I - Conexionando-se com a matéria de facto, o princípio in dubio pro reo actua em todas as vertentes fácticas relevantes, quer elas se refiram aos elementos típicos do facto criminalmente ilícito – tipo incriminador, nas duas facetas em que se desdobra: tipo objetivo e tipo subjetivo -, quer se digam respeito aos elementos negativos do tipo, ou causas de justificação, quer ainda a circunstâncias relevantes para a determinação da pena.
II - Em sede de recurso, a demonstração da violação do princípio in dubio pro reo passa pela sua notoriedade, isto é, deve resultar da sentença, de forma clara e inequívoca, que o juiz ficou com dúvidas sobre a verificação de um facto desfavorável ao agente e, não obstante, considerou-o provado ou, inversamente, ficou na dúvida sobre a verificação de determinado facto favorável ao agente e considerou-o não provado.
III - O crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção é um crime material e de dano, sendo elemento integrante do ilícito a obtenção de subsídio ou subvenção, consumando-se o respectivo crime com a disponibilização ou entrega de tal subsídio.
IV - A prestação financeira tem que se traduzir num subsídio ou subvenção, ou seja, numa prestação não acompanhada de contraprestação, segundo os termos normais do mercado, ou em prestação inteiramente reembolsável, sem exigência de juro ou com juro bonificado, e destinar-se, pelo menos em parte, ao desenvolvimento da economia.
V - Um primeiro elemento do tipo, de natureza subjectiva, é a entrega de fundos públicos a uma empresa singular ou colectiva, o segundo, de natureza objectiva, prende-se com o carácter reembolsável ou não dos fundos públicos, que pode ser parcial ou total, com ou sem juros bonificados, e o terceiro, de natureza teleológica, é que o subsídio ou subvenção deve destinar-se a empresa ou unidade produtiva de qualquer domínio da atividade económica.
VI - Neste crime concorrem uma entidade de direito público, prestadora do subsídio ou subvenção, que é enganada e lesada, e uma entidade ou unidade produtiva, beneficiária do subsídio ou subvenção.
VII - A unidade produtiva pode ser uma pessoa singular, uma sociedade civil ou comercial, uma associação de facto, uma sociedade, uma pessoa colectiva e, mesmo, uma pessoa colectiva pública.
VIII - O elemento subjectivo do tipo não exige dolo específico.
IX - O Regulamento (CE, EURATOM) n.º 2988/95 criou um sistema administrativo de protecção dos interesses financeiros da UE, mas expressamente salvaguarda a aplicação do direito penal dos Estados-Membros, não substitui o direito penal nacional, visando antes complementar a protecção dos interesses financeiros da União Europeia através de medidas e sanções administrativas.
X - O pedido de não transcrição da condenação no certificado do registo criminal tem que ser formulado ao tribunal de 1.ª instância, mesmo depois do trânsito em julgado da condenação.
XI - Não é possível solicitar ao tribunal superior a pronúncia sobre uma questão que não se integra no objecto conhecido e decidido pelo tribunal da condenação.
Acordam os Juízes da 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:
I - RELATÓRIO
1. …, foi proferido acórdão, em 10-09-2024 … com o seguinte dispositivo, no que se mostra pertinente aos recursos interpostos e atenta a extensão do acórdão recorrido (transcrição):
«IV - DISPOSITIVO:
Pelo exposto, relativamente à parte criminal, o tribunal julga a pronúncia parcialmente procedente e, em consequência:
(…)
18. Absolve os arguidos … da pronúncia pela da prática de 1 (um) crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, previsto e punido pelo artigo 36º/1-a), 2, 5-a) e 8-b) do Decreto-Lei n.º 28/84 de 20.01, em coautoria com os arguidos …
(…)
34. Absolve o arguido … da pronúncia pela prática de 1 (um) crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, previsto e punido pelo artigo 36º/1-a), 2, 5-a) e 8-b) do Decreto-Lei n.º 28/84 de 20.01, em coautoria com os arguidos …
35. Absolve os arguidos … da pronúncia pela prática (em coautoria) de 1 (um) crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, previsto e punido pelo artigo 36º/1-a), 2, 5-a) e 8-b) do Decreto-Lei n.º 28/84 de 20.01, em coautoria com os arguidos …
(…)
57. Absolvendo-o da circunstância qualificativa/agravante prevista nos n.ºs 2 e 5-a) do mencionado artigo, condena o arguido (33) CC …, pela da prática de 1 (um) crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, previsto e punido pelo artigo 36º/1-a) e 8-b) do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20.01, em coautoria com os arguidos AA …, DD … e EE …, na pena de 2 (dois) anos de prisão, que suspende na sua execução por igual período de tempo, e na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (o que perfaz o montante de 480,00€);
(…)
67. Absolvendo-os da circunstância qualificativa/agravante prevista nos n.ºs 2 e 5-a) do mencionado artigo, condena os arguidos (44) FF … e (45) GG …pela da prática (em coautoria) de 1 (um) crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, previsto e punido pelo artigo 36º/1-a) e 8-b) do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20.01, em coautoria com os arguidos AA …, DD … e EE …, cada um deles, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) de prisão, que suspende na sua execução por igual período de tempo, e na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de 25,00€ (o que perfaz o montante de 1.750,00€);
(…)
72. Absolvendo-a da circunstância qualificativa/agravante prevista nos n.ºs 2 e 5-a) do mencionado artigo, condena a arguida (54) HH …, pela da prática de 1 (um) crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, previsto e punido pelo artigo 36º/1-a) e 8-b) do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20.01, em coautoria com os arguidos BB …, AA …, DD … e EE …, na pena de 3 (três) anos de prisão, que suspende na sua execução por igual período de tempo, e na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (o que perfaz o montante de 600,00€);
73. Absolvendo-o da circunstância qualificativa/agravante prevista nos n.ºs 2 e 5-a) do mencionado artigo, condena o arguido (55) BB …, pela da prática de 2 (dois) crimes de fraude na o(..btenção de subsídio ou subvenção, previstos e punidos pelo artigo 36º/1-a) e 8-b) do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20.01, em coautoria com os arguidos AA …, DD … e EE …, sendo um deles ainda em coautoria com a arguida HH …, nas penas parcelares, respetivamente, de 3 (três) anos de prisão e 100 dias de multa, à taxa diária de 6,00€, e de 2 (dois) anos de prisão e de 80 dias de multa, à taxa diária de 6,00€, e, em cúmulo jurídico, ponderando os factos e a personalidade evidenciada pelo arguido no cometimento dos factos, na pena única de 4 (quatro) anos de prisão, que suspende na sua execução por igual período de tempo, e de 140 dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (o que perfaz o montante de 840,00€);
(…)
77. Absolvendo-o da circunstância qualificativa/agravante prevista nos n.ºs 2 e 5-a) do mencionado artigo, condena o arguido (65) II …, pela da prática de 1 (um) crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, previsto e punido pelo artigo 36º/1-a) e 8-b) do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20.01, em coautoria com os arguidos AA …, DD … e EE …, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, que suspende na sua execução por igual período de tempo, e na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de 15,00€ (o que perfaz o montante de 1.050,00€);
(…)
84. Absolvendo-a da circunstância qualificativa/agravante prevista nos n.ºs 2 e 5-a) do mencionado artigo, condena a arguida (75) JJ …, pela da prática de 1 (um) crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, previsto e punido pelo artigo 36º/1-a) e 8-b) do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20.01, em coautoria com os arguidos AA …, DD … e EE …, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, que suspende na sua execução por igual período de tempo, e na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de 10,00€ (o que perfaz o montante de 700,00€);
(…)
105. Absolvendo-a da circunstância qualificativa/agravante prevista nos n.ºs 2 e 5-a) do mencionado artigo, condena a arguida (119) KK …, pela da prática de 1 (um) crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, previsto e punido pelo artigo 36º/1-a) e 8-b) do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20.01, em coautoria com os arguidos AA …, DD … e EE …, na pena de 3 (três) anos de prisão, que suspende na sua execução por igual período de tempo, e na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (o que perfaz o montante de 600,00€);
(…)
115. Condena os arguidos (138) …, Ld.ª, e (139) AA …, pela da prática de 1 (um) crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, previsto e punido pelo artigo 36º/1-a), 2, 5-a) e 8-b) do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20.01, em coautoria com o arguido LL … e a sociedade por ele representada, nas seguintes penas:
a. A sociedade arguida: na pena de 350 (trezentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 25,00€, o que perfaz o montante global de 8.750,00€, pena esta que, nos termos previstos no artigo 10º do Decreto-Lei n.º 28/84 e do artigo 90º-D do Código Penal, ponderando o tempo entretanto decorrido e o bom comportamento mantido posteriormente, substitui pela caução de boa conduta, no valor de 5.000,00€ (cinco mil euros), pelo prazo de 2 (dois) anos – sendo o arguido AA … solidariamente responsável pelo eventual pagamento de tal pena de multa (cfr. artigo 3º/3 do Decreto-Lei n.º 28/84);
b. O arguido AA …: na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, na condição de o arguido entregar ao Estado, no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado, comprovando-o nos autos, a quantia de 2.500,00€ - sendo a sociedade … solidariamente responsável pelo pagamento de tal quantia (cfr. artigo 2º/3 do Decreto-Lei n.º 28/84)
(…)
*
Relativamente à parte cível, o Tribunal julga o pedido de indemnização civil parcialmente procedente e, em consequência:
119. Absolve os demandados …, Ld.ª, MM … e NN … dos pedidos de indemnização contra eles deduzidos;
(…)
122. Condena o arguido/demandado OO … a restituir ao demandante a quantia ilicitamente obtida de 6.375,60€ (seis mil trezentos e setenta e cinco euros e sessenta cêntimos), acrescida dos juros vencidos e vincendos, até integral pagamento;
123. Condena a arguida/demandada PP … a restituir ao demandante a quantia ilicitamente obtida de 648,34€ (seiscentos e quarenta e oito euros e trinta e quatro cêntimos), acrescida dos juros vencidos e vincendos, até integral pagamento, absolvendo-a do demais peticionado;
124. Condena o arguido/demandado QQ … a restituir ao demandante a quantia ilicitamente obtida de 5.950,20€ (cinco mil novecentos e cinquenta euros e vinte cêntimos), acrescida dos juros vencidos e vincendos, até integral pagamento;
125. Condena a arguida/demandada KK … a restituir ao demandante a quantia ilicitamente obtida de 3.285,88€ (três mil duzentos e oitenta e cinco euros e oitenta e oito cêntimos), acrescida dos juros vencidos e vincendos, até integral pagamento, absolvendo-a do demais peticionado;
126. Condena o arguido/demandado RR … a restituir ao demandante a quantia ilicitamente obtida de 5.184,00€ (cinco mil cento e oitenta e quatro euros), acrescida dos juros vencidos e vincendos, até integral pagamento;»
**
2. Inconformado com o decidido, o assistente …, I. P. … interpôs recurso do acórdão, extraindo das suas alegações, as seguintes conclusões e petitório (transcrição):
«…
B. Salvo melhor opinião, este entendimento poderá não ser correto, uma vez que o Tribunal a quo não apreciou determinados factos que, se tivessem sido levados em consideração, poderiam conduzir a outra decisão relativamente aos arguidos citados, nomeadamente, à sua condenação criminal e cível.
C. Da apreciação da prova documental e testemunhal existente nos autos, podemos considerar que existem as suficientes que permitem a conclusão de que os arguidos forneceram às entidades competentes informações inexatas ou incompletas e relativamente a factos importantes para a concessão do subsídio e seu montante, motivo pelo qual, se mostrando preenchidos os elementos típicos do crime imputado, devem os arguidos ser responsabilizados dos crimes imputados e, consequentemente, indemnizar o assistente IFAP,IP.
C. No que toca em concreto ao pedido de indemnização civil do assistente, existe uma responsabilidade dos arguidos em ressarcir o …, IP, pois a incriminação nos termos do Artº 36º da Lei 28/84, não depende tipicamente do enriquecimento de alguém à custa do património público, pois este preceito tutela em primeira linha a economia, mais concretamente, a razão pela qual devem ser punidos todos aqueles que singularmente ou comparticipando, põem em causa com a sua conduta o bem jurídico protegido.
D. Na situação em apreço, encontra-se preenchido o elemento objetivo no que concerne às alíneas a) e c) do nº 1 do mencionado Artº 36º, uma vez que o subsídio foi concedido com os montantes referidos nos autos, após os arguidos terem fornecido informações inexatas, nomeadamente, remetendo para o IFAP, I.P. faturas e recibos comprovativos de que as despesas que realizou.
E. Faturas e recibos foram determinantes para que o …, I.P. lhe pagasse um subsídio que de outra forma este não teria direito, ou seja, com montantes inflacionados-
F. Ora, nos termos do Artº 39º do DL nº 28/84, “além das penas previstas nos artigos 36.º e 37.º, o Tribunal condenará sempre na total restituição das quantias ilicitamente obtidas (...).”
…
H. Na situação em apreço encontram-se preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual encontram-se consagrados no Artº 483° do CCiv, pois:
…
I. No que concerne aos danos, cumpre ter presente que em virtude da conduta dos arguidos, o …, I.P. pagou um subsídio com um valor que de outra forma não teria sido pago, sofrendo nessa medida um dano.
J. Finalmente, conforme ficou anteriormente demonstrado, a conduta voluntária, ilícita, culposa e causadora dos danos sofridos pelo …, I.P foi praticada pelos arguidos e consubstancia a prática de um crime, estando assim verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil, previstos nos Artºs 483º, 562 °e 563º do CCiv.
K. Desta forma, é solidária a responsabilidade dos arguidos pelos danos causados …
L. Salienta-se que, a obrigação de restituição é uma sanção civil, que tem por finalidade a reconstituição da situação de facto que existia antes da prática do ilícito.
…
P. No que toca aos valores constantes do acórdão e que foram dados como provados em sede de pedido de indeminização civil, existe uma discrepância entre os valores de divida indicados no acórdão e os constantes da base de dados do IFAP, IP.
Q. Com efeito, em 14/03/2024, o assistente … apresentou um pedido de indemnização atualizado, mantendo-o apenas contra quem ainda era devedor do Instituto naquela data e indicou os montantes em divida naquela data.
R. Deste modo, afigura-se que os montantes do pedido de indemnização civil deverão ser os constantes do pedido de indemnização civil atualizado, conforme requerimento, de 14/03/204, e serem estes os tidos em conta para efeitos de condenação em sede de responsabilidade civil.
Termos em que, e com o mui douto suprimento de V. Exas, deve o presente recurso ser aceite e ser dado provimento ao mesmo assim se fazendo a costumada Justiça!»
3. O Ministério Público respondeu a este recurso …[1]:
…
4. O arguido MM … respondeu a este recurso …
5. Inconformados com a condenação de que foram objeto, os arguidos “… Lda” e AA … interpuseram recurso do acórdão, extraindo das suas alegações, as seguintes conclusões e petitório (transcrição):
«A. O recurso é limitado à prova dos factos e aplicação do direito referentes ao processo de candidatura identificado com a referência ...6 [PA ...00] – …, enquadrado no subprograma 1 do Proder – promoção da competitividade, medida 1.1. Inovação e Desenvolvimento Empresarial, ação 1.1.1. – Modernização e Capacitação de Empresas; excluindo-se, expressamente, deste recurso as decisões e consequências relativas às absolvições nos demais crimes sob acusação em concurso real.
B. Neste segmento, o recurso incide sobre matéria de facto e de direito.
C. Sem prejuízo, o recurso inicia-se com a invocação de nulidade por vício de falta de fundamentação, nomeadamente por i) omissão do exame crítico do depoimento da testemunha II … e ii) omissão de comunicação de alteração não substancial dos factos.
D. Na falta de fundamentação destaca-se a completa ausência de motivação quanto à alegada prova da existência de um acordo entre o arguido LL … e os recorrentes … para a atribuição de um desconto ilícito na venda de um trator Landini de 135 cavalos, em Dezembro de 2010.
E. A ausência de prova quanto a este facto é confirmada pelas declarações do arguido LL … que no âmbito da confissão que declarou nunca afirmou ter estabelecido qualquer acordo com o recorrente AA … quanto à venda do referido trator, declarando ter negociado sempre e exclusivamente com a testemunha II …
F. Em sentido convergente, esta testemunha afirmou que não houve qualquer intervenção do recorrente …
…
H. Por outro lado, o Acórdão denota uma completa ausência de exame crítico quanto ao depoimento da testemunha II …
I. Este juízo é insuficiente para o exame que a lei impõe, justificando-se a correlação com outros meios de prova para aferir da correção do declarado pela testemunha que não pode ser absolutamente desvalorizada devido à sua condição profissional.
J. O Tribunal a Quo deu como provado um alegado desconto em numerário na venda do trator Landini ao arguido LL …, mas num valor que não tem qualquer suporte no despacho de pronúncia.
…
N. O valor em causa é um facto nuclear na acusação e decisão punitiva…
O. Impunha o artigo 358.º do CPP, sob pena de nulidade do Acórdão, que a alteração dos factos fosse comunicada às recorrentes para sobre os mesmos se pronunciarem e, eventualmente, requererem a produção de prova complementar.
P. O incumprimento do preceito legal determina a nulidade do segmento condenatório, conforme disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP.
Q. Acrescem outros erros sobre o julgamento na matéria de facto.
R. Assim, foram erroneamente considerados provados os factos narrados nos pontos 1808, 1809, 1812, 1813, 1814 e 1818 da pronúncia.
…
6. O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu a este recurso …
7. Inconformado com a condenação de que foi objeto, o arguido CC … interpôs recurso do acórdão, extraindo das suas alegações, as seguintes conclusões e petitório (transcrição):
«A) Não pode considerar-se provado que o recorrente tenha atuado conforme o alegadamente “planeado” pelos restantes coarguidos e arguidos, …
B) Também não pode ser considerado provado que as notas de desconto tenham sido “assinadas” pelo recorrente. …
C) Não pode ainda considerar-se provado que o recorrente tenha apresentado ao … os elementos do projeto “desacompanhados das referidas notas de desconto, os correspondentes pedidos de pagamento, com o propósito conseguido de receber uma percentagem de ajuda superior ao que era efetivamente devida.” …
D) Também não pode ser considerado provado que o recorrente “441. Sabia, assim, que estava, desta forma, a fornecer às autoridades competentes informações necessariamente falsas e inexatas quanto ao real preço de aquisição dos equipamentos e, portanto, sobre factos de que dependia a elegibilidade do investimento” …
8. O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu a este recurso …
9. Inconformada com a condenação de que foi objeto, a arguida KK … interpôs recurso do acórdão, extraindo das suas alegações, as seguintes conclusões e petitório (transcrição):
«1.ª – A arguida aqui recorrente, …, considera que foram incorrectamente julgados os seguintes pontos concretos da matéria de facto:
- a factualidade ínsita nos números 1554, 1555 (1ª parte), 1558, 1560, 1561, 1562, 1566, 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016 e 2017 (em tudo o que diz respeito à arguida KK) do douto acórdão recorrido, devendo a mesma ser dada como não provada.
2ª – Impunham decisão diversa da recorrida as concretas provas documentais enunciadas nos pontos 1551., 1553.1 e 2, 1555., 1556., 1557 e 1558, nomeadamente:
…
10. O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu a este recurso …
11. Inconformada com a condenação de que foi objeto, a arguida JJ …, interpôs recurso do acórdão, extraindo das suas alegações, as seguintes conclusões e petitório (transcrição):
«Em conclusão:
I – O Tribunal “a quo” fez errada aplicação do direito por isso não pode a recorrente concordar com o acórdão em apreço, nem com a fundamentação nela invocada;
II – O acórdão recorrido violou, entre outros, os art. 40º nº2, 69º, 71º e 292º, todos do Código penal.
III – Concluímos, pelas exposições feitas nos artigos 8º a 11º, padecer a douta sentença recorrida do vício a que alude o artigo 410º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal, isto é, há insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada. De facto, o Tribunal “ad quo” deveria ter investigado mais aprofundadamente a matéria de facto relevante que se extrai dos próprios autos e ainda toda a matéria vertida em audiência de discussão e julgamento.
Não o tendo feito a decisão proferida não poderá ser aquela decisão justa que deveria ter sido proferida.
IV – Violou-se o disposto no artigo 410º nº2 alíneas a) do Código de Processo Penal e os artigos 32º e 266º da Constituição da República Portuguesa e 343º, nº 2 do Código de Processo Penal.
…
12. O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu a este recurso …
13. Inconformados com a condenação de que foram objeto, os arguidos GG … e FF …, interpuseram recurso do acórdão, extraindo das suas alegações, as seguintes conclusões e petitório (transcrição):
«Em conclusão:
I – O Tribunal “a quo” fez errada aplicação do Direito, por isso não podem os recorrentes concordar com o acórdão em apreço, nem com a fundamentação nela invocada.
II – O acórdão recorrido violou entre outros os art. 40º nº2, 69º, 71º e 292º, todos do Código Penal.
III – Concluímos, pelas exposições feitas nos artigos 8º a 11º, padecer a douta sentença recorrida do vício a que alude o artigo 410º, n.º 2, alínea a) do Código de processo Penal, isto é, há insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada. De facto, o Tribunal “ad quo” deveria ter investigado mais aprofundadamente a matéria de facto relevante que se extrai dos próprios autos e ainda toda a matéria vertida em audiência de discussão e julgamento.
Não o tendo feito a decisão proferida não poderá ser aquela decisão justa que deveria ter sido proferida.
IV – Violou-se o disposto no artigo 410º, n.º 2, alíneas a) do código de Processo Penal e os artigos 32º e 266º da Constituição da República Portuguesa e 343º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
…
14. O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu a este recurso …
15. Inconformados com a condenação de que foram objeto, os arguidos II …, BB … e HH …, interpuseram recurso do acórdão, extraindo das suas alegações, as seguintes conclusões e petitório (transcrição):
«…
3. Foram os arguidos condenados, de acordo com o Acórdão que antecede: …
4. É desta Decisão que apresentam recurso, de facto e direito, infra.
5. O caso dos Autos não é passe o plebeísmo de “canetagem” pura e dura, pelo contrário os mais de uma centena de arguidos todos eram realmente agricultores e todos adquiriram realmente equipamentos agrícolas, cf. factos provados.
6. E, insista-se, nenhum dos arguidos contratou com empresa de reputação duvidosa pelo contrário tratou com empresa insuspeita, credível ao ponto de ser legal representante na Guarda da marca n.º 1 em equipamentos agrícolas – percute.
7. Vejamos, na linha da exculpação: Os funcionários vendedores … foram absolvidos por não terem culpa.
8. Aliás, vale a pena ressaltar o arrimo do Ministério Público constante da Acusação, especificamente quando tenta desculpar – como desculpa – os funcionários vendedores das empresas: «não é de todo evidente, para quem atua em obediência e inserido num procedimento superiormente instituído, que a concretização daqueles descontos poderia conduzir à prática de um crime.»
9. – esta consideração só pode valer com as devidas adaptações para os agricultores: também não é de todo evidente, para quem atua diante de empresas de alto prestigio e inserido num procedimento superiormente instituído, que a concretização daqueles descontos poderia conduzir à prática de um crime. Vejamos,
10. Culpabilidade: para esta é necessária a consciência da ilicitude dos factos objetivamente ilícitos – e aqui importará ponderar que in casu o domínio da organização era das companhias a forma como documentavam o negocio era decisão das companhias os agricultores quando se dirigiam à empresa esbarravam num esquema prêt-à-porter "pronto a vestir", pronto a levar, apresentado por companhias que gozam de prestígio mundial no caso da John Deere, arguida B..., líder mundial na venda de equipamentos agrícolas, cf. fatos provados 1 a 35.
…
16. O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu a este recurso …
17. O Ministério Público, na sua resposta, para além, dos assinalados aspetos relativos a cada um dos recursos, incluiu um conjunto de conclusões que se reportam, de forma transversal, ao teor de todos os recursos …
18. Neste tribunal da Relação, a Exma. Senhora Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer …
19. Não foi apresentada qualquer resposta a este parecer e, colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência, dela procedendo a decisão colegial que segue.
II – QUESTÕES PRÉVIAS.
A) – Da junção de documentos.
O Recorrente … para prova de que o acórdão recorrido contém imprecisão ao nível dos valores relativos à condenação na parte cível, juntou com o seu recurso um conjunto de documentos (5).
Apesar da sua extensão e complexidade, consultados os autos, concretamente os requerimentos mais relevantes juntos aos autos pelo Assistente e relativos a alterações dos valores em dívida por banda dos demandados civis, constatamos que estes documentos agora juntos aos autos constituem uma inovação, não sendo, como ocorre com outro dos recorrentes, mera junção ao recurso de documentos que já se encontram nos autos apenas com o intuito de, em face da mencionada extensão, facilitar a compreensão do recurso.
Tal junção de documentos não observou a disciplina constante do artigo 165º, nº 1, do Código de Processo Penal.
Como é sabido, “a missão do tribunal de recurso é a de apreciar se uma questão decidida pelo tribunal, foi bem ou mal decidida e extrair daí as consequências atinentes; o tribunal de recurso não pode pronunciar-se sobre questão nova, salvo se isso for cometido oficiosamente pela lei”[2]
Ora, “se a Relação atendesse ao conteúdo do documento agora junto, não formularia um juízo sobre a justeza da decisão recorrida, considerando os elementos ao dispor do tribunal a quo, mas estaria a proferir decisão nova sobre a questão.”[3]
Por isso, aqueles documentos, cuja junção é manifestamente extemporânea, não podem ser valorados em sede de recurso.
…[4] , …
Aliás, é o que claramente se extrai do artigo 165º do Código de Processo Penal, segundo o qual “O documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência”, fases essas que, obviamente, ocorrem durante a tramitação do processo em 1ª instância.
Pelo que, posteriormente a essas fases, apenas se pode aferir se a decisão de 1ª instância é ou não bem fundada, o que deverá ser feito com base nos mesmos elementos de prova que então estavam disponíveis.
Nestas circunstâncias, torna-se manifesto e evidente que, nos recursos ordinários, como o presente, não é possível a junção de documentos ou de outras provas, se bem que não se ignore existência de alguma Jurisprudência e Doutrina recentes no sentido de que tal pode ser possível no caso de ter sido requerida a renovação da prova nos termos do disposto no artigo 430º do Código de Processo Penal.
Com efeito, e indo de encontro a também recente Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, existe quem entenda que não está excluída « (…) a renovação de um momento de produção de prova para conhecimento de factos ou meios de prova desconhecidos pela decisão recorrida, na medida em que a remissão do nº5 do artigo 430º para as regras gerais do julgamento abarca quer o poder de o tribunal determinar “oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da acusa” (artigo 340º nº1), quer o de autorizar a “produção de meios de prova supervenientes quando tal se revelar indispensável para a boa decisão da causa” posteriormente à etapa probatória normal da audiência (artigo 360º nº4, sem esquecer os artigos 369º nº2 e 371º)»[5]
Neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 14-07-2020 onde se pode ler:
“O tribunal ad quem não pode apreciar elementos de prova juntos na fase do recurso (ou até em momento posterior ao da interposição do recurso) e que o tribunal a quo não tenha apreciado para fundamentar a respetiva decisão (a não ser, admite-se, em hipóteses perfeitamente excecionais, de realização de audiência de julgamento no Tribunal da Relação, com renovação de prova, e com apresentação de novos meios de prova que suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação, e, obviamente, desde que tais meios de prova tenham sido conhecidos do arguido apenas em momento posterior ao do julgamento no tribunal de primeira instância - mas ainda em tempo de serem invocados no recurso da sentença”.
Porém, não cabe tomar partido na controvérsia em causa, já que, no caso dos autos, não foi requerida a renovação da prova nos termos do disposto no artigo 430º do Código de Processo Penal.
…
B) – Da correção de manifesto lapso de escrita.
A recorrente JJ …, na parte do recurso em que refere as razões de discordância relativamente às penas que lhe foram aplicadas, sem daí retirar qualquer consequência, afirma que não consta dos factos dados como provados que é delinquente primária, não obstante tal resultar de prova documental junta aos autos.
Alertados para esta circunstância (atenta a extensão e complexidade do acórdão em crise) verificamos que, efetivamente, na parte da matéria de facto relativa às condições pessoais da arguida em causa, não consta qualquer referência aos seus antecedentes criminais, ou à ausência deles – Pontos 1073.1. a 1073.7. dos factos provados.
Porém, constatamos que, nos pontos seguintes da matéria de facto provada, relativos às condições pessoais do seu cônjuge, …, constam no final da enumeração de tais factos os pontos 1073.15. [Os arguidos já pagaram os valores reclamados pelo IFAP] e 1073.16. [Não tem antecedentes criminais].
Mais constatamos que, aquando da determinação da medida das penas a aplicar à arguida …, consta do acórdão que “ponderando, de forma mais particular, a data da prática dos factos (ano 2013), o tempo entretanto decorrido, a ausência de antecedentes criminais …”
É manifesto, assim, o lapso de escrita, se tivermos em conta o assinalado.
Na verdade, resulta muito claro que os pontos 1073.15. e 1073.16. se reportam a ambos os elementos do casal, o que resulta do uso do plural no primeiro, tendo o Tribunal feito constar, por manifesto lapso, no segundo a formulação no singular, quando o que, manifestamente pretendia era dizer “Não têm antecedentes criminais”.
E se dúvidas houvesse, que não há, a verdade é que o Tribunal deu como adquirido que teria feito constar que a arguida não tinha antecedentes criminais pois, de outra forma, não o afirmaria aquando da determinação da medida concreta das penas a aplicar-lhe.
O lapso de escrita em causa é suscetível de correção nos termos do disposto no artigo 380º do Código de Processo Penal.
Com efeito, estabelece o preceito em causa que:
“1 - O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correção da sentença quando:
a) Fora dos casos previstos no artigo anterior, não tiver sido observado ou não tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374.º;
b) A sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.
2 - Se já tiver subido recurso da sentença, a correcção é feita, quando possível, pelo tribunal competente para conhecer do recurso.
3 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável aos restantes actos decisórios previstos no artigo 97.º”
Portanto, o legislador, por considerar não estarem em causa elementos essenciais da decisão, atribuiu ao Tribunal de recurso (nº2) a possibilidade de proceder à correção da sentença, quando estejam em causa omissões relativas aos requisitos da mesma descritos no artigo 374º (com exclusão das omissões que, nos termos do artigo 379º configuram nulidades da mesma) e bem assim, a correção de lapsos de escrita cuja eliminação não importe modificação essencial.
Assim, está este Tribunal de recurso legitimado a proceder à correção que se impõe, corrigindo o lapso manifesto de escrita nos termos assinalados, ou seja, onde no ponto 1073.16. consta a expressão “Não tem antecedentes criminais” deve constar a mesma expressão no plural, isto é, “Não têm antecedentes criminais”.
C) – Da “retificação dos valores constantes do acórdão no que toca ao pedido de indemnização civil apresentado pelo recorrente …
Em sede de recurso, vem o recorrente requerer a “retificação dos valores constantes do acórdão no que toca ao pedido de indemnização civil apresentado”, …
Em sede de despacho de recebimento do recurso, por se tratar de pedido de retificação de lapso do acórdão, que só é admissível ao abrigo do disposto no artigo 380º do Código de Processo Penal, o Tribunal a quo pronunciou-se pela seguinte forma:
“Da retificação do acórdão.
…
Relativamente a esta questão, com o devido respeito, deve dizer-se que o acórdão se encontra devidamente fundamentado e que qualquer discordância apenas poderia motivar a interposição de recurso – encontrando-se esgotado o poder jurisdicional desta instância.
Em todo o caso, como resulta do mesmo, o que tribunal tentou fazer ao longo de toda a fase processual do julgamento (não durante o julgamento) foi o saneamento do processo, nomeadamente em sede cível, tudo como os autos documentam nos sucessivos despachos proferidos na fase do julgamento e antes da audiência de julgamento.
Nesta sede, tendo o … acatado os vários convites que lhe foram dirigidos, em momento algum o … formalizou uma alteração do pedido, isto é, dos valores peticionados em termos de indemnização civil, em requerimento articulado com fundamentação da alteração do pedido. …
Como o acórdão dá conta, o tribunal só pode atender aos valores alegadamente em dívida na base de dados nos casos em que os mesmos eram inferiores aos peticionados (por estar em causa, de alguma forma, uma admissão/confissão do recebimento total/parcial do valor peticionado). Nos casos em que a base de dados regista valores superiores aos peticionados, como é manifesto, não tendo havido um requerimento a formalizar a alteração dos pedidos, também o tribunal não encontrou qualquer justificação para o facto de o pedido de indemnização civil se encontrar fundamentado em determinados valores e a alegada base de dados dar conta de valores em dívida muito superiores.
Tudo isto se encontra escalpelizado também no acórdão proferido e em particular em sede de direito, não existindo qualquer lapso retificável, mas apenas discordância relativamente a decisão proferida. (sublinhado nosso)
….”
O decidido pelo Tribunal a quo merce a nossa integral concordância.
Com efeito, estabelece o artigo 380º do Código de Processo Penal que:
“1 - O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correção da sentença quando:
a) Fora dos casos previstos no artigo anterior, não tiver sido observado ou não tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374.º;
b) A sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.
2 - Se já tiver subido recurso da sentença, a correcção é feita, quando possível, pelo tribunal competente para conhecer do recurso.
3 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável aos restantes actos decisórios previstos no artigo 97.º”
Portanto, o legislador, por considerar não estarem em causa elementos essenciais da decisão, atribuiu ao Tribunal de recurso (nº2) a possibilidade de proceder à correção da sentença, quando estejam em causa omissões relativas aos requisitos da mesma descritos no artigo 374º (com exclusão das omissões que, nos termos do artigo 379º configuram nulidades da mesma) e bem assim, a correção de lapsos de escrita cuja eliminação não importe modificação essencial.
Ora, o que o recorrente vem pôr em causa, pese embora refira que requer uma mera retificação de valores, não se acomoda, por nenhuma forma, a qualquer erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade da sentença cuja eliminação não importe modificação essencial.
Na verdade, vem indicar valores em dívida completamente diversos daqueles que, no seu requerimento de 14-03-2024 indicou e que o Tribunal teve em consideração no julgamento e na decisão final, conforme despacho que então recaiu sobre aquele requerimento, datado de 04-04-2024 …
É cristalino que o Tribunal a quo, com base naquilo que foi a informação prestada pelo assistente (após sucessivos convites ao esclarecimento) e o contraditório que a mesma conheceu, fixou (sem qualquer reação por parte do assistente) aquele que seria o objeto do julgamento no que ao pedido de indemnização civil concerne.
A final, em sede de acórdão, teve em consideração os valores então indicados pelo assistente e decidiu como decidiu,
…
O Tribunal a quo, partindo dos valores peticionados inicialmente, dos valores indicados pelo assistente em 14-03-2024 e conjugando os factos provados com a lei aplicável, desenvolve um raciocínio cristalino sobre os valores a que chegou como sendo os que os demandados em causa deveriam ser condenados a restituir, decidindo em conformidade.
Decidiu considerando que, analisada a prova produzida, os valores indicados pelo Assistente “ficaram por demonstrar”; “são conclusivos”; “nada têm a ver com o valor da fraude em causa”; “a sua alegação tem falta de clareza” e que num dos casos, no requerimento de 14-03-2024 aponta para um valor superior ao formulado inicialmente, sem que tenha existido qualquer pedido formal de alteração do mesmo.
O raciocínio desenvolvido pelo Tribunal a quo não contém qualquer erro de cálculo ou de escrita e é exaustivo e claro.
O assistente não concordará com o decidido, mas o que lhe está vedado é alegar um inexistente erro de cálculo ou de escrita para manifestar essa sua discordância.
Aliás, do requerimento que apreciamos resulta alguma falta de clareza, para não dizer mais, pois que, ali se afirma que o Tribunal decidiu sem ter tido em conta o teor do requerimento formulado em 14-03-2024, apresentando valores todos eles diversos dos que ali constavam, sendo um deles, até, muito superior.
Sugere que o Tribunal se equivocou nos valores por não considerar os indicados em 14-03-2024 sugerindo que esses valores são os que agora indica, o que, como vimos, não corresponde à verdade, bastando compará-los.
A conduta processual do assistente não se pautou pela rapidez nem pela clareza, conforme assinalado pelo Tribunal a quo o que suscitou, até, a apreciação por parte do mesmo da questão colocada por alguns dos demandados de uma eventual condenação por litigância de má fé, tendo o Tribunal entendido não haver razões para tal (Cfr. fls.1506 a 1510 do acórdão).
…
III - FUNDAMENTAÇÃO
1. Delimitação do objeto dos recursos.
…
Atentas as conclusões formuladas pelos recorrentes, as questões a decidir são as seguintes, tendo em consideração a sua ordem de precedência:
1 - Nulidade do acórdão por falta de fundamentação nos termos do disposto no artigo 379º nº1 alínea a) do Código de Processo Penal
…
2 - Nulidade do acórdão por condenação por factos diversos dos constantes da pronúncia nos termos do disposto no artigo 397º nº1 alínea b) Código de Processo Penal
…
3 - Vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – Artigo 410º nº2 alínea a) do Código de Processo Penal
…
4 - Erro de julgamento
…
5 – Violação dos princípios de presunção de inocência e do “in dúbio pro reo”
…
6 - Errada qualificação jurídica dos factos
…
7 – Prescrição do procedimento visando a restituição de ajudas comunitárias irregulares.
…
8 - Medida das penas aplicadas
…
9 – Não transcrição da condenação no Certificado de Registo Criminal.
…
2. Apreciação.
2. 1. Da decisão recorrida.
Atento o objeto dos recursos quer em matéria de facto, quer em matéria de direito, importa ter presente o teor do acórdão prolatado nos autos, na parte atinente aos mesmos, excluindo os segmentos que, de todo, não estão em causa e tendo em conta que se trata de decisão com 1561 páginas (transcrição):
«II – Saneamento.
…[6].
…
…[7].
*
…
*
III - Fundamentação.
A) Factos provados.
O tribunal, discutida a causa e com relevo para a decisão, julga provados os seguintes factos:
…
2.2. - Apreciação dos recursos.
Os recursos interpostos do acórdão serão apreciados, por facilidade de exposição, por referência às questões elencadas em II.1. [Delimitação do objeto dos recursos], de acordo com a ordem de precedência estabelecida, apreciando, depois, por referência a cada uma dessas questões os argumentos aduzidos nos recursos que a cada uma delas fazem referência.
2.2.1. - Da nulidade do acórdão por falta de fundamentação nos termos do disposto no artigo 379º nº1 alínea a) do Código de Processo Penal.
…
No que concerne aos requisitos da sentença, preceitua o artigo 374º, nº2, do Código de Processo Penal, que:
“Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
Por seu turno, prescreve o artigo 379º, nº1, alínea a), do Código de Processo Penal [na parte que ora releva]:
“1 - É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no nº2 e na alínea b) do nº3 do artigo 374º […]”.
A Lei ordinária portuguesa, como corolário do disposto no artigo 205º, nº1 da Constituição da República Portuguesa, consagra expressamente o dever de fundamentação das decisões finais, sentenças e acórdãos – artigo 374º, nº2 do Código de Processo Penal –, bem como aponta a fundamentação como requisito essencial na apreciação da prova produzida em audiência – artigo 365º, nº2 -, e na escolha e determinação da sanção a aplicar ao arguido – artigo 375º, nº1 do mesmo código.
O Supremo Tribunal de Justiça, em diversas decisões[8], tem consubstanciado o dever de fundamentação da sentença do seguinte modo: para além da indicação dos factos provados e não provados e da indicação dos meios de prova, a sentença deve conter os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituam o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados na audiência .
Paulo Saragoça da Matta[9] entende que a fundamentação das sentenças consistirá:
«(a) num elenco das provas carreadas para o processo;
(b) numa análise crítica e racional dos motivos que levaram a conferir relevância a determinadas provas e a negar importância a outras;
(c) numa concatenação racional e lógica das provas relevantes e dos factos investigados (o que permitirá arrolar e arrumar lógica e metodologicamente os factos provados e não provados); e,
(d) numa apreciação dos factos considerados assentes à luz do direito vigente»
Pertinente também, o entendimento que sobre a fundamentação tem José Mouraz Lopes[10], nos seguintes termos:
«No processo de elaboração da fundamentação da decisão o procedimento tem de fundar-se na fundamentação lógica e racional do raciocínio do juiz, em função da prova que foi produzida e do modo como se chegou à decisão tomada. Na fundamentação assume especial importância a demostração da prova que sustenta os factos.
Deverá sempre explicar-se o porquê de determinada valoração, e porque não outra. O que levou o tribunal a decidir-se por esta ou aquela opção de prova através de um exame crítico das provas produzidas».
Por outro lado, a motivação não tem de ser extensa, exaustiva e pormenorizada.
Basta que seja razoável, aceitável, do ponto de vista do normal e da suficiência, o que sucederá sempre que do seu conteúdo se consiga extrair as razões subjacentes à decisão tomada pelo julgador.
Ainda neste sentido, por esclarecedor, cita-se o acórdão desta Relação de Coimbra de 04-05-2022[11]:
“III - As exigências de fundamentação deverão estar em harmonia com a função prática por ela prosseguida, visando uma multiplicidade de finalidades reclamadas por uma perspectiva moderna e humanista da justiça penal.
III - Assim, e desde logo, o dever de fundamentação assegura a transparência do processo de decisão, vertida na correspondência entre a prova produzida e a decisão de facto, ao obrigar a que esta última tenha suporte na análise e valoração daquilo que foi levado ao conhecimento do julgador em audiência.
IV - Assegura, por outro lado, uma função de convencimento, garantindo que ao(s) destinatário(s) da decisão penal, como aos demais sujeitos processuais e à comunidade jurídica em geral, é facultada a possibilidade de se inteirarem não apenas da decisão que incidiu sobre o caso concreto, mas das razões que a ela conduziram.
V - Cumpre ainda uma função de segurança do sistema de prova, permitindo que em caso de discordância dos interessados relativamente às conclusões retiradas da prova, o tribunal de recurso se pronuncie sobre o bem-fundado da decisão, inteirando-se do iter lógico-racional prosseguido pelo julgador, aferindo da sua razoabilidade e correspondência com as regras da experiência comum.
VI - Desempenha, por fim, uma função de credibilização dos tribunais e da própria justiça, ao assegurar que a decisão penal não é fruto de mera arbitrariedade discricionária, antes resultando de uma ponderada avaliação e análise da prova.”
O Código de Processo Penal estabelece, no seu artigo 379º, um regime específico das nulidades da sentença, estabelecendo no seu nº2 que: “As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n. º4 do artigo 414.º”
A propósito deste preceito legal, refere o Juiz Conselheiro Oliveira Mendes[12], “Quanto ao seu conhecimento pelo tribunal de recurso, a lei, mediante a alteração introduzida em 1998, com o aditamento do nº2, estabelece que «as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso», o que não pode deixar de significar que o tribunal de recurso, independentemente de arguição, está obrigado a conhecê-las. A letra da lei é unívoca: «as nulidades da sentença devem ser…conhecidas em recurso».
(…) “Aliás, nem poderia ser de outra forma, sob pena de o tribunal de recurso, na ausência de arguição, ter de confirmar sentenças sem qualquer fundamentação, violadoras do princípio do acusatório e mesmo sem dispositivo. A não serem as nulidades da sentença suscetíveis de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso, passaríamos a ter decisões, quer absolutórias, quer condenatórias, eivadas de vícios e de anomias, algumas inexequíveis, apesar de sindicadas por tribunal superior”.
Assim, cabe analisar (quer porque foi arguida pelos identificados recorrentes, quer por ser nulidade de conhecimento oficioso) se ocorre a apontada nulidade de falta de fundamentação.
…
E dizemos caótica, porque, no mesmo segmento, a recorrente faz apelo ao disposto no artigo 118º do Código de Processo Penal que, como se sabe, consagra o princípio da legalidade no que tange às nulidades processuais e que nada tem a ver com a específica nulidade da sentença a que alude o artigo 379º do mesmo código, e bem assim, à nulidade da sentença a que alude a alínea c) do nº1 do artigo 379º (omissão ou excesso de pronúncia) nulidade a que, em concreto, não faz nenhuma referência e, finalmente, ao vício a que se reporta o artigo 410º nº2 alínea a) do Código de Processo Penal (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada) omitindo, por completo, o que pretende com tal referência.
…
Vejamos.
Analisando a extensa fundamentação da decisão sobre a matéria de facto provada e não provada constante do acórdão em recurso, logo se conclui que as apontadas alegações dos recorrentes não são suscetíveis de se acomodar à invocada nulidade.
Com efeito, o acórdão em recurso, no que à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto concerne, para além de cumprir todas as exigências de fundamentação nos termos explicitados supra, traduz um trabalho exaustivo, claro e minucioso, a todos os títulos de louvar.
…
Quanto aos factos.
O Tribunal a quo depois de elencar todos os factos provados e não provados, procedendo a uma sistematização dos mesmos para melhor compreensão, dada a sua extensão, passou a evidenciar as razões dessa sua decisão, o que faz, e nunca é demais dizê-lo, de forma exemplar.
Começa por indicar toda a prova documental de que se socorreu, situando-a nos autos com os seus muitos apensos e explicitando relativamente a cada documento o respetivo valor probatório e a sua relevância para a decisão sobre a matéria de facto provada e não provada, permitindo a sua consulta e contribuindo, assim, decisivamente, para o esclarecimento dos destinatários da decisão.
Depois, faz um exaustivo percurso pelas declarações prestadas pelos arguidos (36) fazendo constar uma súmula das mesmas referindo, para além do mais, as explicações que deram quando confrontados com documentos constantes dos autos.
Não escamoteou, antes apreciou (e fundamentou essa sua apreciação na Lei aplicável e na Jurisprudência), a validade e força probatória de declarações prestadas por quatro arguidos em sede de inquérito e cuja leitura em audiência foi autorizada pelo Tribunal, esclarecendo em que medida as mesmas foram tidas em consideração, descrevendo, em relação a cada um deles, por súmula, quais os segmentos das mesmas declarações que, de acordo com a lei, foram valorados.
Prossegue, em estrito cumprimento do mencionado dever de fundamentação, enumerando as testemunhas que prestaram depoimento (74), referindo, em relação a cada uma delas, a sua razão de ciência e fazendo uma súmula de todos os depoimentos, evidenciando o que cada uma respondeu quando questionada sobre um qualquer específico aspeto ou quando confrontada com o teor de documentos constantes dos autos, e terminando por esclarecer em que medida cada um desses depoimentos relevou para a prova de concretos factos ou grupo de factos.
Mais relatou em que circunstâncias alguns depoimentos prestados em sede de inquérito foram lidos em audiência, reproduzindo o respetivo teor e descrevendo as explicações dadas pelas testemunhas quando confrontadas com os mesmos e acabando por analisar criticamente, uns e outros depoimentos, evidenciando as razões pelas quais os valorou e em que medida, tudo com recurso à confrontação com outros depoimentos e declarações, com as regras de experiência comum e de acordo com aquilo que a oralidade e imediação lhe permitiram concluir.
Mas não se fica por aqui o labor do Tribunal a quo de esclarecimento dos fundamentos da sua decisão sobre a matéria de facto.
Procede a uma minuciosa análise crítica de toda a prova produzida, com recurso às regras de experiência comum e à sua livre convicção, o que faz pormenorizadamente por blocos de factos, a saber:
- Enquadramento legal e contextualização da atuação dos arguidos [§ 1º - Capítulo 1º dos factos imputados na acusação/pronúncia].
- Factos imputados aos arguidos e julgados provados e não provados, relativos ao plano e modo de atuação da arguida B... e seus gerentes e ao modo de atuação de cada um dos arguidos/agricultores/promotores que lhe adquiriram equipamentos [Capítulos 2º (§2º) e 3º (§3º)];
- Factos imputados aos arguidos e julgados provados e não provados, relativos ao plano e modo de atuação da arguida A... e seus gerentes e ao modo de atuação de cada um dos arguidos/agricultores/promotores que lhe adquiriram equipamentos [capítulo 4º (§4º)]
- Factos relativos ao elemento subjetivo [capítulo 5º (§5º)]
- Factualidade provada e não provada relativamente à matéria do PIC e das contestações apresentadas e bem assim, a materialidade provada e não provada relativa às condições pessoais e antecedentes criminais dos arguidos.
Em face do exposto, mal se compreende que se aponte ao acórdão recorrido a deficiência de falta de fundamentação, não resistindo a transcrever aqui o que, a propósito do esforço de fundamentação feito, é dito pelo Tribunal a quo:
“Estando convictos que o processo de formação da convicção se encontra perfeitamente percetível na descrição e pormenorização que fizemos e sem descurar que, num processo desta dimensão (em termos factuais e em termos probatórios), mais não é exigível ao tribunal que deixe claro e perfeitamente percetível o raciocínio lógico seguido que levou a considerar os factos controvertidos provados ou não provados, sem ter que pormenorizar a prova relativamente cada um dos factos, é esta a nossa motivação – cfr. AcSTJ de 23-02-2011 (rel. Cons. Santos Cabral) , AcRC de 27-05-2015 (rel. Des. Fernando Chaves) e AcRE de 08-04-2010 (rel. Des. Ana Bacelar Cruz) .”
Quanto às penas.
Também nesta parte, o acórdão em crise cumpre, sem qualquer dúvida, as exigências legais de fundamentação. Senão vejamos.
Começa por referir quais as penas aplicáveis e o respetivo regime no que concerne aos casos em que estão previstas penas cumulativas de prisão e multa.
Refere quais sejam os critérios legais de dosimetria das penas com especial enfoque para o caso dos arguidos que são pessoas coletivas e para o regime específico constante do Decreto-lei nº28/84.
Esclarece em que circunstâncias os arguidos podem, ou não, beneficiar da atenuação especial da pena e da dispensa de pena e, depois, para melhor compreensão, especialmente da justiça relativa das penas aplicadas atento o grande número e diversidade de situações, elabora um quadro relativo a todos os arguidos no qual consta, relativamente a cada um deles: a data dos factos; valores faturados; valores dos descontos; subsídio recebido a mais; posição processual dos arguidos (silêncio/confissão); CRC; pagamentos efetuados; rendimentos dos arguidos e agregados familiares; escolaridade e idade dos arguidos.
Para além disso, o Tribunal pronunciou-se, de forma diferenciada, sobre a ilicitude dos factos; a gravidade das suas consequências e modo de atuação; a culpa dos arguidos; as habilitações literárias dos arguidos evidenciando o modo como as mesmas relevaram no que tange à culpa de cada um; o peso dos antecedentes criminais ou da ausência deles; os pagamentos efetuados; o tempo decorrido; a integração social e familiar de todos e demais condições pessoais dos arguidos.
Mas também neste segmento, o Tribunal foi mais longe, explicitando, arguido por arguido, quais os concretos aspetos que assumiram relevo no que tange à aplicação da pena respetiva.
A sobredita fundamentação apresenta-se como suficiente e racionalmente lógica, permitindo a quem lê a decisão apreender e compreender (pese embora a complexidade dos autos e a sua extensão) as razões subjacentes à decisão sobre a matéria de facto tomada pelo julgador e sobre as penas aplicadas.
…
Se os recorrentes discordam do juízo probatório emitido pelo Tribunal recorrido (como é legítimo) é questão diversa, que extravasa o âmbito da apontada nulidade de omissão ou deficiência da fundamentação da decisão de facto, entroncando já no igualmente alegado erro de julgamento/impugnação ampla da matéria de facto que infra abordaremos.
Em conclusão, inexiste a arguida nulidade do acórdão recorrida por falta fundamentação, …
2.2.2. - Da nulidade do acórdão por condenação por factos diversos dos constantes da pronúncia nos termos do disposto no artigo 397º nº1 alínea b) Código de Processo Penal
…
Alegam, em síntese, que o Tribunal deu como provado um desconto em numerário na venda do tractor Landini …, mas num valor que não corresponde ao que constava do despacho de pronúncia.
Da pronúncia (ponto 1812.) constava que tal desconto era no valor de €18 760,00 e o Tribunal deu como provado que o mesmo ascendeu a €16 460,00.
Tal consubstancia uma alteração não substancial de factos a exigir o cumprimento do disposto no artigo 358º do Código de Processo Penal, o que não ocorreu.
…
Apreciando.
Estabelece o artigo 379º nº1 alínea b) do Código de Processo Penal (na parte que ora releva):
“1 - É nula a sentença:
(…)
b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;”
Resulta, pois, do teor literal do preceito que a questão da nulidade só se coloca se existir condenação por “factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia”. E o que devem considerar-se “factos diversos”?
Como refere Pedro Soares de Albergaria[13]
“§5 Os “factos” a que a norma se refere não se reconduzem, naturalmente, ao “facto” seca, geral e abstratamente descrito no preceito incriminador, mas sim o feixe de factos segregados pela vida em relação entre si e de acordo com certos elementos, V. g., temporais, espaciais, lógicos, cronológicos, subjetivo-motivacionais, que, à luz da respetiva valoração social, devam ser reduzidos a uma certa unidade suscetível de ser, por via subsuntiva, reconduzida a preceito incriminador e, deste modo, legitimar a imposição ao agente de reação penal [cf. Art.1º/a), 283º/3 b), 308º/1 e 368º/2/a)/b/c) e 369º/1]. A noção remete, pois, para dois planos, a saber, o do acontecimento histórico e o da relevância jurídico-penal, que se têm de considerar em parelha – só os factos assim vistos conformam o objeto do processo e só sobre eles pode, de resto, ser levada a efeito atividade probatória (art.124º). O nº1 refere, aliás de modo redundante, que os factos (novos) que concretizam a “alteração” devem ter “relevo para a decisão da causa”.
(…)
O vocábulo “alteração” remete para a ideia de mudança, enfim, de variação. Este momento é importante, pois, onde se não divisar uma (verdadeira) “alteração” já não caberá perguntar logicamente pelo qualificativo dela (ser substancial ou não). Ora, verdadeira “alteração” implica que a variação ou mudança factual que lhe vai pressuposta se enquadre, contenha, ainda, no quadro histórico-factual que constitui o objeto do processo nos termos acima (§5) definidos. Quer dizer, o objeto do processo é o “ambiente” dentro do qual se pode, ainda, com propriedade, falar de “alteração”: esta consiste numa variação, mas numa variação dos mesmos factos (cf. Tereza Pizarro Beleza/Frederico Costa Pinto, 2001, p.39; Idem, 2022, p.582 ss; ainda Jorge de Figueiredo Dias/Susana Aires de Sousa, 2021, p.14). Factos novos que desbordem os limites referidos já não são “alteração” do objeto do processo, mas, antes, o desenhar de um outro, novo e autónomo objeto processual”.
No nosso Processo Penal vigora o princípio da vinculação temática do Tribunal, princípio este indissociável das garantias de defesa do Arguido, uma vez que impede que sejam efetuadas alterações significativas do objeto do processo que possam prejudicar, ou mesmo inviabilizar, a defesa.
Cabe, pois, por imperativo constitucional, que o objeto do processo, balizado pela acusação/pronúncia se mantenha, na essência, idêntico até que seja proferida a decisão final no processo, sem prejuízo do que seja carreado para os autos nos termos e limites do artigo 339.º nº4 do Código de Processo Penal, sob pena de nulidade – artigo 379.º, nº2 alínea b) do Código de Processo Penal - e, salvo nas situações consagradas por lei em que, respeitadas certas condições (artigos 303.º, 358.º e 359.º do mesmo código), pode ser levada a efeito uma alteração daqueles factos.
…
Ora, afigura-se-nos não existir qualquer alteração, muito menos relevante, no que concerne ao objeto do processo.
O facto sujeito à atividade probatória e com o qual os recorrentes foram confrontados quando tomaram conhecimento da pronúncia, foi a existência de um acordo no sentido de ser concedido um desconto no preço que constava da fatura e de esse desconto, como combinado, ter sido efetivado mediante a entrega ao comprador, em momento posterior à emissão da fatura respetiva, do valor em numerário acordado.
Tal procedimento tinha por objetivo obter um valor de subsídio superior ao efetivamente devido, caso tal desconto tivesse sido levado ao conhecimento do IFAP no âmbito do respetivo processo de candidatura, em tal se traduzindo a conduta ilícita imputada aos arguidos.
É este o “acontecimento histórico” com “relevância jurídico-penal” que está em causa e que constitui objeto do processo.
A alteração do valor do aludido desconto circunscreve-se ao mesmo facto histórico unitário (acordo no sentido da concessão de um desconto e forma de efetivação deste). A conduta dos arguidos/recorrentes com conteúdo ilícito não sofreu qualquer alteração, mantendo-se inalterada a descrição da ação típica relevante.
Alterar, após a produção da prova, o valor que da pronúncia constava como sendo aquele a que ascendeu tal desconto, não constitui qualquer alteração de factos nos termos previstos no artigo 358º do Código de Processo Penal.
Mais, conforme admitem os próprios recorrentes, este valor que veio a ser considerado provado foi matéria que foi amplamente discutida em audiência, suscitou a necessidade de se proceder a uma diligência de prova de acareação, pelo que, não podem vir sustentar que a decisão, nos termos em que foi produzida, constituiu uma surpresa não tendo tido a oportunidade de exercer cabalmente a sua defesa.
Acresce que, conforme salientado pelo Ministério Público, quer na 1ª instância, quer junto deste Tribunal de recurso, a alteração do valor foi para um valor inferior, o que resulta em benefício dos recorrentes, e que, conforme acórdão que citam[14], não traduz qualquer alteração de factos a exigir o cumprimento do disposto no artigo 358º do Código de Processo Penal.
…
2. 2. 3. Do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – Artigo 410º nº2 alínea a) do Código de Processo Penal.
…
Preceitua o artigo 410º do Código de Processo Penal [na parte ora relevante]:
“1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada […]”
No que tange ao invocado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, comungando do douto ensinamento do Exmo. Conselheiro Sérgio Gonçalves Poças[15], cumpre ter presente:
“Se o recorrente alega este vício – partindo necessariamente da análise do texto da decisão – deve especificar os factos que em seu entender era necessário – para a decisão que devia ser proferida – que o tribunal a quo tivesse indagado e conhecido e não indagou e consequentemente não conheceu, podendo e devendo fazê-lo.
Assim, num discurso argumentativo, encorpado e completo, mas ao mesmo tempo simples e claro, o recorrente deve procurar convencer o tribunal de recurso que faltam factos (identificando-os) necessários (fundamentando esta necessidade, nomeadamente invocando as normas jurídicas pertinentes) para a decisão e que não foi levada a cabo indagação a respeito deles quando (fundamentando) podia e devia ser feita.”
O vício em apreço tem forçosamente de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou mediante concomitante recurso às regras de experiência comum, não cabendo na previsão do preceito legal «toda a tarefa de apreciação ou valoração da prova produzida, em audiência ou fora dela, nomeadamente a valoração de depoimentos, mesmo que objeto de gravação, documentos ou outro tipo de provas, tarefa reservada para o conhecimento do recurso em matéria de facto»[16].
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada implica que esta, na sua globalidade, se revela inidónea ou escassa para suportar a decisão tomada pelo Tribunal.
…[17] …
Na invocação deste vício critica-se o tribunal por não ter indagado e conhecido os factos que podia e devia, tendo em vista a decisão justa a proferir de harmonia com o objeto do processo. O vício consiste, pois, numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito sobre a mesma. No fundo, é algo que falta para uma decisão de direito que se entenda ser a adequada ao âmbito da causa, seja a proferida efetivamente, seja outra, em sentido diferente.
Descendo ao caso concreto.
O que os recorrentes criticam à decisão em crise e inscrevem no aludido vício é o facto de o Tribunal não ter “investigado mais aprofundadamente a matéria de facto relevante”.
Que dizer de tal alegação quando está em causa uma decisão complexa a todos os níveis, como é a decisão recorrida?
Qual a factualidade concreta que ficou por apurar?
Na verdade, os recorrentes nada alegam ou invocam que possa reconduzir-se ao que deve entender-se por vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto, limitando-se a fazer afirmações vagas e destituídas de qualquer concretização que permita a este Tribunal de recurso compreender em que se traduziu, por referência ao concreto texto da decisão em crise, a alegada insuficiência de factos.
Desconhecem-se, pois, os argumentos em que assentará tal invocação, estando, nesta parte, este Tribunal impossibilitado de conhecer e decidir aquilo que, na perspetiva dos recorrentes consubstancia, por referência ao acórdão em recurso, a verificação do vício a que alude a alínea a) do nº2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
De todo o modo, no que se refere ao vício em causa (bem como aos restantes vícios elencados no artigo 410º nº2 do Código de Processo Penal), cabe ao Tribunal, conhecer da sua eventual ocorrência, mesmo que os mesmos não sejam invocados.
Conforme Jurisprudência fixada pelo acórdão do STJ nº7/95 de 19 de outubro[18], “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”.
Nas palavras do Juiz Conselheiro Pereira Madeira:[19]
…
Ora, compulsado texto do acórdão em recurso, verificamos que do mesmo consta, por um lado, todo um acervo factual que preenche os elementos objetivo e subjetivo dos tipos legais de crime por que os arguidos/recorrentes são condenados e bem assim, que sustentam a decisão relativa ao pedido de indemnização e, por outro lado, um conjunto de factos relativos à conduta anterior e posterior àqueles outros, bem como à situação económica e familiar dos arguidos, que serviu de base à escolha e determinação da medida concreta das penas aplicadas.
Assim, improcede a arguição por parte da recorrente …, do vício a a que alude a alínea a) do nº2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, improcedendo estes recursos nesta parte.
Compulsado o acórdão recorrido, também não se vislumbra que o mesmo padeça do vício em causa, não nos merecendo o mesmo, qualquer censura sob este ponto de vista.
2.2.4. - Do erro de julgamento – Artigo 412º do Código de Processo Penal.
Impugnam a decisão sobre a matéria de facto por esta via (pensamos) os seguintes recorrentes:
…
*
Importa ter presentes algumas considerações que definem os limites impostos pela Lei a esta forma de impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Nos termos do disposto no artigo 428.º do código de Processo Penal, os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.
No que respeita à matéria de facto, a mesma pode ser sindicada por duas vias:
- no âmbito restrito, no que se convencionou chamar de “revista alargada”, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código Processo Penal, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento;
- ou na impugnação ampla a que se reporta o artigo 412.º, n.º 3, 4 e 6, do Código Processo Penal, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência.
O artigo 412º nºs 3, 4 e 6 do código de Processo Penal é do seguinte teor:
“3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
(…)
6 - No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.”
Assim, no caso de recurso amplo ou efetivo em matéria de facto, o recorrente tem de se socorrer das provas examinadas na audiência da primeira instância, e deve especificar, sob pena de rejeição:
- os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados;
- as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; e
- as provas que devem ser renovadas (artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal).
E quando as provas tenham sido gravadas, a referida especificação deve efetuar-se por referência ao consignado em ata (quanto ao meio de prova registado, seu início e termo), devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação (artigo 412º, nº4, do Código de Processo Penal).
O motivo inerente a tais exigências encontra justificação plena no âmbito jurisdicional atribuído ao tribunal de recurso.
Na verdade, o julgamento da matéria de facto em primeira instância obedece a princípios estabelecidos na lei para potenciar a descoberta da verdade histórica a partir dos meios de prova que a representam. É aqui preponderante o princípio da imediação na produção da prova, que visa assegurar a existência de uma relação de contacto pessoal e direto entre o julgador e a prova cognoscível.
Na segunda instância, a reapreciação da matéria de facto faz-se, em regra, sem imediação, com a audição das provas registadas cuja análise tenha sido sugerida no recurso, estando dependente do impulso dos sujeitos processuais a renovação da prova – artigos 412º nºs 3 a 6 e 417º nº 7 al. b) do Código de Processo Penal.
Por isso, e em regra, a avaliação da prova em primeira instância, feita de forma direta, oral e imediata obedece a uma forma de procedimento que coloca o juiz do julgamento em melhores condições para a decisão da matéria de facto do que a avaliação feita com base na audição do registo, meramente parcial (porque despido de qualquer manifestação física, expressional, dos comportamentos humanos valorizados), de provas que foram produzidas em momento anterior.
A reapreciação da prova em recurso não pode e não deve, por isso, equivaler a um segundo julgamento. O duplo grau de jurisdição não assegura a sujeição da acusação a dois julgamentos em tribunais diferentes, mas apenas garante que o interessado possa obter do tribunal superior a fiscalização e controlo de eventuais erros da decisão da matéria de facto através do reexame parcial da prova.
Por outro lado, o julgamento da matéria de facto está sujeito ao princípio da livre apreciação da prova estabelecido no artigo 127º do Código de Processo Penal, princípio válido para o julgamento em primeira instância como para a verificação de eventuais erros de julgamento na Relação, de acordo com o exame crítico da prova - que não deixa de estar vinculado a critérios objetivos jurídico-racionais e às regras da lógica, da ciência e da experiência comum.
O erro de julgamento, ínsito no artigo 412º, nº3, do Código de Processo Penal, pressupõe que a prova produzida, analisada e valorada, não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada e não provada nos termos em que o foi.
Para que ocorra um erro de julgamento da matéria de facto sindicável em sede de recurso é preciso que se demonstre que a convicção a que o tribunal de primeira instância chegou sobre a veracidade de determinado facto é implausível face às provas, ou então existem outras hipóteses de verdade também plausíveis que desmentem o facto provado ou o tornam duvidoso.
…
Por isso, é que as alíneas a) e b), do nº3 do artigo 412º, do Código de Processo Penal dispõem que a impugnação da matéria de facto implica a especificação dos “concretos” pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados e das “concretas” provas que impõem decisão diversa.
Este ónus tem de ser observado para cada um dos factos impugnados.
Em relação a cada um têm de ser indicadas as provas concretas que impõem decisão diversa (o verbo utilizado pelo legislador é “impor”) e em que sentido devia ter sido a decisão, pois há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução.
Ainda quanto às concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, resulta do nº 4 do dispositivo legal em análise que havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, devendo o Recorrente indicar as passagens (das gravações) ou os concretos segmentos de tais depoimentos em que se funda a impugnação e que no seu entender invertem a decisão proferida sobre a matéria de facto, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º).
Saliente-se que a remissão para os suportes técnicos não é a simples remissão para a totalidade das declarações prestadas, mas para os concretos e precisos locais da gravação, que suportam a tese do recorrente.
Assim, quando se trate de depoimentos testemunhais, de declarações dos arguidos, assistentes, partes civis, peritos, etc., o recorrente tem de individualizar, no universo das declarações prestadas, quais as particulares e precisas passagens, as quais ficam gravadas, que se referem ao facto impugnado. E de facto, cada parte selecionada da gravação pode ser facilmente identificada com indicação da hora, minuto e segundo do início e da hora, minuto e segundo de termo.
A referência aos suportes magnéticos torna-se necessária à praticabilidade do confronto da gravação com as indicadas passagens da prova gravada em que se funda a impugnação e com os pontos controversos da matéria de facto que se pretende ver alterada
No caso vertente, facilmente se perceberá que os recorrentes não deram cumprimento ao mencionado ónus para efeitos de reapreciação da prova.
Mas, o certo é que o recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova.
O julgamento da matéria de facto em primeira instância obedece a determinados princípios estabelecidos na lei, entre os quais avulta o da imediação na recolha da prova, o qual assegura uma relação direta de contacto pessoal entre o julgador e a prova sujeita à apreciação.
O princípio da imediação pressupõe uma relação de contacto direto, pessoal entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar, e com as coisas e documentos que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.
E o respeito pelos princípios da oralidade e imediação na produção de prova, passará por o tribunal de recurso manter a decisão do juiz “a quo” sempre que estiver fundamentada na sua livre convicção baseada na credibilidade de determinadas declarações e depoimentos e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum.
…[20]
Feitas estas considerações genéricas, passamos a apreciar cada um dos recursos enumerados supra e que anunciam pretender impugnar a decisão sobre a matéria de facto por esta via.
2.2.4.1. - …
…[21], …
Nos casos em que as omissões, insuficiências ou deficiências em causa ocorrem não apenas nas conclusões do recurso, mas também na respetiva motivação, o Tribunal Constitucional tem formulado juízos negativos de inconstitucionalidade em relação a interpretações normativas no sentido de que, em tais circunstâncias, não deverá ser conhecida a matéria em questão, improcedendo o recurso, sem que ao recorrente seja dada a oportunidade de suprir tais deficiências[22].
Mas, se é certo que tal incumprimento por banda do recorrente impede a sindicância da matéria de facto por via da impugnação ampla, daqui não resulta, porém, que a Relação fique desobrigada de sindicar a decisão recorrida na parte relativa à decisão da matéria de facto, devendo fazê-lo através da análise do texto, perscrutando se enfermará, então, de um erro notório na apreciação da prova que possa ter condicionado a demonstração dos factos impugnados no recurso, vício que, a existir, sempre seria de conhecimento oficioso.
Estabelece o artigo 410º nº2 alínea c) do Código de Processo Penal:
“2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
(…)
c) Erro notório na apreciação da prova.”
Existe erro notório na apreciação da prova quando do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, resulte que se deu como provado ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum – Artigo 410º nº2 alínea c) do Código de Processo Penal.
Por esta razão, na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal – Cfr. artigo 374º, nº2 do Código de Processo Penal.
Como se salienta no Acórdão do STJ de 09/04/2008:[23]
“I - Como é jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal, o erro notório na apreciação da prova, como os demais vícios elencados no n.º 2 do art. 410.º do CPP, deve resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência, e tem de ser de tal modo evidente que uma pessoa de mediana compreensão o possa descortinar.
II - E existe quando se dão por provados factos que, face às regras de experiência comum e à lógica corrente, não se teriam podido verificar ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsos. Trata-se de um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental; as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.
III - Os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, nomeadamente o erro notório na apreciação da prova, não podem, por outro lado, ser confundidos com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida ou com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questões do âmbito da livre apreciação da prova inscrito no art. 127.º do CPP.
IV - Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é essa convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.”
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 10 de julho de 2019[24], relativamente ao erro notório na apreciação da prova “O vício a que alude a recorrente e que consta da alínea c) do nº 2 do artigo 410º do CPP é, contrariamente à frequência com que é invocado, um vício muito raro, uma vez que só ocorre quando é detetável por qualquer pessoa – homem médio – em face do texto da decisão recorrida. E é evidente se qualquer pessoa o deteta, também o juiz que elabora o texto dificilmente o deixaria passar.
É o erro que evidencia que as regras da experiência da vida e do normal acontecer foram violadas pelo raciocínio patente no texto da decisão”.
O erro notório na apreciação da prova, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Perante a simples leitura do texto da decisão, o “homem médio” conclui, legitimamente, que o tribunal violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
Neste sentido, o acórdão S.T.J de 28/06/2018[25] no qual se considera “O vício da al. c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP – erro notório na apreciação da prova - tem que decorrer da decisão recorrida ela mesma. Por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum. Mas tem também que ser um erro patente, evidente, perceptível por um qualquer cidadão médio. E não configura um erro claro e patente um entendimento que possa traduzir-se numa leitura que se mostre possível, aceitável, ou razoável da prova produzida”
Refere Sérgio Gonçalves Poças[26] “O erro notório é o erro que se vê logo, que ressalta evidente da decisão por si só ou conjugada com as regras da experiência, adiantando que “embora muito invocado nos tribunais, verdadeiramente o erro notório na apreciação da prova (tal como é desenhado na lei) raramente se verifica, para concluir que “quando o recorrente entende que a prova foi mal apreciada deve proceder à impugnação da decisão sobre a matéria de factos conforme o artigo 412º, nº 3, e não agarrar-se ao vício do erro notório”.
Ora, do texto da decisão sob escrutínio, concretamente, no que à matéria de facto imputada aos mencionados arguidos/demandados e respetiva fundamentação concerne, por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum, não resulta a verificação do mencionado erro notório na apreciação da prova, porquanto não se deteta ostensivamente que o Tribunal tenha violado as regras da experiência comum ou feito uma apreciação da prova manifestamente incorreta, desadequada, ilógica, arbitrária ou contraditória, o que afasta a existência de qualquer vício de raciocínio nessa apreciação, que se evidencie aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão.
Não resulta assim do texto do acórdão recorrido, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, que o Tribunal tenha dado como provado algo que não podia ter acontecido ou como não provado algo que não podia deixar de ter acontecido ou ainda que tenha retirado de um facto uma conclusão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Na perspetiva da lógica interna da decisão e perante o respetivo texto, os factos dados como provados e como não provados têm perfeito suporte na prova elencada na motivação da decisão de facto e na valoração que dela foi feita, pese embora o recorrente não se reveja nela.
O Tribunal a quo, beneficiando de posição privilegiada, resultante da imediação, fez a sua opção, explicando o porquê da mesma, o processo lógico-formal que lhe serviu de suporte.
Procedeu a um exame crítico e dialético das provas à luz das regras da experiência comum, indicou os meios probatórios suscetíveis de poderem ser valorados e com base nos quais fundou a sua convicção, na qual também teve intervenção o recurso a presunções.
Em suma, não padecendo o acórdão recorrido de erro notório na apreciação da prova, mostra-se também, por esta via, inviável a modificabilidade da decisão proferida sobre a decisão da matéria de facto, o que implica que a mesma se tenha por assente.
…
2.2.4.2. - …
….[27]
…[28].
…[29], …
…[30].
Com efeito, quando está em causa a questão da apreciação da prova cumpre dar a devida relevância à perceção que a oralidade e a imediação conferem aos julgadores do Tribunal a quo. Deste modo, quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova se baseia na opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só pode censurá-la se demonstrado ficar que tal opção é de todo em todo inadmissível face às regras de experiência comum.
Ou seja, é comumente aceite que a (re)apreciação da matéria de facto pelo Tribunal de recurso não implica a realização de um “segundo julgamento”, agora baseado na prova gravada, em que o tribunal ad quem aprecia toda a prova produzida e documentada em primeira instância, como se o julgamento ali realizado não existisse.
Como se refere, de modo impressivo, no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19/05/2015[31]:
«O poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância. Os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.»
Concluindo: o artigo 412º, nº3, al. b) do Código de Processo Penal, ao exigir que o recorrente que impugne a decisão proferida sobre matéria de facto especifique as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, implica que o tribunal de recurso só pode (e deve) alterar aquela decisão se da análise que faz das provas documentadas indicadas pelo recorrente, em concatenação com as regras da experiência comum e da lógica, concluir que o juízo probatório levado a cabo pelo tribunal a quo é, à luz daqueles elementos, insustentável, indefensável (porque decidiu claramente sem prova ou em indiscutível contradição com as preditas regras), revelando-se por isso imperioso decidir de forma distinta.
Diferentemente, «se o tribunal de recurso se convencer que os concretos elementos de prova indicados pelo recorrente permitem ou consentem uma decisão diferente, mas que não a «tornam necessária» ou racionalmente «obrigatória», então deve manter a decisão da primeira instância tal como está»[32]
…[33].
…
…[34].
…
…[35].”
2.2.4.3. - ….
2.2.4.4. - …
2.2.4.5. - …
…
2.2.5. - Da violação dos princípios de presunção de inocência e do “in dúbio pro reo”.
…
Assim, o princípio in dubio pro reo é complementar do princípio da presunção da inocência e o seu campo de aplicação encontra-se após a conclusão da tarefa judicial da valoração da prova produzida e quando o resultado desta não é conclusivo; neste caso, por via desta regra atinente à decisão, a dúvida insanável, inultrapassável sobre os factos deve favorecer o arguido.
Concretizando.
O princípio in dubio pro reo encerra uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa pelo que a sua violação exige que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.
Conexionando-se com a matéria de facto, este princípio atua em todas as vertentes fácticas relevantes, quer elas se refiram aos elementos típicos do facto criminalmente ilícito – tipo incriminador, nas duas facetas em que se desdobra: tipo objetivo e tipo subjetivo -, quer elas digam respeito aos elementos negativos do tipo, ou causas de justificação, ou ainda, segundo uma terminologia mais atualizada, tipos justificadores, quer ainda a circunstâncias relevantes para a determinação da pena.[36]
O princípio “in dubio pro reo” só actua em caso de dúvida (insanável, razoável e motivável), definida esta como “um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva”[37]
Por isso a sua violação exige a comprovação de que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.[38]
Como salientam Gomes Canotilho e Vital Moreira o princípio da presunção de inocência e in dubio pro reo «constituem a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta como suporte axiológico-normativo da pena.»[39]
O nosso regime jurídico processual-penal consagra no artigo 127.º o princípio da livre apreciação da prova.
A livre apreciação da prova pressupõe que esta seja considerada segundo critérios objetivos que permitam estabelecer o substrato racional da fundamentação da convicção.
O princípio in dubio pro reo constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos: em tal situação, impõe-se que o Tribunal decida pro reo, a favor do arguido.
Por isso, também, que para fundamentar essa dúvida e impor a absolvição não baste que tenha havido versões díspares ou mesmo contraditórias.[40]
Como se assinalou no douto acórdão do STJ de 18-04-2012[41], “A violação do princípio in dubio pro reo exige que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de dúvida quanto aos factos que devia dar por provados ou não provados. Como refere ROXIN, “o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida” (in “Derecho Procesal Penal”, Editores del Puerto, Buenos Aires, pág. 111)”.
Para que se imponha ao tribunal a aplicação deste princípio é necessário que perante a prova produzida reste no espírito do julgador – e não no das partes - alguma dúvida sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão, dúvida que há-de ser razoável e insanável. (sublinhado nosso).
Deve sublinhar-se que a dúvida que subjaz ao princípio in dubio pro reo não é uma qualquer dúvida teórica, abstrata e meramente hipotética. É antes uma dúvida concreta, real, positiva, alicerçada em factos concretos, uma “dúvida racional que ilida a certeza contrária”[42]
À semelhança do que sucede com os vícios consagrados no n.º 2 do artigo 410.º, em sede de recurso a violação do princípio in dubio pro reo apenas ocorre quando tal vício resulte da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, pois o recurso não constitui um novo julgamento, antes sendo um remédio jurídico.[43]
Assim, como se escreve no acórdão da Relação de Coimbra de 18/01/2017[44] , «Na fase de recurso, (…), a demonstração da sua violação passa pela respectiva notoriedade, aferida pelo texto da decisão isto é, em termos idênticos aos que vigoram para os vícios da sentença, tem que resultar da fundamentação desta, de forma patente, que o juiz, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao agente, o considerou provado ou, inversamente, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto favorável ao agente, o considerou não provado.»
Em sede de recurso, a demonstração da violação do princípio passa pela sua notoriedade, aferida pelo texto da decisão isto é, deve resultar dos termos da sentença, de forma clara e inequívoca, que o juiz, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao agente, o considerou provado ou, inversamente, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto favorável ao agente, o considerou não provado.
A dúvida relevante para este efeito, não é, portanto, a dúvida que o recorrente entende que deveria ter permanecido no espírito do julgador após a produção da prova, mas apenas a dúvida que o julgador não logrou ultrapassar e fez constar da sentença ou que por esta é evidenciada.
…
Os recorrentes invocam a violação deste princípio, sem qualquer fundamentação concreta, fazendo-o, parece-nos, como argumento derradeiro e apenas para o caso de a impugnação que fazem da matéria de facto não proceder.
…
Não indicam, por referência ao texto da decisão recorrida (relembramos essa exigência), em que se traduziu a violação do princípio em causa, limitando-se a, depois de invocarem o erro de julgamento, e baseando-se nos fundamentos do recurso nessa parte, sustentarem que o Tribunal deveria ter ficado na dúvida sobre a prova dos factos impugnados e que, não tendo feito a leitura da prova que defendem, o Tribunal ultrapassou os limites do princípio da livre apreciação da prova nomeadamente o imposto pelo princípio do in dúbio pro reo.
Ora, para além do teor genérico da invocação, a verdade é que, como se disse supra e é entendimento da Jurisprudência e Doutrina relevantes na matéria, a dúvida relevante que impõe que se decida pro reo, não é qualquer dúvida nem é a dúvida do recorrente. A dúvida terá de ser uma dúvida do Tribunal, expressa no texto da decisão, relativa a factos relevantes, dúvida essa que terá de ser “razoável” e “insanável”.
Surpreendida essa dúvida sobre a prova de determinados factos desfavoráveis ao arguido e decidindo o Julgador considera-los provados, decide, sem dúvida em violação do princípio “in dúbio pro reo”.
Ora, o que os recorrentes invocam é a sua própria dúvida sobre a prova dos factos cujo erro de julgamento também é objeto do presente recurso.
Com efeito, após impugnação da matéria de facto que indicam pela via da impugnação ampla (artigo 412º do Código de Processo Penal), concluem que o julgador deveria ter ficado, pelo menos, na dúvida sobre a prova da mesma e, aplicados os princípios em causa, dado tal matéria de facto como não provada.
Não invocam os recorrentes, nem se vislumbra, qualquer tratamento processual por parte do Tribunal a quo donde decorra a violação deste princípio. Antes decorre da sua motivação que discordam da decisão sobre a matéria de facto, defendendo a alteração da mesma de acordo com a sua avaliação e convicção.
Ora, como se disse, a dúvida a evidenciar na decisão é a dúvida do julgador e não a do arguido.
Os recorrentes limitam-se a dar a sua interpretação sobre a prova produzida daí retirando que o julgador se deveria ter quedado pela dúvida e, aplicando o princípio em causa, dado como não provada a matéria de facto que indicam.
Não é isso que está em causa quando se pretende, por via de recurso, evidenciar a violação do princípio in dúbio pro reo, pelo que, improcede, igualmente, este recurso nesta parte.
…
…[45].
…
Conclui-se, destarte, que inexistiu violação da presunção de inocência e do princípio in dubio pro reo, não ocorrendo, pois, qualquer violação do disposto no artigo 32º nº1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.
*
Considerando que todos os recursos sobre a matéria de facto foram julgados improcedentes e as considerações tecidas no sentido de que não se mostra o acórdão recorrido ferido de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º do mesmo código[46], tem-se por estabilizada toda a matéria de facto dada como provada e como não provada.
*
2.2.6. Da errada qualificação jurídica dos factos.
…
*
Ainda antes de entrar propriamente nos argumentos aduzidos pelos recorrentes, importa dizer que se dão aqui por reproduzidas as extensas considerações doutrinais e jurisprudenciais constantes do acórdão recorrido relativamente aos contornos dos elementos constitutivos do tipo legal de crime em causa, bem como o que nessa matéria consta da resposta aos recursos e do parecer juntos aos autos pelo Ministério Público.
De todo o modo, por facilidade de exposição, faremos, apenas breves notas sobre o ilícito previsto e punido no artigo 36º nºs1 alínea a), 2, 5 alínea a) e 8 alínea b) do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20.01.
O preceito em causa é do seguinte teor (na versão originária que ainda se mantém):
(Fraude na obtenção de subsídio ou subvenção)
1 - Quem obtiver subsídio ou subvenção:
a) Fornecendo às autoridades ou entidades competentes informações inexactas ou incompletas sobre si ou terceiros e relativas a factos importantes para a concessão do subsídio ou subvenção;
b) Omitindo, contra o disposto no regime legal da subvenção ou do subsídio, informações sobre factos importantes para a sua concessão;
c) Utilizando documento justificativo do direito à subvenção ou subsídio ou de factos importantes para a sua concessão, obtido através de informações inexactas ou incompletas;
será punido com prisão de 1 a 5 anos e multa de 50 a 150 dias.
2 - Nos casos particularmente graves, a pena será de prisão de 2 a 8 anos.
3 - Se os factos previstos neste artigo forem praticados em nome e no interesse de uma pessoa colectiva ou sociedade, exclusiva ou predominantemente constituídas para a sua prática, o tribunal, além da pena pecuniária, ordenará a sua dissolução.
4 - A sentença será publicada.
5 - Para os efeitos do disposto no n.º 2, consideram-se particularmente graves os casos em que o agente:
a) Obtém para si ou para terceiros uma subvenção ou subsídio de montante consideravelmente elevado ou utiliza documentos falsos;
b) Pratica o facto com abuso das suas funções ou poderes;
c) Obtém auxílio do titular de um cargo ou emprego público que abusa das suas funções ou poderes.
6 - Quem praticar os factos descritos nas alíneas a) e b) do n.º 1 com negligência será punido com prisão até 2 anos ou multa até 100 dias.
7 - O agente será isento de pena se:
a) Espontaneamente impedir a concessão da subvenção ou do subsídio;
b) No caso de não serem concedidos sem o seu concurso, ele se tiver esforçado espontânea e seriamente para impedir a sua concessão.
8 - Consideram-se importantes para a concessão de um subsídio ou subvenção os factos:
a) Declarados importantes pela lei ou entidade que concede o subsídio ou a subvenção;
b) De que dependa legalmente a autorização, concessão, reembolso, renovação ou manutenção de uma subvenção, subsídio ou vantagem daí resultante.
Resulta do próprio preâmbulo desse diploma (o Decreto-Lei n.º 28/84) que o mesmo teve por objetivo estabelecer “a criminalização e punição das atividades delituosas contra a economia nacional, pois que o direito penal económico é um ramo do direito penal geral, que nos aparece como um conjunto de normas, de natureza heterogénea (penais e de mera ordenação social), apto a defender a economia nacional e o consumidor”.
O bem jurídico que este tipo de ilícitos tutelam “tem natureza supra individual e coincide, por um lado, com a confiança necessária à vida económica e, por outro, com a correcta aplicação dos dinheiros públicos no campo económico”.[47]
Como refere o mesmo autor, o agente deste crime (do artigo 36.º) será “todo aquele a quem for concedido o subsídio ou subvenção, não se restringindo apenas aos que exercem actos de comércio por profissão habitual, mas estendendo-se também a qualquer pessoa, ao próprio particular não comerciante. A acção incriminada é a que se traduz na obtenção do subsídio ou subvenção. Obter significa alcançar, adquirir ou conseguir. O objecto material é o subsídio ou subvenção”.4[8]
Trata-se de um crime material e de dano e não de mera atividade, impondo-se, por isso, a obtenção do resultado da ação enunciada na norma incriminadora (Quem obtiver).
Temos, pois, como elemento integrante desse ilícito, a obtenção de um subsídio ou subvenção, consumando-se o respetivo crime com a disponibilização ou entrega de tal subsídio - cfr. Acórdão do STJ n.º 2 /2006, Fixação de Jurisprudência Obrigatória, de 21-112005, in DR I-A, de 04-01-2006.
Os subsídios são, em termos correntes, “as quantias entregues sem contrapartida direta do Estado, quer a empresas privadas, quer a empresas públicas ou coletividades”.[49]
Mas o referido Decreto-lei n.º 28/84 estabelece, ele próprio, uma definição de subsídio ou subvenção, dispondo o seu artigo 21.º o seguinte:
(Definição de subsídio ou subvenção)
Para os efeitos deste diploma, considera-se subsídio ou subvenção a prestação feita a empresa ou unidade produtiva, à custa de dinheiros públicos, quando tal prestação:
a) Não seja, pelos menos em parte, acompanhada de contraprestação segundo os termos normais do mercado, ou quando se tratar de prestação inteiramente reembolsável sem exigência de juro ou com juro bonificado; e
b) Deva, pelo menos em parte, destinar-se ao desenvolvimento da economia.
Na obra citada supra[50], Carlos Codeço destaca neste conceito três elementos:
- o primeiro, de natureza subjetiva - é a entrega de fundos públicos a uma empresa singular ou coletiva (aquilo que a lei designa de “empresa ou unidade produtiva”;
- o segundo, de natureza objetiva - prende-se com o carácter reembolsável ou não dos fundos públicos, podendo ser parcial ou inteiramente restituíveis, com ou sem juros bonificados;
- o terceiro, de natureza teleológica - o subsídio ou subvenção deve destinar-se a empresa ou unidade produtiva de qualquer domínio da atividade económica.
No crime em análise concorrem, por um lado, uma entidade de direito público, prestadora do subsídio ou subvenção, que é enganada e lesada e, por outro, uma entidade ou unidade produtiva, beneficiária do subsídio ou subvenção.
Ponto fulcral é que a prestação financeira se traduza num subsídio ou subvenção, ou seja, uma prestação não acompanhada de contraprestação, segundo os termos normais do mercado, ou prestação inteiramente reembolsável, sem exigência de juro ou com juro bonificado, e destinar-se, pelo menos em parte, ao desenvolvimento da economia.
No que concerne à “unidade produtiva”, tanto pode ser uma pessoa singular, como uma sociedade civil ou comercial [artigo 2.º, n.º 3], como uma associação de facto, uma sociedade ou uma pessoa coletiva [artigo 3.º, n.º 1], podendo esta ser mesmo uma pessoa coletiva pública [artigo 6.º, alínea b)].
Quanto à definição de empresa refere-se no Acórdão do STJ, de 17-12-1997[51] que:
“II - Dadas as específicas razões de política criminal que determinaram as incriminações da fraude na obtenção de subsídios ou subvenções e do desvio ilícito dos mesmos, todos os elementos de interpretação (literal, sistemático, lógico e teleológico) conduzem a ver, no artigo 21 citado, um conceito amplo de empresa, quer no sentido objectivo - toda a conjução de pessoas e meios materiais e/ou imateriais que prossegue uma actividade económica (produção de bens e/ou serviços para a troca) - quer no subjectivo - toda a entidade que, independentemente do seu estatuto jurídico e do facto de essa não ser a única nem sequer a principal das actividades, explora uma empresa em sentido objectivo.”
Importa, também, assinalar que, conforme afirmado no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20-03-2019[52]
“1- Decorre da jurisprudência do AFJ 2/2006 que comete o crime de fraude na obtenção de subsídio previsto no art. 36º do Decreto-Lei 28/84 de 20.1 quem utiliza os artifícios fraudulentos previstos nas diversas alíneas do seu nº 1 não só na concessão formal e prévia do subsídio como também para a posterior disponibilização ou entrega material das quantias subsidiadas.
2- Mesmo que as despesas tenham sido efectuadas e os montantes sacados tenham sido posteriormente reembolsados o prejuízo decorre do desembolso das quantias que não teriam sido entregues ao arguido se não fosse o artifício (facturas falsas) utilizado.”
Relembrando, que o acórdão do STJ nº 2/2006, publicado no DR de 4.1.2006, fixou jurisprudência nos seguintes termos:
“O crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção previsto no artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, consuma-se com a disponibilização ou entrega do subsídio ou subvenção ao agente”.
Sobre os elementos típicos do ilícito em análise, permitimo-nos transcrever o seguinte excerto do acórdão do STJ de 15-10-1997[53], citado, quer na decisão recorrida, quer no recurso interposto pela arguida KK, concretamente, a síntese constante do voto de vencido lavrado pelo Exmº Consº Joaquim Dias:
"Escrevi no meu projecto de relator vencido:
Concorrem, portanto, no crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção:
- de um lado, uma (ou mais) entidade de direito público, portadora de subsídio ou subvenção, que é o sujeito enganado e lesado; do outro, uma empresa ou unidade produtiva, beneficiária do subsídio ou subvenção;
- Um subsídio ou subvenção;
- O erro da entidade concedente do subsídio ou subvenção;
- A conduta fraudulenta causadora daquele erro.
A expressão "quem obtiver subsídio ou subvenção" denota que o crime só se consuma quando há uma prestação efectiva do subsídio. Trata-se de um crime de dano.
O dano é a violação do bem jurídico protegido pela norma incriminadora.
É um crime contém os valores fundamentais do ordenamento sócio-económico, como resulta da sua inserção na subsecção III subordinada à epígrafe "Crimes contra a Economia", e é realçado no respectivo preâmbulo: "É da própria natureza desta área do direito penal atender essencialmente à reprovação das condutas em si mesmas lesivas dos valores fundamentais do ordenamento sócio-económico", crime que, "pela gravidade dos seus efeitos e pela necessidade de proteger o interesse da correcta aplicação de dinheiros públicos nas actividades produtivas, não poderiam continuar a ser ignorados pela nossa ordem jurídica".
Os bens jurídicos titulados pelo direito penal económico são a "concretização de valores ligados aos direitos sociais e à organização económica contidos na Constituição" (Jorge de Figueiredo Dias, citado por Manuel de Castro Andrade, Ciclo de Estudos de Direito Penal Económico, C.E.J., 1985, página 91).
A prestação do subsídio ou subvenção hão-de ser determinados por erro causado pela conduta enganadora do beneficiário. Concorre, portanto, à semelhança do que se passa no crime de burla, um duplo processo causal: conduta causa do erro, erro causa da prestação.
Aquela conduta enganadora encontra-se típica e abstractamente descrita no prescrito primário do artigo 36.
Por isso se trata de um crime de execução vinculada.
Tal significa que o comportamento não conforme a algumas das actividades descritas nas alíneas a), b) e c) não sofre a punição daquela norma porque não é subsumível na sua previsão.”
Passemos, então, a apreciar a questão da qualificação jurídica dos factos.
2.2.6.1. – …
Os recorrentes insurgem-se contra a qualificação jurídica dos factos considerando que, no que a eles concerne, não se mostra preenchido o elemento subjetivo constitutivo do ilícito de fraude na obtenção de subsídio e, por outro lado, a não se entender assim, a conduta que lhes vem imputada não integra a previsão do ilícito na sua forma agravada, conforme foi entendimento do Tribunal recorrido.
Relativamente ao elemento subjetivo do tipo [conclusões JJ) a LL)].
…
Conhecendo, adiantamos desde já, que o recurso não pode proceder, também, quanto a esta específica questão.
Com efeito, os recorrentes não têm razão quando sustentam que para o preenchimento do elemento subjetivo constitutivo do tipo legal de crime de fraude na obtenção de subsídio se exige uma especial intencionalidade, isto é, um dolo específico.
Na verdade, a letra do artigo 36º do Decreto Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro desmente tal entendimento, pois que ali não consta qualquer referência a dolo específico - prevendo-se a comissão do crime a título de negligência - pelo que, de acordo com o disposto no artigo no artigo 13º do Código Penal, a conduta ali prevista é punida a título de dolo genérico, em qualquer das suas formas desenhadas no artigo 14º do Código Penal.
Por outro lado, salvo melhor opinião, o acórdão citado pelos recorrentes em abono desta sua tese, não a sufraga.
Trata-se do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28-06-2024[54] destacando os Recorrentes do respetivo sumário o ponto V) que é do seguinte teor:
V - Constituem requisitos deste crime: a) Que o agente obtenha um subsídio, subvenção ou financiamento equiparável; b) Que para o efeito, isolada ou cumulativamente, forneça informações inexactas ou incompletas relativas a si ou a terceiros, relevantes para a concessão do subsídio, que omita factos importantes segundo o regulamento para a sua concessão, ou que utilize documento justificativo do direito à subvenção ou subsídio ou de factos importantes para a sua concessão, obtido através de informações inexactas ou incompletas; c) Que se verifique um nexo causal entre as informações inexactas ou omitidas e a obtenção do subsídio; d) A intencionalidade enganatória subjacente à conduta activa ou omissiva no fornecimento ou ocultação de informações.
Detêm-se na expressão “intencionalidade enganatória”, concluindo que traduz a exigência de um dolo específico.
Ora, o acórdão não defende esse entendimento. Limita-se a referir que se trata de crime doloso em que o dolo se traduz, conforme desenho da conduta em termos objetivos, para além do mais, no conhecimento dos elementos do tipo, onde avulta atuação tendente a enganar a entidade processadora do subsídio, e na vontade, apesar do conhecimento de que tal conduta constitui crime, de a levar a cabo.
Estamos, pois, em presença do dolo genérico.
No acórdão em causa faz-se uma análise dos ilícitos de prevaricação e de fraude na obtenção de subsídio, sustentando-se que, no caso daquele, só pode ser praticado com dolo direto, “constituindo um crime de intenção ou de resultado cortado (porquanto o tipo legal de crime prevê, a par do dolo do tipo, uma intenção de produção de um resultado que não faz parte do tipo e que, portanto, não tem que se verificar para que esteja preenchida a tipicidade necessária para a verificação do tipo)”, enquanto que, no caso do ilícito de fraude na obtenção de subsídio, se exige apenas que exista uma “intencionalidade enganatória subjacente à conduta activa ou omissiva no fornecimento ou ocultação de informações”, isto é, que a conduta ativa ou omissiva traduzida no fornecimento ou ocultação de informação à entidade processadora do subsídio ter por objetivo, tão só (porque é esta a conduta objetiva descrita no tipo) enganar sendo esse engano causa direta do recebimento do subsídio a que não se tinha direito.
O aresto em causa é muito claro ao referir-se a dolo específico, porém, refere-se apenas ao ilícito de prevaricação tratando tal matéria, também, no que toca ao concurso de crimes destacando-se o seguinte segmento:
“A autonomização da resolução criminosa quanto a um novo crime de prevaricação colide com um aspecto que se evidenciou na discussão da matéria de facto como subjacente a toda a actuação dos arguidos: se por um lado a utilização dos fundos obtidos em finalidades diversas daquelas para que foram concedidos terá sido desde o início o intuito dos arguidos a que agora nos reportamos, a intenção específica subjacente ao dolo, traduzida no intuito de beneficiar os próprios ou terceiros, enquanto elemento objectivo do crime de prevaricação, é também uma só, estando presente desde o início da actuação criminosa.” (sublinhado nosso).
Aliás, no sentido de que o ilícito por que os recorrentes vêm condenados não exige a verificação de qualquer dolo específico, podem ver-se os acórdãos:
- Do Tribunal da Relação do Porto de 21-10-2009[55], citado no douto parecer do Ministério Público onde se afirma
“III - No crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção não se exige, como no crime de burla, um dolo específico, ‘a intenção de obter um enriquecimento ilegítimo, nem o artifício fraudulento ou que a mentira ou a ocultação sejam astuciosos. Basta-se o legislador com declarações não verdadeiras, inexactidões ou omissões sobre factos importantes sobre os requisitos que devem estar reunidos para obter o subsídio.”
- Do Tribunal da Relação de Évora de 18-06-2013, onde se afirma que:
“O autor do crime pode ser qualquer pessoa, seja ela colectiva ou singular, compreendendo quer a acção dolosa, quer a negligente. É irrelevante para a prática do crime que o beneficiário directo do subsídio ou subvenção seja o autor da prática do crime, uma vez que o que se que se pretende com a salvaguarda do bem jurídico é o evitar a má aplicação de dinheiros públicos e não, propriamente, o enriquecimento ilegítimo do beneficiário à conta de dinheiros públicos – Veja-se em sentido semelhante Paulo Pinto de Albuquerque e José Branco in Comentário das Leis Penais Extravagantes Volume 2, editora Universidade Católica, página 117, 1.º parágrafo.
Provou-se que o arguido sabia que estava a prestar uma informação errada ao emitir os recibos.
Provou-se igualmente que o arguido sabia que essa informação errada era essencial à obtenção do subsídio, razão pela qual a prestou. Provou-se que o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei e que ainda assim agiu livre, voluntária e conscientemente – factos 15 a 19 e 21 da matéria provada. Face à factualidade dada como provada não poderão restar dúvidas que o arguido preencheu o elemento subjectivo do tipo de crime na modalidade de dolo directo – artigo 14.º n.º 1 do Código Penal.”
…
Num segundo momento, atento o teor das alegações transcritas supra, sintetizadas nas conclusões, esgrimem os recorrentes o argumento de que, a sua conduta não preenche o elemento subjetivo constitutivo do tipo legal de crime de fraude na obtenção de subsídio na medida em que, “nunca houve da sua parte mais do que a intenção de vender um trator, …”.
Ora, os recorrentes omitem nesta sua afirmação todo o conjunto de factos provados que lhes respeitam (e que supra se mantiveram inalterados) e que traduzem uma conduta que vai muito além da alegada mera venda de um trator.
Não foi isso que resultou provado.
…
Surge, pois, como completamente destituída de fundamento, não tendo qualquer respaldo na matéria de facto dada como provada, a tese defendida pelos recorrentes no sentido de que se limitaram a vender um trator e a emitir os correspondentes documentos.
Em suma, improcede o recurso nesta parte.
Relativamente à inexistência de qualificação do crime [conclusões MM) a PP)].
…
Também neste particular não assiste razão aos recorrentes.
Os recorrentes vêm condenados pela prática do crime de fraude na obtenção de subsídio na forma agravada, considerando o disposto no artigo 36º nºs 2 e 5º, alínea a) do Decreto-lei nº 28/84 de 20 de janeiro que é do seguinte teor:
“2 - Nos casos particularmente graves, a pena será de prisão de 2 a 8 anos.
(…)
5 - Para os efeitos do disposto no n.º 2, consideram-se particularmente graves os casos em que o agente:
a) Obtém para si ou para terceiros uma subvenção ou subsídio de montante consideravelmente elevado ou utiliza documentos falsos;”
Compulsada a decisão recorrida verificamos que o Tribunal não considerou, e bem, no caso dos recorrentes, ter aplicação a primeira parte da alínea a) do nº5 – obtenção de subvenção ou subsídio de montante consideravelmente elevado – mas sim a segunda parte – utilização de documentos falsos.
Relembremos os fundamentos em que assenta a decisão em crise, nesta parte:
“Não obstante o valor do subsídio obtido fraudulentamente ser um valor que não é consideravelmente elevado (que teria que exceder 20.400,00€), ainda assim, a conduta dos arguidos é agravada pelo facto de os arguidos terem utilizado um documento falso. …
Sustentam os recorrentes existir erro de Direito nesta parte, pois advogam que o preenchimento da circunstância agravante em causa depende da condenação, em concurso real, pela prática de crime de falsificação de documento, o que não ocorreu.
Mas tal entendimento não tem suporte, nem na Lei nem na Jurisprudência relevante a propósito desta questão.
Subscrevemos, também nesta parte, o que vem dito no douto parecer a que já aludimos na parte em que se refere:
«Da agravação do crime pelo nº 5, al. a), do artigo 36º
Vejamos, mais uma vez, o que consta, a propósito, do acórdão:
Em primeiro lugar, atente-se no já acima transcrito ponto 34, onde se deu como provado o seguinte:
“Mediante a utilização de faturas que não correspondiam ao valor real pelo qual foram transacionados os equipamentos, foram, pois, concedidos (indevidamente) apoios financeiros (subsídios) sobre valores que não correspondem aos valores que efetivamente foram pagos”. (sublinhado nosso)
…
É este o entendimento do nosso mais Alto Tribunal[56], a que aderimos e que se mostra refletido no teor literal da disposição legal em causa.
Em suma, improcede o recurso, também nesta parte, mostrando-se correta a qualificação jurídica dos factos provados relativos aos recorrentes.
2.2.6.2. – …
…
Adere-se às considerações de ordem doutrinária e jurisprudencial tecidas no recurso, por representarem o entendimento dominante e que reflete Jurisprudência Fixada.
Com efeito, esse entendimento relativamente ao momento que se deve considerar para efeitos de consumação do crime de fraude na obtenção de subsídio[57], mostra-se estabilizado desde a prolação do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº2/2006 já mencionado supra e fixou a seguinte jurisprudência:
«O crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção previsto no artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, consuma-se com a disponibilização ou entrega do subsídio ou subvenção ao agente”
Também é esse o entendimento plasmado no acórdão recorrido e foi com base nele que foi proferida a decisão, atentos os factos dados como provados no que toca à recorrente.
…
Na verdade, resulta da matéria de facto mencionada supra que o acordo estabelecido entre os arguidos no sentido de procederem como procederam foi anterior ao negócio e este, anterior à apresentação da fatura de compra e venda e, não obstante o pagamento do desconto ter sido posterior, o que releva, naturalmente, é que o mesmo, já estava acordado há muito.
…
Só uma leitura enviesada dos factos por parte da recorrente permite concluir como conclui no recurso assinalando-se, uma vez mais, que os momentos relevantes em termos de processo causal não são os da apresentação e aprovação do projeto, mas sim o da disponibilização/pagamento do subsídio, nem o pagamento do desconto, mas sim o acordo no sentido da sua realização enquanto forma de, omitindo a sua existência, induzir em erro o …quanto ao real preço do equipamento subsidiado.
Colocados os dados da questão desta forma, não tem qualquer suporte a pretensão da recorrente.
Nestes termos, improcede o recurso nesta parte.
*
Atento o exposto, nenhum reparo nos merece o enquadramento jurídico-penal levado a cabo pelo Tribunal a quo, reconduzindo as condutas dos recorrentes à prática, dos ilícitos por que vieram a ser condenados.
Em contrapartida, improcedem totalmente os escassos argumentos aduzidos em contrário pelos recorrentes neste particular.
*
2.2.7. Da prescrição do procedimento visando a restituição de ajudas comunitárias irregulares.
…
Compulsada a decisão em recurso, verificamos que o Tribunal a quo apreciou esta mesma questão, …
…
Ressuma do teor da decisão transcrita, aplicável, como dissemos, ao caso da recorrente, que o prazo prescricional invocado é relativo a uma obrigação de restituição decretada no âmbito de um procedimento administrativo.
Trata-se de obrigação com um fundamento completamente distinto daquele em que assenta a obrigação de restituição determinada no âmbito de um processo penal, como é o caso dos presentes autos.
Concretizando.
Referindo-se o segmento do acórdão que acaba de se transcrever ao caso em que a obrigação de restituição é decretada no âmbito de um procedimento administrativo, subscreve-se a mesma e os seus fundamentos no que tange à competência do Tribunal a quo para conhecer da invocada prescrição.
Porém, salvo melhor opinião, a pretensão recursória soçobra por outra razão. A de que, nos autos, a obrigação de restituição é decretada no âmbito do instituto da perda de vantagens obtidas em resultado da prática de um ilícito criminal e, por isso, nunca aquele prazo prescricional lhe seria aplicável.
E a tal não se opõe (nem poderia, pensamos) o Regulamento (CE/EURATOM) n.º 2988/95 como se retira, tanto do texto relativo às razões que justificam a regulamentação nele inscrita, como do teor dos preceitos que encerra.
Tal resulta dos seguintes segmentos da parte introdutória do Regulamento:
«Considerando que o direito comunitário instituiu sanções administrativas comunitárias no âmbito da política agrícola comum; que devem ser igualmente instituídas sanções da mesma natureza noutros domínios;
Considerando que as medidas e sanções comunitárias adoptadas no âmbito da realização dos objectivos da política agrícola comum são parte integrante dos regimes de ajudas; que têm uma finalidade própria que deixa às autoridades competentes dos Estados-membros toda a latitude de apreciação, no plano do direito penal, do comportamento dos agentes económicos em questão (…)
Considerando que, em virtude da exigência geral de equidade e do princípio da porporcionalidade, bem como à luz do princípio ne bis in idem, convém prever, na observância do acervo comunitário e das disposições previstas nas regulamentações comunitárias específicas vigentes aquando da entrada em vigor do presente regulamento, disposições adequadas para evitar a cumulação de sanções pecuniárias comunitárias e de sanções penais nacionais impostas pelos mesmos factos à mesma pessoa;
Considerando que, para efeitos da aplicação do presente regulamento, se pode considerar que um procedimento penal foi conduzido ao seu termo caso a autoridade nacional competente e o interessado tenham concluído uma transacção;
Considerando que o presente regulamento é aplicável sem prejuízo da aplicação do direito penal dos Estados-membros;»
E também do disposto nos artigos 1º nº1, 4º nº4, 5º nºs1 e 2 e 6º nº1 onde se prescreve que:
«Artigo 1º
1. Para efeitos da protecção dos interesses financeiros das Comunidades Europeias, é adoptada uma regulamentação geral em matéria de controlos homogéneos e de medidas e sanções administrativas relativamente a irregularidades no domínio do direito comunitário.
Artigo 4º
(…)
4. As medidas previstas no presente artigo não são consideradas sanções.
Artigo 5º
1. As irregularidades intencionais ou causadas por negligência podem determinar as seguintes sanções administrativas:
(…)
2. Sem prejuízo das disposições previstas nas regulamentações sectoriais vigentes aquando da entrada em vigor do presente regulamento, as restantes irregularidades apenas podem dar lugar às sanções não equiparáveis a uma sanção penal previstas no nº 1, desde que essas sanções sejam indispensáveis para a aplicação correcta da regulamentação.
Artigo 6º
1. Sem prejuízo das medidas e sanções administrativas comunitárias adoptadas com base nos regulamentos sectoriais vigentes aquando da entrada em vigor do presente regulamento, a imposição das sanções pecuniárias, com multas administrativas, pode ser suspensa por decisão da autoridade competente se, pelos mesmos factos, tiver sido movido procedimento penal contra a pessoa em questão. A suspensão do procedimento adminsitrativo suspende o prazo de prescrição previsto no artigo 3º 2. Se o procedimento penal não tiver seguimento, o procedimento adminsitrativo suspenso retoma a tramitação.»
Em suma, o Regulamento (CE/EURATOM) n.º 2988/95 expressamente salvaguarda a aplicação do direito penal dos Estados-Membros não pretendendo, por nenhuma forma, substituir o direito penal nacional, mas sim complementar a proteção dos interesses financeiros da União Europeia através de medidas e sanções administrativas.
O Regulamento nº2988/95 cria um sistema administrativo de proteção dos interesses financeiros da UE, mas reconhece e preserva a competência dos Estados-Membros para aplicar o seu direito penal.
…
No caso dos autos, por razões que o acórdão recorrido bem explicita (o Ministério Público peticionou a perda de vantagens apenas no caso de não ser deduzido pedido de indemnização pelo IFAP num momento em que ainda não existia o acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 5/2024), entendeu-se não declarar a perda de vantagens, atenta a dedução de pedido de indemnização, porém, é indiscutível que a condenação neste âmbito decorre do disposto no artigo 39º do Decreto-Lei n.º 28/84, sendo uma condenação decorrente da condenação pela prática do ilícito criminal e que acresce à aplicação das penas previstas para o mesmo.
… a condenação em causa é uma consequência da condenação pela prática do crime de fraude na obtenção de subsídio:
…
O que é inquestionável é que, a obrigação de restituição do indevidamente recebido decretada nos autos, não tem a natureza de sanção de caráter administrativo, não lhe sendo aplicável a disciplina do Regulamento (CE/EURATOM) n.º 2988/95 e, logo, o prazo de prescrição ali previsto.
Atento tudo o exposto, improcede o recurso, também nesta parte.
2.2.8. - Da medida das penas aplicadas.
…
Importa ter presentes as seguintes, breves, considerações relativas a esta matéria.
De acordo com o disposto no artigo 40º, n.º 1, do Código Penal, a aplicação de penas e de medidas de segurança, tem como finalidade “a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. A proteção de bens jurídicos consubstancia-se na denominada prevenção geral, enquanto que a reintegração do agente na sociedade, ou seja, o seu retorno ao tecido social lesado, se reporta à denominada prevenção especial.
O legislador quis, desta forma, oferecer ao julgador critérios seguros e objetivos de individualização da pena, quer na escolha, quer na dosimetria, sempre no pressuposto irrenunciável, de matriz constitucional, de que em caso algum a pena pode ultrapassar a culpa. Em conformidade, dispõe o n.º 2 do artigo 40º que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Em consonância com estes princípios dispõe o artigo 71º, n.º 1, do mesmo código que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.
De acordo com os ensinamentos de SS[58] a medida da pena há de ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva e definida e concretamente estabelecida em função de exigências de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização; a pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa. Mais adianta que “é o próprio conceito de prevenção geral de que se parte – proteção de bens jurídicos alcançada mediante a tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e no reforço) da validade da norma jurídica violada - que justifica que se fale de uma moldura de prevenção. Proporcional à gravidade do facto ilícito, a prevenção não pode ser alcançada numa medida exata, uma vez que a gravidade do facto ilícito é aferida em função do abalo daquelas expectativas sentido pela comunidade. A satisfação das exigências de prevenção terá certamente um limite definido pela medida da pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto ótimo de realização das necessidades preventivas da comunidade, que não pode ser excedido em nome de considerações de qualquer tipo, ainda quando se situe abaixo do limite máximo consentido pela culpa. Mas, abaixo daquela medida (ótima) de pena (da prevenção), outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a proteção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral”.
A mesma autora apresenta, então, três proposições em jeito de conclusões e de forma sintética: “Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas”.
E finaliza, afirmando: “É este o único entendimento consentâneo com as finalidades da aplicação da pena: tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, e não compensar ou retribuir a culpa. Esta é, todavia, pressuposto e limite daquela aplicação, diretamente imposta pelo respeito devido à eminente dignidade da pessoa do delinquente”.
Em suma, o limite mínimo da pena deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral que no caso se façam sentir, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva, ao passo que o limite máximo não deve exceder a medida da culpa do agente revelada no facto, sob pena de degradar a condição e dignidade humana do mesmo; e, dentro desses limites mínimo e máximo, a pena deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todos exigível, sendo, pois, as razões de prevenção especial que servem para encontrar o quantum de pena a aplicar[59].
Por seu lado, as várias alíneas do n.º 2 do mesmo artigo elencam, a título exemplificativo, as seguintes circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, devendo o tribunal abster-se de considerar aquelas que já fazem parte do tipo de crime cometido:
- O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente (al. a);
- A intensidade do dolo ou da negligência (al. b);
- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram (al. c);
- As condições pessoais do agente e a sua situação económica (d);
- A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime (al. e);
- A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena (al. f).
Como afirma o STJ no acórdão datado de 28-09-2005[60]:
«Nesta dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.»
Relativamente à alteração, em sede de recurso, da medida das penas fixadas, afirma Figueiredo Dias[61]: «Não há dúvidas de que é suscetível de revista a correção do procedimento ou das operações de determinação da medida da pena, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de fatores relevantes para aquela determinação, ou, pelo contrário, a indicação de fatores que devem considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Estando a questão do limite da culpa plenamente sujeita a revista, assim como a forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, já não o está a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato da pena, exceto quando tiverem sido violadas regras de experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.»
Assim, o tribunal de recurso deve intervir na pena, alterando-a, apenas quando detetar incorreções ou distorções no processo de aplicação da mesma, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que a regem. Nesta sede, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de atuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar.
«A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na deteção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exato de pena que, decorrendo duma correta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada»[62]. (sublinhado nosso)
Acresce que, sendo as penas aplicáveis ao ilícito por que alguns dos recorrentes vão condenados, penas cumulativas de prisão e multa e sendo alguns dos condenados pessoas coletivas, importa ter presente o que, a propósito consta do acórdão recorrido e que subscrevemos:
«Relativamente às penas cumulativas de prisão e multa, importa ter em consideração o que dispõem os artigos 5º e 7º do Decreto Lei n.º 48/95, de 15/03, que procedeu à revisão do Código Penal/82.
Assim, nos termos previstos no artigo 6º: «1 - Enquanto vigorarem normas que prevejam penas cumulativas de prisão e multa, sempre que a pena de prisão for substituída por multa será aplicada uma só pena equivalente à soma da multa directamente imposta e da que resultar da substituição da prisão. 2 - É aplicável o regime previsto no artigo 49.º do Código Penal à multa única resultante do que dispõe o número anterior, sempre que se tratar de multas em tempo».
E, nos termos previstos no artigo 7º: «Enquanto vigorarem normas que prevejam cumulativamente penas de prisão e multa, a suspensão da execução da pena de prisão decretada pelo tribunal não abrange a pena de multa».
A aplicação de uma pena, nos termos conjugados dos artigos 40º/1 e 2 e 71º/1 do Código Penal, visa «a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade», devendo a medida da pena ser determinada, a partir da moldura penal abstrata, em função da culpa do agente, que (dentro da moldura penal abstrata) fixa o limite máximo da pena aplicável, e das exigências de prevenção.
O Código Penal consagrou, assim, a moldura da prevenção, impondo que a medida da pena seja dada pela necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto. A moldura da pena há de ser idêntica à moldura da prevenção, onde o limite máximo coincide com o limite máximo de pena adequada à culpa e o limite mínimo coincide com o limite imposto pela prevenção geral de integração, sob as exigências de defesa do ordenamento jurídico. É dentro destes limites que atuará a prevenção geral de integração e especial de socialização ou de reintegração do agente (Cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Editorial Notícias, pgs. 227 e ss.).
No caso das pessoas coletivas, o artigo 11º do Código Penal consagra a regra geral de que as pessoas coletivas só são responsabilizadas criminalmente nos casos especialmente previstos na lei.
Assim, dispõe o artigo 11º do Código Penal, relativo à «Responsabilidade das pessoas singulares e coletivas», que: «1 - Salvo o disposto no número seguinte e nos casos especialmente previstos na lei, só as pessoas singulares são suscetíveis de responsabilidade criminal. 2 - As pessoas coletivas e entidades equiparadas, com exceção do Estado, de pessoas coletivas no exercício de prerrogativas de poder público e de organizações de direito internacional público, são responsáveis pelos crimes previstos nos artigos 144.º-B, 150.º, 152.º-A, 152.º-B, 156.º, 159.º e 160.º, nos artigos 163.º a 166.º sendo a vítima menor, e nos artigos 168.º, 169.º, 171.º a 177.º, 203.º a 206.º, 209.º a 223.º, 225.º, 226.º, 231.º, 232.º, 240.º, 256.º, 258.º, 262.º a 283.º, 285.º, 299.º, 335.º, 348.º, 353.º, 359.º, 363.º, 367.º, 368.º-A e 372.º a 377.º, quando cometidos: a) Em seu nome ou por sua conta e no seu interesse direto ou indireto por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança; ou b) Por quem aja em seu nome ou por sua conta e no seu interesse direto ou indireto, sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior, em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem. 3 - (Revogado). 4 - Entende-se que ocupam uma posição de liderança os órgãos e representantes da pessoa coletiva e quem nela tiver autoridade para exercer o controlo da sua atividade, incluindo os membros não executivos do órgão de administração e os membros do órgão de fiscalização. 5 - Para efeitos de responsabilidade criminal consideram-se entidades equiparadas a pessoas coletivas as sociedades civis e as associações de facto. 6 - A responsabilidade das pessoas coletivas e entidades equiparadas é excluída quando o agente tiver atuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito. 7 - A responsabilidade das pessoas coletivas e entidades equiparadas não exclui a responsabilidade individual dos respetivos agentes nem depende da responsabilização destes. 8 - A cisão e a fusão não determinam a extinção da responsabilidade criminal da pessoa coletiva ou entidade equiparada, respondendo pela prática do crime: a) A pessoa coletiva ou entidade equiparada em que a fusão se tiver efetivado; e b) As pessoas coletivas ou entidades equiparadas que resultaram da cisão. 9 - Sem prejuízo do direito de regresso, as pessoas que ocupem uma posição de liderança são subsidiariamente responsáveis pelo pagamento das multas e indemnizações em que a pessoa coletiva ou entidade equiparada for condenada, relativamente aos crimes: a) Praticados no período de exercício do seu cargo, sem a sua oposição expressa; b) Praticados anteriormente, quando tiver sido por culpa sua que o património da pessoa coletiva ou entidade equiparada se tornou insuficiente para o respetivo pagamento; ou c) Praticados anteriormente, quando a decisão definitiva de as aplicar tiver sido notificada durante o período de exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento. 10 - Sendo várias as pessoas responsáveis nos termos do número anterior, é solidária a sua responsabilidade. 11 - Se as multas ou indemnizações forem aplicadas a uma entidade sem personalidade jurídica, responde por elas o património comum e, na sua falta ou insuficiência, solidariamente, o património de cada um dos associados».
Em conjugação com o preceituado no artigo 11º/1 («Salvo o disposto … nos casos especialmente previstos na lei …»), o artigo 3º do Decreto-Lei n.º 28/84, relativo à «responsabilidade criminal das pessoas coletivas e equiparadas», consagra, como já vimos, uma disposição especialmente prevista na lei, de responsabilização criminal das pessoas pelos crimes previstos em tal diploma legal e, em particular, do crime de fraude na obtenção de subsídio, ao dispor que: «1 - As pessoas coletivas, sociedades e meras associações de facto são responsáveis pelas infrações previstas no presente diploma quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse coletivo. 2 - A responsabilidade é excluída quando o agente tiver atuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito. 3 - A responsabilidade das entidades referidas no n.º 1 não exclui a responsabilidade individual dos respetivos agentes, sendo aplicável, com as necessárias adaptações, o n.º 3 do artigo anterior».
Daqui se conclui que as pessoas coletivas (sociedades comerciais) que foram condenadas como coautoras do crime de fraude na obtenção de subsídio devem ser também ser sancionadas criminalmente com as sanções legalmente previstas.
Os artigos 90º-A a 90º-M do Código Penal tratam «das consequências jurídicas do facto» relativamente às «pessoas coletivas», dispondo o artigo 90º-A (na redação em vigor no momento da prática dos factos: Lei n.º 59/2007, de 04/09), relativo às «Penas aplicáveis e determinação da pena», que: «1 - Pelos crimes previstos no n.º 2 do artigo 11.º, são aplicáveis às pessoas coletivas e entidades equiparadas as penas principais de multa ou de dissolução. 2 - Pelos mesmos crimes podem ser aplicadas às pessoas coletivas e entidades equiparadas as seguintes penas acessórias: a) Injunção judiciária; b) Interdição do exercício de atividade; c) Proibição de celebrar certos contratos ou contratos com determinadas entidades; d) Privação do direito a subsídios, subvenções ou incentivos; e) Encerramento de estabelecimento; f) Publicidade da decisão condenatória»[63].
Em todo o caso, nos termos especialmente previstos no artigo 7º do Decreto Lei n.º 28/84, que consagra as «Penas aplicáveis às pessoas coletivas e equiparadas» relativamente aos crimes previstos nesse diploma legal (entre eles o crime de fraude na obtenção de subsídio): «1 - Pelos crimes previstos neste diploma são aplicáveis às pessoas coletivas e equiparadas as seguintes penas principais: a) Admoestação; b) Multa; c) Dissolução. 2 - Aplicar-se-á a pena de admoestação sempre que, nos termos gerais, tal pena possa ser aplicada à pessoa singular que, em representação e no interesse da pessoa coletiva ou equiparada, tiver praticado o facto. 3 - Quando aplicar a pena de admoestação o tribunal poderá, cumulativamente, aplicar a pena acessória de caução de boa conduta. 4 - Cada dia de multa corresponde a uma quantia entre 1000$00 e 100.000$00[64], que o tribunal fixará em função da situação económica e financeira da pessoa coletiva ou equiparada e dos seus encargos. 5 - Se a multa for aplicada a uma entidade sem personalidade jurídica, responderá por ela o património comum e, na sua falta ou insuficiência, solidariamente, o património de cada um dos associados. 6 - A pena de dissolução só será decretada quando os fundadores da pessoa coletiva ou sociedade tenham tido a intenção, exclusiva ou predominante, de, por meio dela, praticar crimes previstos no presente diploma ou quando a prática reiterada de tais crimes mostre que a pessoa coletiva ou sociedade está a ser utilizada para esse efeito, quer pelos seus membros, quer por quem exerça a respetiva administração».
Nos termos previstos no artigo 8º do mesmo diploma legal, que prevê as «penas acessórias» aplicáveis aos crimes previstos nesse diploma legal, «Relativamente aos crimes previstos no presente diploma podem ser aplicadas as seguintes penas acessórias: a) Perda de bens; b) Caução de boa conduta; c) Injunção judiciária; d) Interdição temporária do exercício de certas atividades ou profissões; e) Privação temporária do direito de participar em arrematações ou concursos públicos de fornecimentos; f) Privação do direito a subsídios ou subvenções outorgados por entidades ou serviços públicos; g) Privação do direito a participar em feiras ou mercados; h) Privação do direito de abastecimento através de órgãos da Administração Pública ou de entidades do sector público; i) Encerramento temporário do estabelecimento; j) Encerramento definitivo do estabelecimento; l) Publicidade da decisão condenatória» – encontrando-se o regime de cada uma das penas acessórias previsto nos artigo 9º a 19º do mesmo diploma legal.
Daqui resulta que, em tudo quanto estiver previsto nos 4º a 19º do Decreto Lei n.º 24/84, que prevê o regime especial de sancionamento dos crimes previstos neste diploma legal, se deve aplicar o regime legal aí previsto. Em tudo o que não estiver especialmente aí regulado, nos termos previstos no artigo 1º/1 do Decreto Lei n.º 28/84, deve ser subsidiariamente aplicável (à punição do crime de fraude na obtenção de subsídio) o regime previsto no Código Penal, podendo, assim, haver necessidade de recurso, subsidiário, ao regime legal previstos nos artigos 90º-A a 90º-M do Código Penal.
O artigo 90º-B (redação em vigor no momento da prática dos factos Lei n.º 59/2007, de 04/09), relativamente à «pena de multa», dispõe que: «1 - Os limites mínimo e máximo da pena de multa aplicável às pessoas coletivas e entidades equiparadas são determinados tendo como referência a pena de prisão prevista para as pessoas singulares. 2 - Um mês de prisão corresponde, para as pessoas coletivas e entidades equiparadas, a 10 dias de multa. 3 - Sempre que a pena aplicável às pessoas singulares estiver determinada exclusiva ou alternativamente em multa, são aplicáveis às pessoas coletivas ou entidades equiparadas os mesmos dias de multa. 4 - A pena de multa é fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos no n.º 1 do artigo 71.º. 5 - Cada dia de multa corresponde a uma quantia entre (euro) 100 e (euro) 10 000, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos com os trabalhadores, sendo aplicável o disposto nos n.ºs 3 a 5 do artigo 47.º. 6 - Findo o prazo de pagamento da multa ou de alguma das suas prestações sem que o pagamento esteja efetuado, procede-se à execução do património da pessoa coletiva ou entidade equiparada. 7 - A multa que não for voluntária ou coercivamente paga não pode ser convertida em prisão subsidiária».
O artigo 90º-C, relativo à «Admoestação», dispõe que «1 - Se à pessoa coletiva ou entidade equiparada dever ser aplicada pena de multa em medida não superior a 240 dias, pode o tribunal limitar-se a proferir uma admoestação, aplicando-se correspondentemente o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 60.º. 2 - A admoestação consiste numa solene censura oral feita em audiência, pelo tribunal, ao representante legal da pessoa coletiva ou entidade equiparada ou, na sua falta, a outra pessoa que nela ocupe uma posição de liderança».
O artigo 90º-D, relativo à «Caução de boa conduta», dispõe que: «1 - Se à pessoa coletiva ou entidade equiparada dever ser aplicada pena de multa em medida não superior a 600 dias, pode o tribunal substituí-la por caução de boa conduta, entre (euro) 1000 e (euro) 1 000 000, pelo prazo de um a cinco anos. 2 - A caução é declarada perdida a favor do Estado se a pessoa coletiva ou entidade equiparada praticar novo crime pelo qual venha a ser condenada no decurso do prazo, sendo-lhe restituída no caso contrário. 3 - A caução pode ser prestada por meio de depósito, penhor, hipoteca, fiança bancária ou fiança. 4 - O tribunal revoga a pena de caução de boa conduta e ordena o cumprimento da pena de multa determinada na sentença se a pessoa coletiva ou entidade equiparada não prestar a caução no prazo fixado».
O artigo 90º-E, relativo à «Vigilância judiciária», dispõe que: «1 - Se à pessoa coletiva ou entidade equiparada dever ser aplicada pena de multa em medida não superior a 600 dias, pode o tribunal limitar-se a determinar o seu acompanhamento por um representante judicial, pelo prazo de um a cinco anos, de modo que este proceda à fiscalização da atividade que determinou a condenação. 2 - O representante judicial não tem poderes de gestão da pessoa coletiva ou entidade equiparada. 3 - O representante judicial informa o tribunal da evolução da atividade da pessoa coletiva ou entidade equiparada semestralmente ou sempre que entender necessário. 4 - O tribunal revoga a pena de vigilância judiciária e ordena o cumprimento da pena de multa determinada na sentença se a pessoa coletiva ou entidade equiparada, após a condenação, cometer crime pelo qual venha a ser condenada e revelar que as finalidades da pena de vigilância judiciária não puderam, por meio dela, ser alcançadas».
O artigo 90.º-F, relativo à «Pena de dissolução», dispõe que «A pena de dissolução é decretada pelo tribunal quando a pessoa coletiva ou entidade equiparada tiver sido criada com a intenção exclusiva ou predominante de praticar os crimes indicados no n.º 2 do artigo 11.º ou quando a prática reiterada de tais crimes mostre que a pessoa coletiva ou entidade equiparada está a ser utilizada, exclusiva ou predominantemente, para esse efeito, por quem nela ocupe uma posição de liderança».
O artigo 90º-G, relativo à «Injunção judiciária», dispõe que: «1 - O tribunal pode ordenar à pessoa coletiva ou entidade equiparada: a) A adoção e execução de certas providências, designadamente as que forem necessárias para cessar a atividade ilícita ou evitar as suas consequências; ou b) A adoção e implementação de programa de cumprimento normativo com medidas de controlo e vigilância idóneas para prevenir crimes da mesma natureza ou para diminuir significativamente o risco da sua ocorrência. 2 - O tribunal determina o prazo em que a injunção deve ser cumprida a partir do trânsito em julgado da sentença. 3 - A pena de injunção judiciária é cumulável com as penas acessórias de proibição de celebrar contratos e de privação do direito a subsídios, subvenções ou incentivos».
O artigo 90.º-H, relativo à «Proibição de celebrar contratos», dispõe que: «A proibição de celebrar certos contratos ou contratos com determinadas entidades é aplicável, pelo prazo de um a cinco anos, a pessoa coletiva ou entidade equiparada».
O artigo 90º-I, relativo à «Privação do direito a subsídios, subvenções ou incentivos», dispõe que: «A privação do direito a subsídios, subvenções ou incentivos outorgados pelo Estado e demais pessoas coletivas públicas é aplicável, pelo prazo de um a cinco anos, a pessoa coletiva ou entidade equiparada».
O artigo 90.º-J, relativo à «Interdição do exercício de atividade», dispõe que: «1 - A interdição do exercício de certas atividades pode ser ordenada pelo tribunal, pelo prazo de três meses a cinco anos, quando o crime tiver sido cometido no exercício dessas atividades. 2 - Quando a pessoa coletiva ou entidade equiparada cometer crime punido com pena de multa superior a 600 dias, o tribunal pode determinar a interdição definitiva de certas atividades. 3 - No caso previsto no número anterior, o tribunal pode reabilitar a pessoa coletiva ou entidade equiparada se esta se tiver conduzido, por um período de cinco anos depois de cumprida a pena principal, de forma que torne razoável supor que não cometerá novos crimes».
O artigo 90.º-L, relativo ao «Encerramento de estabelecimento», dispõe que: «1 - O encerramento de estabelecimento pode ser ordenado pelo tribunal, pelo prazo de três meses a cinco anos, quando a infração tiver sido cometida no âmbito da respetiva atividade. 2 - Quando a pessoa coletiva ou entidade equiparada cometer crime punido com pena de multa superior a 600 dias, o tribunal pode determinar o encerramento definitivo do estabelecimento. 3 - No caso previsto no número anterior, o tribunal pode reabilitar a pessoa coletiva ou entidade equiparada e autorizar a reabertura do estabelecimento se esta se tiver conduzido, por um período de cinco anos depois de cumprida a pena principal, de forma que torne razoável supor que não cometerá novos crimes. 4 - Não obsta à aplicação da pena de encerramento a transmissão do estabelecimento ou a cedência de direitos de qualquer natureza, relacionadas com o exercício da atividade, efetuadas depois da instauração do processo ou depois da prática do crime, salvo se o adquirente se encontrar de boa fé. 5 - O encerramento do estabelecimento não constitui justa causa para o despedimento dos trabalhadores nem fundamento para a suspensão ou redução do pagamento das respetivas remunerações».
O artigo 90.º-M, relativo à «Publicidade da decisão condenatória», dispõe, finalmente, que: «1 - A decisão condenatória é sempre publicada nos casos em que sejam aplicadas as penas previstas nos artigos 90.º-C, 90.º-J e 90.º-L, podendo sê-lo nos restantes casos. 2 - Sempre que for aplicada a pena de publicidade da decisão condenatória, esta é efetivada, a expensas da condenada, em meio de comunicação social a determinar pelo tribunal, bem como através da afixação de edital, por período não inferior a 30 dias, no próprio estabelecimento comercial ou industrial ou no local de exercício da atividade, por forma bem visível ao público. 3 - A publicidade da decisão condenatória é feita por extrato, de que constam os elementos da infração e as sanções aplicadas, bem como a identificação das pessoas coletivas ou entidades equiparadas».
Balizado por estas regras e princípios consolidados, quer na Doutrina, quer na Jurisprudência, cabe a este Tribunal de recurso, apreciar a fundamentação jurídica do acórdão recorrido, tendo em conta os concretos fundamentos recursivos, aduzidos pelos recorrentes acima identificados.
Vejamos.
… o Tribunal a quo ponderou as circunstâncias atendíveis, incluindo as assinaladas pelos Recorrentes (como veremos) e surge evidente, em face da fundamentação transcrita supra, que a pretensão dos Recorrentes soçobra, até porque parte do seu argumentário assenta numa leitura errada da decisão.
Quanto ao primeiro argumento.
Afirmam os Recorrentes que o Tribunal a quo não deu relevância àquilo que resultou provado quanto ao desempenho profissional, enquadramento familiar e social, ausência de quaisquer antecedentes criminais ou atividades reincidentes ou perigosas para a sociedade, matéria que corresponde ao teor dos pontos 2153. a 2236. dos factos provados.
Ora, não se compreende tal alegação quando do segmento da decisão transcrito supra consta expressamente que foi considerado a ausência de antecedentes criminais, as condições económico-financeiras e encargos normais, bem como o bom comportamento mantido anterior e posteriormente à data da prática dos factos e a respetiva inserção familiar, profissional e social.
Mais, não só o Tribunal fez constar que ponderou essas circunstâncias (e não se esperaria, dada a extensão do processo, que reproduzisse os factos que estão em causa relativos a essas circunstâncias para cada um dos muitos condenados), como o fez refletir, efetivamente, na medida das penas, como veremos infra.
Quanto ao segundo argumento, os recorrentes partem de uma premissa errada que não tem respaldo na decisão recorrida.
Com efeito, na decisão, atento o número elevado de condenados e com vista a garantir maior justiça relativa, o Tribunal a quo estabeleceu patamares de medidas das penas indexados a outros tantos patamares de valor das fraudes.
Contudo, a decisão é muito clara quando restringe essa parametrização aos condenados por fraude na obtenção de subsídio na sua forma simples.
2.2.8.2. …
O Tribunal, como se pode ver do trecho do acórdão transcrito, deu grande relevo ao valor da fraude, o que conduziu à fixação da pena no nível assinalado.
Admitimos que penas ligeiramente mais baixas também cumpririam os fins assinalados às mesmas, porém, como se disse supra, a alteração das penas fixadas pelo Tribunal a quo só é legítima se as mesmas se mostrarem exageradas ou desproporcionadas, o que, manifestamente, não é o caso, se se tiver em consideração que o valor da fraude ascendeu a €13 740,00 (treze mil, setecentos e quarenta euros), valor muito mais elevado do que o da generalidade das fraudes praticads pelos restantes condenados na sua forma simples.
Assim, somos a considerar que a medida concreta das aludidas penas fixada na decisão recorrida não nos merece censura, pois não viola quaisquer regras de experiência, nem se revela desproporcionada, improcedendo o recurso, também nesta parte.
2.2.8.4. …
Começando pela taxa diária da multa aplicada ao recorrente …
O recorrente remete para o que ficou provado no que concerne aos seus rendimentos, concluindo que a taxa, em face dos mesmos, é excessiva.
Estando em causa uma pessoa singular e não contendo o Decreto-lei nº28/84 de 20-01 norma expressa quanto ao quantitativo diário da multa (só o prevê quanto às pessoas coletivas no seu artigo 7ª nº4), por remissão constante do artigo 1º do mesmo diploma, aplica-se no caso, o que vem previsto no Código Penal.
Assim, cada dia de multa corresponde a uma quantia entre €5 e €500 que é fixado “em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos” - artigo 47.º, n. º2 do Código Penal.
Como acentuava o Conselheiro Maia Gonçalves, a amplitude estabelecida naquele preceito visa “eliminar ou pelo menos esbater as diferenças de sacrifício que o seu pagamento implica entre os réus possuidores de diferentes meios de a solver.”[65]
Quanto às pessoas singulares, haverá que considerar a totalidade dos rendimentos próprios do arguido, independentemente da sua fonte, deduzidos de impostos, deveres jurídicos de assistência e obrigações duradouras sobre os rendimentos.[66]
Recorda-se a lição do acórdão do STJ de 02-10-1997[67]: “como a multa é uma pena, o montante diário da mesma deve ser fixado em termos de tal sanção representar um sacrifício real para o condenado, sob pena de se estar a desacreditar esta pena, os tribunais e a própria justiça, gerando um sentimento de insegurança, de inutilidade de impunidade”.
Também o Prof. Taipa de Carvalho assinala em termos incisivos que: “a multa enquanto sanção penal, não pode deixar de ter um efeito preventivo e, portanto, não pode deixar de ter uma natureza de pena ou sofrimento, isto é, e por outras palavras, não pode o condenado a multa deixar de a ‘sentir na pele’”[68].
Já antes o Prof. Figueiredo Dias, salientara que “é indispensável (…), que a aplicação concreta da pena de multa não represente uma forma disfarçada de absolvição ou o Ersatz de uma dispensa ou isenção de pena que não se tem coragem de proferir”[69].
Por isso, o montante diário da multa deve ser fixado em termos de constituir um sacrifício real para o condenado sem, no entanto, deixar de lhe serem asseguradas as suas necessidades e do respetivo agregado familiar.
Deste modo, a jurisprudência vem entendendo que, sob pena de flagrante e grosseira violação do mais elementar princípio da justiça relativa, o patamar mínimo dos €5,00 deve ser reservado a pessoas pobres que vivem no limiar da subsistência, quando não indigentes, mesmo.
Neste sentido, vejam-se, entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 07-04-2008[70] e de 18-10-2010[71]; os acórdãos do Tribunal da Relação de Porto de 09-02-2011[72] e de 31-01-2024[73] e o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 06-02-2024,[74]todos disponíveis in www.dgsi.pt;
…
Assim, o que resulta desta factualidade é que o agregado familiar do recorrente é constituído por ele e pela esposa e que o rendimento ilíquido declarado no ano de 2022 foi de cerca de €75 000,00 (setenta e cinco mil euros), o que traduz um rendimento mensal ilíquido de €6 250,00 (seis mil, duzentos e cinquenta euros).
Não resultou provado qualquer encargo concreto, nem se o filho que o ajuda na sua atividade tem o seu próprio rendimento, o que será o natural, tendo ele próprio que declarar rendimentos que nada têm a ver com os declarados pelo recorrente.
Assim, admitindo que o rendimento mensal líquido seja, pelo menos, de metade, a taxa fixada não se nos afigura exagerada.
Atento o exposto, não existe qualquer razão para alterar o decidido nesta parte.
Relativamente à medida das penas aplicadas a todos.
Resulta dos trechos transcritos que o Tribunal a quo, ao contrário do referido por estes recorrentes, teve em consideração, para além do mais, que são primários; que já pagaram ao … e que já decorreu muito tempo desde a data dos factos que lhe são imputados (remontam ao ano de 2012), sendo certo que, remete para o que ficou consignado na tabela já mencionada e nas considerações gerais sobre todos os condenados onde se afirma que a generalidade dos arguidos, durante o tempo decorrido, mantiveram um bom comportamento; que todos se mostram perfeitamente integrados no respetivo meio social, sendo queridos e estimados pelas pessoas que os rodeiam e que as demais condições pessoais dos arguidos, refletidas nos factos que ficaram provados a este respeito, em conformidade com a avaliação dos técnicos de reinserção social, evidenciam estarmos perante arguidos integrados familiar e profissionalmente, tendo alguns deles, em consequência do tempo decorrido, se reformado entretanto, mas tendo todos eles evidenciado hábitos de trabalho enraizados.
Resulta, pois, muito claro, que o Tribunal teve em conta todas as circunstâncias a que aludem os recorrentes.
Mas atentemos nas penas fixadas e nas molduras abstratas que estão em causa, bem como nas sub-molduras criadas pelo Tribunal a quo, para concluir, como faremos, pela improcedência do recurso (exceto no que concerne à pena única aplicada ao arguido BB, como se verá).
Também estes recorrentes não se insurgem contra o facto de o Tribunal a quo ter estabelecido patamares de medidas das penas indexados a outros tantos patamares de valor das fraudes nos casos em que está em causa o crime de fraude na obtenção de subsídio na sua forma simples (nomeadamente, quanto ao seu equilíbrio em termos de justiça relativa), como é o caso dos recorrentes.
Quanto ao recorrente II …
Tendo resultado provado que o valor da fraude, no seu caso, ascendeu a €1 350,0 (mil trezentos e cinquenta euros), o Tribunal a quo fixou a pena no limiar mínimo da sub-moldura que criou.
Com efeito, consta da decisão que, sendo o valor da fraude superior a €1 000,00 (mil euros) e igual ou inferior a € 2 500,00 (dois mil e quinhentos euros) a moldura dentro da qual operam as demais circunstâncias específicas quanto a cada um dos condenados é a de pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão e 70 (setenta) dias de multa.
Donde resulta que a pena em que o recorrente foi condenado foi fixada no limite mínimo dessa moldura.
Por outro lado, considerando que a moldura penal abstrata fixada no artigo 36º nº1 do do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20.01 é de pena de prisão de 1 a 5 anos e multa de 50 a 150 dias, afigura-se-nos ser a encontrada pelo Tribunal a quo equilibrada, tendo em conta o valor da fraude que, no caso do crime simples assumiu, no que ao recorrente concerne, um valor mediano.
O Tribunal a quo procedeu com equilíbrio e com respeito pelos critérios legais de dosimetria penal, tendo em conta tudo quanto acima se explicitou.
Com efeito partindo das molduras abstratas das penas que, como se disse, vão de um mínimo de 1 (um) ano a um máximo de 5 (cinco) anos de prisão e de um mínimo de 50 (cinquenta) a um máximo de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, as penas aplicadas
- 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão - situa-se abaixo do nível do 1/6 (1 ano e 8 meses) da moldura útil aplicável.
- 70 (setenta) dias de multa - situa-se ao nível do 1/5 (70 dias) da moldura útil aplicável.
O Tribunal, como se pode ver do trecho do acórdão transcrito, deu especial relevo ao valor da fraude, mas também à circunstância de o Recorrente ter procedido pagamento dos valores reclamados pelo IFAP e bem assim, ao tempo decorrido desde a prática dos factos (que remontam a 2012) e à ausência de antecedentes criminais, o que conduziu à fixação das penas nos seus limiares mínimos.
…
O mesmo se diga, no que toca ao recorrente BB …
O recorrente foi condenado, pela prática de dois crimes de de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, previstos pelo artigo 36º nºs1 alínea a) e 8 alínea b) do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20.01 em duas penas parcelares:
- de 3 (três) anos de prisão e 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros),
- de 2 (dois) anos de prisão e de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros)
Em cúmulo Jurídico, nas penas únicas de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, e de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros), o que perfaz o montante de €840,00 (oitocentos e quarenta euros).
Não percebemos, porque o recorrente nada diz a este respeito, se discorda apenas das medidas das penas parcelares, ou também, ou só, da da pena única.
Porém, e evitando repetições, dando por reproduzido o que supra se expendeu quanto aos restantes recorrentes, verificamos que, também neste caso, e no que toca às penas parcelares, a decisão não nos merece censura.
Com efeito, aquelas penas parcelares estão fixadas no limite mínimo das sub-molduras criadas pelo Tribunal (que o recorrente não contesta por nenhuma forma), pois que, quanto à primeira, sendo o valor da fraude de € 12 433,20 (doze mil, quatrocentos e trinta e três euros), as penas fixadas [3 (três) anos de prisão e 100 (cem) dias de multa] correspondem ao limiar mínimo da sub-moldura fixada para os valores superiores a € 10 000 (dez mil euros) - e até ao valor consideravelmente elevado - e quanto à segunda, sendo o valor da fraude de € 3 208,50 (três mil, duzentos e oito euros e cinquenta cêntimos), as penas fixadas [2 (dois) anos de prisão e de 80 (oitenta) dias de multa], correspondem ao limiar mínimo da submoldura fixada para os valores superiores € 2 500,00 (dois mil e quinhentos euros) e igual ou inferior a €5 000,00 (cinco mil euros).
Também neste caso, considerando que a moldura penal abstrata fixada no artigo 36º nº1 do do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20.01 é de pena de prisão de 1 a 5 anos e multa de 50 a 150 dias, afigura-se-nos serem as encontradas pelo Tribunal a quo equilibradas, tendo em conta o valor das fraudes que, no caso do crime simples assumiu, no que ao recorrente concerne, num caso, um valor elevado e noutro, um valor mediano.
O Tribunal a quo procedeu com equilíbrio e com respeito pelos critérios legais de dosimetria penal, tendo em conta tudo quanto acima se explicitou.
Com efeito partindo das molduras abstratas das penas que, como se disse, vão de um mínimo de 1 (um) ano a um máximo de 5 (cinco) anos de prisão e de um mínimo de 50 (cinquenta) a um máximo de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, as penas aplicadas
- Para a fraude no valor de €3 208,50 (três mil, duzentos e oito euros e cinquenta cêntimos), 2 (dois) anos de prisão – situa-se ao nível do 1/4 (2 anos) da moldura útil aplicável e 80 (oitenta) dias de multa - situa-se abaixo do nível do 1/3 (83 dias) da moldura útil aplicável.
- Para a fraude no valor de €12 433,20 (doze mil, quatrocentos e trinta e três euros e vinte cêntimos), 3 (três) anos de prisão – situa-se ao nível do 1/2 (3 anos) da moldura útil aplicável e 100 (cem) dias de multa - situa-se, igualmente, ao nível do 1/2 (100 dias) da moldura útil aplicável.
As penas parcelares, não nos merecem, assim, qualquer censura, refletindo de forma equilibrada a diferença considerável entre os valores das fraudes.
Quanto à pena única.
O Tribunal fixou a pena única em 4 (quatro) anos de prisão e 140 (cento e quarenta dias) de multa à taxa diária de €6,00 (seis euros), perfazendo o total de €840,00 (oitocentos e quarenta euros).
Cremos que a mesma se mostra algo desproporcionada em face das penas concretamente aplicadas [3 (três) anos e 2 (dois) anos de prisão e 100 dias e 80 dias de multa] da moldura penal abstrata do concurso [entre 3 (três) anos e 5 (cinco) anos, no caso da pena de prisão e entre 100 (cem) dias e 180 (cento e oitenta dias) no caso da pena de multa] e do que a tal respeito vem sendo seguido pelos tribunais superiores na determinação da pena única, pena essa que está muito para lá do 1/3 da diferença entre o mínimo e o máximo a acrescer ao limite mínimo da moldura da pena única (situando-se ao nível de ½).[75]
Vejamos então.
Na determinação da pena única do concurso são considerados em conjunto os factos e a personalidade do agente (2ª parte do nº1 do artigo 77º do Código Penal).
Para tal, é ainda necessário, avaliar a conexão e o tipo de conexão existente entre os vários factos criminosos concorrentes e averiguar se eles se reconduzem a uma tendência criminosa ou apenas a uma pluriocasionalidade, bem como analisar o efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente[76].
Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.[77]
Na fixação da pena única o Tribunal tem de socorrer-se dos parâmetros da fixação das penas parcelares, podendo funcionar como “guias” na fixação da pena do concurso.
A sua fixação – tal como resulta da lei – não se determina com a soma dos crimes cometidos e das penas respetivas, mas da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do arguido, pois tem de ser considerado e ponderado um conjunto de factos e a sua personalidade “como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado.[78]
Sobre os factos, valem as considerações gerais tecidas pelo Tribunal a quo e já mencionadas supra onde avulta a exasperação da ilicitude traduzida no valor mais elevado de uma das fraudes, já refletido na medida da pena parcelar mais elevada.
No mais, valem aqui as referências (comuns à generalidade dos arguidos) ao facto de o arguido ser primário, ter pago os valores em causa e ter decorrido muito tempo desde a prática dos factos mantendo esse bom comportamento, bem como, a sua “completa integração na família e no mundo laboral, evidenciando hábitos de trabalho enraizados”.
É certo, também, que as exigências de prevenção geral são elevadas conforme assinalado pelo Tribunal a quo:
“(…) e as fortes necessidades de prevenção geral que este tipo de condutas reclama na comunidade [dada a enorme frequência com que ocorrem crimes económico-financeiros e o sentimento generalizado de revolta da população sobre os mesmos, pondo em causa a imagem e a confiança nas instituições e no Estado, a validade dos princípios que devem presidir financiamento do setor produtivo pelo Estado e pela União Europeia, reclamando por parte da comunidade uma necessidade acrescida de restabelecimento da confiança na validade das normas infringidas, a exigir do parte do tribunal, dentro do grau de culpa de cada comparticipante, penas que reflitam a gravidade de tais comportamentos]”
Porém, resulta das considerações tecidas pelo próprio Tribunal a quo que não se trata, avaliados os factos e personalidade do Arguido no seu conjunto, de qualquer tendência criminosa, mas de um episódio isolado no percurso vivencial do arguido, sendo certo que o seu comportamento futuro não reclama, atento o seu bom comportamento passado, até nos longos anos que se seguiram à prática dos crimes, pena particularmente severa.
Vejamos.
A moldura do cúmulo, de acordo com o previsto no artigo 77º nº2 do Código Penal é, no caso dos autos, de 3 (três) anos a 5 (cinco) anos, no caso da pena de prisão e de 100 (cem) dias a 180 (cento e oitenta dias) no caso da pena de multa.
A pena fixada pelo Tribunal a quo foi a de 4 (quatro) anos de prisão e 140 (cento e quarenta) dias de multa.
Tal pena situa-se no nível do ½ da moldura útil aplicável (4 anos de prisão e 140 dias de multa).
Atento o mencionado supra, não vemos razões para que a pena única se fixe para lá do nível do 1/3 da moldura útil aplicável, surgindo-nos, até, como mais razoável, fixá-la ao nível do ¼.
Assim, tendo em conta a globalidade dos factos e bem assim os critérios que vêm sendo adotados pela Jurisprudência neste particular (pese embora não exista unanimidade), reputa-se mais adequado condenar o mesmo arguido na pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão e 120 (cento e vinte) dias de multa, reduzindo deste modo a pena única aplicada pelo tribunal a quo para o nível do 1/4 da moldura útil aplicável.
Procede, pois, parcialmente, o recurso.
Quanto à recorrente HH …
Tendo resultado provado que o valor da fraude, no seu caso, ascendeu a €12 433,20 (doze mil, quatrocentos e trinta e três euros e vinte cêntimos), o Tribunal a quo fixou a pena no limiar mínimo da sub-moldura que criou.
Com efeito, consta da decisão que, sendo o valor da fraude superior a € 10 000,00 (dez mil euros), até ao valor consideravelmente elevado, a moldura dentro da qual operam as demais circunstâncias específicas a de pena de 3 (três) anos de prisão e 100 (cem) dias de multa.
Donde resulta que a pena em que a recorrente foi condenada foi fixada no limite mínimo dessa moldura.
Por outro lado, considerando que a moldura penal abstrata fixada no artigo 36º nº1 do do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20.01 é de pena de prisão de 1 a 5 anos e multa de 50 a 150 dias, afigura-se-nos ser a encontrada pelo Tribunal a quo equilibrada, tendo em conta o valor da fraude que, no caso do crime simples assumiu, no que ao Recorrente concerne, um valor elevado.
O Tribunal a quo procedeu com equilíbrio e com respeito pelos critérios legais de dosimetria penal, tendo em conta tudo quanto acima se explicitou.
Com efeito partindo das molduras abstratas das penas que, como se disse, vão de um mínimo de 1 (um) ano a um máximo de 5 (cinco) anos de prisão e de um mínimo de 50 (cinquenta) a um máximo de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, as penas aplicadas
- 3 (três) anos de prisão - situa-se ao nível do 1/2 (3 anos) da moldura útil aplicável.
- 100 (cem) dias de multa - situa-se, igualmente, ao nível do 1/2 (100 dias) da moldura útil aplicável.
Atento o exposto, afigura-se-nos serem as penas em causa equilibradas, tendo em conta o valor da fraudes que, no caso do crime simples assumiu, no que à recorrente concerne, um valor elevado.
Assim, também no caso da recorrente HH …, somos a considerar que a medida concreta das aludidas penas fixada na decisão recorrida não nos merece censura, pois para além de se mostrar equilibrada, não viola quaisquer regras de experiência, nem se revela desproporcionada, improcedendo os recursos, também nesta parte.
Em suma, à exceção da pena única aplicada ao recorrente BB … todas as restantes penas aplicadas aos recorrentes se mostram fixadas tendo em conta os factos provados, a qualificação jurídica que mereceram e as regras legais de dosimetria das penas, estando, também de acordo com as regras de experiência comum, pelo que, a decisão quanto às mesmas não nos merece censura, confirmando-se.
***
2.2.9. – Da não transcrição da condenação no Certificado de Registo Criminal.
… os recorrentes não formularam esta pretensão junto do Tribunal a quo (e podem fazê-lo, mesmo depois do trânsito em julgado da condenação), fazendo-o junto deste Tribunal de recurso de forma inovatória.
Porém, era exigível que os arguidos submetessem essa sua pretensão à ponderação do Tribunal de 1ª instância, ali esgrimindo os fundamentos que imporiam a adoção dessa sua pretensão.
O que não fizeram, pois apenas com o recurso a desencadearam: os recorrentes vieram apresentar no recurso uma pretensão não formulada até à prolação do acórdão, propondo uma questão nova porque não suscitada até à interposição do recurso.
Ora, os recursos são meios de obter a reapreciação das questões já anteriormente colocadas e a eventual reforma de decisões dos tribunais inferiores, e não de alcançar decisões novas.
O que os recorrentes pretendem é que se julgue ex-novo e não que se reaprecie uma decisão tomada pela 1ª instância, o que está vedado face ao modelo do recurso que o Direito português consagra.
Com efeito, o âmbito do recurso encontra-se objetivamente delimitado pelas questões colocadas no Tribunal recorrido pelo que, em regra, não é possível solicitar ao Tribunal superior que se pronuncie sobre uma questão que não se integra no objecto da causa tal como foi já apresentada e decidida.
«O conteúdo do direito ao recurso, sendo em primeira linha uma garantia de defesa, também deve ser identificado como garantia do duplo grau de jurisdição, quanto:
- às decisões penais condenatórias; e
- às decisões penais respeitantes à situação do arguido face à privação da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais.
(…) se a decisão, por omissão ou erro, não realizou a justiça penal deve ser suscetível de correção. E é essa a missão dos recursos, sendo exatamente expedientes destinados a emendar erros ou vícios das decisões judiciais através da intervenção de um outro tribunal hierarquicamente superior que corrija tais erros ou vícios.
O acento tónico do recurso deve, assim, ser posto na ideia de remédio jurídico para defeitos das sentenças (…)
E o Tribunal Superior está (deve estar, como veremos) vinculado tematicamente às questões suscitadas legitimamente em recurso, iniciando-se uma nova instância a elas restrita e àquelas que sejam de conhecimento oficioso ou pressupostas pelo conhecimento daquelas, que não de uma “renovação” irrestrita da instância de julgamento.»[79] (sublinhados nossos)
Porque a questão do conteúdo do direito ao recurso já foi aflorada em II-A), remete-se para o que aí ficou dito, importando ter presente o sumário do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 09-12-2004, também ali mencionado:
“II - Os recursos visam modificar as decisões recorridas e não criar novas decisões sobre matérias ou questões novas, não suscitadas nem conhecidas pelo tribunal recorrido.
III - Desta forma, não pode a Relação atender ao conteúdo de documentos juntos apenas na fase do recurso, uma vez que, se o fizesse, não formularia um juízo sobre a justeza da decisão recorrida, considerando os elementos ao dispor do tribunal "a quo", mas estaria a proferir decisão nova sobre a questão.”
A este propósito, ver também, Armindo Ribeiro Mendes, in “Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007”, Coimbra Editora, 2009, p. 81, Castro Mendes, in “Direito Processual Civil-Recursos” – ed. AAFDL, p. 25 e ss, e Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código de Processo Civil”, III, p. 266.
Volvendo ao caso dos autos.
A (nova) questão colocada pelos recorrentes, bem como os fundamentos à mesma atinentes não podem ser objeto de apreciação no recurso, uma vez que se trata de questão inovatória não submetida à apreciação do Tribunal de 1ª instância.
Atento o exposto, por inadmissível, não se conhece do recurso nesta parte.
III – DISPOSITIVO.
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 4.ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em:
A) - Nos termos do disposto no artigo 380º do Código de Processo Penal, determinar a correção de lapso de escrita constante do acórdão recorrido pela seguinte forma: onde no ponto 1073.16. da matéria de facto provada consta a expressão “Não tem antecedentes criminais” deve constar a mesma expressão no plural, isto é, “Não têm antecedentes criminais”.
B) – Não conhecer do recurso interposto pelos arguidos … na parte em que peticionam que se determine a não transcrição das respetivas condenações nos Certificados de Registo Criminal.
C) – Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo Arguido BB …, alterando a pena única que lhe foi aplicada e fixando-a em 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e 120 (cento e vinte) dias de multa, á taxa diária de €6,00 (seis euros), perfazendo a quantia total de €720,00 (setecentos e vinte euros), confirmando o acórdão em tudo o demais que lhe respeita.
D) - Julgar totalmente improcedentes os recursos interpostos pelo Assistente … e pelos Arguidos … do acórdão proferido nos autos, que no que aos mesmos concerne, se confirma na íntegra.
…
Coimbra, 20-11-2025
Os Juízes Desembargadores
Fátima Sanches (relatora)
Rosa Pinto (1ª Adjunta)
Cândida Martinho (2ª Adjunta)
(data certificada pelo sistema informático e assinaturas eletrónicas qualificadas certificadas)
[28] Castanheira Neves, citado por Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal I, pág.85.
[29] In http://www.dgsi.pt/jstj. – Processo nº405/14.0JACBR.C1.S1 – Relator: Santos Cabral.
[30] Neste sentido, a título exemplificativo, vejam-se os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/03/2015, processo 159/11.5PAPTL.G1; do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/03/2011, processo 288/09.1GBMTJ.L1-5, de 18/07/2013, processo 1/05.2JFLSB.L1-3, de 21/05/2015, processo 3793/09.6TDLSB.L1-9, e de 08/10/2015, processo 220/15.3PBAMD.L1-9; e do Tribunal da Relação de Évora de 19.05.2015, processo 441/10.5TABJA.E2, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[31] Prolatado no âmbito do processo nº441/10.5TABJA.E2, Relatora: Filomena Soares, disponível para consulta em www.dgsi.pt
[32] Cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/03/2015, prolatado no âmbito do processo nº159/11.5PAPTL.G1, relator: João Lee Ferreira, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[33] Estamos perante materialidade que tem subjacente a intencionalidade das pessoas em causa, intencionalidade essa que apenas poderia ser provada de forma direta (pelo depoimento/confissão dos arguidos) ou de forma indireta, nesta sede através da factualidade indiciária, extraída da globalidade dos factos provados, conjugada com as regras da experiência comum, como fizemos. Cfr. AcRC de 04-03-2015 (rel. Des. Fernando Chaves): «No que respeita aos elementos subjectivos do tipo temos por certo que o dolo – ou o nível de representação ou de reconhecimento que a sua afirmação supõe sob um ponto de vista fáctico – pertence, por natureza, ao mundo interior do agente. Por isso ou é revelado pelo arguido, sob a forma de confissão, ou tem de ser extraído dos factos objectivos – isto é, inferido através da consideração de determinado circunstancialismo objectivo com idoneidade suficiente para revelá-lo». AcRP de 10-11-2021 (rel. Des. João Pedro Pereira Cardoso): «I– A prova do dolo e da consciência da ilicitude dificilmente se alcança de forma direta, a não ser por confissão, e, por isso, há que proceder à conjugação da demais factualidade julgada provada com as regras da experiência comum e do conhecimento da vida para se poder concluir pela prova daqueles. II - Além da confissão do arguido, o único meio de prova que realmente satisfaz a necessidade de provar o dolo é a prova indiciária (ou prova indireta). III - É possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo possa concluir-se, entre os quais surge, com a maior representação, o preenchimento dos elementos materiais integrantes da infração. IV - Dentro das regras da experiência podem identificar-se dois grupos: as leis científicas (obtidos pelas investigações das ciências, a que se atribui o carácter de empíricas) e as regras de experiência quotidiana (obtidas através da observação, ainda que não exclusivamente cientifica, de determinados fenómenos ou práticas e a respeito das quais se podem estabelecer consenso). V - Como indícios relevantes na prova do dolo encontramos apontados na doutrina, a título meramente exemplificativo, os seguintes indicadores: (i) Indícios relativos à oportunidade física e real do arguido; (ii) Indícios relativos à idoneidade do meio ou importância do local do corpo atingido; (iii): Indícios relativos à conduta anterior e posterior do arguido; (iv) Indícios referentes às características pessoais do sujeito; (v) Indícios de Participação no Crime; (vi) Indícios relativos às razões do arguido». Vide, ainda, Da prova indireta ou por indícios, ebook do CEJ, julho de 2020: «(…) O que o arguido não aceita e nega é a sua responsabilidade quanto ao elemento subjetivo. E, neste particular, deve sublinhar-se que a prova do dolo dificilmente se alcança de forma direta, a não ser por confissão, antes se apura por conjugação dos factos elementos do tipo com as regras do conhecimento comum e experiência de vida. Dificuldade acrescida reside em determinados tipos de criminalidade, em particular a económico-financeira, em que o delito é quase sempre praticado pelo expert da atividade, o que mais dela sabe e se serve desse know how de forma meticulosa, inteligente e subtil, do alto da sua posição de comando que o protege, sob a aparente capa da legalidade de cada facto de per se, estrategicamente pensado. E neste mundo das relações económico-financeiras, também dificilmente se espera assistir a depoimentos testemunhais sobre factos atinentes a vontades delituosas que não se expressam de forma direta, antes se insinuam pela volatilidade da palavra; e dificilmente se espera que as testemunhas, enredadas nas relações profissionais hierárquicas e de poder, as exponham com o seu relato, subjugadas que estão, não raras vezes e por força das circunstâncias da vida, à débil natureza humana. Ciente da dificuldade de obtenção deste tipo de prova, Ragués i Vallès, in “Considerationes sobre la prova del dolo”, escreveu sobre a prova dos factos subjetivos ou psicológicos: “la constatación de estos hechos resulta especialmente compleja, pues, a diferencia de lo que sucede com la prueba de otros elementos fácticos, el conocimiento ajeno es un dato que se sitúa más allá de la percepción sensorial y, por tanto, para su descobrimento bien poca cosa pueden aportar los médios probatórios más habituales, como la prueba testefical”. E logo adiante acrescenta que tradicionalmente existem dois grandes meios probatórios para os factos psíquicos, a saber, a confissão e “la prueba de indícios, es decir, la aplicación por parte del juez de determinadas máximas de experiencia a hechos de naturaleza objetiva previamente probados”. Propõe, então, regras de atribuição do conhecimento, convocando a análise das designadas regras da experiência sobre o conhecimento alheio que permitem determinar, a partir da concorrência de certos dados externos, o que representou o sujeito no momento de pôr em prática uma certa conduta. Ensina Ragués i Vallès, que o que permite ter como correta uma regra de experiência é a existência de um amplo consenso em torno da sua vigência, ou seja, não deve o juiz construir ou inventar regras de experiência para cada caso, mas socorrer-se da interação social para as encontrar e, no caso particular da prova do dolo, deve deitar mão àquelas regras que se aplicam em sociedade para as atribuições mútuas de conhecimentos entre cidadãos. Conclui, então, que só quando o juiz encontre na referida interação uma regra de experiência de vigência indiscutível, segundo a qual, assentes certos factos objetivos, uma pessoa inevitavelmente é conhecedora de determinados factos, poderá atribuir-lhe corretamente os mencionados conhecimentos».
[34] Cfr. Faturas – Descontos – Notas de crédito - Sage Advice Portugal: «Quando um sujeito passivo emite uma fatura ao adquirente, a mesma, deve repercutir o valor total do bem ou bens transacionados, a sua quantidade e denominação usual, bem como, o valor do desconto que possa ter incidido na operação, que, nos termos da alínea e) do n.º 5 do artigo 36.º do CIVA, deve estar devidamente identificado na fatura, assim como também devem ser refletidos no valor da fatura final, quaisquer eventuais adiantamentos de pagamentos. No que respeita aos descontos concedidos temos de ter em consideração o previsto no n.º 1 do artigo 16.º do CIVA que determina que “Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 10, o valor tributável das transmissões de bens e das prestações de serviços sujeitas a imposto é o valor da contraprestação obtida ou a obter do adquirente, do destinatário ou de um terceiro”. De acordo com a alínea b) do n.º 6 do mesmo artigo 16.º do CIVA, os descontos, abatimentos e bónus concedidos são excluídos da base tributável, pelo que, a base do imposto incide sobre o preço líquido da fatura. Esta disposição deve-se ao facto de, tal como requer um imposto sobre o consumo (IVA), a tributação, se efetuar tendo em conta o valor real da operação, ou seja, a despesa efetuada pelo consumidor. Pelo exposto, o valor de um desconto tem de ser deduzido ao valor da operação para efeito da aplicação da(s) taxa(s) de IVA, no que se refere à transmissão de um bem ou de uma prestação de um serviço, ainda que tenha de estar discriminado na fatura, como já referido. Quanto à emissão de notas de crédito, prevê o CIVA no seu n.º 7 do artigo 29.º que “Quando o valor tributável de uma operação ou o imposto correspondente sejam alterados por qualquer motivo, incluindo inexatidão, deve ser emitido documento retificativo de fatura”. Este documento retificativo de fatura pode ser uma nota de crédito/nota de débito, consoante o caso, e deve conter os elementos referidos na alínea a) do n.º 5 do artigo 36.º do CIVA, bem como a referência à fatura a que respeita e a menção aos elementos alterados (cf. n.º 6 do artigo 36.º do CIVA). Dessa forma, face ao previsto no CIVA, quando a correção da fatura não decorra de alterações ao valor tributável ou ao imposto não deve ser emitido documento retificativo da fatura, podendo aquela ser anulada pelo fornecedor e substituída por nova fatura (cf. entendimento vertido no ponto 14 do Ofício Circulado n.º 30136/2012, de 19-12-2012, da Direção de Serviços do IVA, disponível para consulta no Portal das Finanças). Quanto às regularizações do imposto encontram-se previstas no artigo 78.º do CIVA, e destinam-se a corrigir, a favor do sujeito passivo ou a favor do Estado, o imposto já entregue ou já deduzido num determinado período de imposto, por força de diversas circunstâncias ocorridas após o envio da declaração periódica de IVA e que não estejam contempladas noutros normativos legais. Decorre do que antecede, que não existindo alterações ao valor tributável ou ao respetivo imposto de uma operação, não é possível a um sujeito passivo de IVA efetuar regularizações/retificações ao abrigo do citado artigo 78.º»; e, ainda, Ofício da Autoridade Tributária e Aduaneira n.º 30136, de 2012.11.19, da Direção de Serviços do IVA, acessível in https://www.dbg.pt/downloads/of%20circ%2030136_2012.pdf.
[35] Neste sentido, decidiu o AcRG de 17-01-2024 (rel. Des. Maria Dolores da Silva e Sousa): «I – O exame crítico ou dever de fundamentação das sentenças resultante da Constituição e da lei tem por objetivo a explicitação pelo julgador dos motivos pelos quais decidiu em determinado sentido, decidindo determinado litígio que lhe foi colocado, de forma que os destinatários entendam as razões da decisão proferida e possam sindicá-la reagindo contra a mesma. II – Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo. (…) V – O entendimento doutrinário e jurisprudencial dominante é consensual quanto ao facto de as meras imputações vagas, obscuras, imprecisas ou conclusivas, serem inadmissíveis no processo criminal, para efeitos de condenação, por violarem os direitos de defesa e contraditório do arguido, devendo considerar-se não escritas. VI – Assim, o pedaço de vida factual que delimita o crime pelo qual o agente há-de ser julgado e, eventualmente, condenado, terá que conter narração suficiente e adequada à compreensão das concretas circunstâncias, actos, comportamentos e intenções que enquadram a imputação criminal, visando, por um lado, que o arguido possa exercer plenamente o seu direito de defesa e, consequente, contraditório e, por outro, que seja possível ao julgador decidir integralmente e de forma segura todas as questões que constituem o thema decidendum».
[36] Cfr. Figueiredo Dias, in “Ónus de Alegar e de Provar em Processo Penal?”, Revista de Legislação e de Jurisprudência 105 (1972-73), p. 140 e 141.
[37] Perris, in “Dubbio, Nuovo Digesto Italiano, apud, Giuseppe Sabatini “In Dubio Pro Reo”, Novissimo Digesto Italiano, vol. VIII, págs. 611-615.
[38] Cfr. acórdão do STJ de 29-4-2003, prolatado no âmbito do processo n.º 3566/03-5ª, relator: Simas Santos, disponível para consulta em www.pgdlisboa.pt/.
[39] In “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Vol. I, 4ª Edição Revista, 2007, pág. 522.
[40] Cfr. os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 09-05-2005, prolatado no âmbito do processo n.º 475/05, relatora: Maria Augusta, e do Tribunal da Relação de Coimbra de 24-2-2010, prolatado no âmbito do processo nº138/06.0GBStr.C1, relator: Gomes de Sousa, ambos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt).
[41] Prolatado no âmbito do processo nº138/10.6GBTNV.S2, relator: Consº Souto de Moura, disponível para consulta em www.dgsi.pt
[42] Cristina Líbano Monteiro, in “Perigosidade de Inimputáveis e In Dubio Pro Reo”, Coimbra 1997, pág. 51.
[43] - Cfr. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12.04.2008, prolatado no âmbito do processo nº08P3456; do Tribunal da Relação de Coimbra de 14.01.2015, prolatado no âmbito do processo nº 72/11.2GDSTR.C1, de 03.06.2015, prolatado o âmbito do processo nº12/14.7GBSTR.C1, e de 12.09.2018, prolatado no âmbio do processo nº28/16.9PTCTB.C1, e do Tribunal da Relação de Lisboa de 18.07.2013, prolatado no âmbito do processo nº1/05.2JFLSB.L1-3, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[44] Prolatado no âmbito do processo nº 112/15.6GAPNC.C1, relator: Vasques Osório, disponível para consulta em www.dgsi.pt
[45] Em todo o caso, regista-se que de acordo com as regras da normalidade dos acontecimentos e da experiência comum, não faz qualquer sentido a alegação de que tal trator tivesse sido comprado pelo pai do arguido cerca de 6 meses antes, mas que tivesse ficado logo em poder do arguido e que tivesse sido o arguido a vendê-lo, compra e venda pelo preço dos 10.800€, tudo isto sem qualquer documentação de suporte das negociações (quer da compra pelo seu pai, quer da venda à B..., quer mesmo da venda pela B... ao alegado TT) e muito menos de registo de aquisições (estando em causa facto sujeito a registo automóvel). A respeito dos docs. 1, 2 e 3 juntos com a contestação importa desde logo deixar claro que o documento que alegadamente documenta a venda de um trator pela B... ao referido TT diz respeito a um trator “Newholland” usado e não a um “Fiat Agri” (como afirmou o arguido) e, para além disso, respeita a um negócio formalizado em documento com data de 24/04/2012, onde consta uma data prevista para a entrega do trator a 03/05/2012, quando o negócio em causa nos autos, de aquisição do trator novo pelo arguido FF, só se concretizou no dia 21/05/2012 (não havendo razão alguma, se o arguido precisava de um trator, para se desfazer de um trator, pelo menos, cerca de 1 mês antes da data em que lhe terá sido entregue o trator novo. As incongruências registam-se, também, entre o documento assinado alegadamente por TT (de 18/06/2021) e a proposta de venda da B..., porquanto a proposta de venda se refere a um trator da marca “Newholland” (com carregador frontal, caixa de carga, escarificador e outra alfaia) e refere um preço de venda de 13.000€, ao passo que da declaração escrita do referido TT se reporta, uma vez mais, a um trator da marca “Fiat” e a um preço de venda de 10.800€ (não compatível com a proposta, já por si assinada e com um pagamento parcial feito de 4.000€). E, a propósito da informação do registo automóvel, também a mesma não infirma a nossa conclusão, quer porque o trator em causa (sendo realmente a marca Fiat) não tem correspondência com a marca e matrícula aposta na proposta de venda, quer porque o veículo em causa foi registado em nome de TT em 04/05/2012, quando o negócio concluído entre a B... e o arguido FF só foi concluído a 21/05/2012.
[46] Consignando-se que, para além dos previstos nas alíneas a) e c) do nº2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, sobre os quais nos pronunciámos supra de forma detalhada, também não se surpreende na decisão recorrida qualquer contradição suscetível de ser reconduzida ao vício a que alude a alínea c) do mesmo preceito.
[47] Cfr. Carlos Emílio Codeço, in “Delitos Económicos”, Livraria Almedina, 1986, págs. 25, 26, 176 e 177.
[48] Cfr. Obra citada, pág. 177.
[49] Cfr. João Melo Franco e Herlander Antunes Martins, in “Conceitos e Princípios Jurídicos”, Almedina, 1983, pág. 663, citando Alain Cotta, Dic. Economia, 4.ª Ed., 396.
[50] Páginas 178 e 179
[51] Prolatado no âmbito do processo nº97P1166, relator Cons.º Leonardo Dias, disponível para consulta em www.dgsi.pt
[52] Prolatado no âmbito do processo nº5069/13.5TDLSB.L1-3, relator: Jorge Raposo, disponível para consulta em www.dgsi.pt
[53] Prolatado no âmbito do processo nº97P1316, relator Cons.º Andrade Saraiva, disponível para consulta em www.dgsi.pt
[54] Prolatado no âmbito no processo nº2121/13.0TACBR.C1, relator: Jorge Jacob, disponível para consulta em www.dgsi.pt
[55] Prolatado no âmbito do processo nº533/02.4TAMTS.P1, relatora: Adelina Barradas Oliveira, disponível para consulta em www.dgsi.pt
[56] É certo que se trata de um voto de vencido, porém, na parte transcrita, está em causa um dos argumentos da posição vencida no que toca ao concurso entre os crimes de burla e de falsificação que, em si mesmo, não é controverso. A saber, a circunstância de, em segmentos do Direito Penal Secundário, - concretamente, nos casos dos ilícitos de fraude fiscal e de fraude na obtenção de subsídio – não se autonomizar a falsificação, fazendo ela parte da descrição legal do elemento objetivo constitutivo do respetivo tipo legal de crime.
[57] Vejam-se a este propósito, também, os acórdãos (alguns deles, também citados na decisão recorrida):
- Do Supremo Tribunal de Justiça de 15-10-1997 [processo nº97P1316, relator: Cons.º Andrade Saraiva];
- Do Tribunal da Relação de Lisboa de 21-11-2002 [processo nº0057739, relator: Nuno Gomes da Silva]
- Do Tribunal da Relação do Porto de 10-09-2025 [processo nº245/16.1T9PRT.P1, relator: Jorge Langweg]
Todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt
[58] In “O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 2, Abril/Junho de 2002, págs. 147 e ss..
[59] Vd. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, Editorial Notícias, págs. 227 e ss..
[60] Prolatado no âmbito do processo nº05P2537; relator: Henriques Gaspar, disponível ara consulta em www.dgsi.pt
[61] Obra citada, páginas 196 e 197.
[62] Cf. o acórdão do Tribunal da Relação de Évora 22-04-2014, prolatado no âmbito do processo nº 291/13.7GEPTM.E1; relatora: Ana Barata Brito, disponível em www.dgsi.pt.
[63] Na redação atualmente em vigor, introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21/12, dispõe o mesmo artigo: «1 - Pelos crimes previstos no n.º 2 do artigo 11.º, são aplicáveis às pessoas coletivas e entidades equiparadas as penas principais de multa ou de dissolução. 2 - Pelos mesmos crimes e pelos previstos em legislação especial podem ser aplicadas às pessoas coletivas e entidades equiparadas as seguintes penas acessórias: a) Injunção judiciária; b) Interdição do exercício de atividade; c) Proibição de celebrar certos contratos ou contratos com determinadas entidades; d) Privação do direito a subsídios, subvenções ou incentivos; e) Encerramento de estabelecimento; f) Publicidade da decisão condenatória. 3 - Pelos mesmos crimes e pelos previstos em legislação especial podem ser aplicadas às pessoas coletivas e entidades equiparadas, em alternativa à pena de multa, as seguintes penas de substituição: a) Admoestação; b) Caução de boa conduta; c) Vigilância judiciária. 4 - O tribunal atenua especialmente a pena, nos termos do artigo 73.º e para além dos casos expressamente previstos na lei, de acordo com o disposto no artigo 72.º, considerando também a circunstância de a pessoa coletiva ou entidade equiparada ter adotado e implementado, antes da prática do crime, programa de cumprimento normativo adequado a prevenir a prática do crime ou de crimes da mesma espécie. 5 - O tribunal aplica uma pena acessória juntamente com a pena principal ou de substituição, sempre que tal se revele adequado e necessário para a realização das finalidades da punição, nomeadamente por a pessoa coletiva não ter ainda adotado e implementado programa de cumprimento normativo adequado a prevenir a prática do crime ou de crimes da mesma espécie. 6 - O tribunal substitui a pena de multa por pena alternativa que realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, considerando, nomeadamente, a adoção ou implementação por parte da pessoa coletiva ou entidade equiparada de programa de cumprimento normativo adequado a prevenir a prática do crime ou de crimes da mesma espécie».
[64] Consigna-se que o Decreto Lei n.º 323/2001, de 17/12, no seu artigo 1º, procedeu à conversão dos valores em escudos para valores em euros em todos os diplomas na área da Justiça, equivalendo 1€ a 200,482$00, pelo que 1.000$00 correspondem a 4,987€ e 100.000$00 correspondem a 498,797€.
[65] In “Código Penal Português”, 10 ed., pág. 226.
[66] Cfr. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Lisboa, 1993, pág. 129, §148 e Maria João Antunes, in “Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 1ª Edição, 2013, pág. 47.
[67] Disponível para consulta em Coletânea de Jurisprudência, Ano V, tomo 3, págs. 183-184.
[68] “As Penas no Direito Português após a Revisão de 1995”, in Jornadas de Direito Criminal-Revisão do Código Penal, edição do Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1998, volume II, pág. 24.
[69] In “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Lisboa, 1993, pág. 119, §123.
[70] Prolatado no âmbito do processo nº153/08-1, relator: Cruz Bucho
[71] Prolatado no âmbito do processo nº22709.6TABCL.G1, relator: Fernando Monterroso
[72] Prolatado no âmbito do processo nº32/10.0GBVNH.P1, relator: Joaquim Gomes
[73] Prolatado no âmbito do processo nºRP202401311061/23.0SPPRT.P1, relator: William Themudo Gilman
[74] Prolatado no âmbito do processo nº366/16.0PCSTB.E1, relator: Artur Varges
[75] Sobre esta matéria, concretamente, as vantagens e as críticas que esta Jurisprudência tem merecido veja-se o Estudo da autoria do Exmo. Senhor Juiz Conselheiro do STJ António Artur Rodrigues da Costa, “O Cúmulo Jurídico Na Doutrina e na Jurisprudência do STJ”, disponível para consulta em /https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2022/09/rodrigues_costa_cumulo_juridico.pdf.
[76] Cfr. Figueiredo Dias, in “As Consequências jurídicas do Crime”, pág. 291.
[77] Neste sentido, o acórdão do S.T.J. de 9/1/2008, CJ.STJ, 2008, Tomo I, pág.181.
[78] Cfr. Figueiredo Dias, obra citada, pág. 293.
[79] Manuel Simas Santos, Leal-henriques e João Simas Santos in “Noções de Processo Penal”, 3ª edição, Rei dos Livros, páginas 563 e 564