PROCESSO DE INVENTÁRIO
RECURSOS
DECISÕES INTERLOCUTÓRIAS
LEGÍTIMA
REDUÇÃO DE LIBERALIDADES INOFICIOSAS
Sumário


I – Com o recurso da sentença homologatória da partilha, a parte interessada tem o ónus de impugnar as decisões interlocutórias atípicas anteriores relativamente às quais não tenha ocorrido preclusão, não sendo bastante o recurso daquela sentença para estas se considerarem também impugnadas.
II – Quando a legítima dos herdeiros legitimários é afectada por liberalidades em vida ou por morte, a lei estabelece formas de a proteger, considerando aquelas liberalidades inoficiosas e determinando a sua redução em tanto quanto for necessário para que a legítima seja preenchida, embora a requerimento dos herdeiros e não de forma oficiosa (art.º 2169.º).
III – As liberalidades feitas em vida só são atingidas pela redução por inoficiosidade quando o valor das testamentárias (a título de herança e de legado) não assegure o preenchimento da legítima. A lei pretendeu, assim, privilegiar as doações sobre as disposições testamentárias, dado o carácter irrevogável que, em princípio, caracteriza as doações.

Texto Integral


Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães,

I – Relatório

O presente processo de inventário judicial foi instaurado em 10/12/2012 pela interessada AA por óbito de sua mãe BB, falecida em ../../2009 no estado de casada, sob o regime comunhão geral de bens, com CC, em primeiras e únicas núpcias de ambos, a qual deixou como seus únicos e universais herdeiros, para além do seu referido marido, dez filhos de ambos: DD, EE, DD, FF, GG, HH, II, JJ, KK e a requerente AA.

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A este inventário foi posteriormente cumulado o inventário por óbito do marido da inventariada CC, falecido em ../../2017 no estado de viúvo daquela inventariada, deixando como seus únicos e universais herdeiros os dez filhos supra identificados.
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Por escritura pública de doação outorgada a 7 de Junho de 2006, os inventariados CC e BB doaram ao interessado JJ, por conta da quota disponível deles doadores, a parcela de tereno descrita sob a verba n.º 66 da relação de bens.
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Por testamento outorgado a 4 de Março de 2009, no cartório Notarial de LL e que aí se acha exarado de fls. 65 a 66, no Livro ...-T, a inventariada BB efetuou os seguintes legados:
a) Legou ao seu marido CC o usufruto do prédio urbano onde reside, com todas as edificações existentes no térreo do mesmo (prédio inscrito na matriz sob o art.º ...52.º e descrito na Conservatória do registo predial sob o n.º ...86, bem como todos os utensílios, máquinas de lavoura e semoventes);
b)Legou, por conta da sua quota disponível, em partes iguais, aos filhos KK e GG, a raiz ou nua propriedade do prédio mencionado em a), com a obrigação de, cada um deles, dar aos restantes oito filhos (seus irmãos) a quantia de 5.000,00€ a cada um, recebendo estes, no conjunto a quantia de 80.000,00€, obrigação esta a cumprir após a morte do usufrutuário;
c) Lega, com excepção do filho JJ, a cada um dos restantes nove filhos, uma parcela de terreno para construção urbana, com a área de 1.000 m2, a desanexar dos terrenos existentes, que lhe pertencem a ela testadora e ao seu marido.
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Por testamento outorgado a 08 de Abril de 2013, no cartório Notarial de LL e que aí se acha exarado de fls. 142 a 143, no Livro ...-T, o inventariado  CC instituir herdeiro da quota disponível da sua herança o seu filho KK, com a obrigação de cuidar dele testador (na saúde e na doença, prestando-lhe todos os cuidados e assistência que carecer, nomeadamente, cuidados médicos, medicamentosos, alimentação, vestuário, cuidados de higiene e limpeza, bem como de companhia, sendo os custos integralmente pagos pelo testador).
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Em 16/04/2018 a requerente e marido MM deduziram reclamação quanto à relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, acusando a falta de relacionação de bens que identifica.
Sobre esta reclamação os interessados celebraram transacção, que foi homologada por sentença de 05/11/2018.
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Posteriormente, a requerente e marido vieram apresentar nova reclamação em 13/09/2019 acusando a omissão na relação de bens, entre outros, de uma vacaria, (compreendendo a atividade industrial respetiva e o respetivo edifício, instalada no imóvel da verba 64).

Foi produzida a prova requerida, conforme acta de 26/10/2020, tendo sido proferida a seguinte decisão nesta parte:
No que concerne aos pontos 2 e 3 da reclamação, pese embora o depoimento de parte do interessado, que refere a existência de uma vacaria já no tempo dos seus sogros, bem como os registos fotográficos de fls. 531 a 535 apresentados pela reclamante e a declaração emitida pela sociedade “EMP01..., Lda.” cumpre referir, no que concerne ao depoimento do interessado, que o mesmo foi de tal modo vago que dele não podemos extrair a existência de uma vacaria aquando do falecimento dos de cujus.
Ademais, quer a declaração quer os registos fotográficos são datados respetivamente de 2017 e 2020, posteriores à data da instauração dos presentes autos.
Pelo exposto, indefere-se esta reclamação.”.
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Procedeu-se, seguidamente, à conferência de interessados, onde não foi alcançado acordo quanto à composição dos quinhões, tendo por isso havido lugar a licitações.
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Foi proferido despacho determinativo da partilha em 01/02/2021, o qual foi corrigido por despacho de 26/04/2021.
Neste último despacho foi, ainda, reiterado que nada se ordenou quanto à vacaria, enquanto estabelecimento/unidade pecuária destinada à produção e comercialização de leite, na medida em que havia já sido proferida decisão anterior que concluiu pela inexistência de tal bem.
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Foi elaborado mapa informativo em 24/11/2022 no qual foi verificada a existência de excesso de legado, na sequência do qual o cabeça de casal veio requerer em 06/12/2022 (requerimento complementado em 26/02/2023) a redução proporcional de todos os legados, por ofenderem a legítima dos herdeiros legitimários e serem liberalidades inoficiosas.
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Em 19/06/2023 foi proferido despacho determinando a redução dos legados, o qual veio a ser rectificado em 13/11/2023.
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Foi proferido mapa de partilha (12/12/2024) observando o determinado no despacho anterior relativamente à redução dos legados.
Este mapa foi objecto de reclamação por parte da requerente e marido, nos termos do requerimento de 14/01/2025, reclamação esta que foi indeferida por despacho de 14/03/2025.
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Em 22/04/2024 foi proferida sentença homologatória das operações de partilha constantes do aludido mapa, adjudicando aos interessados os bens que integram os respectivos quinhões.
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Inconformados com esta sentença, a requerente e o seu marido interpuseram o presente recurso (não obstante a denominarem de “despacho”, é inequívoco que é desta decisão – e apenas desta – que recorrem, pois referem explicitamente no respectivo requerimento “vêm apresentar recurso referente ao Despacho de referência ...58 de 22/04/2025”), defendendo a anulação do processado até à fase anterior às licitações, corrigindo-se a relação de bens ou, caso assim se não entenda, pedindo que seja tida em conta a reclamação ao mapa da partilha, elaborando-se novo mapa em conformidade.

Para o efeito, formularam as seguintes conclusões:
A. Foi feita a devida reclamação – pelo requerimento de 14/01/2025 ref ...83
B. Essa reclamação não foi atendida e assim não foi corrigido o mapa de partilha.
C. Cabe recurso da sentença de homologação.
D. No mapa é referido o seguinte: “c) Legou ainda, com excepção do filho JJ, a cada um dos restantes nove filhos existentes, uma parcela de terreno para construção urbana com a área de 1.000 m2, a desanexar dos terrenos que lhe pertencem a ela testadora e ao seu marido. e semoventes.”
E. É clara a intenção da testadora na parte do testamento onde lega tais terrenos de 1000 m2 – IGUALAR TODOS OS FILHOS POR IGUAL.
F. Não se aceita ASSIM QUE O MAPA TENHA A SEGUINTE INDICAÇÃO:
G. “Verificada a liberalidade da inventariada BB, quanto ao testamento de 04/03/2009 a favor dos interessados KK, GG, DD, EE, DD, FF, HH, II e AA há que reduzir este legado em 3,79% (9.360,00 -2.973,24) ficando reduzido cada um ao valor de 6 386,76€”.
H. A parcela doada é de construção e tem valor superior – os legados seriam a forma de compensar e igualar os herdeiros.
I. O valor a ser deduzido deveria ser do valor total dos bens.
J. Igualando assim todos os legatários e donatário.
K. Consequentemente as operações de contas estão erradas.
L. Sem esquecer que a partilha terá de ser toda refeita quando for anulada por falta da “vacaria” como uma unidade industrial.
M. Ficou demonstrada que a “vacaria” existe.
N. Aliás, é alvo toda a actividade no apenso de prestação de contas.
O. Foi feita a reclamação devida em tempo devido.
P. O juiz a quo nunca aceitou tal unidade económica.
Q. Incongruência tal já que decorre uma prestação de contas em apenso a estre processo.
R. O presente processo de partilhas terá de ser anulado até a fase anterior das licitações (conferência de interessados).
S. Corrigindo-se a relação de bens.”.
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Não foi apresentada resposta às alegações de recurso da requerente.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Nesta Relação foi considerado o recurso corretamente admitido e com o efeito legalmente previsto.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II – Das questões a decidir

O âmbito dos recursos, tal como resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 641.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil (doravante, CPC), é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente.
Isto, com ressalva das questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado ou das que se prendem com a qualificação jurídica dos factos (cfr., a este propósito, o disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3 do CPC).
Assim, as principais questões que importa apreciar e decidir neste recurso, de acordo com a sua ordem lógica, são as seguintes:
a) saber deve ser relacionada, como pertencente ao acervo hereditário, uma vacaria e se, por tal motivo, se deve ser anulado o processado até à fase anterior às licitações;
b) se devem ser objecto de redução todas as liberalidades, incluindo a doação efectuada pelos inventariados ao interessado JJ.
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III – Fundamentação

III – I. Da Fundamentação de facto
Os factos que aqui importa considerar e que, em função dos elementos constantes dos autos, se mostram provados, são os acima descritos no relatório desta decisão, os quais, por razões de economia processual, se dão aqui por integralmente reproduzidos.
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III - II. Do objeto do recurso

a) Falta de relacionação de uma vacaria:
Nas suas alegações de recurso, os recorrentes alegam a omissão na relação de bens de uma vacaria, como unidade industrial, pretendendo a correcção da relação de bens e a consequente anulação do processado até à fase anterior às licitações.

A esta alegação correspondem as conclusões L) a S) do presente recurso, que podem resumir-se assim:
- a partilha terá de ser toda refeita quando for anulada por falta da “vacaria” como uma unidade industrial.
- a “vacaria” existe e foi feita a reclamação devida em tempo devido.
- o presente processo de partilhas terá de ser anulado até a fase anterior das licitações (conferência de interessados), corrigindo-se a relação de bens.
A pretendida alteração da relação de bens, apesar de constar da parte final das conclusões do recurso, constitui questão que terá que ser objecto de conhecimento prévio, pois a sua eventual procedência poderá determinar a inutilidade do restante recurso.

Vejamos:
Conforme resulta do relatório acima elaborado, a omissão da relação de bens da referida vacaria (alegadamente instalada no imóvel da verba 64) foi objecto de reclamação apresentada em 13/09/2019 pela requerente e marido.
Quanto a esta reclamação foi oportunamente proferida decisão judicial constante da acta de 26/10/2020, com o seguinte teor na parte aqui relevante:
 “No que concerne aos pontos 2 e 3 da reclamação, pese embora o depoimento de parte do interessado, que refere a existência de uma vacaria já no tempo dos seus sogros, bem como os registos fotográficos de fls. 531 a 535 apresentados pela reclamante e a declaração emitida pela sociedade “EMP01..., Lda.” cumpre referir, no que concerne ao depoimento do interessado, que o mesmo foi de tal modo vago que dele não podemos extrair a existência de uma vacaria aquando do falecimento dos de cujus.
Ademais, quer a declaração quer os registos fotográficos são datados respetivamente de 2017 e 2020, posteriores à data da instauração dos presentes autos.
Pelo exposto, indefere-se esta reclamação.”.

Resulta, assim, desta decisão de 26/10/2020 que não foi, então, considerado demonstrada a existência da referida vacaria.
Esta constitui uma decisão interlocutória proferida em momento anterior à sentença que homologou o mapa da partilha.
No entanto, os reclamantes não recorreram da mesma.
Esta decisão interlocutória poderia ter sido objecto de impugnação com o presente recurso da sentença que homologou a partilha (cfr. art.º 1396.º n.º 2 do C.P.C., na redacção em vigor à data da instauração do presente inventário).
No entanto, como já se assinalou, neste recurso os recorrentes apenas pretendem recorrer e recorrem da sentença que homologou a partilha. É o que resulta de forma clara do requerimento de interposição do recurso: “vêm apresentar recurso referente ao Despacho de referência ...58 de 22/04/2025”), decisão esta que é a referida sentença homologatória.
Em lado nenhum do recurso os recorrentes fazem menção à decisão de 26/10/2020 como estando também ela sob recurso.
E teriam que o fazer para que pudesse considerar-se também esta impugnada. Na verdade, como escreve Abrantes Geraldes (in “Recursos em Processo Civil”, 8.ª Edição, pág. 302), “com o recurso que seja admissível da sentença a parte interessada tem o ónus de impugnar as decisões interlocutórias atípicas anteriores relativamente às quais não tenha ocorrido preclusão.”.
Decisões interlocutórias (ou intercalares) são todas as decisões que, apreciando uma questão autónoma, não põem fim ao processo. São as decisões (que podem ser de forma ou de índole material) de natureza incidental que surjam no decorrer do processo (v. Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 3ª ed. Revista e Ampliada, pp. 829 e 830), “em relação às quais constitui regra geral, em matéria de recursos, o da impugnação diferida e concentrada com o recurso da decisão final” – cfr. Ac. STJ de 09/03/2021, Proc. n.º 2616/17.7T8PDL.L1.S1, Rel. Jorge Dias, in www.dgsi.pt; Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, 2018, pg. 353.
Ora, o facto de estarmos perante uma decisão que só pode ser impugnada juntamente com a decisão final não significa naturalmente que seja bastante a impugnação desta e não daquela. Não pode, por isso, considerar-se impugnada a decisão interlocutória só porque o foi a decisão final, sendo imperativo que a parte manifeste de forma expressa que pretende recorrer também de alguma decisão intercalar.
É o que, aliás, resulta actualmente do disposto no art.º 660.º do C.P.C, quando estabelece que “são impugnadas conjuntamente com a decisão final nos termos do n.º 3 do art.º 644.º”. Trata-se de um recurso independente cumulado com o recurso da decisão final, sendo apenas acessório desta apelação quanto à oportunidade da sua dedução, mas não quanto à natureza do recurso em si mesmo (cfr. Rui Pinto, “Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa”, Ano LXI, 2020, n.º 2, pág. 644).
Não tendo os recorrentes apresentado impugnação da decisão que incidiu sobre a reclamação da relação de bens, o aí decidido passou a  ter força de caso julgado formal, não podendo, pois, ser alvo de apreciação no presente recurso (restringido à sentença homologatória da partilha) a justeza ou não da decisão que não considerou existir a vacaria e que, como tal, indeferiu a reclamação.
Ao referirem na al. L) das conclusões de recurso que “a partilha terá de ser toda refeita quando for anulada por falta da vacaria” talvez os recorrentes possam estar, apenas, a adiantar eventualmente o resultado na acção que, entretanto, intentaram (com o n.º 3571/21.4T8VNF a correr termos no Juízo Local Cível de V. N. Famalicão - Juiz ...) contra o cabeça de casal, na qual peticionam que seja declarada a existência dessa vacaria e à qual se reporta no requerimento de suspensão da instância formulado em 02/09/2021.
Só assim se entenderá que, não tendo impugnado o despacho que apreciou a reclamação da falta de relacionação da vacaria, venham neste recurso fazer esta alusão, a qual no entanto não tem qualquer relevo para o recurso interposto da decisão homologatória da partilha, podendo quanto muito determinar uma eventual partilha adicional posterior.
Face ao exposto, improcedem as referidas conclusões.
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b) Redução das liberalidades:

As restantes conclusões do recurso prendem-se com a questão da redução das liberalidades, esta sim respeitante às operações do mapa da partilha homologado pela sentença sob recurso.

Como se fez referência expressa supra, os inventariados outorgaram no seu conjunto três instrumentos conferindo liberalidades, assim elencados por ordem cronológica:

a) Por escritura pública de doação outorgada a 7 de Junho de 2006, os inventariados CC e BB doaram ao interessado JJ, por conta da quota disponível deles doadores, a parcela de tereno descrita sob a verba n.º 66 da relação de bens;
b) Por testamento outorgado a 4 de Março de 2009, a inventariada BB efetuou os seguintes legados: Legou ao seu marido CC o usufruto do prédio urbano onde reside, com todas as edificações existentes no térreo do mesmo (prédio inscrito na matriz sob o art.º ...52.º e descrito na Conservatória do registo predial sob o n.º ...86, bem como todos os utensílios, máquinas de lavoura e semoventes); Legou, por conta da sua quota disponível, em partes iguais, aos filhos KK e GG, a raiz ou nua propriedade daquele prédio, com a obrigação de, cada um deles, dar aos restantes oito filhos (seus irmãos) a quantia de 5.000,00€ a cada um, recebendo estes, no conjunto a quantia de 80.000,00€, obrigação esta a cumprir após a morte do usufrutuário; Legou, com excepção do filho JJ, a cada um dos restantes nove filhos, uma parcela de terreno para construção urbana, com a área de 1.000 m2, a desanexar dos terrenos existentes, que lhe pertencem a ela testadora e ao seu marido.
c) Por testamento outorgado a 08 de Abril de 2013, o inventariado  CC instituir herdeiro da quota disponível da sua herança o seu filho KK, com a obrigação de cuidar dele testador (na saúde e na doença, prestando-lhe todos os cuidados e assistência que carecer, nomeadamente, cuidados médicos, medicamentosos, alimentação, vestuário, cuidados de higiene e limpeza, bem como de companhia, sendo os custos integralmente pagos pelo testador).
Foi proferido despacho determinativo da partilha em 01/02/2021 (que veio a ser corrigido por despacho de 26/04/2021), após o que o cabeça de casal veio requerer a redução proporcional de todos os legados, por ofenderem a legítima dos herdeiros legitimários e serem liberalidades inoficiosas.
Foi elaborado mapa informativo e, na sequência deste, foi proferido em 19/06/2023 despacho que determinou que as liberalidades da inventariada BB (por excederem a sua quota disponível) teriam que ser reduzidas, onde se considerou ser bastante, no entanto, a redução das disposições testamentárias (no caso os legados) a efetuar proporcionalmente (art.º 2172.º, n.º 1 do Cód. Civil, diploma ao qual se referirão todas as menções seguintes sem identificação da sua origem), de acordo com a ordem imposta no art.º 2171.º.
De seguida foi elaborado mapa da partilha que observou este último despacho, o qual foi objecto de reclamação por parte da aqui recorrente, mas sem provimento.
Na referida reclamação, tal como acontece no presente recurso, os recorrentes defendem que deveria ter havido lugar à redução de todos os bens, igualando legatários e o donatário JJ, de acordo com a vontade a inventariada legatária.
Terão razão?
Desde já se adianta que a resposta a esta questão terá que ser negativa.
Para a decisão desta questão haverá, em primeiro lugar, que compreender o que significa e com que finalidade prevê a lei a redução das liberalidades.
De acordo com o disposto no art.º 2168.º n.º 1, “dizem-se inoficiosas as liberalidades, entre vivos ou por morte, que ofendam a legítima dos herdeiros legitimários.”.
A legítima, por sua vez, é a porção de bens de que o testador não pode dispor, precisamente por ser destinada por lei a esses herdeiros (art.º 2156.º).
Como ensina Pereira Coelho (in “Direito das Sucessões”, lições policopiadas ao curso de 1973-1974, Coimbra, 1992, pág. 313), “legítima global e quota indisponível são a mesma realidade encarada de perspectivas diferentes, da perspectiva dos herdeiros legitimários e da do autor da sucessão, respectivamente. O autor da sucessão tem uma quota indisponível; os herdeiros legitimários têm uma legítima, globalmente considerada”.

Ora, a legítima dos herdeiros (legitimários) pode vir a ser afectada por liberalidades em vida ou por morte, pelo que a lei estabelece formas de a proteger, considerando aquelas liberalidades, como vimos, inoficiosas e determinando a sua redução em tanto quanto for necessário para que a legítima seja preenchida, embora a requerimento dos herdeiros e não de forma oficiosa (art.º 2169.º).
Quando há concurso de vários tipos de liberalidades, como acontece no caso dos autos, coloca-se a questão de saber de saber como se terá que processar essa redução, pois em abstracto qualquer uma pode ser tida por inoficiosa.
Uma das soluções possíveis seria, como parecem preconizar os recorrentes, reduzir todas as liberalidades (apesar de se referirem à redução do valor de todos os bens, cremos que teriam em mente apenas as liberalidades), sem qualquer distinção, mas na proporção do seu valor.
Porém, não foi esta a solução adoptada pela lei, que impõe uma ordem concreta: em primeiro lugar reduzem-se as disposições testamentárias a título de herança, em segundo lugar os legados e, por último, as liberalidades que hajam sido feitas em vida do autor da sucessão (artigo 2171.º).
Significa isto que “As liberalidades feitas em vida só são atingidas pela redução por inoficiosidade quando o valor das testamentárias (a título de herança e de legado) não assegure o preenchimento da legítima” (neste sentido, analisando uma hipótese em tudo semelhante à dos presentes autos, cfr. Luís Carvalho Fernandes, “Lições de Direito das Sucessões”, 3ª ed., Lisboa, 2008, págs. 439 a 441; vd., ainda, o Ac. RC, de 31/01/2012, Proc. n.º 364/05.0TBSAT.C1, Rel. Teles Pereira, in www.dgsi.pt).
A lei pretendeu, assim, privilegiar as doações sobre as disposições testamentárias, explicando Pires de Lima e Antunes Varela (in “Código Civil Anotado”, Vol. VI, Coimbra, 1998, p. 276) esta prevalência com o “carácter irrevogável que, em princípio, caracteriza as doações e implicitamente resulta do disposto nos artigos 969º e seguintes, por um lado, e da advertência, feita no artigo 2156º, de que, ao testar, o autor da herança não pode dispor da quota de bens que, como legítima, é legalmente destinada aos herdeiros legitimários”.
Como tal, ao contrário do que defendem os recorrentes, a observância da vontade da testadora de igualar os filhos com os legados estava dependente por lei da não ofensa da legítima. Uma vez que tal sucedeu no caso concreto, impondo-se a redução de liberalidades, não restava outra hipótese senão seguir a ordem das reduções prevista no já citado art,º 2171.º, começando pelos legados.
E como não se mostrou necessário recorrer à redução da liberalidade feita em vida, por ser bastante a dos legados, conclui-se que as operações de partilha efectuadas pelo tribunal de primeira instância são correctas, nada havendo a apontar à decisão recorrida.
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Improcede, pois, a apelação na totalidade.
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IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
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Custas da apelação pelos Apelantes, por terem ficado vencidos no recurso (art.ºs 527.º e 529.º do CPC).
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Notifique.
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20/11/2025

Relator: João Paulo Pereira
1.ª Adjunta: Margarida Alexandra de Meira Pinto Gomes
2.ª Adjunta: Paula Ribas
(assinado eletronicamente)