu as declarações para memória futura, constatando que as mesmas ocorreram com inteira normalidade, não tendo havido qualquer quebra do contraditório, diversamente do que sustenta o recorrente. Com efeito, o defensor colocou todas as questões que entendeu, inclusivamente a respeitante às hipotéticas agressões que a ofendida possa também ter cometido, cujo contexto, não obstante, os esclarecimentos feitos pela Mmª Juíza de instrução ao defensor sobre a versão que a ofendida acabara de declarar nessa diligência, designadamente sobre quem iniciara a agressão (esclarecimentos que são pertinentes no âmbito da direção da diligência), a pergunta em causa, formulada pelo Exmº defensor, é depois colocada repetidamente, inclusivamente sob impulso da Mmª Juíza, quando a ofendida responde que, assim que abriu a porta o arguido deu-lhe um soco, perguntando a Mmª Juíza “se ela em resposta também o agrediu?”, ao que a ofendida responde negativamente, “foi ele sempre contra ela”. Não ocorreu assim, qualquer quebra ou limitação do contraditório.
Portanto, a valoração probatória das declarações para memória futura foi corretamente mensurada pelo Tribunal “A Quo”, não enfermando, das apontadas proibições e faltas de credibilidade.
Portanto, o Tribunal “A Quo” analisou corretamente as aludidas declarações para memória futura, realçando e inferindo os aspetos em que fundou a sua convicção, de forma apropriada de acordo com a lógica e as regras da experiência, articulando com os demais meios de prova, designadamente documental. Concorda-se com o juízo de prova que foi realizado pelo Tribunal a quo, não existindo erro manifesto, ditado em qualquer desconformidade na formulação lógica ou pelas regras da experiência comum, que imponham alteração de convicção, devendo deste modo, improceder a impugnação movida à decisão da matéria de facto.
*
Visto o crime cometido, pretende o arguido recorrente a reapreciação da pena no regime de execução, para a suspensão da mesma.
Sobre a aferição da eventual suspensão da execução da pena cominada, o Tribunal “A Quo” fundamentou do seguinte modo “Ora, no nosso caso concreto, funciona aqui mais uma vez de forma extremamente penalizadora para o arguido a circunstância de ter cometido o crime aqui em causa durante o período de suspensão da execução de uma pena de prisão que lhe foi aplicada em processo judicial anterior, pela prática de um crime absolutamente idêntico, cometido em circunstâncias totalmente similares e contra a mesma vítima, assim demonstrando o arguido (a nosso ver) que não interiorizou de forma alguma a censura, a gravidade e a advertência que lhe decorreram dessa sua anterior condenação.
Por seu turno, mais nos parece que, por muito que se perscrute, não se identificam quaisquer circunstâncias que nos permitam neste caso efectuar qualquer espécie de juízo de prognose favorável em relação ao aqui arguido e que por alguma forma nos pudessem levar a concluir que (novamente) a simples censura da condenação e a ameaça de cumprimento de pena de prisão efectiva pudessem ser suficientes para afastar o arguido da prática de novos crimes. Pelo contrário, o arguido não apresentou qualquer crítica ou autocensura para a sua conduta e continua a residir na mesma habitação da ofendida do crime aqui em causa, ainda que em quartos separados e com vidas separadas, mas sempre num contexto que se mostra altamente propício para que novos factos como aqueles aqui em causa possam a qualquer momento voltar a suceder.
Assim, entendemos que nada mais nos resta do que decidir no sentido da não suspensão da execução da pena de prisão aqui aplicada ao arguido, concluindo-se então pelo seu necessário cumprimento efectivo.
O Tribunal de recurso concorda no essencial com os referidos fundamentos, porquanto o arguido tem relevantes antecedentes criminais, particularmente a condenação por crime de idêntica natureza, sobre a mesma vítima, tornando a delinquir no período de suspensão da pena desta condenação, evidenciando uma impressionante insensibilidade a essa condenação, que manifestamente não cumpriu os seus fins, o que associado aos riscos da sua débil inserção profissional e social, incrementam as exigências de prevenção e da culpa a um nível elevado.
A criminalidade em causa, não é menor, depois, o risco evidenciado pelo arguido em comportamentos recidivos é elevado, não sobrevindo aos autos qualquer atitude de arrependimento ou confissão, que a existirem permitiriam outra visão sobre os fins da pena a cominar. Portanto, o cometimento do mesmo delito, com a anterior condenação, ainda em execução, não conseguiu esta o efeito integrador desejado, revelando-se uma pena ineficaz, condicionalismo que compromete definitivamente o juízo de prognose favorável, ponderação que o Tribunal “A Quo” fez com equilíbrio e sensatez.
Perante a atitude do arguido, associada à sua indiferença e insensibilidade às penas anteriormente cominadas, mostra-se comprovada a ineficácia da pena de prisão suspensa na sua execução. O conjunto destas circunstâncias tornam desfavorável qualquer juízo de prognose positivo sobre a conduta do arguido perante um cenário de mera ameaça da pena de prisão, facto que inviabiliza a suspensão da pena (cfr.art.50º do Cód. Penal).
Como resulta dos fundamentos expostos, o recurso não poderá merecer provimento
*
DISPOSITIVO.
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão do Tribunal a quo.
Condena-se o recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs.

Notifique.

Porto, 26 de novembro 2025.
(Elaborado e revisto pelo 1º signatário)
Nuno Pires Salpico
Madalena Caldeira
Maria Luísa Arantes