I - O juiz encontra-se vinculado pela matéria de facto que integra o objecto do processo, que está obrigado a conhecer, sob pena de nulidade da sentença, quer a que consta da acusação deduzida pelo Ministério Público (ou pelo assistente), quer aquela que foi alegada com o pedido de indemnização civil, quer, porventura, a que resulta das contestações apresentadas.
II - Deve ser rejeitado o recurso da decisão relativa à matéria de facto quando o demandante cível pretende aditar factos que, segundo alega, decorrem da prova produzida nos autos, mas que não constam da acusação, nem do pedido de indemnização civil, e que, por isso, não foram apreciados pelo tribunal recorrido.
III - Como o tribunal a quo não se pronunciou sobre essa matéria de facto (para a julgar como provada ou como não provada), não se consegue afirmar que tenha ocorrido erro de julgamento, que o julgador tenha avaliado indevidamente os elementos de prova, produzidos ou examinados em audiência de julgamento, que impunham uma diferente decisão sobre a matéria de facto fixada.
IV - Os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, devem resultar do próprio “texto da decisão recorrida”, ainda que conjugada com as regras da experiência comum, ou seja, independentemente da apreciação que foi realizada pelo tribunal a quo da prova produzida em audiência de julgamento.
V - Tratam-se de vícios da própria decisão, em si mesmo considerada, que se diferenciam de erros de julgamento, que servem de fundamento à apresentação de recurso da matéria de facto, com base em errada apreciação da prova produzida em audiência, nos termos do art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP.
VI - O vício da al. a) do n.º 2 do art. 410.º do CPP ocorre quando os factos considerados provados pelo tribunal de julgamento se mostram insuficientes, parcos ou inadequados para fundamentar a decisão da causa, quer ela determine a condenação, quer a absolvição do arguido.
VII - Por seu turno, o vício da al. b) deste dispositivo, tanto pode resultar dos factos provados serem inconciliáveis entre si, como existir incompatibilidade entre factos provados e/ou factos não provados, como no caso da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto se mostrar contraditória com os factos provados e/ou os factos não provados, como quando a fundamentação de facto se mostrar inconciliável com a fundamentação de direito ou ainda no caso em que a fundamentação for incompatível com a própria decisão proferida.
VIII - Não padece dos vícios da insuficiência da matéria de facto e/ou da contradição insanável entre os factos e decisão, a sentença que considera ter existido concorrência de culpas entre o condutor e o passageiro de um veículo ligeiro de mercadorias, quando resulta demonstrado que o passageiro, que faleceu na sequência de despiste e de capotamento, não fazia uso do cinto de segurança, enquanto o condutor apresentou uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,82 gramas/litro e conduzia a uma velocidade superior à permitida por lei.
IX - Nos casos de perda do direito à vida, para além do “grau de culpabilidade do agente” e da “situação económica deste e do lesado”, previstos, de modo genérico, pelo art. 494.º do CC, importa atender a outros critérios de ponderação (afinal de contas “as demais circunstâncias do caso”) para determinar o montante a atribuir aos titulares do direito à indemnização mencionados pelo n.º 2 do art. 496.º do CC.
X - A esperança de vida, de quem a perdeu por um infeliz evento, constitui critério de ponderação para fixação deste montante indemnizatório, de acordo com o seguinte princípio: quanto menor for a idade da vítima, maior deverá ser o montante a atribuir para compensar a sua perda inesperada.
XI - A ponderação do critério da esperança de vida não resolve a questão controvertida dos valores a atribuir pela perda deste direito, ou seja, qual o montante mínimo juridicamente admissível e qual o montante máximo juridicamente tolerável para compensar a perda deste bem jurídico.
XII - Tendo em atenção a idade da vítima (56 anos à data do acidente), o seu contributo para a produção do evento (decorrente de não usar cinto de segurança quando ocorreu o despiste e o capotamento da viatura em que seguia), a esperança média de vida para pessoas do sexo masculino, os critérios jurisprudenciais e a ausência de prova de outras circunstâncias (nada, em concreto, foi alegado e provado para demonstrar o desacerto do montante fixado), deverá ser mantida a sentença proferida pelo tribunal de primeira instância quando fixou a quantia de € 36 000, a título de indemnização decorrente da perda do direito à vida.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Acordam os juízes da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra
I - RELATÓRIO:
…, foi condenado, … pela prática em autoria material e em concurso efectivo de infracções de:
--1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelos arts. 69.º, n.º 1, al. a), e 292.º, n.º 1, ambos do CP:
--na pena de 75 (setenta e cinco) dias de multa, à razão diária de € 7, o que perfaz a multa de € 525 (quinhentos e vinte e cinco euros);
--na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de 4 (quatro) meses;
--1 (um) crime de homicídio por negligência p. e p. pelos arts. 69.º, n.º 1, al. a), e 137.º, n.º 1, ambos do CP:
--na pena de 10 (dez) meses de prisão, substituída por 200 (duzentos) dias de multa, à razão diária de € 7, o que perfaz a multa de € 1 400 (mil e quatrocentos euros);
--na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de 8 (oito) meses;
--em cúmulo jurídico, na pena única acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de11 (onze) meses;
*
A sentença condenatória julgou ainda o pedido de indemnização civil parcialmente procedente, por provado, e, em consequência, condenou a demandada … a pagar ao demandante cível …:
--€ 36 000 (trinta e seis mil euros), pela perda do direito à vida da vítima, acrescida de juros de mora, contados à taxa anual de 4 %, desde a data da sentença até efectivo e integral pagamento;
--€ 3 000, (três mil euros), pelos danos não patrimoniais sofridos pela vítima, acrescida de juros de mora, contados à taxa anual de 4 %, desde a data da sentença até efectivo e integral pagamento;
--€ 1 800 (mil e oitocentos euros), acrescida de juros de mora, contados à taxa anual de 4 %, desde a data da sentença até efectivo e integral pagamento;
*
Inconformado com a sentença proferida, o demandante cível … dela veio a interpor recurso, que terminou com a formulação das seguintes conclusões:
“…
II. Entende o recorrente que, de acordo com a matéria factual constante, designadamente, dos artigos 7 a 25 dos factos provados e alíneas e), f) e g) dos factos não provados, assim bem como o facto de, em consequência do despiste, ter-se verificado uma deformação no tejadilho que comprometeu a cédula de sobrevivência do passageiro/vítima, em momento algum, deveria ser atribuída culpa à vitima, ainda para mais, na proporção de 40%, em virtude de não ter sido julgado provado que o facto que serviu de fundamento para tal culpabilização foi causa, ou contribuiu, para a ocorrência do acidente e consequente morte.
III. O relatório de averiguação do acidente junto pela seguradora demandada, datado de 28 de junho de 2022 explana que “analisando as fotografias com as deformações no veículo … verifica-se que este ficou com o tejadilho danificado em consequência do acidente, sendo que este sofreu um abatimento na zona do passageiro”.
IV. Atenta a importância desta matéria, essencialmente, para apuramento das causas do acidente, dos seus resultados e concurso de culpas, a mesma deve constar dos factos provados.
…
VII. Quanto ao ponto “IV – DA CONCORRÊNCIA DE CULPAS” supra, face a tudo o exposto na motivação, nenhuma matéria factual foi julgada provada, no sentido de que a atuação/comportamento da vítima tivesse sido causa, ou contribuído para a ocorrência do acidente e suas consequências danosas.
VIII. Com efeito, o Tribunal a quo, limitou-se a referir que a vítima contribuiu na eclosão do facto, fundamentado a sua conclusão, tão só, na singela violação do disposto no artigo 82.º, n.º 1 do Código da Estrada.
IX. Aliás, da matéria provada e não provada, constante dos artigos 11 a 23 e alíneas e), f) e g), resulta de uma forma clara e inequívoca a culpa, única e exclusiva, do arguido pela ocorrência/produção do acidente e nas consequências que daí advieram para a vítima AA.
X. A pretensa violação de uma norma estradal por parte da vítima (artigo 82.º, n.º 1 do Código da Estrada) não tem a virtualidade e força jurídica suficientes de retirarem qualquer valor percentual ao valor de 100 % da culpa do arguido na ocorrência do acidente e dos danos fatais na pessoa da vítima.
…
No caso dos autos, o tribunal recorrido presumiu que a falta de utilização de cinto (provado), porque violador do dever de circular em automóvel com o mesmo colocado, foi uma decisão da A. e contribuiu para os danos por esta sofridos. Esta decisão é oposta à prova produzida – não logrou demonstrar-se a relevância, nos resultados desastrosos do acidente, da falta do uso de cinto. Não se pode, por isso, aceitar a decisão, que retira presunção judicial contra facto não provado.”
XIV. Ora, uma vez não provado que a utilização do cinto de segurança teria evitado as lesões fatais da vítima, não se poderia concluir pela existência de um facto culposo do lesado concorrencial com a produção e agravamento dos danos.
XV. Nem tão pouco se deu como provada a existência de um nexo causal entre o facto (falta do uso do cinto de segurança) e os danos que resultaram na morte (antes pelo contrário, atenta a matéria de facto dada como provada) – teoria da causalidade adequada previsto no artigo 563.º do CC.
XVI. Pelo que, atenta a matéria de facto não provada acima descrita, não poderia o Tribunal a quo aplicar o disposto no artigo 570.º, n. 1 do CC, porquanto não está preenchido o pressuposto da existência de um facto culposo do lesado que tenha concorrido para a produção ou agravamento do acidente.
…
XVIII. Diga-se, por fim, que a matéria de facto dada como provada e não provada (artigos 11 a 23 e alíneas e), f) e g)) é notoriamente contraditória e insuficiente para a decisão tomada no sentido de concorrência de culpas, pelo que existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e contradição entre o que ficou provado e não provado e o fundamento da decisão tomada de “distribuição” de culpas, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alíneas a) e c) do CPP.
XIX. Quanto ao ponto V supra, relativo ao pedido de indemnização civil, deve a sentença ser substituída por outra que condene a demandada seguradora a pagar ao demandante recorrente, a quantia de € 85 000 (oitenta e cinco mil euros) pela perda do direito à vida do pai, a quantia de € 5 000 (cinco mil euros) pelos danos não patrimoniais sofridos pela vítima e; a quantia de € 10 000 (dez mil euros) pelos danos não patrimoniais sofridos pelo demandante/recorrente.
…
XXI. Em 2012 o valor atribuído pelo dano morte estava cifrado pela Jurisprudência, em média, entre os € 50 000 e os € 80 000 (oitenta mil euros).
XXII. Atendendo à inflação galopante que existiu nos últimos 10/15 anos os € 50 000/€ 80 000, arbitrados pelo dano morte em 2012 não representam o mesmo valor aquisitivo que os € 50 000/ € 80 000 da atualidade.
XXIII. Pelo que, com o devido respeito, a quantia a atribuir pelo dano morte terá de ser necessariamente superior aos €60 000 fixados pelo Tribunal a quo.
…
XXVI. Quanto à indemnização pelos danos não patrimoniais do demandante / recorrente, a mesma deve ser fixada em pelo menos € 10 000, reputando-se como injusta e desproporcional a atribuição da quantia de € 3 000 (três mil euros).
…
XXIX. Se se entender que tais valores não devem ser majorados, o que não se concebe, deve, pelo menos, a decisão recorrida ser substituída por outra que condene a demandada seguradora a pagar ao demandante a quantia de € 60 000 (sessenta mil euros) pela perda do direito à vida do pai; a quantia de € 5 000 (cinco mil euros) pelos danos não patrimoniais sofridos pela vítima e; a quantia de € 3 000 (três mil euros) pelos danos não patrimoniais sofridos pelo demandante / recorrente, tendo como pressuposto, apenas, que o pedido de atribuição de culpa a 100% do arguido, pela ocorrência do acidente e pelos danos causados, vai ser julgado procedente.
…
*
A … respondeu ao recurso interposto pelo demandante cível …
*
A Senhora Procuradora-Geral Adjunta, junto deste Tribunal da Relação de Coimbra, não emitiu parecer, …
*
Admitido o recurso, colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO:
a) Factos provados:
A primeira instância considerou como provados os seguintes factos:
“Da acusação pública:
1. No dia 03-03-2022, cerca das 17 h 34 min, o arguido conduzia o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula …
2. O arguido conduzia o veículo supra mencionado com uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,82 g/l (+/- 0,23 g/l), que resultou da ingestão voluntária de bebidas alcoólicas.
3. Nas mesmas circunstâncias de tempo, no lugar de passageiro (vulgarmente designado como pendura) do veículo conduzido pelo arguido, seguia sentado, sem cinto de segurança, ….
4. Esta estrada municipal é composta por uma via de trânsito em cada sentido, separadas por uma linha longitudinal continua, de asfalto betuminoso em regular estado de conservação, e a faixa de rodagem tem 7,9 metros de largura.
5. A via em apreço possui um declive longitudinal de 1,6% e transversal de 0,4%.
6. No sentido de ... para ..., a faixa de rodagem é ladeada por vegetação sendo que do lado esquerdo acresce uma valeta.
7. Nessa ocasião, estava bom tempo, o pavimento estava seco e limpo, e o trânsito era pouco intenso em ambos os sentidos.
8. Na altura, não chovia e não existiam quaisquer obstáculos que impedissem a visibilidade do arguido na via à sua frente, bem como de prosseguir a sua marcha, atento o sentido por ele seguido.
9. O limite de velocidade permitido naquela via, para aquele concreto veículo, era 80 km/hora.
10. As marcas de rodoviárias (horizontais) encontravam-se bem visíveis, sendo que a faixa de rodagem é demarcada por marcas longitudinais, sendo o eixo da via pela marca M1 – linha continua – e o limite da faixa de rodagem pela marca M19.
11. O arguido, imprimindo sempre uma velocidade não concretamente apurada, mas seguramente superior a 80 km/h, na aproximação da curva à esquerda que existia no seu sentido de trânsito,
12. Perdeu o controlo da direcção do veículo por si conduzido, o qual saiu da sua faixa de rodagem, tendo embatido no talude ali existente, acabando por capotar longitudinal e transversalmente até se imobilizar por completo fora da referida faixa de rodagem.
13. Como consequência directa, adequada e necessária do mencionado embate, …, passageiro daquele veículo, sofreu as seguintes lesões na cabeça:
--Partes moles: extenso hematoma do couro cabeludo localizado nas regiões parieto temporais e occipital;
--Ossos da cabeça – abóbada: fratura em casca de noz de todos os ossos da abóbada com infiltração sanguínea;
--Ossos da cabeça – base: fratura em casca de noz de todos os ossos da base com infiltração sanguínea;
--Meninges: hemorragia subdural;
--Encéfalo: hematoma subdural em ambos os hemisférios. Hemorragia do IV ventrículo. Contusão do tronco cerebral e cerebelo. Área de amolecimento do lobo frontal esquerdo. Peso: 1129 g;
--Ossos da face: fratura de todos os ossos da face com afundamento do maciço facial com infiltração.
14. O ofendido veio a falecer no local do acidente na sequência das lesões crânio encefálicos sofridas, as quais foram causa imediata, directa, necessária e adequada da sua morte.
15. No local onde ocorreu o capotamento, a velocidade máxima permitida é de 80km/h, devendo a velocidade ser especialmente moderada atenta a existência de uma curva.
16. O arguido conhecia as características da via em que circulava, mas, pese embora o pudesse e devesse ter feito, não adequou a velocidade que imprimia ao veículo por si conduzido.
17. Acresce que o arguido sabia que não lhe era lícito conduzir alcoolizado, designadamente com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l, sabia que antes havia ingerido bebido alcoólicas em quantidade suficiente para poder acusar uma tas igual ou superior a esta e, não obstante, conduziu do modo descrito, o que quis.
…
Das condições sócio-económicas do arguido:
…
Do pedido de indeminização civil:
33. O assistente/demandante civil é filho de …
34. O falecido AA nutria um enorme amor, afeto e carinho, por todos os seus três filhos, inclusive, o ora demandante.
35. Em 3 de março de 2022, a responsabilidade civil dos danos causados a terceiros pelo veículo …, encontrava-se transferida para a Companhia de Seguros …
36. … faleceu em 03 de março de 2022, com 56 anos de idade.
37. … era amigo dos seus filhos e de toda a população sua conhecida, honesto, respeitado.
38. O falecido … pese embora tenha falecido no local do embate, em consequência direta e necessária do acidente, face às graves lesões de que foi vítima, ainda sofreu dores no momento do acidente, com o embate e consequente projeção do veículo.
39. O assistente sofreu um choque e desgosto com a morte do seu pai.
Da contestação apresentada pela demandada civil:
40. O veículo … possuía os respetivos cintos de segurança, os quais se encontravam em regular estado de funcionamento.
41. No momento do sinistro, o falecido … não fazia uso do respetivo cinto de segurança.
42. O cinto de segurança do lugar onde se encontrava sentado o falecido encontrava-se intacto e preso na posição normal no interior do veículo.
43. O arguido/condutor do veículo que, no momento do acidente, usava cinto de segurança, sofreu apenas lesões ligeiras.
44. …, à data da sua morte, tinha 1,60 metros de altura e 58 kg de peso.
45. … era conhecido na população por ser uma pessoa com problemas de dependência, nomeadamente álcool.
46. Aquando do acidente, o … apresentava uma taxa de álcool no sangue de 2,89 g/l (sem a dedução de erro máximo admissível de 0,37 g/l) e tinha na sua posse uma substância que, após respetiva análise, se veio a apurar ser 0,98 gramas de Cannabis (Liamba).
Mais resultou provado:
…
Para além dos que ficaram descritos, o tribunal a quo não julgou provados quaisquer outros factos, designadamente:
…
b) Objecto do recurso:
…
O demandante cível … pretende que este tribunal de recurso proceda à alteração do quadro factual julgado provado pelo tribunal de primeira instância, mediante o aditamento da seguinte matéria de facto:
“54. Como consequência direta, adequada e necessária do capotamento, o veículo (…) conduzido pelo arguido, ficou com o tejadilho danificado, sofrendo um abatimento na zona do passageiro onde seguia ….
55. As lesões sofridas pelo falecido em consequência do acidente relatado nos autos resultaram inequívoca e diretamente do capotamento e consequente abatimento do tejadilho na zona do passageiro.”
O recorrente … invoca, como meios de prova (que, na sua perspectiva, permitem julgar esta matéria de facto como provada), o relatório de averiguação de acidente oferecido pela companhia seguradora, as fotografias que se mostram juntas aos autos e ainda as regras da experiência comum.
Por seu turno, a recorrida … veio defender, a este propósito, que os factos, cujo aditamento se pretende, são “manifestamente inócuos no que à repartição de culpas diz respeito”, pelo que o recurso deverá ser julgado improcedente nesta parte.
Apreciando e decidindo:
De acordo com o disposto no art. 412.º, n.º 3, do CPP, o recorrente, sempre que pretenda impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto pelo tribunal de julgamento, deve especificar “os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados” - vide al. a) - e “as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida” - vide al. b) deste dipositivo.
Como a interposição de recurso não determina a realização de um novo julgamento da causa pelo tribunal de recurso, o recorrente encontra-se onerado com a indicação dos factos que considera terem sido mal julgados e, de igual modo, com a indicação dos meios de prova (v.g. documentos, testemunhas, perícias) que impõem diferente decisão sobre a matéria de facto impugnada.
…
Se o julgador, por regra, aprecia livremente a prova produzida (art. 127.º do CPP), o recorrente pode sindicar essa avaliação, demonstrando que ocorreu um erro de julgamento e que a prova produzida, ainda que conjugada com as regras da experiência comum, impunha uma diferente decisão sobre a matéria de facto.
O Supremo Tribunal de Justiça assinalou que “(…) a livre apreciação da prova não se confunde nem se pode confundir com a apreciação arbitrária da mesma nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova” e que o tribunal de recurso deve verificar se “as regras comuns da lógica da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, susceptíveis de objectivar a apreciação dos factos, foram observados, a respeito de cada um deles, na motivação apresentada pelo tribunal recorrido (…)” – vide acórdão de 03-05-2006, proferido no âmbito do Proc. n.º 06P557, acessível em www.dgsi.pt. .
No caso vertente, ainda que afirme que o recurso “tem como objecto a matéria de facto”, o recorrente … não especificou “os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados”, conforme decorre do disposto na al. a) do n.º 3 do art. 412.º do CPP, antes pretendendo que sejam acrescentados novos factos, que não integram o objecto do presente processo.
…
Como o tribunal a quo não se pronunciou, sequer, sobre essa matéria de facto (para a julgar como provada ou como não provada), não se consegue afirmar que tenha ocorrido erro de julgamento, que o julgador tenha avaliado indevidamente os elementos de prova, produzidos ou examinados em audiência de julgamento, que impunham uma diferente decisão sobre a matéria de facto.
Na realidade, o recorrente … pretende que seja aditada matéria de facto, que alega resultar da prova produzida nestes autos (muito em particular, do relatório de averiguação do acidente de viação, conjugado com as fotografias que se mostram juntas aos autos e ainda com as regras da experiência comum), mas que não obteve qualquer pronuncia por parte do tribunal a quo (para a julgar provada ou não provada), por não integrar o objecto deste processo.
O objecto do processo é constituído pelos factos que constam da acusação (ou do despacho de pronúncia, nos casos em que tenha havido instrução) e igualmente pela matéria de facto alegada com o pedido de indemnização civil, que, como decorre do disposto no art. 71.º do CPP, deve apresentar o crime como causa de pedir.
Também integram o objecto do processo todos os factos concretos que venham a ser alegados com as contestações, que, porventura, sejam oferecidas nos autos, quer pelo arguido, quer também pelo demandado civil.
Compete aos sujeitos processuais (muito em particular ao demandante cível) alegar a matéria de facto que pretenda sujeitar a apreciação judicial, ainda que o pedido de indemnização civil enxertado em processo penal deva apresentar, como causa de pedir, os factos integrantes do crime imputado ao arguido.
O demandante cível não se encontra dispensado de alegar outros factos essenciais que interessem à procedência da pretensão indemnizatória por si formulada (muito em particular os danos ou prejuízos resultantes da conduta delituosa), para além daqueles que já constam da acusação, ainda que não possam extravasar o crime imputado nos autos ao arguido.
O juiz encontra-se vinculado pela matéria de facto que integra o objecto do processo, que está obrigado a conhecer, sob pena de nulidade da sentença, quer a que consta da acusação deduzida pelo Ministério Público (ou pelo assistente), quer aquela que foi alegada com o pedido de indemnização civil, quer, porventura, a que resulta das contestações apresentadas.
…
No caso vertente, verifica-se que o recorrente … não alegou factos essenciais à sua pretensão indemnizatória, muito em particular nada alegou para demonstrar que o óbito do passageiro … não foi também determinado pela falta de utilização do cinto de segurança.
Do pedido de indemnização civil formulado nos autos (nem tão-pouco da factualidade descrita na acusação deduzida pelo Ministério Público) não resulta alegado que o tejadilho sofreu abatimento devido ao capotamento da viatura ou que o malogrado … sofreu lesões (e que veio a falecer) como consequência directa e necessária do abatimento do tejadilho da viatura, com vista a demonstrar que a falta de utilização do cinto de segurança não teve qualquer influência na morte do passageiro …
O tribunal recorrido não se pronunciou sobre esses factos (julgando-os provados ou não provados) simplesmente porque não integravam o objecto do processo, delimitado pelos factos constantes da acusação deduzida pelo Ministério Público e pelo consequente pedido de indemnização civil formulado nestes autos.
O demandante cível pretende aditar, com a interposição do presente recurso, novos factos relativos à sua pretensão indemnizatória, que não apresentou em momento anterior do processo, com vista a demonstrar que o arguido …, o condutor da viatura sinistrado, foi o único e o exclusivo responsável pelo óbito do passageiro … e que a falta de utilização do cinto de segurança em nada contribuiu para o desfecho fatal.
Deste modo, verifica-se que não ocorreu qualquer erro de julgamento, que determine a alteração da matéria de facto fixada pelo tribunal de primeira instância, na medida em que a matéria de facto que se pretende aditar não integra o objecto do processo e, por isso, não chegou sequer a ser apreciada pelo juiz de julgamento.
Deve ser rejeitado o recurso da decisão relativa à matéria de facto quando o demandante cível pretende aditar factos que, segundo alega, decorrem da prova produzida nos autos, mas que não constam da acusação, nem do pedido de indemnização civil, e que, por isso, não foram apreciados pelo tribunal recorrido.
…
Prosseguindo:
De seguida, o demandante cível … veio sustentar que a sentença recorrida, …, enferma dos vícios do art. 410.º, n.º 2, als a) e b), do CPP, ou seja, que, por um lado, se verifica insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e, por outro lado, que ocorre uma contradição insanável entre os factos e a decisão tomada relativamente à concorrência de culpas.
…
Vejamos se a decisão recorrida padece dos vícios em causa.
…
Os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, devem resultar do próprio “texto da decisão recorrida”, ainda que conjugada com as regras da experiência comum, ou seja, independentemente da apreciação que foi realizada pelo tribunal a quo da prova produzida em audiência de julgamento.
…
Por seu turno, o recurso apresentado nos termos do disposto no art. 410.º, n.º 2, do CPP, deve assentar na própria decisão, avaliada de per si, sem recorrer à prova produzida e sem apreciar as conclusões que dela foram retiradas no âmbito do julgamento da matéria de facto.
…
Caso o tribunal de recurso não consiga decidir a causa, pode determinar o reenvio do processo para novo julgamento sobre totalidade ou sobre parte do objecto do processo, com vista a que venham a ser supridos os vícios que a decisão recorrida apresenta (vide art. 426.º do CPP).
O vício previsto pela al. a) do n.º 2 do art. 410.º do CPP verifica-se quando os factos considerados provados pelo tribunal de julgamento se mostram insuficientes, parcos ou inadequados para fundamentar a decisão da causa, quer ela determine a condenação, quer a absolvição do arguido.
De acordo com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05-12-2007, proferido no âmbito do Proc. n.º 07P3406 (acessível em www.dgsi.pt), “(…) ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando esta se mostra exígua para fundamentar a solução de direito encontrada, quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição (…)”.
Por seu turno, a respeito do vício da al. b) do n.º 2 deste artigo, o Senhor Conselheiro Pereira Madeira afirma o seguinte: “(…) a contradição tanto pode emergir entre factos contraditoriamente provados entre si, como entre estes e os não provados (p. ex. «provado que matou», «não provado que matou»), como finalmente entre a fundamentação (em sentido amplo, abrangendo a fundamentação de facto e também a de direito) e a decisão. É exemplo deste último tipo de contradição, a circunstância da sentença se espraiar em considerações tendentes à irresponsabilidade penal do arguido e a decisão final concluir, sem mais explicações, por uma condenação penal (…)” – in “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2014, págs. 1358 e 1359.
Em idêntico sentido, escreveu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-07-2012, …
Deste modo, o vício da contradição insanável tanto pode resultar dos factos provados serem inconciliáveis entre si, como existir incompatibilidade entre factos provados e/ou factos não provados, como no caso da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto se mostrar contraditória com os factos provados e/ou os factos não provados, como a fundamentação de facto se mostrar inconciliável com a fundamentação de direito ou ainda quando a fundamentação for incompatível com a própria decisão proferida.
No caso vertente, não se vislumbra que a decisão jurídica proferida pelo tribunal de primeira instância (recorde-se: de acordo com o disposto no art. 570.º do CC, entendeu que o condutor e que o passageiro do veículo com a matrícula VA-..-.. contribuíram, em conjunto, para a produção do infeliz evento, na proporção de 60% para o primeiro e de 40% para o segundo) padeça de algum dos vícios que lhe são apontados pelo recorrente …
A sentença recorrida deixou assinalado, com particular destaque, que “somos forçados a concluir que a vítima violou uma norma estradal”, que contribuiu “causalmente para a produção do resultado” e que “a parcela de responsabilidade que possa ser atribuída à vítima (desde que não seja total) não exclui a culpa do agente – ainda que possa ter repercussão na determinação da medida da pena (…)”.
No segmento respeitante à “concorrência de culpas”, a sentença recorrida acrescentou que “consta também da matéria dada como provada que, à data, a vítima seguia no lugar de pendura sem cinto de segurança”, que, nos termos do n.º 1 do art. 82.º do CE, “O condutor e passageiros transportados em veículos a motor são obrigados a usar cintos e demais dispositivos de segurança com que, por lei, os veículos estejam equipados” e, de igual modo, que “violando a vítima uma norma estradal, então também à vítima é de atribuir algum contributo na eclosão do facto”.
De acordo com a matéria de facto provada não oferece dúvidas que o passageiro …, antes do infeliz evento, não fazia uso de cinto de segurança (art. 3.º), que o veículo … circulava por uma estrada municipal a uma velocidade não concretamente apurada, mas superior a 80 quilómetros por hora (art. 11.º) e que o condutor, a dado momento, perdeu o controle da viatura, saiu da faixa de rodagem, embateu num talude, capotou e acabou por se imobilizar fora da faixa de rodagem (art. 12.º).
Com relevância para o caso, também resultou demonstrado que o arguido … sobreviveu ao acidente com ferimentos ligeiros (art. 43.º), enquanto que o malogrado …, que foi projectado para o exterior do veículo … sofreu graves lesões crânio encefálicas, que lhe determinaram a morte (art. 14.º dos factos provados).
Este conjunto de circunstâncias, muito em particular a falta de utilização do cinto de segurança, a velocidade a que seguia o veículo ligeiro de mercadorias, a dinâmica do acidente em causa e as próprias lesões sofridas pela vítima mortal, mostram-se suficientes para demonstrar que o malogrado AA, com a sua conduta, também concorreu para o desfecho fatal.
Estas circunstâncias mostram-se suficientes para que o tribunal recorrido viesse a concluir que a falta de utilização do cinto de segurança provocou o óbito do passageiro da viatura, conjuntamente, com a conduta imputada ao arguido …, que circulava em excesso de velocidade e com álcool no sangue.
Não custa admitir que a falta de utilização do cinto de segurança contribuiu para a morte do passageiro quando se sabe que a viatura seguia a velocidade superior a 80 quilómetros por hora, que se despistou, que capotou e que acabou por ficar imobilizada fora da faixa de rodagem, com o malogrado caído fora da viatura.
O malogrado não desconhecia o condicionalismo em que se encontrava a circular, antes do embate, sem fazer uso do dispositivo de segurança da viatura.
Conforme deixou consignado o tribunal recorrido, o passageiro infringiu o preceito relativo à utilização dos dispositivos de segurança (art. 82.º do CE), pelo que não será destituído de sentido concluir que a falta de utilização do correspondente cinto contribuiu, decisivamente, para a produção do infeliz evento.
Aliás, as regras da experiência comum ensinam que este dispositivo de segurança visa precisamente reforçar a protecção dos condutores e dos passageiros, procura evitar que estes sejam projectados no interior ou para o exterior dos veículos e está vocacionado para mitigar as consequências de um embate.
Pelo contrário, infringiria as regras da experiência comum, sustentar, conforme se mostra alegado no recurso, que a falta de utilização de cinto de segurança por parte de um passageiro em nada contribuiu para causar a morte, quando se sabe que o veículo automóvel em que seguia estava a circular numa estrada municipal a uma velocidade superior a 80 quilómetros por hora e que, a dado momento, despistou-se, embateu num talude existente no local, capotou e, de seguida, acabou por se imobilizar fora da faixa de rodagem.
O que se deixa exposto mostra-se ainda reforçado caso se estabeleça um paralelismo entre as lesões físicas sofridas pelos dois ocupantes da viatura (que, por força do acidente, sofreram o mesmo impacto), o condutor fazendo uso do correspondente cinto de segurança, ao contrário, como se viu, do passageiro.
Conforme resultou provado, o arguido … sobreviveu ao acidente em causa com ferimentos ligeiros, ao contrário do que sucedeu com …, que foi projectado para o exterior da viatura e que sofreu graves lesões crânio encefálicas, que lhe ditaram a morte.
…
Estamos longe de um circunstancialismo em que a utilização do cinto de segurança se revela indiferente para preservação da vida dos ocupantes do veículo, em que a morte sempre se verificaria, com ou sem a sua utilização, devido à brutalidade da colisão, do despiste, da queda ou do colhimento da viatura.
…
De referir ainda que o tribunal recorrido considerou como não provada a matéria de facto constante das alíneas e), f) e g) (muito em particular que “as lesões sofridas pelo falecido (…) resultaram inequívoca e directamente de se encontrar, aquando do embate, sem fazer uso do cinto de segurança” e que “caso tivesse utilizado o respectivo cinto de segurança, não teria sofrido as lesões de que veio a padecer (…)” ), que correspondem, grosso modo, ao alegado pela seguradora (vide máxime arts. 29.º, 30.º e 31.º da contestação), de modo a excluir que o óbito do passageiro tenha sido exclusivamente causado pela falta de uso deste dispositivo de segurança.
Como se vê, não existe qualquer inconciliabilidade ou incompatibilidade decorrente do tribunal recorrido ter julgado esta matéria de facto como não provada (que apontava no sentido da morte resultar, exclusivamente, do não uso do cinto de segurança) e ter entendido que existia concorrência de culpas entre o condutor e o passageiro do veículo ….
Não padece dos vícios da insuficiência da matéria de facto e/ou da contradição insanável entre os factos e decisão, a sentença que considera ter existido concorrência de culpas entre o condutor e o passageiro de um veículo ligeiro de mercadorias, quando resultou demonstrado que o passageiro, que faleceu na sequência de despiste e capotamento, não fazia uso do cinto de segurança, enquanto o condutor apresentou uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,82 gramas/litro e conduzia a uma velocidade superior à permitida por lei.
…
Mais:
Por conseguinte, nenhuma censura merece a sentença recorrida por ter aplicado, in casu, o disposto no n.º 1 do art. 570.º do CC e por ter entendido que o condutor e que o passageiro do veículo … contribuíram, em conjunto, para a produção do infeliz evento …, na proporção de 60% para o primeiro e de 40% para o segundo.
Este dispositivo do CC admite, quando o lesado, com a sua conduta, tenha concorrido para a produção ou para o agravamento do dano, a redução ou, até mesmo, a exclusão de indemnização, de acordo com a gravidade das culpas.
O “facto culposo”, que pode ser imputado ao malogrado …, consiste, precisamente, em fazer-se transportar no interior de um veículo ligeiro de passageiros, que estava a circular numa estrada municipal a uma velocidade não concretamente apurada, mas superior a 80 quilómetros por hora, sem fazer uso do dispositivo destinado a garantir a sua própria segurança.
Esta circunstância assume inequívoca gravidade, de modo a reduzir o montante da indemnização a atribuir ao demandante cível …, na medida em que a infeliz vítima não tomou as cautelas que lhe eram exigidas, pela lei e pela prudência, para garantir a integridade física e a própria vida.
Acresce que seguia como passageiro no interior de um veículo ligeiro de mercadorias, sem fazer uso do dispositivo de segurança, que estava a ser conduzido por uma pessoa amiga (vide art. 53.º dos factos provados) que apresentava uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,82 gramas/litro.
Aliás, ele próprio apresentava uma taxa de álcool no sangue de 2,89 gramas/litro (vide art. 46.º dos factos provados), o que lhe diminuiu, de modo acentuado, os reflexos e, por conseguinte, a capacidade de reagir (na medida do possível) ao despiste e ao capotamento da viatura em que seguia.
Optou por não utilizar o cinto de segurança, dispositivo que, como se sabe, foi concebido para mitigar as consequências que podem advir, em caso de acidente, para a vida e/ou para a integridade física dos ocupantes dos veículos.
Devido aos riscos que comporta seguir no interior de um veículo sem fazer uso deste dispositivo, a lei estabelece que esta conduta constitui mesmo uma contra-ordenação rodoviária, que se mostra prevista pelo n.º 1 do art. 82.º do CE.
Importa ainda referir que, de acordo com as circunstâncias do caso, o passageiro … muito provavelmente não teria falecido, caso estivesse a utilizar o correspondente cinto de segurança, antes de ocorrer o despiste, o capotamento e a imobilização da viatura fora da faixa de rodagem.
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Devido a essas circunstâncias é possível afirmar, conforme concluiu a sentença recorrida, que a morte de … não teria sucedido, muito provavelmente, caso o passageiro estivesse a utilizar o cinto de segurança que disponha o veículo …
De igual modo, aceitam-se as percentagens que foram fixadas pelo tribunal de primeira instância (como se viu, de 60% e de 40%), que refletem a maior gravidade da culpa que pode ser atribuída ao condutor do veículo …, ao mesmo tempo em que reconhecem a culpa do lesado na produção do infeliz evento (que persistiu em seguir no interior de um veículo, fora de uma localidade, a uma velocidade superior a 80 quilómetros por hora, sem fazer uso do cinto de segurança que tinha ao seu dispor).
…
Mais:
Por último, o demandante cível … veio defender que a sentença recorrida deve ser alterada no segmento relativo ao quantum indemnizatório, que deve ser fixada a quantia de € 85 000 (oitenta e cinco mil euros) pela perda do direito à vida, a quantia de € 5 000 (cinco mil euros) pelos danos não patrimoniais sofridos pela vítima mortal e a quantia de € 10 000 (dez mil euros) pelos danos não patrimoniais decorrentes da perda do seu pai.
Verifica-se que o demandante cível … tinha peticionado, respectivamente, as quantias de € 100 000, de € 5 000 e de € 100 000 e que a sentença recorrida acabou por fixar os montantes de € 60 000, de € 5 000 e de € 3 000, sem levar em consideração a culpa da vítima mortal.
No que diz respeito aos danos não patrimoniais sofridos pelo malogrado … verifica-se que o tribunal recorrido atribuiu precisamente a quantia monetária que tinha sido reclamada pelo demandante …, pelo que a redução para a quantia de € 3 000, resultou da existência de concorrência de culpas, nos moldes que se deixaram expostos.
Aliás, nada justifica a revisão em alta do montante indemnizatório, atendendo a que a infeliz vítima faleceu, de imediato, no próprio local do acidente, devido às graves lesões crânio encefálicas que determinaram o seu óbito, conforme se deixou assinalado na decisão recorrida (“o óbito da vítima foi declarado no local”).
O mesmo se diga, mutatis mutandis, sobre a quantia atribuída para compensar os danos não patrimoniais decorrentes da perda do pai, reclamados pelo demandante …, que não justifica intervenção correctiva.
Da matéria de facto provada resulta que o malogrado e que os seus filhos não mantinham muita proximidade, que os contactos eram esporádicos, que o pai andava habitualmente sozinho, que era muito amigo do condutor da viatura sinistrada e que a maioria das suas refeições eram tomadas em casa deste último (vide, máxime, a este respeito, arts. 51.º, 52.º e 53.º dos factos provados).
Importa anotar que o demandante cível … nasceu no dia ../../1999 e que, à data do acidente, já tinha atingido a maioridade, pelo que o afastamento existente não pode colher justificação nas divergências dos pais, que tinham ditado o divórcio de ambos (vide art. 49.º dos factos provados).
Compreende-se o raciocínio empreendido pelo tribunal de primeira instância no sentido de que quanto maior for a regularidade de contactos, a afectividade ou os sentimentos manifestados entre o falecido e o titular do direito à indemnização maior deverá ser o montante indemnizatório a atribuir pelo tribunal.
Como se deixa assinalado, com muito acerto, na decisão recorrida, “não basta ser familiar para se solicitar a atribuição de uma indemnização pelo dano morte, é necessário fazer prova da relação afectiva existente, porquanto é esta que permite aferir da intensidade do dano sofrido e se é de atribuir alguma indemnização”.
Tudo isto para afirmar que nada justifica a intervenção correctiva por parte deste tribunal de recurso, na medida em que, da matéria de facto considerada provada, não decorre a existência de um vínculo de grande proximidade ou de significativa afectividade entre pai e filho, que levasse a considerar que o montante atribuído pelo tribunal a quo não compensa a dor e a amargura sofridas.
Maiores dificuldades se levantam a respeito da atribuição de uma indemnização pela perda do direito à vida do malogrado passageiro da viatura.
Essas dificuldades decorrem de se procurar compensar a perda de uma vida humana, bem jurídico absoluto, de natureza pessoal e considerado inviolável pelo n.º 1 do art. 24.º da Constituição da República Portuguesa, mediante uma recompensa patrimonial que se traduz numa contrapartida monetária.
Ainda que, à partida, a vida humana não tenha preço e que todas não tenham distinção, a realidade quotidiana confronta o julgador com a necessidade de atribuir um valor pecuniário aos titulares do direito à indemnização, por forma a que, de acordo com as circunstâncias do caso, seja compensada a perda desse direito.
A este propósito, o art. 496.º, n.º 2, do CC, estabelece que, em caso de morte, o montante a atribuir aos titulares do direito à indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, de acordo com o disposto no art. 494.º do CC, ou seja, atendendo ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica do lesante e do lesado e às demais circunstâncias concretas do caso.
Como se vê, o legislador remete para o julgador a tarefa de fixar, no caso concreto, o montante indemnizatório adequado a compensar a perda da vida humana, segundo juízos de equidade, em vez de prever um montante fixo ou de prever critérios que o permitissem fixar dentro de determinados parâmetros.
Decorre deste preceito (pelo menos, de uma forma implícita) que a vida humana não apresenta sempre o mesmo valor pecuniário e que podem ser atribuídas diferentes compensações patrimoniais decorrentes da sua perda, de acordo com as concretas circunstâncias, aos titulares do direito à indemnização.
Nos casos de perda do direito à vida, para além do “grau de culpabilidade do agente” e da “situação económica deste e do lesado”, previstos, de modo genérico, pelo art. 494.º do CC, importa atender a outros critérios de ponderação (afinal de contas “as demais circunstâncias do caso”) para determinar o montante a atribuir aos titulares do direito à indemnização mencionados pelo n.º 2 do art. 496.º do CC.
Não se conseguirá fixar esse montante unicamente atendendo ao grau de culpa e à situação económica do lesante e do lesado, importará considerar as demais circunstâncias do caso, ou seja, critérios de ponderação mais específicos, que levem em conta o bem jurídico que esta indemnização pretende compensar.
A esperança de vida, de quem a perdeu por um infeliz evento, constitui critério de ponderação para fixação deste montante indemnizatório, de acordo com o seguinte princípio: quanto menor for a idade da vítima, maior deverá ser o montante a atribuir para compensar a sua perda inesperada.
Como a vida humana tem sempre um início e um fim e como a indemnização visa compensar a sua perda, compreende-se que os montantes a atribuir sejam mais elevados à medida que é menor a idade da vítima mortal, por, à partida, a expectativa de vida ser superior a quem apresenta idade mais avançada.
Todavia, a ponderação do critério da esperança de vida não resolve a questão controvertida dos valores a atribuir em caso de perda deste direito, ou seja, qual o montante mínimo juridicamente admissível e qual o montante máximo juridicamente tolerável para compensar a perda deste bem jurídico absoluto.
…
Com o intuito de prever linhas indicadoras para os montantes a atribuir aos titulares do direito à indemnização, a Portaria n.º 377/2008, de 26-05 (posteriormente alterada pela Portaria n.º 679/2009, de 25-06), fixou critérios e valores orientadores para uma proposta razoável de indemnização do dano corporal (incluindo para a perda do direito à vida) nos casos de acidente de viação.
Note-se que estas portarias se limitam a indicar valores negociais, propostas
de indemnização que podem vir a ser incrementadas de acordo com as circunstâncias concretas e que não são vinculativas em caso de processo judicial.
De qualquer modo, sempre se dirá, com relevância para o presente caso concreto, que estas portarias apontam para o montante até, aproximadamente, € 40 000, a atribuir aos titulares do direito de indemnização, em caso de perda do direito à vida, quando a vítima apresenta entre 50 e 75 anos de idade.
Conforme se deixou assinalado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-02-2021, proferido no Proc. n.º 625/18.8T8AGH …
Referiu-se neste acórdão, que “(…) «consolidou-se, assim, na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça o entendimento de que o dano pela perda do direito à vida, direito absoluto e do qual emergem todos os outros direitos, situa-se, em regra e com algumas oscilações, entre os € 50 000,00 e € 80 000,00, indo mesmo alguns dos mais recentes arestos a € 100.000,00 (cf., entre outros, os Acs. do STJ, de 10-5-12 (451/06), de 12-9-13 (1/12), de 24-9-13 (294/07), de 19-12-14 (1229/10), de 9-9-14 (121/10), de 11-2-15 (6301/13), de 12-3-15 (185/13), de 12-3-15 (1369/13), de 30-4-15 (1380/13), de 18-6-15 (2567/09) e de 16-9-16 (492/10)» (…)”.
Essa jurisprudência deve constituir factor de ponderação (em conjunto com outros) para a fixação do quantum indemnizatório, ainda que seja, por vezes, difícil de transpor devido as diferentes particularidades de cada caso em concreto.
No caso vertente, tendo em atenção a idade da vítima (56 anos à data do acidente), o seu contributo para a produção do evento (decorrente de não usar cinto de segurança quando ocorreu o despiste e o capotamento da viatura em que seguia), a esperança média de vida para pessoas do sexo masculino, os critérios jurisprudenciais acima mencionados e a ausência de prova de outras circunstâncias (nada, em concreto, foi alegado e provado para demonstrar o desacerto do montante fixado), deverá ser mantida a sentença proferida pelo tribunal de primeira instância quando fixou a quantia de € 36 000, a título de indemnização, decorrente da perda do direito à vida.
Aliás, praticamente para além da idade, não foram alegadas e provadas quaisquer outras circunstâncias relevantes para fixar o quantum indemnizatório (v.g. se era uma pessoa saudável, se trabalhava ou se gostava de viver), de modo a convencer este tribunal de recurso do desacerto do montante fixado, que a companhia seguradora pretende reaver, através do direito de regresso, a exercer contra o condutor (o arguido …), que era amigo do falecido ….
Deste modo, deverá ser julgado totalmente improcedente o recurso apresentado pelo demandante cível ….
III – DECISÃO:
Em face do exposto, acordam os juízes que integram a 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso apresentado pelo demandante …
Custas a cargo do recorrente, fixando-se em 3 UCs. a taxa de justiça devida (art. 513.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, em conjugação com o art. 8.º, n.º 9, do RCP e com a Tabela III anexa a este diploma legal).
Notifique.
Coimbra, 20 de Novembro de 2025
Cristina Pêgo Branco
Paula Cristina Carvalho e Sá
(com “Voto de Vencido” nos seguintes termos:
“Discordo, com o devido respeito, da solução sufragada pela posição maioritária na parte em que mantém o montante indemnizatório de € 36.000,00 a atribuir pela perda do direito à vida, por entender que esse valor não traduz adequadamente a gravidade da lesão do bem jurídico absoluto em causa nem se harmoniza com as atuais exigências de justiça material e com a jurisprudência consolidada dos tribunais superiores.
Acompanhando a orientação do art. 496.º, n.º 2, do Código Civil, a determinação do quantum indemnizatório em caso de morte deve ser efetuada “equitativamente”, considerando o critério geral do art. 494.º do mesmo diploma e ponderando, além disso, “as demais circunstâncias do caso”.
Esta remissão para a equidade não legitima, porém, a fixação de valores residuais ou meramente simbólicos: exige antes que o julgador, ponderando a natureza singular do bem jurídico vida humana, adote valores que se mantenham dentro de padrões mínimos de justiça e dignidade.
A equidade, aqui, não é um espaço de arbitrariedade, mas um método de correção e proporcionalidade. Tal como sublinhado pela melhor doutrina e pela jurisprudência reiterada do Supremo Tribunal de Justiça, a perda do direito à vida deve ser compensada segundo padrões que exprimam a centralidade do valor protegido – um valor absoluto e ontologicamente fundante de todos os demais direitos.
A posição maioritária enfatiza a ausência de alegação ou prova de circunstâncias adicionais relativas à vítima. Todavia, tal ausência não diminui a gravidade intrínseca da perda do direito à vida nem afasta a necessidade de situar o montante indemnizatório dentro dos patamares jurisprudencialmente consolidados. A idade da vítima – 56 anos, ainda integrada numa fase ativa da vida – constitui, só por si, um elemento relevante que aponta para um montante superior ao arbitrado.
Não se pode ignorar que, embora as Portarias n.º 377/2008 e 679/2009 possuam natureza meramente orientadora e negocial, nunca vinculativa, refletem uma conceção desatualizada e desde há muito ultrapassada pela prática jurisprudencial.
A própria experiência dos tribunais tem reconhecido que os valores previstos naquelas Portarias não acompanham a necessária atualização do montante de compensação nem se ajustam ao bem jurídico aqui em causa, sendo muitas vezes referidos apenas como limites mínimos de reparação extrajudicial.
O Supremo Tribunal de Justiça tem reiteradamente afirmado que o valor da indemnização pela perda do direito à vida deve situar-se, em regra, entre € 50.000,00 e € 80.000,00, podendo mesmo atingir € 100.000,00, conforme sublinhado no acórdão de 11.02.2021 (Proc. 625/18.8T8AGH) e em numerosa jurisprudência ali citada.
Não se descortinam, no caso concreto, razões que legitimem a fixação de um valor inferior ao mínimo dessa banda jurisprudencial. O uso do cinto de segurança – cujo incumprimento se reconhece – não constitui fundamento bastante para reduzir o montante a níveis que se afastam do standard jurisprudencial e que, na prática, acabam por desvalorizar de forma excessivamente acentuada a perda do bem jurídico fundamental.
A equidade não pode ser confundida com uma minimização do valor da vida, nem com a diluição do sentido ressarcitório da indemnização.
Tendo presente a idade da vítima (56 anos), a esperança média de vida masculina, o caráter absoluto do bem jurídico violado, os padrões jurisprudenciais acima referidos e a inexistência de circunstâncias concretas que imponham a redução para valor inferior ao mínimo jurisprudencial, entendo que o montante base a arbitrar deveria ser fixado em € 80.000,00. A este valor deve aplicar-se a redução de 40% correspondente ao contributo causal da vítima decorrente do não uso do cinto de segurança – redução essa que a decisão maioritária reconhece como juridicamente adequada, confirmando a decisão de 1ª instancia, decisão que, nesse particular, acompanho.
Deste modo, o montante devido aos titulares do direito à indemnização deveria ser fixado em: € 80.000,00 × 60% = € 48.000,00. Este montante exprime, de modo mais fiel, justo e proporcional, o juízo de equidade exigido pelos arts. 494.º e 496.º, n.º 2, do Código Civil, situando-se dentro dos parâmetros jurisprudenciais atuais, respeitando a dignidade do bem jurídico tutelado e assegurando a necessária uniformidade e previsibilidade decisórias.
Pelas razões expostas, deveria o recurso ser julgado parcialmente procedente e o montante indemnizatório pela perda do direito à vida ser fixado em € 48.000,00, após aplicação da redução de 40% ao valor-base de € 80.000,00.
É este o meu voto.”)