INVENTÁRIO
REPÚDIO DA HERANÇA
EFEITOS
RETROACTIVIDADE
ABERTURA DA SUCESSÃO
LEGITIMIDADE PROCESSUAL
DESCENDENTE
SUCESSÃO POR MORTE
VOCAÇÃO SUCESSÓRIA
DIREITO DE REPRESENTAÇÃO
PRESSUPOSTOS
REPRESENTANTE
PERSONALIDADE JURÍDICA
CAPACIDADE SUCESSÓRIA
PACTO SUCESSÓRIO
Sumário


I.  A abertura da sucessão, coincidente com o falecimento do de cujus, constitui o marco temporal fundamental para a determinação dos requisitos da vocação sucessória. É relativamente a esse momento que devem estar verificados, a titularidade da designação sucessória prevalente, a existência — ou personalidade jurídica — do chamado à sucessão, bem como a sua capacidade sucessória.
II.   O sucessível que venha a repudiar a herança é equiparado a um não chamado; equiparação que conhece a exceção consagrada no artigo 2043.º do Código Civil.
III.    Esse direito de representação pelos descendentes do repudiante permite que aqueles possam herdar na sua posição, evitando prejuízo à linha sucessória e assegurando a continuidade da transmissão patrimonial na sucessão legítima dentro do tronco familiar,
IV.   Ainda que o repúdio seja formalizado em momento posterior ao falecimento do autor da herança, os seus efeitos retroagem ao momento da abertura da sucessão. Deste modo, opera-se como se o repúdio fosse contemporâneo ao óbito, sendo igualmente nesse referencial temporal que se determina a posição jurídica do sucessível subsequente, conforme resulta do disposto no artigo 2062º do Código Civil.
V.    A retroatividade dos efeitos do repúdio ao momento do decesso do de cujus visa garantir a estabilidade e coerência do sistema sucessório, permitindo a determinação segura dos sucessíveis subsequentes.

Texto Integral

I. Relatório

Da instância

No decurso dos autos de inventário judicial para partilha da herança aberta por óbito de AA, falecido em D/M/1996, em cumulação com a herança aberta por óbito de sua mulher, BB, falecida em D/M/2021, CC e DD requereram a intervenção como suas interessadas directas.

Alegaram e documentaram em fundamento da sua pretensão sucessória , que são filhas de EE, filho dos inventariados, que em 11/01/2012 repudiou à herança por morte dos pais, ora inventariados, cabendo-lhes em sua representação assumir a respetiva posição na herança.

Após o contraditório, o tribunal indeferiu a pretensão ditada pela ilegitimidade passiva das requerentes para concorrerem à partilha , uma vez que à data da abertura da sucessão dos inventariados ainda não eram nascidas.

A Apelação

Inconformadas, apelaram, vindo o Tribunal da Relação do Porto a confirmar o sentido e fundamentos da decisão de primeiro grau, conforme o dispositivo:

« Nestes termos e com os fundamentos que antecedem, declaro que CC e DD não têm legitimidade para figurar como interessadas directas no inventário para partilha da herança aberta por óbito de AA e, consequentemente, absolvo as mesmas da instância.»

A Revista

Inconformada, CC interpôs revista excecional, pugnando pela revogação do acórdão da Relação e, consequente formulação de juízo que reconheça às filhas do repudiante, legitimidade no processo de inventário.

As conclusões no final das alegações são as que se transcrevem :

«1. É admissível o recurso de revista excepcional, nos termos das alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 672.º do CPC.

2. Tendo o autor da herança em causa nos autos, AA, falecido em D-M-1996, tendo-lhe sucedido como seu filho, entre outros sucessores, EE, e tendo este seu filho, em 11-01-2012, em violação do art. 2049.º, n.º 1,1 do Cód. Civil, repudiado à herança do referido pai, então, no exercício e por efeito do direito de representação, cabe às filhas do repudiante, CC e DD, assumir naquela herança a posição que cabia ao repudiante.

3. O facto das referidas filhas do repudiante terem nascido após o óbito do autor da herança, tal facto não é impeditivo dessa representação e da assunção, pelas referidas filhas, da posição hereditária que cabia ao repudiante, seu pai, naquela herança.

4. Ao julgar as referidas filhas do repudiante como parte ilegítimas para o processo de inventário supra referenciado e ao absolve- las da instância de tal processo, com fundamento do facto de elas não serem ainda nascidas á data do óbito do inventariado, autor da herança em causa, o Tribunal da 1.ª Instância interpretou incorrectamente e violou as normas dos artigos 2039.º a 2045.º, 2049.º, n.º 3, 2062.º e 2067.º, todos do Cód. Civil.

5. Ao julgar improcedente a apelação da recorrente CC e ao confirmar a sentença apelada e, em conformidade, ao julgar que as referidas filhas do repudiante como partes ilegítimas para o processo de inventário supra referenciado e ao absolvê-las da instância de tal processo, com fundamento do facto delas não serem ainda nascidas á data do óbito do inventariado, autor da herança em causa, o Tribunal da Relação do Porto interpretou incorrectamente e violou as normas dos artigos 2039.º a 2045.º, 2049.º, n.º 3, 2062.º e 2067.º, todos do Cód. Civil.

6. Se os credores do repudiante, existentes à data do repúdio, por efeito de sub-rogação, podem aceitar a herança em nome dele, nos termos do art. 2067.º, n.º 1, do Cód. Civil, e se os sucessores de um herdeiro falecido, mesmo que não sejam nascidos á data do óbito do autor da herança, são chamados, por efeito de representação, à sucessão do autor da herança, então também os sucessores do repudiante, mesmo que não sejam nascidos á data do óbito do autor da herança, são chamados, por efeito de representação, nos termos do art. 2062.º e 2039.º e seguintes do Cód. Civil, á sucessão na herança repudiada.

7. Nos termos dos artigos 2039.º e seguintes e do artigo 2062.º, todos do Cód. Civil, o repudiante EE tem-se por chamado, mas destruiu os efeitos do chamamento a seu favor com o ato de repúdio e deu, ao mesmo tempo e com o mesmo ato, lugar ao chamamento autónomo das suas descendentes CC e DD que, por direito próprio, são chamados a suceder no lugar que ocuparia o seu ascende, senão tivesse repudiado (cfr. o n.º 8, entre outros, da anotação ao art. 2062.º do Cód. Civil, in Código Civil Anotado, Pires de Lima e Antunes Varela).

8. Os tribunais aplicaram aquele art. 2035.º do Código Civil de 1867 e não a lei dos artigos 2062.º e seguintes e 2043.º, entre outros, do actual Código Civil.

9. Finalmente, tal interpretação da lei provinda dos tribunais das instâncias, constitui também a violação do princípio da igualdade entre filhos, em violação do direito sucessório, retirando direitos a uns e concedendo direitos a outros. E, em conformidade com tais conclusões, revogando acórdão recorrido e substituindo-o por douto acórdão que julgue as referidas filhas do repudiante, CC e DD, como partes legítimas para o referido processo de inventário, para os processos em apenso e para assumir naquela herança a posição que cabia ao repudiante na data do repúdio…»

*

Não foram apresentadas contra-alegações.

II. Admissibilidade e objecto do recurso

Atestados os requisitos gerais de recorribilidade e da espécie, face à conformidade dos julgados das instâncias, a Formação admitiu a interposta revista excecional, considerando o ineditismo da questão controvertida com relevância jurídica e social.

O tema decisório está delimitado pelas conclusões do recorrente (artigos 635.º, n.º 3, e 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), salvo questão de conhecimento oficioso.

No caso importa decidir se, a recorrente que nasceu após o decesso do inventariado ( avô), sucede na sua herança por direito de representação de seu pai que repudiou. Desiderato que motiva o debate sobre os seguintes tópicos:

• a data da abertura da sucessão; pressupostos da vocação sucessória;

• o direito de representação e o repúdio; retroactividade ; os descendentes não concebidos à data do óbito e nascidos à data do acto do repúdio;

• Os casos legais de excepção; a exclusão de analogia

III. Fundamentação

A. Os factos

Com interesse para a decisão está provada a seguinte cronologia factual:

1. AA faleceu em D/M/1996;

2. EE, seu filho, por escritura de 11/1/2012, outorgada em Cartório Notarial, repudiou a herança daquele;

3. CC e DD são filhas de EE, tendo a primeira nascido em D-M-2003 e, a segunda em D-M-2008.

B.O Direito

1. Enunciado

A recorrente pretende ocupar por direito de representação a posição sucessória de seu pai, na partilha da herança do inventariado que repudiou, com o amparo do disposto nos artigos 2042º, 2043º e 2062ºdo Código Civil.

As instâncias extraíram a conclusão unânime da ilegitimidade para os termos do inventário, uma vez que a recorrente ( e irmã) nasceu posteriormente à morte e data de abertura da herança do inventariado, não estando verificado o pressuposto da vocação sucessória, imprescindível, mesmo que resultante do acto de repúdio/direito de representação ( art. 2039.º do CC).

Na revista, empenhada na defesa da pretensão, a recorrente mais argumenta, que ao arrepio do princípio de igualdade entre filhos, foi aplicado o artigo 2035º do Código Civil de 1867, em violação dos artigos 2039º a 2045º, do n.º 3 do artigo 2049º, e 2062º e 2067º do actual Código Civil2 .

Em adjuvante, no seu entendimento, verifica-se a analogia com a situação atinente aos credores do repudiante (art. 2067.º) , sob pena de, a acolher a interpretação das instâncias, dar lugar a uma nova situação de deserdação (dos descendentes do repudiante)3.

Na indagação sobre o tema não sinalizámos na jurisprudência do Supremo Tribunal e das Relações a resolução de caso(s)paralelo(s), porventura pela argumentação a fortiori avançada pela recorrente,não dispor de suporte na lei vigente.

Já na doutrina, a larga densificação dos institutos da sucessão por direito representação e os efeitos do repúdio da herança, e da sua interpretação sistemática no quadro normativo da sucessão legal, em interceção com a casuística em juízo, levam-nos a reiterar a solução alcançada pelas instâncias. As razões que se alinharão de seguida, procuram ser fundamentação cabal.

2. A legitimidade no inventário ; abertura da sucessão

A recorrente arroga-se da qualidade de interessada directa na partilha da herança aberta por óbito de AA e mulher, em representação de seu pai e filho dos inventariados de que afirma beneficiar na sucessão mortis causa.

A legitimidade (ad causam) para intervir em inventário como parte principal em todos os actos e termos do processo4, é atribuída, além do mais, aos interessados directos na partilha – cfr. al. a) do n.º 1 do artigo 1085.º do CPC5 .

A sua aferição implica, saber se o requerente poderá ser afectado imediata e directamente na sua esfera jurídica pelo modo como se organizará e concretizará a partilha dos acervos hereditários.

Conforme dispõem os artigos 2031.º e n.º 2 do artigo 2050ºdo Código Civil, respetivamente - “ A sucessão abre-se no momento da morte do seu autor e no lugar do último domicílio dele, e “Os efeitos da aceitação retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão”.

Tal entendimento decorre do princípio da simultaneidade entre a morte do de cujus e a abertura da sucessão, fundamento estruturante do sistema sucessório português que define quem pode suceder, mas também que situações jurídicas são consideradas relevantes para a transmissão.

A vocação sucessória - legal ou voluntária- fixa-se e consolida-se no momento da abertura da sucessão e, mesmo que a vocação seja subsequente retrotrai àquele momento.

Em decorrência, a aquisição das relações jurídicas de que o de cujus era titular e a partilha, retroagem à data da abertura da sucessão, e cada um dos herdeiros é considerado sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos, desde então – cfr. artigos 2050º, nº2 e 2119.º do Código Civil.

A doutrina é unânime ao reconhecer que, na arquitectura normativa sucessória a abertura da sucessão corresponde ao marco temporal de referência em relação ao qual devem estar preenchidos os pressupostos da vocação sucessória - a titularidade da designação sucessória prevalente, a existência ou a personalidade jurídica, e a capacidade sucessória6.

Apelando aos ensinamentos de PEREIRA COELHO7 :

«[…] é um princípio geral do nosso direito sucessório, revelado em muitas das suas disposições, o princípio de que o momento fundamental do fenómeno sucessório é o momento da abertura da sucessão, a este momento devendo ser aferidos ou reportados os vários actos e operações a que no decurso desse fenómeno houver de proceder-se.

Assim, a aceitação retrotrai os seus efeitos ao momento da abertura da sucessão (art. 2050.º, n.º 2).

E não só a aceitação como a vocação sucessória. Esta faz-se, regra geral, no próprio momento da abertura da sucessão, e, quando subsequente ou sucessiva, retroage a esse mesmo momento (art. 2032.º, n.º 2).

[…] é no momento da abertura da sucessão que a designação sucessória se fixa ou se concretiza na vocação, e os termos em que ela se fixa ou se concretiza são ainda determinados pelo momento da abertura da sucessão.

Já antes da abertura da sucessão -como veremos – há expectativas sucessórias, pessoas indicadas ou designadas para suceder. Mas a designação é inconsistente, flutuante, e é só justamente no momento da abertura da sucessão que a designação se fixa.»

3. Vocação sucessória sucessiva- o direito de representação

Na solução do caso espécie, a abertura da sucessão assume primacial significado, tendo presente que a recorrente e irmã, filhas do repudiante , nasceram em data póstuma ao decesso do inventariado.

3.1. De acordo com o disposto no artigo 2033º do Código Civil- têm capacidade sucessória, além do mais, todas as pessoas nascidas ou concebidas ao tempo da abertura da sucessão, bem como as pessoas concebidas no quadro de um procedimento de inseminação post mortem e os nascituros não concebidos, no quadro da sucessão contratual e testamentária, que sejam filhos de pessoa determinada, viva ao tempo da abertura da sucessão.

Identificam-se, pois, duas exigências diversas.

Na situação da existência posterior do chamado à vocação sucessória:

«[..] o chamado ainda há-de existir no momento da morte do de cuius. E o sentido desta exigência é o seguinte: o chamado ainda há-de existir juridicamente há-de ainda ter personalidade jurídica no momento em que se abre a sucessão. Como a personalidade jurídica acaba, relativamente às pessoas singulares, com a morte, e, relativamente às pessoas colectivas, com a sua dissolução ou extinção, o chamado há-de ser uma pessoa (singular) que ainda esteja viva ou uma pessoa (colectiva) que ainda não esteja extinta. O chamado há-de, pois, sobreviver ao de cuius, nem que não seja senão por um instante apenas. Este princípio deduz-se da lei com segurança, se bem que o Código não o formule com muita clareza …8»

Para a situação de existência anterior do chamado:

«[…] o chamado já há-de existir no momento da morte do de cuius. E ainda aqui, esta exigência tem o seguinte sentido: o chamado já há-de existir juridicamente, há-de já ter personalidade jurídica no momento da abertura da sucessão. Como a personalidade jurídica começa, relativamente às pessoas singulares, com o nascimento e, relativamente às pessoas colectivas, com o reconhecimento do respectivo substrato, o chamado há-de ser uma pessoa (singular) que já esteja viva ou uma pessoa (colectiva) que já esteja reconhecida no momento em que se abrir a sucessão.9»

No mesmo sentido, destaca Carvalho Fernandes que a representação visa evitar que o repúdio quebre artificialmente a linha descendente10.

Condicionantes que apenas são preteridas nos casos legalmente tipificados11- v.g. a possibilidade de, na sucessão contratual ou testamentária, visando-se proteger a liberdade negocial e testamentária, satisfazer a voluntas do autor da sucessão, de sucederem nascituros não concebidos e, a possibilidade atinente ao procedimento de inseminação post mortem (nascimento que decorra de uma inseminação ocorrida depois da abertura da sucessão)12 .

Revela-se, pois, injustificada a alegação da recorrente na defesa da sua aplicação à situação dos autos , seja por um argumento a simile ou por analogia.

Tomemos o conceito de analogia como aplicação de uma regra jurídica a um caso concreto, não regulado pela lei através de um argumento de semelhança substancial com os casos regulados – a chamada analogia legis (artº 10 do Código Civil).

À parte da diferente natureza do título de vocação sucessória, que não a sucessão legal, estamos perante um regime excepcional, circunscrito àquelas concretas modalidades, que não têm similitude (alguma) com a situação representada no caso que julgamos.

Ademais, em face do carácter excepcional e típico daquelas normas destinado às situações particulares tipificadas, deve ter-se, seguramente, por excluída a sua aplicação por analogia , conforme o disposto no artigo 11º do Código Civil.

3.2. O repúdio do sucessível prevalente

Advindo a falta de vontade ou impossibilidade de aceitar dos sucessíveis que gozam de prioridade na hierarquia dos sucessíveis, são chamados os sucessíveis subsequentes, retrotraindo-se a devolução a favor destes ao momento da abertura da sucessão, evitando-se um hiato na titularidade das relações jurídicas do falecido e, aqui, se incluindo também o designado ulterior, após repúdio do sucessível prevalente – artigos 2039.º e 2062.ºdo Código Civil.

Perante o repúdio ao chamamento sucessório, que é irrevogável, há lugar hierarquicamente ao direito de representação a favor dos descendentes do sucessível, ao direito de acrescer para os outros co -sucessíveis ou ao chamamento dos sucessíveis legais com prioridade de designação.

O sucessível repudiante considera-se não chamado, excepto na concretização da afirmação legal do direito de representação dos seus descendentes que se encontra estabelecido no artigo 2043º do Código Civil.

Opção de salvaguarda dos descendentes do repudiante que corresponde a uma inovação face ao Código Civil de 1867, que não contemplava na situação a vocação sucessiva13.

Da mera leitura do actual artigo 2039.º do Código Civil resulta que a principal diferença entre as duas normas provém do facto de o Código de 1966 admitir também o direito de representação em benefício dos descendentes do herdeiro ou do legatário que não quis aceitar a instituição ou o legado (art. 2041.º, n.º 1), enquanto no Código de 1867 o repúdio da herança afastava o direito de representação.

O direito de representação que corresponde ao chamamento autónomo dos sucessíveis do repudiante, por direito próprio , a sucederem no lugar que ocuparia o seu ascendente, se não estivesse repudiado14.

Explica PEREIRA COELHO que 15«[…] é evitar que circunstâncias fortuitas e imprevistas venham alterar a disciplina normal da sucessão. As pessoas fazem os seus planos de vida na previsão da normalidade das coisas, e não seria justo que eventos ocasionais e fortuitos frustrassem essas previsões e expectativas, dos herdeiros legitimários e até de terceiros donatários; na ideia da lei, circunstâncias imprevisíveis como a pré-morte do filho ao pai, a ausência, a indignidade, a deserdação ou o repúdio não devem repercutir-se no modo como se opera ou desenvolve a sucessão .»

Em reforço, afirma-se que o direito de representação depende de dois pressupostos (na sucessão legal):

«O primeiro é a falta de um parente da 1.ª ou das 3.ª classes de sucessíveis do n.º 1 do art. 2133.º, abrangendo o termo “falta” as cinco situações seguintes: a pré-morte (o caso de longe mais vulgar), a incapacidade por indignidade, a deserdação, a ausência e o repúdio.

O segundo pressuposto é a existência de descendentes do parente excluído da sucessão.

Quando, portanto, falta um parente da 1.ª ou das 3.ª classes de sucessíveis, mas este deixa descendentes, os descendentes do parente que falta são chamados à sucessão em lugar dele. (…)».

Em alinhamento explica CAPELO DE SOUSA:

«Aplicam-se (…) as regras (…) sobre os pressupostos da vocação sucessória (maxime, os arts. 2032.º e 2033.º). Assim, tal existência e capacidade têm de verificar-se no momento de abertura da sucessão, sem prejuízo, porém, da regra de os descendentes nascituros concebidos terem direito de representação embora sujeito à condição legal de virem a nascer (arts. 2033.º, n.º 1, e 66.º, n.º 2) e, por outro lado, dos requisitos complementares de capacidade posteriores à abertura da sucessão e previstos nos arts. 2034.º, al. d) e 2035.º, n.º 2.»

Mas será que, em caso de repúdio, a existência e a capacidade sucessória do representante se aferem apenas no momento da abertura da sucessão ou têm que se verificar igualmente no momento do repúdio? Estamos em crer que basta tais pressupostos se apurarem no primeiro momento, sem prejuízo obviamente do disposto nos referidos arts. 2034.º, al. d) e 2035.º, n.º 2. É que conforme o art. 2062.º os efeitos do repúdio retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão e, por força dos arts. 2032.º, n.º 2 e 2039.º, a igual momento se retrotrai a devolução a favor dos representantes, acrescendo que a vocação destes não está em princípio sujeita a qualquer condição .16»

Na interpretação do artigo 2062º do Código Civil importa reter :

« [o] artigo consagra um efeito muito importante, o da retroação ao momento da abertura da sucessão. Quer isto dizer que, quando alguém repudia, ainda que o tenha feito vários anos depois da morte do autor da sucessão, tudo se passa como se o repúdio se tivesse verificado nesse momento. Este mecanismo tem uma importante consequência, a saber, a de termos de procurar o sucessível subsequente no momento da abertura da sucessão e não no momento do repúdio.17»

A jurisprudência vem confirmando sem desvio a coerência do regime legal - o repúdio produz efeitos “ex tunc” ao momento da abertura da sucessão- excluindo o repudiador como se nunca tivesse sido chamado, admitindo embora a sua linha descendente de participar por representação. retroatividade dos efeitos do repúdio, conforme resulta de diversos arestos18.

4. A vocação sucessiva e os casos de excepção

Desde logo importa sublinhar que a recorrente, no afã de credibilizar a sua pretensão, cita em conforto a alegada posição expressa por Pires de Lima e Antunes Varela na anotação ao artigo 2062.º do Código Civil , mas, s.d.r, sem qualquer correspondência19.

Sucede que é da autoria da própria recorrente, não dos citados insignes civilistas, o a premissa de que se deverá atender à data do repúdio para aferir da existência, ou não, do direito de representação de eventuais descendentes.

Noutra perspectiva, na situação em juízo, de vocação sucessiva por direito de representação, ante o repúdio do seu pai, é de afastar a pretendia aplicação por analogia, quanto ao pressuposto da existência e da capacidade do chamado, das situações normativas de excepção de que falámos, sem que se verifique a igualdade das situações.

Note-se que, à situação de nascituros não concebidos, à data da abertura da sucessão nos referidos casos de excepção, acresce o pressuposto/requisito adicional, da previsibilidade da excepção e, não sendo possível tal previsibilidade, um limite temporal para ocorrer a excepção20.

No momento da abertura da sucessão, apresentam-se cognoscíveis os pactos sucessórios (renunciativos, designativos e dispositivos), bem como a existência, ou não, de testamento.

De outro passo, não se sabendo os procedimentos de inseminação/implantação, sabe-se, sendo o caso, que os mesmos devem iniciar-se no prazo máximo de três anos contados da morte do marido ou unido de facto, acrescendo que a inseminação ou implantação apenas pode ocorrer para a concretização de uma única gravidez da qual resulte nascimento completo e com vida.

No plano defendido pela recorrente, ex adverso, não se surpreende qualquer limite temporal para tal ocorrer e a partilha dos bens em apreço, bem como o repúdio, poderiam ter ocorrido em momento anterior.

Decerto que a sua adopção abalaria a certeza e segurança jurídica do fenómeno sucessório, sujeitando a cessação da comunhão hereditária e a partilha de certa herança à eventualidade de serem concebidos sucessíveis de um repudiante, pondo em risco a própria retroactividade da partilha.

Senão veja-se.

Na inseminação post mortem, a herança mantém-se jacente durante o prazo de três anos após a morte do progenitor falecido, prazo esse que é prorrogado até ao nascimento completo e com vida do nascituro caso esteja pendente a realização dos procedimentos de inseminação permitidos (n.º 5 do art. 22.º, n.º 5 do art. 23.º da LPMA e n.º 2 do art. 2046.º do CC), sendo a herança colocada em administração (n.º 2 do art. 2046.º).

O que significa que na sucessão testamentária e contratual, a herança deixada a nascituro ainda não concebido, é posta em administração e assim se conserva até que nasçam os instituídos ou haja a certeza de que o nascimento não se dará.

Apresentando-se discutível qual a solução para os casos em que a herança é deixada (no todo ou em parte) a nascituros não concebidos: da impossibilidade de partilha, que não se apresenta razoável, por desacautelar o interesse dos co-herdeiros já existentes; da partilha aproximativa entre os herdeiros já nascidos e o número de filhos que provavelmente venham a nascer, atendendo a factores como a idade do progenitor dos instituídos, o que se reconduz a arbitrariedade e da partilha sob condição resolutiva de nascerem mais filhos .

Rejeita-se de jure constituto que caso a partilha já tivesse sido feita, a mesma teria de ser anulada, perante uma composição do quinhão de um herdeiro preterido e sem limite temporal.

Destituída também de fundamento em regular a sucessão contratual e testamentária, a indicação dos sucessíveis de determinada pessoa ou para se limitar temporalmente a possibilidade da vocação do(s) não concebido(s), no âmbito do procedimento de inseminação artificial, quando tal não ocorreria para a sucessão legal, desde que estivessem em causa descendentes de repudiante, não concebidos.

Observe-se que, em termos de expectativa jurídica, a posição em apreço é, ainda, incompatível com o próprio direito de eventuais co-herdeiros (v.g. direito de acrescer e, inclusive, no próprio âmbito da representação na sucessão legal, que tanto ocorre na linha recta como na linha colateral).

Não se apresenta, pois, relevante para efeitos de atribuição da qualidade de interessada directa a circunstância de a recorrente e DD terem nascido ao tempo do repúdio.

A recorrente, em reforço argumentativo, visa estabelecer uma analogia com o estipulado sobre os credores do repudiante, bem como alude à nova situação de deserdação, criada pela interpretação das instâncias.

Não lhe assiste razão.

Ensaiando de novo a formulação de um raciocínio análogo e, à margem da necessária correspondência entre as situações, e/ou o correspondente fundamento material do mecanismo excepcional.

A sub-rogação do credor ao devedor (art. 606.º do CC)21 configura um direito próprio incluído na garantia patrimonial do crédito, alheio à vontade do chamado e da declaração de repúdio por ele emitida.

Um acto de substituição e não um acto de transmissão ou sucessão, que depende da declaração irrevogável de repúdio em prejuízo dos credores, a qual apenas se pode efectuar no prazo de seis meses, contado do conhecimento do repúdio.

Ou seja, está em causa um instituto/mecanismo distinto e, note-se, limitado temporalmente, sujeito a um prazo de caducidade, porquanto normativamente se pretende uma rápida definição jurídica (relativamente àquela concreta herança, aos respectivos interessados, para se possibilitar a partilha).

Na interceção do instituto do repúdio e a intervenção dos credores do repudiante o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 21.092021, destaca a existência de um “microssistema de tutela” legal - artigo 2067.º CC- prevendo mecanismos específicos para que os credores do repudiante não fiquem totalmente desprotegidos22.

Em remate, a recorrente afirma ainda que a não se acolher a pretensão sucessória da recorrente, descendente do herdeiro repudiante, estará em causa uma nova situação de “deserdação”.

O exemplo dado pela recorrente filia-se na linguagem corrente e não no sentido normativo da figura previsto no artigo 2166º do Código Civil , circunstância que logo inviabiliza acolhimento.

Neste último , a deserdação corresponde à declaração de vontade do testador privar da legítima os seus herdeiros legitimários é, desde logo, um acto que deve ser declarado em testamento , e destina-se, tão só, a produzir efeitos post mortem.

Refira-se que, na esfera jurídica da recorrente, não existia tampouco a expectativa do benefício daquela concreta herança , por a mesma não ser sucessora legal, contratual ou testamentária do de cujus.

Como se notou, as situações normativas especiais invocadas pela recorrente são materialmente diferentes da ajuizada, que naturalmente apresentam tratamento legal também diferente. Donde, não é admissível que através de uma actividade de interpretação, se estenda a sua aplicação às descendentes do herdeiro repudiante que não eram nascidas à data da abertura da sucessão do autor da sucessão.

Em suma, não dispondo a recorrente e irmã de capacidade sucessória ao tempo da abertura sucessão do(s) inventariado(s) pressuposto da vocação sucessória legal que reclamam, não detêm legitimidade para intervir no processo de inventário para partilha do respetivo acervo patrimonial.

IV. Decisão

Pelo exposto, improcede a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

As custas são a cargo da recorrente.

Lisboa, 27.11.2025

Isabel Salgado (relatora)

Ana Paula Lobo

Orlando dos Santos Nascimento

__________


1. Certamente por lapso constava artigo “2059º do CC”

2. Vide conclusões n.º 4, 5, 7 a 9

3. Vide conclusão n.º 6.

4. E, também para requerer que se proceda a inventário, e o direito de ser citado e de defender os seus direitos na divisão dos bens da herança.

5. O denominado litisconsórcio unitário (necessário) e recíproco (multipolar), próprio do processo de inventário.

6. Cfr. CAPELO DE SOUSA, Lições de Direito das Sucessões, Volume I, 4.ª ed., 2012, p. 273: [..] retrotraem-se ao montante da abertura da sucessão. Conforme os arts. 2062.º e 2249.º, os efeitos do repúdio da herança e do legado consideração do sucessível como não chamado, salvo para efeitos de representação) retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão (…).”; VAZ SERRA, in “Sucessões – Noções Fundamentais”, boletim do Ministério da Justiça, n.º 90, 1960, pp. 169/172 — esclarece que a morte “congela” as condições para a vocação sucessória.

7. PEREIRA COELHO, Direito das Sucessões, Lições ao curso de 1973-1974, actualizadas em face da legislação posterior, Coimbra,1992, pp. 128 e ss.; e OLIVEIRA ASCENSÃO, ob. cit., p. 119, entre outros.

8. PEREIRA COELHO, obra citada, pp 186,188, 189.

9. Do mesmo Autor na obra e local citados.

10. In Lições de Direito das Sucessões, 4.ª ed., Universidade Católica Editora, 2014, pp.185/189.

11. Regulam-se, ainda, dois outros casos, embora sem relevância para a solução no caso : a sucessão de nascituros já concebidos (na sucessão legítima, testamentária e contratual) e a sucessão de pessoas colectivas ainda não reconhecidas (na sucessão testamentária)- cfr. PEREIRA COELHO, ob. cit., pp. 190-193 (primeiro caso) e pp. 209-210 (segundo caso).

12. Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho, e sequentes alterações, sujeita a regulação específica, em especial, arts. 22.º, 22.º-A e 23.º; veja-se também, CRISTINA ARAÚJO DIAS, Código Civil anotado – livro V – Direito das Sucessões, 2018, pp. 37 e 38.

13. Como referem PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, vol. VI., reimp., 2011, pp. 47-48 , sobre o Código de 1867 – “ Entende-se que o herdeiro que repudia, prescrevia efectivamente o artigo 2035.º (do Código de 1867), nunca foi herdeiro, nem pode haver, em tal caso, direito de representação; mas o repúdio da herança não priva o repudiante do direito de haver os legados, que lhe tenham sido deixados»”. Igualmente, PEREIRA COELHO, ob. cit., p. 229 e 230.

14. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, ob. cit., p. 48; ainda, PEREIRA COELHO, ob. cit., p. 232 e OLIVEIRA ASCENSÃO, ob. cit., p. 182.

15. Ibid., p.236.

16. Ob. cit., nota 852, p. 331; ainda, neste sentido, CRISTINA ARAÚJO DIAS, ob. cit., pp. 31-34; e CRISTINA PIMENTA COELHO, anotação ao art. 2062.º, Código Civil Anotado, Volume II (artigos 1251.º a 2334.º), coord. Ana Prata, 2017, p. 973, quando refere que “(…) [o] artigo consagra um efeito muito importante, o da retroação ao momento da abertura da sucessão. Quer isto dizer que, quando alguém repudia, ainda que o tenha feito vários anos depois da morte do autor da sucessão, tudo se passa como se o repúdio se tivesse verificado nesse momento. Este mecanismo tem uma importante consequência, a saber, a de termos de procurar o sucessível subsequente no momento da abertura da sucessão e não no momento do repúdio.”

17. CRISTINA PIMENTA COELHO, anotação ao art. 2062.º, Código Civil Anotado, Volume II (artigos 1251.º a 2334.º), coord. Ana Prata, 2017, p. 973; e também CRISTINA ARAÚJO DIAS, in Código Civil Anotado, Livro V, 2ª, em anotação àquele normativo.

18. Inter alia, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 6.03.2003,proc nº03B349, e 13.10.2022, proc. nº 677/19.3T8FAR.E1.S1; Acórdão da Relação e Guimarães de 10.09.2024. proc. nº 15/6.5TBMGD-D.G1; Acórdão da Relação de Lisboa, de 30.05.2023, proc. nº2537/19.9T8ALM.L1-7, in www.dgsi.pt.

19. Ob. cit. p. 103 a 106, em especial ponto 2, 6 e 8 da anotação.

20. Cfr. PEREIRA COELHO, ob. cit., pp. 201-205.

21. Tutela já prevista no Código de 1867 – acção sub-rogatória .

22. No proc. nº 3778/19 in www.dgsi.pt.; também AC.STJ de 6.03.2003, proc. nº 03B349 in jurisprudencia.pt.