ADVOGADO
MANDATO FORENSE
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Sumário

1. Como é afirmado consistentemente pela jurisprudência dos Tribunais da Relação, a natureza instrumental do facto perante o Direito e os princípios da economia e utilidade processuais impedem que a reponderação da decisão de facto na 2ª instância passe pelo aditamento de matéria insuscetível de aportar qualquer valia ou efeito útil à decisão de mérito de acordo com as diversas soluções plausíveis que esta pode comportar.
2. O entendimento de que o Tribunal recorrido deveria ter desvalorizado a credibilidade dos depoimentos de duas testemunhas, a pretexto do que o mesmo Tribunal fez, num outro processo, sobre outros testemunhos dos mesmos depoentes, a vingar, consagraria um viés do julgador, com afronta do princípio da audiência contraditória na produção de prova (artigo 415.º do Código de Processo Civil).
3. Não atua com negligência grave, para a condenação como litigante de má-fé ao abrigo da alínea a) do n.º 2 do artigo 542.º do Código de Processo Civil, o Advogado que tendo declinado a retribuição dos serviços que prestou a um familiar, mais tarde, após ter conhecimento de factos que podem por em causa a correção do comportamento daquele outro perante uma pessoa próxima, vem exigir judicialmente aquela retribuição, por não querer que o mandato se quede gratuito.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Processo n.º 98000/22.4YIPRT.E1
Forma processual – ações declarativas especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos
Tribunal Recorrido – Juízo de Competência Genérica de Coruche
Recorrente – (…)
Recorrido – (…)

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Acordam os Juízes Desembargadores da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

Relatório

I. Identificação das partes e descrição do objeto das ações.
Apenso A:
(…), requereu junto do Balcão Nacional de Injunções a notificação de (…) para lhe pagar a quantia total de € 5.271,00, sendo € 5.067,00 de capital e € 102,00 de taxa de justiça.
Fundamentou a sua pretensão no facto de ter sido mandatada pelo Requerido para a prestação de serviços jurídicos no âmbito de um processo judicial que identificou, tendo procedido à liquidação dos respetivos honorários, para cujo pagamento interpelou aquele outro, sem sucesso.
O Requerido deduziu oposição, excecionando a natureza gratuita dos serviços, fundada, segundo invocou, no facto de a Requerente ser mãe da sua companheira à data daqueles factos e avó da sua filha. Alegou, bem assim, que os honorários liquidados são excessivos, tendo peticionado a condenação da Requerente como litigante de má-fé, em multa e em indemnização de valor não inferior a 6.000,00 euros.
Distribuída a injunção como ação para o cumprimento de obrigações pecuniárias, após auscultação das partes, foi proferido em 20 de março de 2023 despacho que determinou a apensação da ação a uma outra, pendente no mesmo Tribunal, com os mesmos intervenientes e pedido de condenação no pagamento de honorários, com o n.º 98000/22.4YIPRT, passando a assumir a letra A.
Apenso B:
Por requerimento apresentado no mesmo Balcão Nacional de Injunções, (…) requereu a notificação de (…) para lhe pagar a quantia total de € 6.375,00, sendo 5.773,00 de capital e € 102,00 de taxa de justiça.
Fundamentou o requerido em factos idênticos aos acima indicados, relativos a um outro, distinto, processo judicial.
O Requerido deduziu oposição, excecionando, bem assim, a natureza gratuita dos serviços, fundada nos factos atrás enunciados e invocado que a Requerente após ter recebido a quantia de 1.000,00 euros a título de indemnização no âmbito do processo judicial, fez sua a quantia de 500,00 euros, o que foi aceite. Alegou, bem assim, que os honorários reclamados são excessivos, tendo peticionado a condenação da Requerente como litigante de má-fé, em multa e indemnização de valor não inferior a 6.000,00 euros.
Distribuída a injunção como ação para o cumprimento de obrigações pecuniárias, nos termos atrás referidos foi determinada a apensação dessa ação aos autos com o n.º 98000/22.4YIPRT, passando a assumir a letra B.
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Convidada a Autora a exercer, por escrito, o direito ao contraditório sobre a matéria de exceção das defesas, veio fazê-lo, refutando a respetiva procedência e peticionando a condenação do Réu, como litigante de má-fé, em indemnização não inferior a € 2.000,00 e multa.
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Realizada a audiência final, veio a ser proferida, em 29 de janeiro de 2025, sentença em cujo trecho decisório se exarou:
Em face do exposto e nos termos das disposições legais supracitadas, o Tribunal decide:
a) Julgar a presente ação principal e respetivos apensos totalmente improcedente, por não provada e, em consequência, absolver o Réu da totalidade dos pedidos formulados;
b) Julgar os incidentes de litigância de má-fé deduzidos pela Autora totalmente improcedentes, por não provados e, em consequência, absolver o Réu dos mesmos;
c) Julgar os incidentes de litigância de má-fé deduzidos pelo Réu procedentes, por provados e, em consequência, condenar a Autora como litigante de má-fé:
(i) No pagamento de multa que se fixa em 2 UC’s por cada uma das ações (ação principal e cada um dos apensos A e B), num total de 6 UC;
(ii) No pagamento de indemnização ao Réu, no âmbito dos apensos A e B, que oportunamente se fixarão;
d) Determinar a notificação das partes para se pronunciarem quanto ao valor das indemnizações a fixar, carreando para os autos alegação, prova e contraprova atinente aos concretos danos sofridos como decorrência da litigância de má-fé, ao abrigo do disposto no artigo 543.º, n.º 3, do Código de Processo Civil”.
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Subsequentemente, em despacho prolatado a 23 de março de 2025, exarou-se:
Nestes termos e com os fundamentos que antecedem, decide-se fixar as indemnizações em que a Autora foi condenada:
- No âmbito do apenso A, em € 1.209,79 (mil e duzentos e nove euros e setenta e nove cêntimos);
- No âmbito do apenso B, em € 1.209,79 (mil e duzentos e nove euros e setenta e nove cêntimos)”.

II. Objeto dos recursos.
Não se conformando com a sentença e o despacho acabados de referir, a Autora deles interpôs dois recursos, culminando as suas alegações com as conclusões que se transcrevem de seguida.
Recurso da sentença única das ações apensadas:
1. A reapreciação do depoimento de parte do Réu e o seu enquadramento no ambiente conflitual existente entre ele e a Recorrente importam o reconhecimento da falta de sinceridade das suas declarações quando, por exemplo, se expressa grato à Recorrente e ao mesmo tempo insinua que a mesma não cumpre as suas obrigações fiscais e afirma (embora de forma indirecta) que ao reclamar o pagamento dos serviços prestados, é mais baixa do que o seu sapato.
2. O mesmo acontece quando o Recorrido se expressa grato à Recorrente e ao mesmo tempo caracteriza os honorários pedidos como exorbitantes e extorsionários.
3. A reapreciação dos depoimentos das testemunhas (…) e (…) importam o reconhecimento da falta de imparcialidade das suas declarações quando assumem que os assuntos e os pagamentos feitos no âmbito dos processos em que a Recorrente representou o Recorrido dizem respeito aos três elementos (Recorrido, mãe e irmã) e foram feitos por fundos comuns da família.
4. À luz das máximas da experiência comum e de acordo com critérios de normalidade, se uma testemunha está disposta a mentir em audiência de julgamento num processo cujo resultado em nada a afeta, estará, por maioria de razão, disposta a mentir num outro em que o seu património possa ser afetado.
5. A circunstância de o Tribunal a quo ter decidido anteriormente, num passado recentíssimo, 15 dias, que tanto o Recorrido como as testemunhas (…) e (…), sob juramento, não falaram com verdade em audiência de julgamento de outro processo, impõe que considere os respetivos depoimentos com as maiores cautelas e reservas.
6. Feita a análise crítica do depoimento de parte e da prova testemunhal nos termos referidos, concatenando-se outros elementos de prova constantes dos autos, nomeadamente, a assentada feita das declarações de parte prestadas pela Recorrente, a redação do Ponto 26 dos Factos Provados deve ser alterada, passando a ler-se:
«A Autora nunca interpelou o Réu diretamente para pagamento de honorários e despesas, em face da relação familiar que os unia, apenas o tendo feito após ter tido conhecimento da existência da queixa-crime mencionada em 24, por não reputar estarem reunidas as condições de exercer o mandato e não pretender mais exercê-lo de forma gratuita, tendo sentido necessidade de que lhe fossem pagos os valores a título de honorários e despesas decorrentes dos serviços prestados ao Réu no âmbito dos processos em que o havia representado enquanto Advogada».
7. Feita a análise crítica do depoimento de parte e da prova testemunhal nos termos referidos, concatenando-se outros elementos de prova constantes dos autos, nomeadamente, a assentada feita das declarações de parte prestadas pela Recorrente e a carta enviada pela Mandatária do Recorrido à Recorrente em 13.10.2022, a redação do Ponto 27 dos Factos Provados deve ser alterada, passando a ler-se:
«A Autora praticou os atos identificado em 5, 12 e 18 na sequência de procuração forense outorgada pelo Réu, apenas tendo apresentado Notas de Honorários e de Despesas finais com vista ao recebimento dos mesmos, após a rutura da relação que existia entre aquele e a sua filha e o conhecimento da existência da queixa-crime mencionada em 24».
8. Dos elementos de prova constantes dos autos, nomeadamente, os depoimentos prestados pelo Recorrido e pelas suas testemunhas, (…) e (…), deve ser aditado um ponto 28 aos Factos Provados com a seguinte redação:
«Em momento não determinado, a Autora solicitou a constituição de uma provisão para o pagamento de despesas relacionadas com um dos processos cujos honorários são requeridos no âmbito dos presentes autos, provisão essa que lhe foi entregue».
9. Por se tratar de matéria não contestada e relevante para a decisão da causa, deve ser aditado um ponto 29 aos Factos Provados com a seguinte redação:
«O Réu não pagou as Notas de Despesas e Honorários referidas em 9, 15 e 21».
10. Do teor da missiva enviada em 13.10.2022 pela Mandatária do Recorrido à Recorrente, em resposta à sua interpelação para o pagamento, deve ser aditado um ponto 30 aos Factos Provados com a seguinte redação:
«Através de carta datada de 13.10.2022, a Mandatária do Réu transmitiu à Autora que o seu cliente tinha a intenção de compensar os créditos reclamados por ela a título de honorários e despesas com os créditos reclamados por ele a título de fornecimento de lenhas».
11. Na sequência do ponto que antecede, o Recorrido, concretizou aquela intenção e nessa medida, reclamou o pagamento de 22 toneladas de lenhas no valor total de € 5.533,01 referente a 08 “entregas”, entre 15.10.2021 e 06.09.2022, acrescidas as despesas que na mesma linha, reclamou e quis imputar, mas que não procedeu, pelo que deve ser aditado um ponto 31 aos Factos Provados com a seguinte redação:
«Em 18/01/2024, no âmbito do Processo n.º 27540/23.0YIPRT, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo de Competência Genérica de Coruche, foi proferida sentença, que transitou em julgado em 21/02/2024 e não houve oposição/reclamação ou/e qualquer outra decisão do tribunal nestes autos após a mesma, em que é Autor (…) e Réu (…), em que o primeiro pediu a condenação do segundo, no pagamento da quantia de € 4.736,00, acrescido de juros de mora vencidos, no valor de € 297,01, outras quantias, no valor de € 500,00 e juros vincendos, relativa ao fornecimento de 22 toneladas de lenha de sobro e azinho rachada para lareiras, ao preço de € 200,00 a tonelada. Alegou que celebrou com o réu, contrato de fornecimento de lenha e que a lenha em causa, com o valor global de € 4.400,00 foi entregue, no período compreendido entre 15.10.2021 e 06.09.2022, e que ao valor acordado para a tonelada acresce ainda o valor das despesas de transporte, no valor de € 336,00, valor esse que não foi pago pelo réu quanto para o efeito interpelado, na qual foi julgada a acção totalmente im- procedente, por não provada e, em consequência, decide-se absolver o Réu do pedido formulado pelo Autor, custas pela mesmo.»
12. Nos termos do disposto no artigo 1158.º, n.º 1, do Código Civil, o mandato que tiver por objeto atos que o mandatário pratique por profissão presume-se oneroso.
13. O facto de um advogado não solicitar o pagamento dos seus honorários no momento da prestação de serviços, não significa que tenha renunciado definitivamente ao respetivo valor.
14. Em carta de resposta à interpelação da Recorrente para que o Recorrido pagasse os seus honorários, a afirmação produzida pela Mandatária do Recorrido de que aquele nem sequer equaciona não pagar e que pretende fazer compensação entre o seu crédito e o da Recorrente é incompatível com versão posterior, apresentada em sede de ação destinada a cobrança de dívida, de que a Recorrente lhe tenha prestado os seus serviços gratuitamente.
15. A intenção expressa pelo Recorrido de proceder à compensação de créditos pressupõe necessariamente o reconhecimento do crédito da Recorrente.
16. À luz das máximas da experiência comum e de acordo com critérios de normalidade, o facto de a Recorrente não ter solicitado mais cedo o pagamento dos seus honorários não permite concluir no sentido da gratuitidade dos seus serviços.
17. Ainda que a Recorrente tivesse dito ao Recorrido que não lhe cobraria nada pelos serviços que lhe prestou pelo facto de ele ser companheiro da filha, a circunstância daquela relação ter terminado e a filha ter participado criminalmente contra o Recorrido pela prática de um crime de violência doméstica, constituiriam alteração anormal das circunstâncias determinantes da oferta dos serviços, a qual, nos termos do artigo 437.º do Código Civil, sempre tornaria inexigível, à luz dos mais elementares princípios da boa-fé, que a Recorrente deixasse de cobrar os valores que lhe fossem devidos pelos serviços prestados ao Recorrido.
18. A sentença recorrida viola as disposições dos artigos 1158.º e 437.º, ambos do Código Civil.
19. Mostrando-se provados os serviços que foram prestados pela Recorrente, e ajustados os valores por ela peticionados, deve a sentença recorrida ser substituída por outra que, nos termos do disposto no artigo 1158.º, n.º 1, do Código Civil, reconheça a onerosidade do mandato exercido pela Recorrente, condenando o Recorrido a pagar-lhe os valores por ela peticionados”.
Concluiu, pedindo a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que reconheça a onerosidade do mandato exercido, condene o Recorrido a pagar-lhe os valores peticionados, a absolva da condenação como litigante de má fé e condene aquele outro em multa.

Recurso do despacho de liquidação da indemnização por litigância de má-fé (transcrevem-se apenas as alegações inovadoras face àquelas outras, posto que os n.ºs 1 a 19 da motivação são mera reprodução das alegações atrás transcritas):
20. Acresce que a Autora Recorrente em 10.02.2025 (Ref.ª Citius n.º 1104691) apresentou requerimento onde repudiou “in totum” a sentença e cujo recurso foi apresentado (Ref.ª 51618690) e deu cumprimento ao vertido na alínea d) da página 24 de fls… e supra transcrita.
21. E nessa linha, deu por integralmente reproduzido e para todos os legais efeitos, quanto já carreou para os autos, documento junto aos autos a 07-10-2024, designadamente o explanado e documentado no Requerimento em que respondeu às excepções e à litigância de má fé, todos estes documentos a fls…… dos autos que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
22. O Tribunal a quo, veio, no despacho complementar aqui recorrido reduzir o tema … a Autora Recorrente “… pugnou pela procedência dos incidentes de litigância de má fé por si deduzidos, com a consequente condenação do Réu e pela improcedência dos incidentes de litigância de má fé deduzidas por este. “e prolatar o seguinte:
23- O Réu Recorrido veio requerer: (i) despesas a título de honorários, computadas em € 3.600,00 no Apenso A e € 1.000,00 no Apenso B; (ii) despesas de expediente de escritório da Mandatária, sendo € 75,00 no Apenso A e € 75,00 no Apenso B; (iii) despesas de taxa de justiça, sendo € 204,00 no Apenso A e € 204,00 no Apenso B; (iv) despesas de deslocação do Reu ao escritório da sua advogada e ao Tribunal, num total de 5 vezes (4 vezes ao escritório da advogada e uma ao Tribunal), num total de € 120,00 no Apenso A e € 120,00 no Apenso B; (v) danos não patrimoniais, que computa em € 2.000,00 no Apenso A e € 2.000,00 no Apenso B. Juntou comprovativo das notas de honorários e despesas.
24. O Tribunal a quo decidiu ainda:
25. “Cumpre antecipadamente referir que, uma vez que o peticionado pela Autora no requerimento identificado supra já foi oportunamente decidido por sentença proferida nestes autos, esgotou-se o poder jurisdicional do Tribunal neste particular (cfr. artigo 613.º, n.º 1, do C.P.C.), circunscrevendo-se a decisão a proferir no presente momento processual ao quantum indemnizatório devido pela litigância de má fé em que a Autora foi condenada.
26. Atentemos agora quanto ao poder jurisdicional da Mm.ª Juiz e na prolação do despacho: - A lei refere no n.º 1 do artigo 613.º do CPC que “Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa”.
27. Decorre do artigo 543.º, n.º 3, do C.P.C. que o momento apropriado para a decisão atinente à questão da litigância de má-fé coincide com a sentença final ou qualquer outra decisão que põe termo ao processo, podendo o juiz, apenas relegar a fixação da importância da indemnização para momento posterior, sempre que no momento não tem elementos para fixar o quantitativo (vide a título de exemplo, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 02-06-2016, relatado por Jorge Seabra, no processo n.º 12/12.4TBVLN.G2 e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08 de Setembro de 2020, relatado por Fonte Ramos, no âmbito do processo n.º 197/17.0T8ND.C2, in www.dgsi.pt
28. Tendo presente a Jurisprudência dominante, a apreciação da má-fé da parte e sua condenação em multa e indemnização, por via da actuação na lide na fase que antecedeu a sentença, não pode o juiz relegá-las para depois da sentença, podendo fazê-lo no que respeita à fixação do quantitativo da indemnização, caso o processo, na elaboração da sentença, o não habilite a determiná-lo.
29. Ora, aquando da prolação da sentença, já nos autos, tinha sido suscitada a litigância de má-fé, com pedidos de condenação em indemnização e pagamento de multa ao Tribunal, quer pelo Reu Recorrido, quer pela Autora Recorrente, sendo que o Réu Recorrido o fez nas Oposições, apresentadas, em 09.01.2023, através da I. Mandatária na Oposição à Injunção, no ponto 48º a 54º (Proc. Apenso 104766/22.2YIPRT, a fls. 5 – Ref.ª Citius 44345476) e 51º e ss. (Proc. Apenso 104767/22.2YIPRT, a fls. 5 – Ref.ª 44344583) e a Autora Recorrente, fê-lo, quando notificada pelo Tribunal a quo, para os termos e efeitos previstos nos artigos 7.º e 547.º do CPC, nos pontos 18º-20º, 36º-58º, 71º-84º, 121º-133º (Processos n.º 98000/22.4YIPRT e Apensos A e B – 104767/22.2YIPRT e 104766/22.2YIPRT – Ref.ª Citius 50071210).
30. Se a litigância de má fé respeita à actuação processual anterior à sentença ela já se encontra evidenciada nos autos, trata-se nesse caso de uma questão a decidir e que não poderá deixar de o ser em virtude do esgotamento do poder jurisdicional subsequente à pronúncia da sentença, quer a doutrina, quer a jurisprudência, dominantes, apontam no sentido de que só quando ainda não estão reunidos elementos suficientes que permitam alcançar o “quantum indemnizatório”, à luz do vertido no n.º 3 do artigo 543.º do C.P.C., permite que a fixação do montante ocorra posteriormente”.
Concluiu pedindo a revogação do despacho recorrido e sua absolvição da condenação nele proferida.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Recebidos os autos neste Tribunal, por despacho da Relatora de 27 de outubro de 2025 foi rejeitado o conhecimento do recurso da ação principal, atento o valor dessa ação.
Quedam, assim, para decidir neste acórdão, os recursos da sentença na parte relativa às ações dos apensos A e B e o recurso da decisão que condenou a Recorrente em indemnização por litigância de má-fé.

III. Questões a solucionar
Face ao teor das conclusões da Recorrente (que estão para o objeto do recurso como o pedido está para o objeto da ação – cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 8ª Edição Atualizada, Almedina, pág. 212) as questões a solucionar neste acórdão são, pela ordem lógica que entre elas se julga existir, as que se identificam:
I. Saber se o Tribunal recorrido errou no julgamento da matéria de facto, tendo sido produzida prova por confissão, testemunhal e documental que impõe decisão diversa da proferida, quanto aos pontos da matéria de facto indicados.
II. Estabilizado o facto, saber se o Tribunal recorrido errou no julgamento de direito ao considerar gratuito o mandato objeto da ação, quando o deveria ter qualificado como oneroso.
III. Se se mostram verificados os pressupostos para a condenação da Recorrente como litigante de má fé, em multa e na indemnização liquidada no despacho subsequente à sentença.
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Fundamentação
I. Fundamentação de facto da sentença sob recurso

Na sentença sob recurso o Tribunal considerou provados os seguintes factos (aqui reproduzidos em globo, para as duas ações – A e B – uma vez que o recurso da matéria de facto é único e após correção de lapsos de escrita nas datas levadas aos n.ºs 3, 5 e 11, sendo esta última corrigida no confronto com o artigo 10º do articulado de aperfeiçoamento do apenso B):
1. A Autora é advogada de profissão, estando inscrita na Ordem dos Advogados Portugueses desde 1993 e exercendo tal profissão com caráter regular e fins lucrativos.
2. No exercício da sua atividade profissional como advogada, a Autora fixa o valor por hora em € 150,00.
3. A Autora, na qualidade de advogada e no exercício de tal atividade, assessorou o Réu após este lhe ter comunicado, em 06/08/2017, a subtração de cortiça no interior na Herdade das (…), cuja aquisição se encontra inscrita a favor do Réu e da sua mãe e irmã.
4. O evento identificado no número anterior deu origem ao processo n.º 285/17.3GBCCH, que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Coruche, no âmbito do qual foi outorgada procuração pelo Réu, a favor da Autora.
5. Assim, no período temporal compreendido entre 06/08/2017 e setembro de 2022, a Autora:
- Reuniu com o Réu a fim de recolher a concreta narração dos factos e procedeu à sua análise;
- Estudou legislação, jurisprudência e a matéria atinente ao descortiçamento do sobreiro;
- Delineou e apresentou ao Réu uma proposta de estratégia a seguir, no que teve obtido concordância do Réu;
- Reuniu documentação;
- Elaborou e assegurou a entrega nos autos de peças processuais, como a procuração forense, acusação particular e pedido de indemnização civil;
- Analisou documentos processuais atinentes à descoberta do paradeiro do suspeito;
- Analisou a contestação do Arguido e os despachos judiciais proferidos;
- Orientou o Réu nos procedimentos e diligências juntos de órgãos de polícia criminal, Serviços do Ministério Público e audiências de julgamento;
- Compareceu em diligências perante órgãos de polícia criminal e nas audiências de julgamento;
- Procedeu à análise da sentença proferida;
- Requereu a consulta do processo no seu escritório para análise prévia ao eventual recurso.
6. A Autora despendeu, com a prática dos atos mencionados em 5., um total de 30 horas.
7. A Autora incorreu, com a prática dos atos mencionados em 5, em despesas de comunicações telefónicas, economato e deslocações à GNR de (…) e ao Tribunal num total € 120,00.
8. No dia 09/11/2022, a Autora dirigiu ao Réu carta registada com aviso de receção, por este recebida em 10/11/2022, apresentando a nota de honorários e despesas, no valor total de € 5.067,60, sendo € 4.000,00 respeitantes a honorários, € 120,00 respeitantes a despesas e € 947.60 a título de IVA.
9. A Autora, na qualidade de advogada e no exercício de tal atividade, assessorou o Réu e a irmã deste, (…) após o primeiro lhe ter comunicado da existência de uma ameaça dirigida por um cliente no estabelecimento comercial destes.
10. O evento identificado em 9. deu origem ao processo n.º 481/17.3GBCCH que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Coruche, no âmbito do qual foi outorgada procuração pelo Réu, a favor da Autora.
11. Em datas não concretamente apuradas, mas situadas entre data indeterminada de agosto de 2017 e setembro de 2022, a Autora:
- Reuniu com o Réu e a irmã deste a fim de recolher a concreta narração dos factos e procedeu à sua análise;
- Estudou legislação, jurisprudência e a matéria atinente ao descortiçamento do sobreiro;
- Delineou e apresentou ao Réu e à irmã destes uma proposta de estratégia a seguir, no que teve obtido concordância dos mesmos;
- Reuniu documentação;
- Elaborou e assegurou a entrega nos autos de documentos e peças processuais, como a procuração forense, o pedido de apoio judiciário, acusação particular e pedido de indemnização civil;
- Analisou documentos, como o relatório clínico do Arguido;
- Analisou a contestação do Arguido, os despachos judiciais proferidos e o relatório pericial, tendo solicitado esclarecimentos quanto a este último;
- Orientou o Réu e a irmã nos procedimentos e diligências juntos de órgãos de polícia criminal, Serviços do Ministério Público e audiências de julgamento;
- Compareceu em diligências perante órgãos de polícia criminal, Magistrado do Ministério Público e nas audiências de julgamento;
- Estabeleceu conversações com o Ilustre Patrono do Arguido a fim de obter uma plataforma para eventual acordo;
- Procedeu à análise da sentença proferida.
12. A Autora despendeu, com a prática dos atos mencionados em 11, um total de 50 horas.
13. A Autora incorreu, com a prática dos atos mencionados em 11, em despesas de comunicações telefónicas, economato e deslocações à GNR de (…) e ao Tribunal num total € 100,00.
14. No dia 09/11/2022, a Autora dirigiu ao Réu, carta registada com aviso de receção, por este recebida em 10/11/2022, apresentando a nota de honorários e despesas, no valor total de € 5.773,00, sendo € 5.000,00 respeitantes a honorários, € 100,00 respeitantes a despesas e € 1.147,00 a título de IVA.
15. A filha da Autora, (…), e o Réu iniciariam uma relação de namoro em 2006, tendo em janeiro de 2016 passado a residir juntos.
16. A filha da Autora e o Réu terminaram tal relação em setembro de 2022.
17. Em 07/10/2022 a filha da Autora apresentou queixa-crime por violência doméstica.
18. A Autora não acordou com o Réu, previamente à prestação dos serviços elencados em 5 e 11, o valor de honorários.
19. A Autora nunca interpelou o Réu diretamente para pagamento de honorários e despesas, em face da relação familiar que os unia, apenas o tendo feito após ter tido conhecimento da existência da queixa-crime mencionada em 17, por não reputar estarem reunidas as condições de exercer o mandato e não pretender mais exercê-lo de forma gratuita, tendo sentido necessidade de serem pagos os valores a título de honorários e despesas a partir de tal momento.
20. A Autora praticou os atos identificado em 5 e 11 por sua livre iniciativa, tendo transmitido ao Réu, por diversas vezes em datas não apuradas, mas situadas nos períodos temporais ali compreendidos, que os serviços por si prestados o eram a título gratuito em face da relação familiar que os unia.

Na mesma sentença, foram considerados, como não provados, os seguintes factos:
a) Que a Autora tenha praticado os atos identificado em 5 e 11 a pedido do Réu. b) Que a Autora, no período temporal identificado em 5 e 11, tenha transmitido ao Réu que o exercício da advocacia implica muito trabalho, dedicação, dispêndio de tempo e de meios, custando dinheiro.
c) Que o Réu nada tenha feito no sentido de pagar o trabalho e as despesas geradas em prol do mesmo.

a) Impugnação da matéria de facto.
a) 1. Enquadramento
Decorre do disposto no artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil que o Tribunal, na elaboração da sentença, aprecia livremente as provas “segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.
O princípio de convicção livre cede relativamente aos factos admitidos por acordo das partes, aos provados por documento ou confissão reduzida a escrito, bem como, quanto a matéria que apenas por formalidade especial ou documento possa ser demonstrada (n.ºs 4 e 5 do artigo 607.º)
Na 2ª instância o Tribunal deve alterar essa decisão se “os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa” (artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Nessa tarefa e como assinala o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de setembro de 2017 “é hoje jurisprudência corrente, mormente do STJ, que a reapreciação, por parte do tribunal da 2ª instância, da decisão de facto impugnada não se deve limitar à verificação da existência de erro notório, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, pelo tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa” (processo n.º 959/09.2TVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
O artigo 662.º do Código de Processo Civil comete, pois, ao Tribunal da Relação o dever de efetuar um novo juízo de valoração da prova, relativamente ao concreto objeto circunscrito pelas alegações de recurso.
Como ensina o Conselheiro Abrantes Geraldes “a comparação que pode fazer-se entre a primitiva redação do artigo 712.º do CPC de 1961 e o atual artigo 662.º revela que a possibilidade de alteração da matéria de facto que, além era indicada a título excecional, é agora assumida como função normal da Relação, verificados que sejam os requisitos que a lei consagra” e ainda “nesta operação foram recusadas soluções maximalistas que pudessem reconduzir-nos a uma repetição de julgamentos, tal como foi rejeitadas a admissibilidade de recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto, tendo o legislador optado por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente” (Recursos em Processo Civil, 8ª Edição Atualizada, Almedina, pág. 225, sublinhado aditado ao original).
Importam também os limites que esse novo julgamento ou reapreciação, com o assinalado objeto, deve enfrentar, considerada a posição em que o Tribunal da Relação se encontra face à produção de prova e a instrumentalidade que a matéria de facto assume perante o Direito.
Lê-se, com maior propriedade, no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19 de dezembro de 2023 a esse propósito: “(…) o âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se de acordo com os seguintes parâmetros: só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo recorrente; sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento; e nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Contudo (e tal como se referiu supra), mantendo-se em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta –, precisa-se ainda que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância
” (processo n.º 1526/22.0T8VRL.G1, no mesmo suporte).
Acrescenta, o mesmo Acórdão, a seguinte citação, para fundamentar o que antes afirmou: «em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, pág. 609)”.
Por outro lado, relativamente à utilidade da alteração da matéria de facto face à esquadria jurídica da decisão de direito, afirma-se nesse aresto, convocando-se jurisprudência concordante “(…) por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto «quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente», convertendo-a numa «pura actividade gratuita ou diletante» (conforme Ac. da RC de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Processo n.º 1024/12.0T2AVR.C1)” (idem, sublinhado no original).
Sendo essas as guias ou parâmetros que se acolhem para sindicar o julgamento do facto feito na 1ª instância, ingressa-se, no trecho seguinte, no caso concreto, apreciando os diversos aspetos de divergência apontados nas alegações de recurso.

b) 2. O caso concreto
· N.º 26 dos factos provados (atual n.º 19)
Sob este ponto da matéria de facto, o Tribunal recorrido julgou demonstrado que:
A Autora nunca interpelou o Réu diretamente para pagamento de honorários e despesas, em face da relação familiar que os unia, apenas o tendo feito após ter tido conhecimento da existência da queixa-crime mencionada no n.º 17, por não reputar estarem reunidas as condições de exercer o mandato e não pretender mais exercê-lo de forma gratuita, tendo sentido necessidade de serem pagos os valores a título de honorários e despesas a partir de tal momento”.
Na motivação da convicção sobre esse facto o Tribunal assinalou a confissão da Autora, produzida em declarações de parte, de acordo com a assentada e o disposto no artigo 358.º, n.º 1, do Código Civil.
Nessa assentada ficou a constar, na parte relevante:
A declarante referiu nunca ter interpelado o réu diretamente até à apresentação das respetivas notas de honorários e despesas qualquer valor a tal título, justificando para tanto que mantinha uma relação familiar e que apenas após ter tido conhecimento da existência de um processo de violência doméstica movido pela sua filha contra o aqui réu, é que sentiu não estar mais em condições para exercer os respetivos mandatos e a necessidade de serem pagos valores, por não pretender mais exercê-los de forma gratuita, a título de honorários e despesas”.
A Recorrente insurge-se contra a redação dada ao facto provado, sustentando que a mesma deveria ser a seguinte:
A Autora nunca interpelou o Reu diretamente para pagamento de honorários e despesas, em face da relação familiar que os unia, apenas o tendo feito após ter tido conhecimento da existência da queixa-crime mencionada em 24, por não reputar estarem reunidas as condições de exercer o mandato e não pretender mais exercê-lo de forma gratuita, tendo sentido necessidade de que lhe fossem pagos os valores a título de honorários e despesas decorrentes dos serviços prestados ao Réu no âmbito dos processos em que o havia representado enquanto Advogada”.
Existindo confissão judicial, reduzida a escrito na respetiva assentada, está-se perante prova tarifada ou legal que se impõe ao juiz, nos termos dos citados n.ºs 4 e 5 do artigo 607.º, por força do disposto no artigo 358.º, n.º 1, do Código Civil.
A redação dada ao facto pelo Tribunal recorrido supera as insuficiências de sintaxe da assentada e é fiel à declaração confessória, não se vendo necessidade da sua alteração, nomeadamente, com o complemento ou a aclaração que a Recorrente pretende ver introduzidos.
É claro, perante a leitura do facto, que este afirma simplesmente que a Recorrente apenas interpelou o Recorrido para lhe pagar honorários após o conhecimento do processo de violência doméstica movido pela filha contra ele, porquanto, em função desse facto (relembre-se, do conhecimento do processo de violência doméstica), ela: a) não pretendia mais exercer o mandato; b) não queria que os serviços prestados fossem gratuitos.
Foi nesse sentido, a interpretação que o Tribunal recorrido deu a essas declarações quando exarou o seguinte, a propósito da motivação do facto seguinte:
“(…) após ter tido conhecimento da existência do processo de violência doméstica a que deu origem a queixa mencionada em 27., sentiu não sentir estarem reunidas as condições de exercer os mandatos e, particularmente, de forma gratuita, sentindo assim a necessidade de lhe serem pagos valores a título de honorários e despesas a partir de tal momento.
Não há, nem se vê como possa extrair-se do facto, uma leitura para o futuro (rectius, para serviços futuros), que não faz qualquer sentido, uma vez que a declarante não mais iria exercer o mandato, segundo declarou.
O facto provado manter-se-á, pelas razões expostas, com a redação que lhe foi dada na sentença sob recurso.
· N.º 27 dos factos provados (atual n.º 20)
Nesse trecho, deu-se como provado na sentença recorrida o seguinte:
A Autora praticou os atos identificado em 5 e 11 por sua livre iniciativa, tendo transmitido ao Réu, por diversas vezes em datas não apuradas, mas situadas nos períodos temporais ali compreendidos, que os serviços por si prestados o eram a título gratuito em face da relação familiar que os unia”.
Para fundamentar a convicção o Tribunal recorrido exarou as seguintes considerações:
“Já o facto provado n.º 27 deu-se como provado desde logo, da análise conjugada das declarações prestada em audiência pelo Réu e dos depoimentos das testemunhas (…) e (…) que, de forma assertiva e credível, esclareceram – de forma unívoca entre si – que quer os serviços prestados, cujo pagamento a Autora reclama nestes autos, quer outros prestados anteriormente quer ao Réu, quer à restante família (as próprias) o foram na plena convicção da sua gratuitidade, por tal lhe ter sido transmitido, por diversas vezes, pela Autora.
Mais aduziram que, por diversas vezes – em datas que não lograram concretizar –, falaram com a Autora a tal propósito, por considerarem que os seus serviços deveriam ser pagos, tendo a primeira negado tal pagamento com base no facto de serem família, sendo no mais da sua livre iniciativa que se prontificava a auxiliar e a prestar os serviços.
No mais, em arrimo com o também referido pela Autora em sede de declarações de parte e vertido nos seus articulados, acrescentaram que apenas procederam a um pagamento à Autora uma única vez, no âmbito de um dos vários processos em que a Autora teve intervenção com vista à defesa dos interesses do Réu e da testemunha (…), no âmbito de uma contenda com um cliente no café de que a família é proprietário e em que foi recebida uma indemnização de € 1.000,00 que quiserem entregar à Autor e, já em casa, foi-lhe entregue, tendo ficado com metade de tal valor € 500,00 e o restante dividido entre a filha da testemunha (…) e a neta (…), filha do Réu e da sua filha (…).
Tais declarações foram prestadas de forma espontânea, escorreita e credível, seja pelo Réu, seja pelas referidas testemunhas.
Quanto ao Réu, sendo inegável o seu interesse na causa e a necessidade de ponderação particularmente cuidada quanto ao por si aduzido, o certo é que prestou declarações que se reputaram como sinceras, acrescentando ser grato por tudo o que a Autora fez, mas asseverando que sempre prestou tais serviços a título gratuito, por vontade sua e demonstrando incómodo por estarem agora a ser peticionados.
No tocante às testemunhas, resultou evidente dos depoimentos prestados que dispõem de conhecimento diretos dos factos, ainda que de forma não absolutamente pormenorizada, com exceção para a testemunha (…) no atinente à factualidade que respeita ao apenso B, desde logo porquanto os atos praticados o foram também em seu favor. Relataram, assim, factos com interesse para a decisão da causa de forma assertiva, muito segura e escorreita, importando ainda notar que não obstante o facto de serem família direta do Réu, não se discerniu nos seus depoimentos a existência de qualquer contradição, hesitação ou apresentação de versão implausível com vista à defesa daquele, reputando este Tribunal que se limitaram a trazer a sua verdade a juízo, donde não restaram dúvidas quanto à sua correspondência com a realidade dos factos.
No mais, sempre se dirá, a par da credibilidade merecida dos elementos probatórios a que ora se aludiu, tal narrativa propalada pelo Réu e sustentada pelas testemunhas (…) e (…) é em tudo consonante, para além do mais, com o próprio comportamento assumido pela Autora e tido como provado por este Tribunal.
Com efeito, não logrou a Autora fixar os honorários por acordo ou interpelar, em nenhum momento, o Réu para o pagamento de honorários e despesas por si reputadas como sendo devidas, seja ainda que a título de provisão.
Na verdade, conforme confessadamente referido pela Autora em sede de audiência de julgamento – e já mencionado, ainda que com um teor não totalmente coincidente, em sede de articulados –, não o fez em face da relação familiar que os unia. E que, após ter tido conhecimento da existência do processo de violência doméstica a que deu origem a queixa mencionada em 27, sentiu não sentir estarem reunidas as condições de exercer os mandatos e, particularmente, de forma gratuita, sentindo assim a necessidade de lhe serem pagos valores a título de honorários e despesas a partir de tal momento.
Donde resulta que, apenas somente a efetiva rutura da relação conjugal entre o Réu e a sua filha e da existência de uma queixa crime, apresentada pela segunda contra o primeiro, pela prática de um crime de violência doméstica, é que a Autora sentiu necessidade de ver pagos os serviços por si prestados.
De resto, tal foi talqualmente confirmado pelas testemunhas (…) e (…), filha e marido da Autora, que prestaram declarações em audiência e cujos depoimentos foram valorados em conformidade pelo Tribunal. As testemunhas, quando questionadas em Tribunal se alguma vez assistiu a alguma conversa em que a Autora tenha dito ao Réu que não lhe cobraria honorários os mesmos responderam negativamente, sendo que a primeira das testemunhas acrescentou “a minha mãe não cobrava e ele não tinha interesse em pagar” e, quando questionada sobre o porquê de não terem sido também cobrados honorários à testemunha (…) respondeu “porque foi só a mim que ele agrediu”. Já a segunda das referidas testemunhas, por sua vez, referiu que os honorários foram pedidos quando soube que o Réu que tinha agredido e ameaçado a filha e netas e não se sentiu em condições de continuar.
Pois bem. Tal circunstancialismo, analisado à luz das máximas da experiência comum, da lógica e da normalidade da vida não pode deixar de apontar para a conclusão de que os serviços foram prestados a título gratuito, sendo agora peticionado o seu pagamento, tão-só, pelo facto de as relações pessoais existentes entre a Autora e o Réu se terem deteriorado de forma irremediável por força da rutura da união pretérita entre o último e a filha da Autora e da apresentação da referida queixa-crime.
É, no mais, ilustrativo de tal asserção o facto de somente ter sido apresentada nota final de honorários e despesas no processo n.º 285/17.3GBCCH (atinente ao apenso B) ao Réu, quando os serviços mencionados em 12 foram talqualmente prestados à irmã deste, (…).
Por outro lado, é ainda de mencionar, porquanto corrobora a convicção probatória firmada por este Tribunal, que resulta das análise da correspondência eletrónica trocada, via e-mail, entre a Autora e o Réu entre 01/01/2021 e 04/01/2021, com o assunto “Julgamento Processo 481/17.3GBCCH, Arguido (…) – Dias 19 – 14 Horas – e 20 – 10 Horas – de Abril” juntos em audiência, que na sequência de Autora ter informado o Réu sobre a data da audiência e ter sugerido a marcação de uma reunião, este revelou preocupação com o transtorno que estaria a causa à Autora, podendo-se ler-se no e-mail enviado pelo mesmo em 1 de abril de 2021, pelas 02:01:14 “(…) Só quero que isso acabe que já me sinto mal por lhe ter arranjado tantas dores de cabeça durante este tempo todo.. Espero não a voltar a incomodar com este tipo de problemas. Obrigado por tudo.” E, nessa sequência, a Autora respondeu, na mesma data, pelas 14:27:38 “Ok (…), sem stresses, não te preocupes com isso”.
Nessa mesma sequência, o Réu enviou novo e-mail, no dia 3 de abril de 2021, pelas 00:08:47, dizendo entre o mais “(…) Sei que não paga o seu trabalho mas vi um presente que lhe quero oferecer assim que receber uns cobres andam aí espalhados…”, tendo pedido à Autora que o ajudasse a escolher entre vermelho e branco, ao que esta respondeu “Olá (…). Obrigada pela tua lembrança, registo o reconhecimento. Todavia, não quero que te preocupes com isso, prefiro sinceramente que reúnas esse cobres e que organizes um passeio com a tua família mais próxima (…)”. Após, tendo o Réu enviado novo e-mail pelas 23:19:26 em que insistiu, entre o mais, em oferecer um presente à Autora, esta dirigiu-lhe resposta em 4/04/2021, pelas 13:55:23, onde se pode ler: (…) Por favor, não te preocupes em gastar dinheiro em nada para mim, o facto de reconheceres que o que faço implica trabalho, preocupação e vontade de vos ajudar já me é gratificante, e faço-o por seres o companheiro da minha (…) e o Papá do meu Docinho adorado :) (…)”.
Os referidos e-mails foram confirmados pelo Réu em audiência, tendo esclarecido que pretendia oferecer uma caneta à Autora, ao que esta rejeitou.
Ora, é certo que não pretender receber uma prenda não signifique sem mais que não a Autora não pretendesse receber os honorários pretensamente devidos. Contudo, não será menos certo que, ante o contexto da conversa – na sequência de ter informado o Réu sobre a data de realização do julgamento num dos processos pelos quais peticiona o pagamento de honorários nestes autos (o referente ao apenso B) –, aliado ao facto de Autora ter dito, de forma expressa, para o Réu não se preocupar em gastar dinheiro em nada consigo, já que o reconhecimento do mesmo quanto a saber que o que a Autora faz implica trabalho, preocupação e vontade de os ajudar (empregando o plural) é gratificante e que o faz por o mesmo ser companheiro da filha e o “Papá do meu Docinho adorado”, parece evidente, à luz das regras da lógica, ter patente a afirmação de que nada pretende receber por conta da prestação de tais serviços.
De tudo resulta que se é certo que foi feita prova direta quanto à iniciativa e gratuitidade de prestação dos serviços, pelos fundamentos a que aludimos supra, menos certo não será que, ainda que assim não fora, sempre a gratuitidade dos mesmos resultaria demonstrada por recurso à prova indiciária. Efetivamente, a existência de uma pretérita relação (tida como) familiar longa, sem que tenha sido acordada a fixação do valor de honorários ou solicitado diretamente o seu pagamento, sendo consabido pelo homem médio que o espírito de entreajuda proponde para a gratuitidade dos serviços prestados no âmbito do respetivo ofício aos seus membros, apontaria precisamente nesse sentido.
De outra sorte, não abala tal convicção probatória o facto de, no âmbito da correspondência trocada entre a Autora e a I. Advogada do Réu – junta aos autos em sede de audiência final na sequência do levantamento do sigilo profissional –, mais concretamente por carta registada datada de 13/10/2022, a segunda ter dirigido uma comunicação à primeira, em resposta do pagamento de honorários peticionados nestes autos principais e respetivos apensos, que o Réu “sequer equaciona não pagar”. Na verdade, para além de tal comunicação não consubstanciar qualquer confissão da existência de dívida por parte do Réu, porquanto estão em causa tão-só comunicações entre advogados, o certo é que importa não perder de vista o que mais é referido na comunicação em apreço, mormente que “segundo o mesmo, foi a Colega, atento a “relação familiar” que se disponibilizou a auxiliá-lo e tendo por base essa relação também lhe forneceu 22 toneladas de lenha, a € 200,00 / tonelada que até à presente data não foram liquidadas, bem como o transporte da mesma”, terminando assim a missiva manifestando a I. Advogada a intenção em compensar créditos. Ora, como bem se vê, a narrativa apresentada pelo Réu em audiência, a propósito de ter sido a Autora a dispor-se a ajudá-lo, é em tudo consonante com a vertida pela sua I. Advogada na carta dirigida à Autora, pelo que tal documento não apenas não milita em desfavor do Réu como vai no sentido da tese por este apresentada.
Donde se extrai que não apenas a Autora não logrou demonstrar que os serviços em questão foram prestados ao Réu, a pedido deste, como também resultou provado que o foram por livre iniciativa da Autora, a título gratuito, somente se tendo alterado a sua vontade em momento posterior à prestação dos serviços em apreço, na sequência da rutura conjugal e conflito daí emergente”.
Contra a bondade da argumentação expendida para sustentar a prova do facto, a Recorrente esgrime o conjunto das seguintes razões:
(i) As declarações de parte do Réu não merecem credibilidade, por não serem sinceras, devendo ser ponderado o ambiente conflitual existente entre o declarante e a Autora;
(ii) Os depoimentos das testemunhas (…) e (…) não são, bem assim, credíveis, por as testemunhas não serem imparciais e haver a considerar que o Tribunal recorrido decidiu recentemente noutro processo que as mesmas não falaram com verdade.
(iii) Da troca de emails entre a Recorrente e o Recorrido não resulta qualquer renúncia da primeira aos seus honorários, mas apenas a referência a uma lembrança que o Recorrido pretendia oferecer-lhe.
(iv) A carta enviada pela Mandatária do Recorrido à Recorrente em 13.10.2022, em resposta à interpelação da segunda para que o primeiro pagasse os seus honorários, contém a afirmação produzida pela Mandatária do Recorrido de que aquele nem sequer equaciona não pagar e que pretende fazer compensação entre o seu crédito e o da Recorrente, o que é incompatível com a versão de que a Recorrente lhe tenha prestado os seus serviços gratuitamente.
Impõem-se um registo prévio.
A motivação da convicção do Tribunal, mesmo quando relativa a um facto ou a um conjunto homogéneo de factos, é um processo argumentativo lógico complexo, em que os diferentes meios de prova “dialogam” entre si, convergindo ou repelindo-se mutuamente. Esse processo, podendo ser decomposto em partes, não deve ser sindicado de forma sincopada, pois mais do que saber se o depoimento ou o documento, quando individualmente considerados, merecem ou não credibilidade, há que determinar se a visão global que o julgador fez da prova (toda a prova) produzida quanto ao concreto facto, é de molde a justificar o juízo (positivo ou negativo) que sobre ele alcançou.
Isto posto, impõe-se também registar que apesar de a Recorrente não imputar qualquer discrepância entre a motivação e a prova oral produzida, se ouviram os depoimentos e as declarações colocados sob o escrutínio do recurso.
Feita essa audição e vistas as razões que a Recorrente alinha, pode afirmar-se, em antecipação, que não se vê fundamento para divergir da motivação do Tribunal recorrido.
O declarante de parte/Réu tem interesse na ação, o que é apodítico. O mesmo revelou, no decurso das suas declarações, animosidade em relação à Autora, o que se não acontecesse, seria, isso sim, de estranhar, desde logo em razão do contexto pessoal/afetivo/familiar em que o litígio se insere e porquanto o declarante protesta estar a ser-lhe pedido judicialmente o pagamento que ele ofereceu quando ambos ainda estavam de boas relações, e que a Recorrente não quis aceitar.
Dos dois depoimentos versados na impugnação, tem-se por mais relevante o prestado por (…), que revelou conhecimento direto dos factos, foi assertiva e se afigurou sincera no que afirmou (dizendo abertamente não saber quando era o caso). Que o trabalho desenvolvido pela Recorrente a tenha também beneficiado (o que a própria admitiu) não é determinante, quando se sabe que nada lhe está a ser exigido na ação.
A pretensão da Recorrente de que o Tribunal recorrido descredibilizasse os depoimentos a pretexto do que o mesmo Tribunal concluiu, noutro processo, sobre outros depoimentos das mesmas testemunhas, não merece acolhimento. A vingar, essa linha argumentativa consagraria um viés do julgador que afrontaria o princípio da audiência contraditória na produção de prova (artigo 415.º do Código de Processo Civil). Esse princípio impõe que o juízo probatório se formule dentro das “quatro linhas” da prova produzida naquela concreta audiência, em função da matéria controvertida daquele específico processo e na presença das partes que são os sujeitos processuais afetados pela decisão. O mesmo argumento amplia o poder decisório do Tribunal para aquilo que ele não é. Ao Tribunal não se pede que decida a honestidade das pessoas, mas apenas que analise a sinceridade dos seus depoimentos.
A troca de emails entre a Recorrente e o Recorrido, referida na motivação, mostra-se escrupulosamente analisada pelo Tribunal recorrido, em termos que dispensam outras considerações.
A carta enviada pela Ilustre mandatária do Recorrido à Recorrente versa sobre os factos do processo principal, que não estão no objeto deste recurso, nada contendo que possa infirmar a convicção sobre o essencial da convicção dos apensos A e B, aqui sob escrutínio. A motivação da sentença recorrida analisou com rigor esse texto, julgando-se oportuno adicionar que existe uma latitudinária diferença entre a realidade dos factos e o que, em estratégia (legítima) de defesa dos seus patrocinados, os Srs. Advogados afirmam e estão dispostos a aceitar da parte contrária
Determinantes para a convicção não podem deixar de se considerar, nesta reponderação da prova, as declarações da própria Recorrente, levadas à assentada, bem como as afirmações feitas na referida troca de emails, que se sintetizam no que o Tribunal recorrido – bem, segundo se crê – concluiu nos seguintes moldes: “apenas somente a efetiva rutura da relação conjugal entre o Réu e a sua filha e da existência de uma queixa crime, apresentada pela segunda contra o primeiro, pela prática de um crime de violência doméstica, é que a Autora sentiu necessidade de ver pagos os serviços por si prestados”.
· Aditamento de um novo ponto aos factos provados (n.º 28)
A Recorrente pretende que se adite aos factos provados a seguinte factualidade, que diz decorrer das declarações de parte do Recorrido e das testemunhas anteriormente identificadas:
«Em momento não determinado, a Autora solicitou a constituição de uma provisão para o pagamento de despesas relacionadas com um dos processos cujos honorários são requeridos no âmbito dos presentes autos, provisão essa que lhe foi entregue».
Deve ser aditado à matéria de facto, efetivamente, um facto complementar, que resultou da prova (artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil) e que se prende com o tema versado pela Recorrente.
O mesmo não pode, porém, ter a redação que esta lhe confere, já que essa redação não corresponde ao que efetivamente se demonstrou com base naqueles meios de prova.
Com efeito, o que resultou da produção de prova é que a Autora fez sua a indemnização recebida no âmbito de um dos processos judiciais em que teve intervenção como Advogada (n.º 481/17.3GBCCH) e que, do montante recebido, dispôs de 500 euros a favor da filha e da sobrinha do Réu e reteve os 500,00 euros sobrantes como pagamento das despesas que disse ter tido com o exercício desse patrocínio.
Nesses termos, aditar-se-á à matéria provada um novo facto, que figurará como n.º 21, nos seguintes termos:
A Autora fez sua, com a concordância do Réu, a quantia de 1.000,00 euros, recebida de indemnização no processo judicial identificado no nº 10, tendo dado metade da mesma à filha e à sobrinha do Réu e ficado com a outra metade para si por conta das despesas em que disse ter incorrido com o exercício do patrocínio”.
· Aditamento de um novo ponto aos factos provados (n.º 29)
A Recorrente pretende que se adite à matéria provada, por ser consensual, que o Réu não pagou as notas de despesas e honorários por ela emitidas.
Apesar de merecer o acordo das partes, o facto é despiciendo, uma vez que o pagamento apenas interessaria ao mérito da ação na sua feição positiva (sendo então objeto de uma exceção perentória que ao Réu incumbiria alegar, o que não sucedeu), e não na sua formulação negativa (enquanto não pagamento).
Cumpre aqui relembrar o que a este a este propósito se escreveu atrás sobre alterações da matéria de facto que não induzem qualquer valor ou utilidade para a decisão de direito. Seria o caso.
· Aditamento de dois novos pontos aos factos provados (n.ºs 30 e 31)
Os factos cujo aditamento se pretende são pertinentes à ação principal, cujo recurso não foi admitido neste Tribunal, pelas razões já expostas no relatório.
Acrescente-se que estão em causa, de todo o modo, factos probatórios, que não fazem parte da causa de pedir, podendo eventualmente servir para fundamentação da convicção sobre aqueles que o fazem (os denominados factos essenciais ou principais).
Sobre o conceito de facto probatório, ensinam os Professores Lebre de Freitas e Isabel Alexandre “a natureza da prova em processo civil impunha-o já quando o CPC de 1961 (antes da revisão) não era expresso em dizê-lo: para chegar à conclusão sobre a realidade dos factos principais, o tribunal, exceto, por vezes, na prova por inspeção, lança mão de regras da experiência que estabelecem a ligação entre eles e os factos (probatórios) com os quais é diretamente confrontado, tidos em conta factos (acessórios) que permitem a aferição concreta dessa ligação” (Código de Processo Civil anotado, volume 1º, 4ª edição, Almedina, pág. 37).
Conclui-se, desse modo, que com exceção do aditamento atrás referido, não merece provimento a impugnação da matéria de facto, devendo a decisão respetiva ser mantida nos seus termos.

II. Aplicação do Direito.
a) Pedidos formulados nas ações
Na subsunção jurídica dos factos, a sentença fez um enquadramento que a Recorrente não põe em crise.
Sinteticamente, o Tribunal recorrido qualificou os acordos entre as partes como mandatos forenses, sujeitos às normas dos artigos 1157.º a 1184.º do Código Civil e às especialidades do Estatuto da Ordem dos Advogados, enfrentou a presunção legal de onerosidade desses negócios jurídicos e justificou detalhadamente a razão pela qual, no caso, essa presunção foi ilidida com sucesso.
Nenhum reparo a Recorrente faz a esse excurso e dificilmente o poderia fazer.
Não obstante, vem a mesma nesta sede (n.º 17 das conclusões do recurso) pugnar pela aplicação ao caso do disposto no artigo 437.º do Código Civil, numa alegação com o seguinte teor:
Ainda que a Recorrente tivesse dito ao Recorrido que não lhe cobraria nada pelos serviços que lhe prestou pelo facto de ele ser companheiro da filha, a circunstância daquela relação ter terminado e a filha ter participado criminalmente contra o Recorrido pela prática de um crime de violência doméstica, constituiriam alteração anormal das circunstâncias determinantes da oferta dos serviços, a qual, nos termos do artigo 437.º do Código Civil, sempre tornaria inexigível, à luz dos mais elementares princípios da boa-fé, que a Recorrente deixasse de cobrar os valores que lhe fossem devidos pelos serviços prestados ao Recorrido”.
Se bem se crê, a Recorrente pretende que a força vinculativa dos contratos, em que o Tribunal recorrido se baseou para não considerar a mudança de vontade da Recorrente quanto à gratuitidade dos serviços, deveria ser afastada com o disposto no artigo 437.º do Código Civil.
Independentemente de outras considerações que, no caso, se pudessem tecer sobre a precipitação dessa previsão legal no caso concreto, afigura-se que há um óbice imediato: a faculdade de resolução ou modificação de um contrato com esse concreto fundamento deve ser pedida, não pode ser conhecida oficiosamente, pois de outra forma o Tribunal estaria indevidamente a interferir na autonomia contratual das partes (afirmando a primeira proposição, no respetivo sumário, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de dezembro de 2022, no processo n.º 56149/21.1YIPRT.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
Nas palavras do Professor Menezes Cordeiro “tendo ocorrido uma alteração das circunstâncias eficaz, a parte a quem o cumprimento seja exigido pode pedir a resolução do contrato ou a sua modificação segundo juízos de equidade. Se pedir a resolução, a parte contrária pode opor-se, declarando aceitar a modificação – artigo 437.º/1 e 2” (Tratado de Direito Civil IX, Almedina, pág. 697).
A Autora não pediu a modificação contratual pela qual agora pugna e, para a peticionar, teria de colocar-se num plano de facto diametralmente diferente daquele em que se colocou, isto é, teria de assumir (o que não fez mesmo neste recurso) que pactuou com o Réu um mandato forense gratuito (tratar-se-ia de uma totalmente diferente ação).
Não procede o fundamento do recurso nessa parte.
A finalizar, importa apenas registar que tendo-se provado a realização de despesas com a execução do mandato (n.ºs 7 e 13 dos factos provados), o pagamento dessas despesas (devido nos termos da alínea c) do artigo 1167.º do Código Civil) encontra-se assegurado pela quantia que a Recorrente fez sua a partir da indemnização recebida num dos processos (n.º 21 aditado supra).
Do exposto resulta que soçobram, como um todo, os fundamentos do recurso nesta parte, assim se concluindo que este deve ser julgado improcedente e deve ser mantida, nos seus termos, na mesma parte, a sentença recorrida.

b) Litigância de má fé
Na discussão do pedido de condenação da Autora como litigante de má fé, o Tribunal recorrido, chamando a si doutrina autorizada, considerou verificada a previsão da alínea a) do n.º 2 do artigo 542.º do Código de Processo Civil que tem a seguinte redação:
2 – Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar”.
Na precipitação dessa norma no caso concreto, a sentença recorrida apresenta esta fundamentação:
“(…) importa notar que a Autora estriba as suas pretensões no pressuposto da onerosidade dos mandatos forenses, sendo certo que resultou provado que, afinal, os mesmos tinham caráter gratuito, porquanto a Autora praticou os atos correspondentes por sua livre iniciativa, tendo transmitido ao Réu, por diversas vezes em datas não apuradas, mas situadas nos períodos temporais ali compreendidos, que os serviços por si prestados o eram a título gratuito em face da relação familiar que os unia (facto provado n.º 27).
Ante a demonstração do facto que antecede crê-se ser patente que a Autora deduziu pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar.
Neste sentido, dúvidas inexistem quanto à asserção de que uma pessoa de normal diligência, colocada na posição da Autora, se teria abstido de litigar nos termos em que o fez”.
O enquadramento jurídico da questão está feito na sentença e não interessa repeti-lo.
Interessa, talvez, assinalar que estamos perante um instituto de que se pode dizer (parafraseando um senhor Juiz Conselheiro a outro propósito) ser um “mal-amado”.
Entre quem defende uma aplicação exigente ou mesmo restritiva das suas premissas e os que apontam aos Tribunais um excesso de timidez na sua aplicação, existe uma larga margem de distância, à qual não será estranho o posicionamento que se adote sobre outras questões problemáticas, nomeadamente, a compreensão da “verdade processual” e o modo como a litigância de má fé deve articular com o princípio do acesso ao Direito e à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Do exemplar Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de novembro de 2022 (processo n.º 7819/18.4T8LSB-D.L1-7, no suporte acima referido) extraem-se os seguintes apontamentos:
Os Tribunais – em especial os Superiores – são normalmente acusados de alguma benevolência na apreciação desta matéria (de … a … a queixa é constante), mas importa sublinhar o esforço que nos últimos anos tem sido feito por não deixar passar em claro condutas menos próprias das partes.
(…)
Normalmente não resulta dos autos que as partes, à partida soubessem que o que alegaram, fosse inverídico e por devesse ser como tal conhecido, ou que tivessem alterado (ainda que de forma negligente) a verdade dos factos, e muito menos que tivessem usado o processo para um fim (ou de uma forma) reprovável.
(…)
Mas uma coisa é o livre exercício de direitos processuais, outra, bem distinta, é a mentira consciente, e, processualmente, dela se pretender aproveitar e prevalecer perante os outros, para obter ganhos (de forma também consciente).
(…)
Dizer que não assinou uma letra provando-se que a assinou, alegar um inventado furto de uma viatura e peticionar o seu valor à seguradora, pedir um sinal em dobro sabendo não ter sido entregue sinal, serão sempre condutas desonestas, lamentáveis, gratuitas, revelando uma desfaçatez que ultrapassa as raias da desonestidade intelectual, fazendo impor a condenação e sancionamento sem hesitações de quem assim procede”.
Sobre a distinção entre má-fé substancial e má-fé instrumental, explica o mesmo aresto:
Haverá má fé substancial se o litigante usa de dolo para obter decisão de mérito que não corresponda à verdade e à justiça. Haverá má fé instrumental se a arte do adversário procurar cansar e moer a outra parte, fazer-lhe mal ou possuir uma expetativa condenável de o desmoralizar, enfraquecer ou levá-lo a uma transação injusta.
De todo o modo, tem sempre que estar em causa uma intenção maliciosa ou uma negligência de tal modo grave ou grosseira que aproximando-se da atuação dolosa justifica um elevado grau de reprovação ou censura e idêntica reação punitiva”.
Seguindo uma perspetiva restritiva, afirma o sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de dezembro de 2003:
1.A verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico.
2. Por outro lado, a ousadia de uma construção jurídica julgada manifestamente errada não revela, por si só, que o seu autor a apresentou como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual, de autor ou réu.
3. Há que ser, pois, muito prudente no juízo sobre a má fé processual” (processo n.º 03B3893, no mesmo suporte).
Na situação desta ação o que temos?
A Recorrente prestou serviços jurídicos ao Réu, como Advogada, num contexto familiar, tendo declinado, por força desse mesmo contexto, o pagamento dos seus serviços (n.º 20 da fundamentação de facto). A partir desse momento, com bem assinala a sentença recorrida, fechou-se entre eles um consenso negocial, vinculativo para ambos, a que se chama juridicamente um mandato forense gratuito.
Após saber que a sua filha se havia queixado criminalmente do Réu, por alegada violência doméstica, a Recorrente – diz a matéria provada – “por não reputar estarem reunidas as condições de exercer o mandato e não pretender mais exercê-lo de forma gratuita” sentiu “necessidade de serem pagos os valores a título de honorários e despesas (…)”.
Esses factos atestam uma mudança de perspetiva, de modo de ver (o que em língua inglesa se chama um change of heart) sobre a gratuitidade dos serviços. A Recorrente quis prestá-los gratuitamente, mas confrontada com a notícia de uma alegada violência doméstica sobre a sua filha, achou que tinha direito a reclamar o que antes havia recusado, atuando uma espécie de revogação por ingratidão (art.º 970.º do Código Civil).
A Autora agiu com dolo? Não é o que se extrai desses factos.
A mesma agiu negligentemente ao propor as ações? Sem dúvida. Sendo Advogada, a mesma não pode protestar não saber qual o momento em que se formam os contratos e que os mesmos não podem ser modificados, salvo nos casos previstos na lei, por vontade de uma das partes (artigos 232.º e 406.º, n.º 1, do Código Civil).
Essa culpa é grave, para os efeitos do n.º 2 do artigo 542.º do Código de Processo Civil?
A negligência grave deve ser entendida como «imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesta aos olhos de qualquer um» – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6.12.2001, Afonso de Melo, 01A3692 “ (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20 de dezembro de 2016, no processo n.º 1220/14.6TVLSB.L1-7, citando aquele outro).
O circunstancialismo dos factos, em concreto, o contexto afetivo em que os mesmos ocorreram, não permitem, com o respetivo devido à opinião contrária, ter por verificado esse grau de negligência.
É certo que a Autora se devia ter coibido de intentar as ações, aceitando que não poderia modificar as prestações do que já havia sido acordado, mas também parece claro que, tal como ocorreu na decisão de declinar o pagamento dos serviços, na decisão de os reclamar, a Autora tomou uma decisão pessoal e não profissional. A mesma considerou que, em última análise, era a ela que cabia a decisão final sobre a gratuitidade dos serviços. Só que juridicamente não é assim.
Conclui-se, assim, ainda que por razões diversas das invocadas pela Recorrente, que a decisão sobre a condenação por litigância de má fé não deve manter-se.
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IV. Responsabilidade tributária
Procedendo, ainda que parcialmente, o recurso, não são devidas custas (artigo 527.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Aliás, mesmo que houvesse decaimento da Recorrente, não tendo sido oferecida resposta ao recurso, não existiriam custas de parte a reembolsar nesta sede, pelo que não haveria objeto para a condenação em custas, sendo simplesmente arrecadada a taxa de justiça paga com o impulso processual.
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Decisão
Face ao acima exposto, acordam os Juízes que compõem a 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, em julgar parcialmente procedentes os recursos interpostos da sentença e do despacho prolatado 23 de março de 2025 (que liquidou as indemnizações devidas por litigância de má-fé), ambos proferidos nesta ação, e, nessa mesma medida:
a) Revogam a sentença quanto à condenação da Recorrente (…) em multa e indemnização como litigante de má-fé (alínea c) do decisório), absolvendo-a do pedido a esse título formulado.
b) Revogam o despacho de 23 de março de 2025 que liquidou o valor das indemnizações por litigância de má-fé.
c) Mantêm, na restante parte e nos seus termos, a sentença recorrida.
Sem custas.
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Évora, 13 de novembro de 2025
Maria Emília Melo e Castro
Maria Isabel Calheiros
Miguel Teixeira
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SUMÁRIO (elaborado nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil)
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