I - O crime de peculato pune a apropriação ilegítima, em proveito próprio ou de terceiro, de dinheiro ou de coisa móvel alheia entregue a funcionário ou que esteja na sua posse ou a que ele acedeu por virtude e em razão das suas funções.
II - Esta posse integra no seu âmbito quer a detenção material, quer a disponibilidade jurídica do bem, isto é, as situações em que a detenção material pertence a outrem, mas o agente pode dispor do bem ou conseguir a sua detenção material mediante um acto para o qual tem competência em razão das suas funções.
III - Tendo este acesso que resultar do exercício das funções do agente do crime, deve apurar-se a relação entre a posse e o exercício da função desempenhada pelo agente que a permitiu.
IV - A determinação da consumação do crime de peculato faz-se quer recorrendo ao conceito do crime de abuso de confiança, quer recorrendo ao que define o crime de furto, porque a conduta punível é, precisamente, a inversão da posse, a traição da confiança depositada no funcionário, e estando em causa bem meramente acessível ao agente do crime, a conduta punível no peculato já é idêntica à do furto.
V - Consistindo o crime em múltiplas ordens de pagamento, transferência, ou levantamentos em numerário, dadas a diversas agências de bancos relativamente a contas de que era titular a massa insolvente, em locais e momentos diferentes, através das quais a arguida passou a agir como se fosse titular das quantias depositadas nessas contas, colocando-as sob a sua área de domínio, dando-lhes um destino diferente daquele a que estava obrigada e deveria ter dado, não sendo determinável onde ocorreu a consumação do primeiro acto há que lançar mão da regra estabelecida no artigo 21.º do C.P.P., respeitante a crime de localização duvidosa para determinar o tribunal territorialmente competente para o julgamento.
Acordam os Juízes, em Conferência, na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
RELATÓRIO
…, foi proferido despacho acusatório contra os arguidos
AA …
BB …
CC …
DD …
EE …
FF …
Imputando-lhes a prática dos seguintes ilícitos penais:
…
A arguida AA … apresentou contestação, na qual suscitou a questão prévia de incompetência do Tribunal.
Foi cumprido o princípio do contraditório.
Foi proferido despacho judicial que veio a indeferir tal pretensão.
Inconformada com o teor de tal decisão, a arguida AA … veio interpor recurso, que se apresenta motivado e com as seguintes conclusões:
1. A arguida …, invoca a incompetência territorial do Juízo Central Criminal de Coimbra para realizar o julgamento dos presentes autos.
2. Como fundamentos, alegou que, estando perante uma situação de conexão de processos, nos termos do artigo 24.º, n.º 1, alínea c) do CPP, é necessário atentar às normas especiais sobre a competência territorial, a saber, no presente caso, o artigo 28.º, alínea a) do CPP, que determina que se os processos devessem ser da competência de tribunais com jurisdição em diferentes áreas, é competente para conhecer de todos o “tribunal competente para conhecer do crime a que couber pena mais grave”.
3. O crime mais grave imputado pela acusação é o crime de peculato, punível com pena de prisão de 1 a 8 anos, nos termos do artigo 375.º, n.º 1 do Código Penal, pelo que é por referência ao crime de peculato, imputado à arguida …, que se determina a competência territorial.
4. Ora, não tendo a acusação imputado à arguida qualquer facto praticado fora do seu domicílio profissional, sito em Oeiras, facilmente se conclui que o crime de peculato, à semelhança dos outros, alegadamente, praticados, ter-se-ia consumado no seu domicílio profissional.
5. O que, segundo as regras de competência supra referidas, determinaria a competência do Juízo Central Criminal de Cascais do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, nos termos dos artigos 33.º, n.º 2, da Lei n.º 62/2013, de 29 de agosto, e 4.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de março.
6. Contudo, o tribunal a quo, na decisão sob recurso, indeferiu a invocada incompetência do Juízo Central Criminal de Coimbra para tramitar os presentes autos, fundamentando que a acusação nada refere quanto ao local da consumação do crime de peculato, pelo que existe dúvida quanto ao elemento relevante para determinar a competência territorial.
7. Donde conclui ser inviável a aplicação do artigo 19.º do CPP, que define o critério do locus delicti como regra geral de determinação da competência territorial, considerando ser competente o tribunal da área onde primeiro tiver havido notícia de crime, nos termos do disposto no artigo 21.º do CPP.
8. Como a notícia de crime foi primeiramente recebida pelo DIAP de Coimbra, considerou o Juízo Central Criminal de Coimbra competente, em razão do território, para continuar a tramitação dos presentes autos.
9. Acontece que a decisão proferida pelo tribunal a quo está errada.
10. A aplicação do artigo 21.º do CPP é subsidiária e apenas pode ocorrer quando seja inviável, devido às circunstâncias do caso concreto, aplicar a regra geral sobre competência territorial vertida no artigo 19.º do CPP.
11. Ora, neste caso, tendo em conta que a acusação não imputa à arguida qualquer facto praticado fora do seu domicílio profissional, é imperativo considerar que o crime de peculato foi, de igual modo, alegadamente, consumado em Oeiras.
12. Ou seja, o local da consumação não é desconhecido, sendo o domicílio profissional da arguida, sito em Oeiras, local onde praticaram, alegadamente, sem exceção, todos os crimes que lhe são imputados.
13. Com efeito, contrariamente ao entendimento do tribunal a quo, para apurar o local da consumação do crime de peculato impõe-se a aplicação do artigo 19.º do CPP, considerando como local da prática do facto o domicílio profissional da arguida.
14. Acresce que, carece de qualquer sentido útil a menção, no despacho recorrido, ao crime de participação económica em negócio, de igual modo imputado à arguida, uma vez que, para efeito de determinação da competência territorial no presente caso, apenas releva o crime punível com pena mais grave que, in casu, é o de peculato e não o de participação económica em negócio.
…
Notificado o Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 411º do Código do Processo, veio o mesmo pronunciar-se, …
A Excelentíssima Senhora Procuradora-Geral Adjunta neste Tribunal da Relação de Coimbra emitiu Parecer …
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir do recurso apresentado.
Na decisão recorrida, com relevância para a decisão da matéria recursal, foi feito constar o seguinte:
…
1. A arguida AA … foi nomeada Administradora de Insolvência no âmbito do Processo de Insolvência … da sociedade …Unidade de Saúde …, S.A. (de ora em diante A...), com sede na … Lisboa.
2. Está em causa a administração da massa insolvente da A..., onde estava compreendida a Unidade de Saúde …, sita … Coimbra.
3. Por força da localização daquela Unidade de Saúde, pese embora nenhum dos denunciados tivesse domicílio em Coimbra (Cf. queixa de fls. 1 e ss.), foram os presentes autos tramitados, na fase de inquérito, no DIAP Regional de Coimbra, tendo sido os atos jurisdicionais assegurados por Juiz de Instrução da mesma comarca.
4. Consolidado o objeto do processo na acusação e, por isso, nela fixados os critérios aferidores da competência territorial do tribunal, verifica-se que não há qualquer conduta imputada à arguida que se localize fora do seu domicílio profissional, sito … Oeiras.
5. Aliás, lê-se na acusação, precisamente, que a arguida … não estava “a trabalhar ou a residir em permanência em Coimbra, …
6. Em relação aos putativos comparticipantes, o Ministério Público não localizou as respetivas condutas nas instalações da Unidade de Saúde …
7. Dada a dispersão territorial da alegada consumação dos crimes por cada um dos arguidos, é forçoso concluir que, por aplicação da regra geral prevista no artigo 19.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, seriam de diferentes áreas/comarcas os tribunais competentes para conhecer de cada conduta.
8. Estando-se perante uma conexão de processos nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 24.º do Código de Processo Penal – a prática de um crime por vários agentes em comparticipação –, é necessário fazer operar as regras especiais de competência (determinadas, precisamente, pela conexão).
9. Nos termos do disposto na alínea a) do artigo 28.º do Código de Processo Penal, os processos devessem ser da competência de tribunais com jurisdição em diferentes áreas, é competente para conhecer de todos” o “tribunal competente para conhecer do crime a que couber pena mais grave”.
10. Na acusação, o crime mais grave imputado é o de peculato, previsto e punível, com pena de prisão de 1 a 8 anos, pelo disposto no artigo 375.º, n.º 1, do Código Penal.
11. Sendo este crime imputado à arguida …, é por referência ao lugar em que esta alegadamente o consumou que se afere o Tribunal competente.
12. Tendo a arguida atuado no seu domicílio profissional, sito em Oeiras, o Tribunal competente para realizar o julgamento nestes autos é, de acordo com o disposto nos artigos 33.º, n.º 2, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, e 4.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de março, o Juízo Central Criminal de Cascais do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste.
…
Nos termos do nº 1 do art. 32º do Cód. Proc. Penal, “a incompetência do tribunal é por este conhecida e declarada oficiosamente e pode ser deduzida pelo Ministério Público, pelo arguido e pelo assistente até ao trânsito em julgado da decisão final”. Explicitando o seu nº 2 que “tratando-se de incompetência territorial, ela somente pode ser deduzida e declarada: a) Até ao início do debate instrutório, tratando-se de juiz de instrução; ou b) Até ao início da audiência de julgamento, tratando-se de tribunal de julgamento”.
…
Nos termos do art. 19.º, nº1 do CPP, a regra geral para determinar o fator de conexão entre o juízo do tribunal e o litígio será a área em que se verificar a consumação do crime, sem prejuízo da aplicação de critérios supletivos ou das regras da competência por conexão.
Concretizando, o Juízo Central Criminal de Coimbra será competente para o julgamento dos crimes consumados nestes municípios.
No caso em preço a arguida … vem acusada da prática dos seguintes crimes:
. … participação económica em negócio, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 26º, 28º, 377º, n.º 1 e 386º, n.º 1, alínea d), todos do Código Penal.
. … participação económica em negócio, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 26º, 28º, 377º, n.º 1 e 386.º, n.º 1, alínea d), todos do Código Penal.
. …participação económica em negócio, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 26º, 28º, 377º, n.º 1 e 386º, n.º 1, alínea d), todos do Código Penal.
. …participação económica em negócio, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 26º, 28º, 377º, n.º 1 e 386º, n.º 1, alínea d), todos do Código Penal.
. … peculato, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 26º e 375º, nº 1 do Código Penal.
. … peculato, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 26º, 28º, 375º, n.º 1 do Código Penal; …
. … crime de abuso de poder, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 26º, 28º, 382º e 386º, n.º 1, alínea d), todos do Código Penal.
A sobredita regra geral, em determinadas situações, cede para satisfazer imposições de concordância ou de unidade, dado que a aplicação estrita determinaria consequências de fragmentação processual que acrescentariam complexidade ao modelo, provocando disfunções organizacionais. As situações em que a regra geral de competência poderia ficar inoperativa ou produzir resultados funcional e processualmente negativos estão identificadas na lei de processo pela consideração de elementos de conexão, sejam pessoais (em relação ao arguido), sejam materiais (relativos à infracção) – conexão subjectiva e objectiva. As situações de conexão estão referidas no art. 24.º, n.º 1, als. a) a e), do CPP” – Cfr. Ac. STJ, Proc. 07P345, de 11.04.2007.
De facto, nos termos da al. c) do art. 24.º, n.º 1 do CPP, existe conexão de processos quando o mesmo crime tiver sido cometido por vários agentes em comparticipação, como é o caso.
Acresce que em conformidade com o disposto no artigo 28.º do CPP: “Se os processos devessem ser da competência de tribunais com jurisdição em diferentes áreas ou com sede na mesma comarca, é competente para conhecer de todos: a) O tribunal competente para conhecer do crime a que couber pena
mais grave (…)”.
O elemento relevante para a determinação da competência territorial é, nos termos do disposto na alínea a), do artigo 28.º, do CPP, o crime de peculato (punível com pena de prisão de 1 a 8 anos), que é o crime mais grave.
O crime de peculato do qual a arguida vem acusada tem por base o facto de a arguida, enquanto funcionária, ilegitimamente, se ter apropriado, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel ou imóvel ou animal, públicos ou particulares, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções”.
…
Estes crimes terão sido consumados no momento da lesão daqueles interesses patrimoniais que cumpriam à arguida zelar. Ou seja, a lesão consistiu no prejuízo dos credores em virtude de uma má administração da massa insolvente e, mais concretamente, da Unidade de Saúde …, sita em Coimbra. Daqui se retira que o objeto das condutas criminais da arguida se situa localizado em Coimbra.
A Defesa alega que estes atos não podem referir-se a outro local que não o do domicílio profissional da arguida.
Vejamos.
Considerando que o crime de peculato constitui um crime qualificado de abuso de confiança, … o local da prática do crime será aquele onde se praticaram os atos de inversão do título da posse, passando a agir como se fosse proprietário da coisa que recebeu e detinha precariamente, isto é, quando, como sucede no caso dos autos, passa dissipar o dinheiro, que lhe foi entregue para determinados fins, em seu próprio proveito ou de terceira pessoa ou, simplesmente, dar-lhe um destino diverso daquele que lhe deveria dar.
Consumando-se o crime de abuso de confiança com a apropriação que se traduz, sempre, na inversão do título de posse ou de detenção: o agente, que recebe a coisa «uti alieno», passa, em momento posterior, a comportar-se, relativamente a ela, «uti dominus» (naturalmente através de atos objetivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais), é exatamente nesta realidade objetiva que se traduz a «inversão do título de posse ou detenção» e é nela que se traduz e se consuma a apropriação, pelo que se mostra necessário que essa apropriação seja revelada através de atos de que o arguido inverteu o título de posse e passou a comportar-se como proprietário do dinheiro [cfr. Vg AC.R.E., no Proc. 593/18.6T9ABF-A. E1, 20.03.2020).
Ora, do teor da acusação nada consta quanto, ao onde e quando a arguida inverteu o título de posse, pelo que permanece a dúvida sobre a localização do elemento relevante para determinar a competência territorial.[1]
Assim, perante a impossibilidade …de determinação da competência territorial com base no critério preferencial do “locus delicti”, a lei prevê a aplicação subsidiária de outro dos critérios: a área onde primeiro tiver havido notícia do crime – cf. art. 21.º do CPP.
Com efeito, havendo dúvidas quanto ao elemento relevante para determinação da competência territorial, tem preferência o Tribunal onde primeiro tiver havido notícia do crime.
“Para tal efeito, notícia do crime, é, apenas e só, o conhecimento que o Ministério Público adquire dos factos, pois que o procedimento criminal só se inicia com um acto do Ministério Público (art.ºs 48.º e 53.º, n.º 2, a), do CPP e art.º 219.º, n.º 1, da Constituição)” – Cfr. Ac. STJ, Proc. 176/06.3EAPRT-B.P1.S1, de 5.01.2011.
No caso em apreço, foi o DIAP de Coimbra a receber a notícia do crime …
…
*
DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Descendo ao caso dos autos, analisadas que sejam as conclusões apresentadas pela recorrente …, a questão que se apresenta a decidir é, pois, a seguinte:
. Impugnação do despacho, por erro de direito, na interpretação e aplicação do artigo 28º do Código do Processo Penal.
*
DECISÃO
Considerando o que é disposto no artigo 428º do Código de Processo Penal aos Tribunais da Relação estão conferidos poderes de cognição de facto e de direito.
…
Como decidido neste Tribunal da Relação de Coimbra[4] “A jurisdição é una, mas divide-se em função do direito substantivo a que respeita e relativamente aos tribunais aos quais compete. No que respeita às questões criminais, a função jurisdicional incumbe ao Tribunal Constitucional, aos tribunais judiciais e aos tribunais militares – art. 202º, 209º, 211º e 213º da Constituição da República Portuguesa.
Depois, quanto à efectividade desta função jurisdicional, a determinação da competência dos tribunais criminais para o conhecimento e julgamento da causa é sempre feita por referência aos factos, relevando o crime concretamente imputado, a pena aplicável e o local da consumação.”
No nosso ordenamento processual penal as regras para a determinação da competência dos tribunais criminais estão fixadas nos artigos 19º e seguintes da lei adjectiva penal.
Fica plasmado no artigo 19º, onde sob a epígrafe “Regras gerais”, que:
1 - É competente para conhecer de um crime o tribunal em cuja área se tiver verificado a consumação.
2 - Tratando-se de crime que compreenda como elemento do tipo a morte de uma pessoa, é competente o tribunal em cuja área o agente actuou ou, em caso de omissão, deveria ter actuado.
3 - Para conhecer de crime que se consuma por actos sucessivos ou reiterados, ou por um só acto susceptível de se prolongar no tempo, é competente o tribunal em cuja área se tiver praticado o último acto ou tiver cessado a consumação.
4 - Se o crime não tiver chegado a consumar-se, é competente para dele conhecer o tribunal em cuja área se tiver praticado o último acto de execução ou, em caso de punibilidade dos actos preparatórios, o último acto de preparação.
Todavia, considerada a explanação fáctica desenvolvida no libelo acusatório, teremos de lançar mão da regra fixada no artigo 28º do citado diploma.
Fica ali estatuído, sob a epigrafe “Competência determinada por conexão”, que:
Se os processos devessem ser da competência de tribunais com jurisdição em diferentes áreas ou com sede na mesma comarca, é competente para conhecer de todos:
a) O tribunal competente para conhecer do crime a que couber pena mais grave;
b) Em caso de crimes de igual gravidade, o tribunal a cuja ordem o arguido estiver preso ou, havendo vários arguidos presos, aquele à ordem do qual estiver preso o maior número;
c) Se não houver arguidos presos ou o seu número for igual, o tribunal da área onde primeiro tiver havido notícia de qualquer dos crimes.
Vejamos
É que ressuma da análise dos autos que a arguida … foi acusada da prática, como autora material, de um crime de peculato, previsto e punido pelo artigo 375º, nº1 do Código Penal.
Ademais está, igualmente acusada, em co-autoria com outros identificado arguidos, de um crimes de peculato, …, quatro crimes de participação económica em negócio, …, um crime de falsificação de documentos, na forma continuada, … e de um crime de abuso de poder, …
Dentre a panóplia dos ilícitos penais imputados à arguida … o crime mais grave, considerada a moldura penal abstracta, é o crime de peculato, previsto e punido pelo artigo 375º do Código Penal, punível com pena de prisão de 1 a 8 anos.
A conduta típica prevista é, pois, a apropriação ilegítima, em proveito próprio ou de terceiro, quer seja de dinheiro ou de coisa móvel alheia que lhe tenha sido entregue ou esteja na posse ou a que o funcionário aceda, por virtude e em razão das suas funções.
A posse a que atina o tipo legal merece entendimento alargado, cabendo, assim, no seu âmbito, quer a detenção material como a disponibilidade jurídica do bem, isto é, as situações em que a detenção material pertence a outrem mas o agente pode dispor do bem ou conseguir a sua detenção material mediante um acto para o qual tem competência em razão das suas funções.
Razão por que importa que o dinheiro ou a coisa móvel esteja acessível ao agente do crime, necessariamente funcionário, e que tal ocorra por mérito do exercício das suas funções, tendo, pois de descortinar-se uma relação causa entre a posse e o exercício da função desempenhada pelo agente.
Acresce que a acessibilidade ao bem terá, assim, de resultar das funções exercidas pelo agente, como se disse necessariamente funcionário, pelo que é exigência típica uma efectiva detenção material ou disponibilidade jurídica do objecto.[5]
Elemento crucial para a solução do dissenso é fixar-se, então, quando se opera a consumação do crime de peculato.
José António Barreiros em profícua explanação[6] aduz que “o que possa ser a apropriação típica do peculato em sentido estrito, excluindo pois o peculato de uso, é algo que só captaremos com recurso ao muito que já se escreveu a propósito de um crime homologo a este, o abuso de confiança, mas também recorrendo comparativamente ao que define o crime de furto.
No quadro daquele primeiro crime é aceite que a apropriação se verifica quando tiver ocorrido a inversão do titulo da posse e houver actos objectivos demonstrativos de o agente ter incorporado a coisa na sua esfera patrimonial – ficando dono dela – ou ter passado a agir como se dela fosse dono, fazendo-o integrar no seu comercio.”
Num passo subsequente, já no que atina ao crime de peculato, afirma que “o crime incide sobre bem que foi entregue ao agente da infracção, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em virtude das suas funções.
Trata-se, pois, no que àqueles dois casos respeita, de uma situação idêntica àquela outra que é o pressuposto do crime de abuso de confiança.
Nestas circunstâncias a conduta punível é precisamente a inversão da posse, a traição da confiança – e dessa forma o abuso – depositada no funcionário.
Estando em causa bem meramente acessível ao agente do crime, a conduta punível no peculato já é, porem, idêntica à do furto, ocorrendo a apropriação por subtracção.”
Tudo para vir a concluir, de seguida, que “a apropriação que temos vindo a considerar é aquela pela qual o agente faz seu o bem em causa, apreende-o e cativa-o, em suma, para a sua área de domínio, quando a sua esfera jurídica é indevidamente enriquecida com aquilo que não lhe pertencia, se bem que o requisito do enriquecimento - ou o dolo respectivo – seja irrelevante para a realização do crime.
Eis o que está previsto no nº 1 do artigo 375º do Código Penal.”
Voltando ao libelo acusatório, na consideração da factualidade ali descrita, damos conta que se acham imputados à arguida …, ora recorrente, a prática de múltiplas ordens de pagamento, transferência, ou levantamentos em numerário, às diversas agências dos bancos Banco 1..., Banco 2..., e Banco 3... relativamente a contas de que era titular a “Massa Insolvente de …, Unidade de Saúde ….”
Ordens essas que podem ser realizadas presencialmente como através de sistema de homebanking, ou através de cheques, a partir da residência/domicílio profissional da arguida localizado em Oeiras ou de outros zonas da cidade de Lisboa, local da sede das mencionadas agências bancárias aludidas, através das quais a arguida, ora recorrente, passou a agir como se titular fosse das quantias ali depositadas, colocando-as sob a sua área de domínio, dando-lhes, pois, um diverso destino daquele a que estava obrigada e deveria lhe dado.
As mencionadas ordens, com transcorre da acusação publica ocorreram em diversos locais e momentos temporais distintos, não sendo determinável onde ocorreu a consumação do primeiro daqueles ilícitos de peculato.
Isto posto, teremos, então de lançar mão da regra estabelecida no artigo 21º da lei adjectiva penal, que sob a epigrafe “Crime de localização duvidosa ou desconhecida” prescreve:
1 - Se o crime estiver relacionado com áreas diversas e houver dúvidas sobre aquela em que se localiza o elemento relevante para determinação da competência territorial, é competente para dele conhecer o tribunal de qualquer das áreas, preferindo o daquela onde primeiro tiver havido notícia do crime.
2 - Se for desconhecida a localização do elemento relevante, é competente o tribunal da área onde primeiro tiver havido notícia do crime.
Conquanto decorre, igualmente, dos autos que a noticia do crime que deu inicio aos presentes autos ocorreu com a comunicação dos factos pela … Associação … junto do Departamento de Investigação e Acção Penal em Coimbra é escorreito concluir, pois, que a competência territorial para o conhecimento dos presentes autos é do Juízo Central Criminal de Coimbra/J3, nos termos dos artigos 33º, nº 2 da Lei nº 62/2013 de 29/08 e 4º, nº 3 do D.L. nº 49/2014 de 27/03 por força dos artigos 28º, nº 1 e 21º, nº 2 do Código do Processo Penal.
Destarte a decisão recorrida está isenta de crítica, no que concerne à declaração de competência territorial.
Face a todo o exposto, alinhadas as considerações de facto e de direito, terá de improceder a lide recursiva apresentada pela arguida AA.
*
DISPOSITIVO
Por todo o exposto, e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes da 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em:
- Julgar improcedente o recurso interposto pela arguida …e, em consequência, mantêm integralmente a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente que se fixam em 4 UC (quatro unidades de conta), sem prejuízo do gozo de eventual benefício de apoio judiciário.
O presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pela sua relatora, sendo assinado electronicamente pelas signatárias nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2 e 3 do Código do Processo Penal.
Maria José dos Santos de Matos
Helena Lamas
Rosa Pinto
[1] Ou por outro prisma, como menciona o MP, extraindo-se que foram dadas diversas ordens de pagamento, transferência, ou levantamentos em numerário, nas diversas agências bancárias onde estiveram sedeadas contas da Massa Insolvente de A..., Unidade de Saúde de ..., S.A. [dos bancos Banco 1..., Banco 2..., e Banco 3...] e que foi através destas ordens que a arguida passou a dispor sobre as quantias depositadas sobre a sua disponibilidade, fazendo-as suas dando-lhe um destino diverso daquele que lhe deveria dar; mas que tais ordens ocorreram em vários locais, distribuídos no tempo e no espaço, o facto relevante para a determinação da competência territorial sempre será o da notícia do crime, que no caso concreto ocorreu em Coimbra.
[2] Vejam-se, a propósito, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ de 19/10/1995, publicado no D.R. I-A Série de 28/12/1995 e o do mesmo Tribunal de 03/02/1999, publicado no BMJ, 484, 271.
[3] Recursos em Processo Penal, Simas Santos e Leal-Henriques, Rei dos Livros, 7ª edição, 71 a 82.
[4] Decisão singular no âmbito de Conflito Negativo de Competência no Processo nº 4066/22.4T8LRA-A.C1, com data de 06/03/2023, disponível em www.dgsi.pt
[5] Conceição Cunha, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, página 688 e seguintes.
[6] Crime de Peculato, Labirinto das Letras, 2013, página 72 e seguintes.