I - O crime de violência doméstica é um crime permanente ou de execução permanente, englobando os maltratos físicos e psíquicos e as situações de micro-violência continuada, de actos repetidos, contínuos, de violência psíquica, adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de relacionamento, mas não exige a verificação de uma relação de subjugação da vítima ao agressor.
II - Dizer-se, na acusação, que após o nascimento da filha comum o arguido começou a controlar o comportamento da vítima, não permitindo que esta estivesse sozinha com menor, e interferindo em todas as actividades relacionadas com a prestação de cuidados à criança, e que passou a dizer-lhe, através de mensagens escritas, que não era boa mãe, que era descompensada, louca, idiota, que precisava de tratamento psicológico, que traumatizava a filha e que pretendia a guarda exclusiva, são afirmações genéricas porque, embora parecendo significar um comportamento permanente, não concretizam suficientemente que interferência era aquela e as concretas mensagens enviadas e quais as respectivas datas, tudo para permitir ao arguido defender-se e explicar o contexto em que tudo aconteceu.
III - Na parte em que imputa ao arguido acções genéricas a acusação padece de nulidade, por violação do artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do C.P.P.
IV - Há situações em que as declarações da vítima do crime de violência doméstica podem, por si só, conduzir à condenação, quando o tribunal tenha tais declarações como consistentes, coerentes, verosímeis.
V - Quando a vítima imputa actos ofensivos ao arguido praticados na presença de terceiros e estes terceiros não os corroboram, não é possível conferir ao depoimento da vítima a especial força probatória que, muitas vezes, tem.
VI - O acórdão da relação que, em recurso, confirma a decisão de não pronúncia constitui decisão absolutória, ainda que formal, visto que determina a absolvição da instância, não admitindo recurso para o S.T.J.
VII - Havendo confirmação da decisão absolutória, a relação pode limitar-se a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada.
Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:
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I – Relatório:
…, foi proferido despacho, datado de 15/07/2025, de não pronúncia do arguido …, pela prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.º 152.º, n.ºs 1, als. a) e c), 2, al. a), 4, 5 e 6, do Código Penal de que vinha acusado, determinando, consequentemente, o oportuno arquivamento dos autos.
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-» Inconformado com tal despacho, o Ministério Público interpôs recurso daquele despacho, formulando as seguintes conclusões:
…
3. Entendemos, porém, que os elementos reunidos nos autos fazem crer que existe uma possibilidade razoável de futura condenação do arguido em julgamento, que se afigura como mais provável do que a sua absolvição, pelo que deveria ter sido proferido despacho de pronúncia.
4. Sendo de relevar as declarações da ofendida, que se revelam credíveis e logram corroboração nos depoimentos das testemunhas …
5. Haverá, assim, que considerar indiciado que, após o nascimento da filha, a propósito das prestações sociais que recebiam, o arguido chamou à assistente “parasita social” e que por várias vezes lhe disse que não é boa mãe, que é descompensada, que precisa de tratamento, que assusta e traumatiza a filha, e que ele pretende a guarda da criança.
6. E mais se indicia que o arguido controlou o comportamento da assistente para com a filha, não a deixando estar sozinha com ela e interferindo em todas as atividades relacionadas com os cuidados que prestava à criança.
7. Estas expressões e comportamentos, constituindo um mau trato, afetaram, naturalmente, a ofendida, perturbando-a psicológica e emocionalmente, incrementando o seu receio de que a guarda da filha lhe fosse retirada.
8. As condutas indiciadas não podem ser vistas isoladamente, tendo de o ser de forma conjugada e no contexto que também se indicia; revelando desrespeito e desejo de controle sobre a assistente, as mesmas configuram um perigo para a sua saúde e bem-estar, atentando contra o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica.
…
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-» O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
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-» O arguido respondeu, …
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-» Uma vez remetido a este Tribunal, a Exmª Senhora Procuradora-Geral Adjunta deu parecer …
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Cumprido que foi o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP, não foi oferecida resposta.
Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II – Objeto do recurso:
…
No caso, a questão trazida à apreciação deste Tribunal prende-se com a apreciação da suficiência dos indícios da prática pelo arguido dos factos e crime descritos na acusação deduzida.
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III –Transcrição (parcial) do despacho recorrido:
“…
Daqui sobressai o que cremos essencial para a caraterização do crime de violência doméstica, que se evidencia da sua génese e evolução; a existência de uma vítima e de um vitimador, este numa posição de evidente dominação e prevalência sobre a pessoa daquela.
…
Gizado este quadro normativo, doutrinário e jurisprudencial, centrandonos no caso sub judice, podemos formular um juízo indiciário nos seguintes moldes:
Em primeiro lugar, importa que nos atenhamos na factualidade descrita sob os §s 4.º e 5.º do libelo acusatório.
Repristinando: “4.º Ainda durante o namoro, no dia 12.01.2015, na via pública …, no interior da viatura por si conduzida, no decurso de uma discussão, desferiu várias bofetadas na cara e nos braços de …, com o que lhe provocou dores nas zonas atingidas.
5.º Tais factos deram origem ao inquérito n.º50/15...., o qual foi arquivado, porquanto … não prestou depoimento”.
Tal factualidade, porque objecto de despacho de arquivamento, não pode ser, ex novo, objecto de reapreciação, sem que o respectivo inquérito tenha sido reaberto, o que não consta que tenha sucedido …
…
Existem indícios da seguinte factualidade descrita na douta acusação pública e que ora se transcreve:
1 – O arguido manteve uma relação de namoro com … desde 2013;
2 – Com quem casou no dia ../../2018;
3 – Em Dezembro de 2020, separaram-se;
4 – E, no dia ../../2022, divorciaram-se;
5 – Todavia, mantiveram a coabitação até Maio de 2022, …
6 – Desta união nasceu, no dia ../../2020, uma filha …
Não existem indícios da seguinte factualidade descrita na douta acusação pública e que ora se transcreve:
1 – Quando a filha nasceu e devido ao facto de beneficiar de um apoio da segurança social, começou a apelidar … de “parasita social”, o que fez, além do mais, nos dias 21 de Maio de 2021 e 22 de Março de 2023, por vezes, perante outras pessoas;
2 – Após o nascimento da filha comum, começou a controlar o comportamento de …, quando estava com a menor, não permitindo que esta estivesse sozinha com … e interferindo em todas as actividades relacionadas com a prestação de cuidados à criança;
3 – No dia 16 de Novembro de 2020, dia de aniversário de …, no interior da residência comum, tirou a filha do colo da mãe, alegando que a mesma “já tinha ficado muito tempo com ela”;
4 – Quando … manifestou intenção de se divorciar, intimidou-a, referindo que devia tomar cuidado “pois ele era influente … e também conhecia muita gente influente”;
5 – Quando … contactava os pais, residentes no ..., fazendo videochamada para mostrar a filha, impedia-a, tirando a menor da frente da câmara;
6 – Também desde o nascimento da menor que, dirigindo-se a …, afirma, além do mais, através de mensagens escritas, que não é boa mãe, que é descompensada, louca, idiota, que precisa de tratamento psicológico, que traumatiza a filha, assustando-a e que pretende a guarda exclusiva;
7 – Perante terceiros, em especial médicos, quando se deslocam a consultas, por causa da filha, veicula que AA não lhe passa as informações devidas e que não administra correctamente a medicação à menor, o que aconteceu, além do mais no dia 14 de Julho de 2023, no Centro de Saúde …
8 – Por via do comportamento de … padece de perturbação de ansiedade;
9 – Actuou sempre querendo afectar, como afectou, o bem-estar físico, psíquico, tranquilidade, honra e dignidade de AA;
10 – Fazendo-a temer pela sua segurança;
11 – Pela sua vida e integridade psicológica;
12 – Provocando-lhe, ainda, pânico;
13 – Apesar de saber que lhe devia respeito por ser sua ex-mulher e mãe da sua filha;
14 – O que quis;
15 – Actuou de forma consciente, livre e voluntária;
16 – Bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
…
Relativamente ao mais, realce-se, quanto ao § 6.º da douta acusação pública, que aí se refere que o arguido “começou” a apelidar a ora assistente de “parasita social”, situando-se temporalmente tais condutas quando a filha nasceu, nos dias 21 de Maio de 2021 e 22 de Março de 2023, sem que, porém, se mostrem espacialmente contextualizadas as acções, e mais se referindo que tal terá sucedido perante outras pessoas, as quais não se apresentam identificadas. Ora, nenhuma das testemunhas inquiridas corroborou o proferimento de tal epíteto, máxime, nas aludidas datas. Escalpelizando, em síntese e naquilo que importa atentos os factos imputados, o que se extrai de cada um dos depoimentos:
…
Assim, também nenhuma testemunha corrobora o narrado sob os §s 7.º a 10.º e 12.º, não estando, aliás, exposto, de que modo concreto é que o arguido controlava o comportamento …, nem como é que não permitia que a mesma estivesse sozinha com a …, nem como é que interferia em todas as actividades relacionadas com a prestação de cuidados à criança, além de que se afigura, sempre com a ressalva do respeito devido por entendimento contrário, que tais condutas, em si mesmas, são jurídico-penalmente irrelevantes, na perspectiva do mau trato nos moldes delineados supra, como o é o simples tirar a filha do colo da mãe, dizendo que já tinha ficado muito tempo com ela (podendo, inclusive, consubstanciar o oposto, aliviando a mãe de tal tarefa). Como, outrossim, se afigura penalmente anódina a expressão narrada sob o § 9.º do libelo acusatório (a alegada intimidação propalando que se é influente em ... e conhecer muita gente influente).
Quanto ao § 11.º do libelo acusatório, não se mostram as assacadas condutas circunstanciadas temporalmente, nem inseridas no respectivo contexto comunicacional, o que seria exigível, tratando-se de mensagens escritas das quais haveria registo, não se descortinando as mesmas, prima facie, no manancial de mensagens compilado no apenso I, …
…
Em conclusão, não se descobre uma razoável probabilidade de uma futura condenação do arguido, em sede de julgamento, pelos factos que lhe são imputados na acusação pública e com a respectiva qualificação jurídica.
Restará, pois, concluir pela não pronúncia.
…
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IV- Do mérito do recurso:
Como acima se referiu, o presente recurso tem como único objeto a apreciação da existência (ou não) de indícios suficientes da prática pelo arguido dos factos (e seu enquadramento jurídico) que lhe são imputados no requerimento de abertura de instrução, sindicando a decisão de não pronúncia proferida pelo Tribunal a quo.
O Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 11 de outubro de 2001, publicado na Coletânea de Jurisprudência (CJSTJ, Ano III, pp. 196-198), decidiu que o acórdão da Relação que, em recurso, confirmar a decisão de não pronúncia, por insuficiente indiciação dos factos acusados, constitui decisão absolutória, ainda que formal, visto que determina a absolvição da instância, não admitindo, consequentemente, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça .
Deve, pois, considerar-se que o acórdão confirmatório de uma decisão de não pronúncia é um acórdão absolutório para os efeitos previstos no artigo 400. °, n. º1, alínea d) e, consequentemente, no artigo 425.º do Código de Processo Penal.
Estabelece o artigo 400, nº1 alínea d) do Código de Processo Penal:
“1. Não é admissível recurso:
(…)
d) De acórdãos absolutórios, proferidos em recurso, pelas relações, (…)”
Por seu turno, estabelece o artigo 425º nº5 do mesmo código:
“5. Os acórdãos absolutórios enunciados na alínea d) do nº1 do artigo 400º, que confirmem decisão de 1ª instância sem qualquer declaração de voto, podem limitar-se a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada”.
Ou seja, havendo confirmação do despacho recorrido, a Relação pode limitar-se a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada ao abrigo do disposto no artigo 425. °, n. º5 do Código de Processo Penal.
No caso em apreço a decisão recorrida é de não pronúncia.
E, analisados os autos, nomeadamente a decisão instrutória e a motivação do recurso, afigura-se-nos que a decisão recorrida não merece censura, quer quanto à decisão, quer quanto aos respetivos fundamentos, de facto e de direito.
Mas, em reforço do entendimento sufragado na decisão impugnada, cumpre fazer algumas considerações.
Para efeitos de dedução de acusação pública no termo do inquérito, considera a lei suficientes os indícios dos quais resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (art.º 308 n.º 1 do CPP).
E porque no juízo de quem acusa, tal como no de quem pronuncia, deverá estar sempre a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, tal possibilidade razoável tem que surgir como mais positiva do que negativa: o juiz só deve pronunciar o arguido quando, através de um juízo objetivo fundamentado nos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido. Ou, utilizando agora as expressivas palavras do Prof. Figueiredo Dias, quando, já em face da prova recolhida, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou, em todo o caso, esta surja mais provável do que a sua absolvição (cfr. Direito Processual Penal, V.I, 1974, pg.133).
A suficiência dos indícios de futura condenação do arguido, aferida por um juízo de alta probabilidade, em face das regras da experiência comum e livre apreciação da prova, tem de ser compatibilizada com o princípio in dubio pro reo (emanação do princípio da presunção da inocência, consagrado no art.º 32.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa), que vigora, segundo entendemos, em todas as fases do processo penal, de acordo com o qual o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.
Note-se ainda que a análise da prova indiciária está sujeita aos princípios e regras processuais que regem a apreciação da prova, designadamente ao princípio da livre apreciação da prova, contemplado no art. 127º do CPP, com a consequência de que a prova indiciária deverá ser apreciada “segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Revertendo ao caso dos autos à luz do que acima foi exposto, e compulsados os autos e a prova que o mesmo contém, concluímos que a avaliação feita pelo juiz a quo relativamente aos indícios existentes não merece qualquer censura.
As considerações tecidas na decisão recorrida a propósito do ponto 4º da acusação são certeiras, merecendo, aliás, a concordância do recorrente.
…
Sabemos que a identificação do bem jurídico protegido pela incriminação da violência doméstica não encontra resposta unívoca na jurisprudência nem na doutrina, como se dá conta nos Ac STJ de 15/12/2022, Processo:6/21.6GCAMT.P1-A.S1, de 13/9/2018, Proc. 372/17.8PBLRS.L1.S1 e de 30.10.2019, no Proc. 39/16.4TRGMR.S2, onde é feita uma resenha exaustiva das posições existentes sobre a matéria, defendidas quer na doutrina, quer na jurisprudência do Supremo e para a qual remetemos.
Adotamos aquela que nos parece também ser a posição dominante, quer na doutrina, quer na jurisprudência, e que é a defendida por Américo Taipa de Carvalho, na sua anotação ao artigo 152º, do Código Penal (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, artigos 131º a 201º, 2ª Edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 511 e 512):
“ Portanto, deve entender-se que o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde - bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental; e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade da criança ou do adolescente, agravem as deficiências destes, afectem a dignidade pessoal do cônjuge (ex-cônjuge, ou pessoa com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges), ou prejudiquem o possível bem-estar dos idosos ou doentes que, mesmo que não sejam familiares do agente, com este coabitem”.
Sabemos ainda que o crime de violência admite hoje, desde a revisão de 2007, dois modos alternativos de cometimento: um que pressupõe a repetição ou reiteração de comportamentos, outro que prescinde da reiteração e se basta com um único acto ou omissão, desde que configure um verdadeiro maltrato físico ou psíquico.
Trata-se sempre, contudo, de comportamentos que tiveram lugar por causa da relação existente entre agressor e vítima.
E sendo o crime de violência doméstica um crime de perigo abstrato, que traduz uma tutela antecipada do bem jurídico protegido, não é necessário, para que se verifique tal crime, que se tenham produzido efetivos danos na saúde física ou psíquica da vítima, bastando que se pratiquem atos em abstrato suscetíveis de provocar tais danos.
Havendo reiteração, os comportamentos isolados integram-se numa mesma unidade contextual, que assenta na especial relação existente entre agressor e vítima, se prolonga no tempo e constitui o padrão do comportamento do agressor no seu relacionamento com a vítima.
E os comportamentos subsumíveis a este tipo legal podem até não assumir relevância típica, à luz de outros tipos de crime, tudo dependendo dos específicos contornos do caso e de acordo com uma avaliação da imagem global do facto.
Nestes casos, o crime configura um crime permanente ou de execução permanente, englobando, não apenas maltratos físicos, mas também psíquicos e, em particular e no que interessa aos autos - atento o teor da acusação deduzida e porque dela decorre ser essa a tese da acusação - as situações de micro-violência continuada, de atos repetidos, contínuos, de violência psíquica, que são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de relacionamento.
Tal não significa que a verificação do tipo exija a verificação de uma relação de domínio uma subjugação da vítima ao agressor.
E a consumação do crime de violência doméstica não exige, também, que a conduta do agressor se traduza em maus-tratos cruéis ou num tratamento particularmente aviltante.
Em casos de fronteira, o critério distintivo em relação a outros crimes parece-nos que se deve procurar na “na imbricação entre o crime cometido e a relação existente entre o seu autor e a vítima” – cfr. Ac RC de 22-09-2021, Processo: 158/19.5GABBR.C1.
…
Feito este enquadramento jurídico, vejamos então se se mostram reunidos nos autos indícios suficientes da prática dos factos que a acusação descreve.
Lemos os documentos juntos aos autos e os diversos depoimentos prestados em inquérito e ouvimos os depoimentos prestados em instrução.
Constatámos que, como é frequente que suceda, a assistente sustentou a ocorrência dos factos relatados na acusação, ao passo que o arguido negou tê-los praticado.
…
Lemos ainda as inúmeras mensagens trocadas entre ofendida e arguido, que revelam uma relação crispada, em que arguido e vítima criticam o comportamento um do outro.
Feito este resumo da prova junta aos autos, atentemos nas razões de discordância do recorrente/M.º P.º em face da decisão recorrida.
Ora, defende o recorrente que do conjunto da prova junta aos autos é possível extrair a conclusão de que o arguido chamou à assistente “parasita social”.
Contudo, se é certo que a assistente o afirma, sabemos que o arguido o contesta e, entendemos, nenhum outro elemento de prova o corrobora ou permite, por dedução, que se conclua nesse sentido.
Contrariamente ao sustentado pelo recorrente, entendemos que a invocada circunstância do arguido ter interpelado a assistente social sobre o RSI e o abono recebidos pela assistente não tem a virtualidade de conferir verosimilhança e credibilidade ao depoimento da vítima quando esta afirma que o arguido lhe chamou diversas vezes parasita social.
Não ignoramos que há situações em que as declarações da vítima do crime de violência doméstica – um crime praticado entre quatro paredes, na ausência de olhares de terceiros - podem, por si só, conduzir à condenação. Tal sucede nas situações em que o Tribunal entende que o depoimento da vítima é consistente, coerente, verosímil, em detrimento do depoimento do arguido, que entender não ser merecedor de credibilidade. Mas no caso dos autos, não é isso que sucede relativamente à factualidade em causa, pois vemos que a assistente sustenta que o arguido lhe chamou parasita social à frente de terceiras pessoas: uma dessas vezes na presença das assistentes sociais BB e CC, numa visita domiciliária e outra dessas vezes durante uma audiência no Tribunal (cfr. relato escrito junto aos autos pela assistente, a fls. 75). No entanto, a verdade é que nenhuma das testemunhas chamadas a depor em inquérito e em instrução, designadamente as testemunhas BB e CC o atestam, assim fragilizando a versão trazida a juízo pela assistente. Desta forma, não é possível conferir ao depoimento da vítima a especial força probatória que nos levaraia a afastar a aplicação do princípio in dúbio pro reo e assim concluir, com fundamento em tal depoimento, pela existência de indícios suficientes do facto em causa nos autos.
Quanto aos factos descritos em 7, refere o M.mo Juiz a quo que não estão minimamente concretizados no tempo e no espaço.
Como é sabido, exige-se no art.º 283º, nº 3, al. b), do C.P.P. que os factos tenham suficiente concretização, pois desta depende o exercício de um efetivo contraditório, por parte do arguido, princípio processual penal fundamental do sistema acusatório, com consagração constitucional (art. 32.º/5).
A expressão «se possível» que consta do referido normativo, não se pode pois ser interpretada como permitindo a dispensa total de investigação quanto às circunstâncias em que as ações que constituem o crime ocorreram.
Escreve-se no Ac. da RP de 16.03.2022, Processo: 613/20.4PDVNG.P1 disponível in www.dgsi.pt:
“É consabido que o facto genérico é um “não-facto”, por isso, excluído da apreciação dos tribunais, ficando sempre fora do elenco dos factos provados e não provados. Nesta problemática, só são suscetíveis de imputação processual com aptidão para serem judicialmente apreciados, factos que possam ser discutidos com respeito pelos princípios do contraditório e da legalidade.
Na discussão desta questão, a jurisprudência tem sentido, com preocupação, a importância do contraditório, sustentando os acórdãos ac. RP de 30/9/2015 www.dgsi.pt : “As imputações genéricas sem indicação precisa do tempo, lugar e circunstancialismo em que ocorreram, inviabilizam um efetivo direito de defesa devem considerar-se não escritas”; no mesmo sentido o Ac. RP de 20/4/2016 www.dgsi.pt e o ac RP 17/6/2015 www.dgsi.pt (…)”.
Assim, admitindo-se que, dadas as características do crime de violência doméstica, em causa nos autos, possa haver imputações não concretizadas, sempre terá que haver alguma concretização, de forma a ser possível localizá-las no tempo e situá-las no espaço com alguma precisão.
A jurisprudência dominante do STJ e das Relações tem vindo precisamente a pronunciar-se no sentido exposto, quer a respeito deste crime, quer do crime de tráfico de estupefacientes (cfr. por todos, o Ac RE de 01-10-2013 Processo: 948/11.7PBSTR.E1, da RC de 25-09-2024, Processo: 486/22.2GBCNT.C1, da RG de 05-07-2021, Processo: 2/20.0GEBRG.G1 e do STJ de 17-01-2007, Processo: 06P3644, todos in www.dgsi.pt).
Ora, lendo o facto 7, vemos que estamos de facto em face da imputação de um comportamento genérico, pouco concretizado: significará que esses comportamentos eram diários? A redação dada a este artigo da acusação parece de facto significar um comportamento constante, permanente do arguido.
E em que é que se traduzia a “interferência na prestação dos cuidados à criança”? A que tipo de comportamentos se refere a acusação?
A concretização que se impunha era, na realidade, possível de realizar e não foi feita.
Em suma: entendemos que acusação deduzida pelo Ministério Público não cumpre o previsto no n.º 3 do artigo 283.º, do Código de Processo Penal, nomeadamente o constante da sua alínea b), sendo, por isso, quanto ao facto descrito em 7, nula.
De qualquer forma, se assim se não entendesse, a verdade é que sempre seria de entender que, relativamente a tal factualidade, não estão reunidos nos autos indícios suficientes.
…
O arguido nega os factos e diz que a arguida estava deprimida e emocionalmente instável, o que pode justificar uma maior preocupação com o bem estar da filha.
Assim, na ausência de qualquer outro meio de prova, estes relatos não permitem concluir, acima de todas as dúvidas às quais possam ser dadas razões, que de facto há indícios suficientes de que o arguido se comportava de forma sistemática do modo referido em 7.
Quanto aos factos descritos em 8 a 10, para além do depoimento da assistente, nenhuma outra prova foi feita dos mesmos.
E, nessa medida, considerando que são negados pelo arguido, e tendo presente o sentido e o alcance do princípio in dúbio pro reo, entendemos que a probabilidade de condenação do arguido por tais factos é inferior à probabilidade de absolvição.
Acresce que, tal como entendeu o juiz a quo, julgamos, também nós, que o facto descrito em 8 por si só não constitui um mal trato, uma forma de violência física ou psíquica, um tratamento abusivo.
Tampouco o constitui o facto descrito em 9, pois o mal anunciado é indefinido, não se vislumbrando o que consequências poderiam advir para a ofendida que resultassem dos vários “conhecimentos do arguido”, caso esta se divorciasse.
Relativamente aos factos descritos em 11, mais uma vez estamos aqui perante uma descrição genérica, sem que tivessem sido indicadas as concretas mensagens em que o arguido proferiu tais expressões e as respetivas datas, por forma a que o arguido se pudesse delas defender, explicar o contexto em que o escreveu, -se é que o escreveu - e o Tribunal o pudesse compreender. E tratando-se de mensagens escritas, tal exigência não se nos afigura de difícil realização.
E ao socorrer-se a acusação de fórmulas vagas para alicerçar a responsabilidade penal do arguido, ao invés de descrever as concretas mensagens enviadas, inviabilizou o direito de defesa que assiste ao arguido.
Assim, em relação ao facto 11, a acusação deduzida pelo Ministério Público não cumpre o previsto no n.º 3 do artigo 283.º, do Código de Processo Penal, nomeadamente o constante da sua alínea b), sendo, por isso e nessa parte (e só nessa), nula.
No que concerne ao facto 12, a verdade é que, ainda que julgássemos que tal facto estava suficientemente indiciado, a verdade é que é um facto juridicamente inócuo, pois a afirmação em causa não se pode considerar mau trato, mas tão só uma crítica sobre o comportamento da vítima.
Aliás, o que resulta da prova produzida nos autos é uma relação deteriorada entre arguido e assistente, de permanente conflito e hiper-reactividade e hiper-crítica ao comportamento um do outro.
Em suma: estando nós em concordância com a análise que é feita na decisão recorrida, remetendo-se para os respetivos fundamentos, entendemos não merecer tal decisão qualquer censura, devendo ela ser confirmada.
Acrescente-se apenas que não ocorreu qualquer violação do disposto nos artigos 283º, nº 2 e 308º, nº 1 do Código de Processo Penal e 152º do Código Penal.
III- Decisão
Em face do exposto, acordam as Juízas da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em, nos termos do n.º 5 do artigo 425º do Código de Processo Penal, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
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Sem custas, por o M.º P.º delas estar isento
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Coimbra, 20/11/2025
Sara Reis Marques
Paula Carvalho e Sá
Maria da Conceição Miranda
(Texto elaborado pela relatora e revisto pelos seus signatários - artigo 94º, n.º 2, do CPP)