JUNÇÃO DE DOCUMENTOS EM SEDE DE RECURSO
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
Sumário

1. A venda pelo Insolvente, pessoa singular, nos três anos anteriores à apresentação à insolvência, da fração autónoma de que era proprietário, sem que parte do preço recebido dessa venda tivesse ingressado no respetivo património, significa a subtração indevida de valor à garantia geral dos credores (prevista no artigo 601.º do Código Civil), equivalendo ao desaparecimento tipificado na alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
2. Estando em causa uma parte considerável do património do Insolvente, esse desaparecimento configura a causa de indeferimento liminar da exoneração do passivo restante, prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 238.º, por referência à alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
3. A apresentação de explicações díspares sobre o destino da referida quantia e, sobretudo, a falha em fornecer qualquer comprovativo da respetiva utilização, constituem violação, com dolo, dos deveres de informação a que está obrigado o Insolvente, sendo fundamento para indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, nos termos da alínea g) do n.º 1 do mesmo artigo.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Processo n.º 1684/24.0T8STR-E.E1
Forma processual –Insolvência de pessoa singular
Tribunal Recorrido – Juízo de Comércio de Santarém, Juiz 3
Recorrente – (…)
Recorridos – Credores da insolvente


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Acordam os Juízes Desembargadores da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

Relatório
I. Identificação das partes e descrição do objeto da ação.
(…) veio, por requerimento de 7 de junho de 2024, apresentar-se à insolvência, tendo concomitantemente requerido a sua exoneração do passivo restante, alegando, para fundamentar este pedido, preencher os requisitos necessários e estar disposta a observar o preceituado nos artigos 237.º e seguinte do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
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Por sentença datada de 11 de junho de 2024, julgando-se provados os factos alegados pela Requerente, foi declarada a insolvência peticionada e nomeado o Administrador.
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Veio a ser proferido, em 19 de julho de 2025, despacho, sob a epígrafe “Da exoneração do passivo”, em cujo trecho final se exarou:
Assim sendo, verificando-se as circunstâncias previstas no artigo 238.º, n.º 1, alíneas e) e g), do CIRE, deverá ser liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo restante.
Pelo exposto e decidindo, ao abrigo do disposto no art. 238.º, n.º 1, alínea e), do CIRE, indefiro liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.
Registe e notifique”.
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II. Objeto do recurso.
Não se conformando com essa decisão, a Insolvente interpôs o presente recurso, culminando as suas alegações com as conclusões que se transcrevem:
“1. A Recorrente foi declarada insolvente e pediu a exoneração do passivo restante, conforme previsto na lei.
2. O tribunal indeferiu o pedido de exoneração com base legal mencionada, e a insolvente recorre assim dessa decisão por discordar do despacho.
3. Esclarecimento de Factos Considerados na Decisão: Do Quinhão Hereditário, A Recorrente admitiu que não declarou inicialmente um quinhão hereditário, o qual foi identificado pelo administrador de insolvência, a omissão do quinhão foi involuntária, sem intenção de ocultar bens, e justificada por desconhecimento.
4. O quinhão não estava registado nem comunicado formalmente, e a Recorrente só teve conhecimento após ser questionada, já que o pai (…) tratou da tramitação. A Recorrente não listou o bem por desconhecimento, mas esclareceu assim que foi questionada, sem intenção de prejudicar.
5. Após saber do quinhão, a Recorrente declarou-o e o bem foi incluído na insolvência sem prejuízo para os credores. A inclusão do bem não causou prejuízo à massa insolvente.
6. A atuação da Recorrente demonstrou boa-fé e cooperação; a omissão foi um erro legítimo, não intencional.
7. Venda do Imóvel e Aplicação dos Valores: Parte do produto da venda do imóvel foi usada para pagar o empréstimo da casa; o restante, no valor de € 84.014,78, foi levantado em numerário. O montante levantado foi usado para pagar dívidas pessoais e despesas da empresa ativa na época, mostrando que não houve dissipação dolosa de património.
8. Esclarecimentos Posteriores – A falta inicial de comprovativos gerou perceção de falta de transparência, reconhecida pelo Tribunal. A Recorrente tem mostrado intenção de colaborar e esclarecer os factos.
9. A Recorrente agora conseguiu reunir documentos que antes não tinha acesso não tendo certeza de mencionar existência e juntou-os ao processo.
10. Alguma desorganização documental ou falta de acesso, não pode ser confundido com má fé ou tentativa de ocultação de elementos patrimoniais, sob pena de se desvirtuar o espírito do regime de exoneração do passivo restante, que visa dar uma segunda oportunidade aos devedores de boa fé.
11. A juntada dos documentos visa cumprir o dever de boa-fé e colaborar para o apuramento da verdade. A inclusão dos documentos não prejudica ninguém e contribui para uma decisão justa.
12. Situação Económica e Apoios Recebidos – A Recorrente passou por dificuldades financeiras não obtendo rendimento desde dezembro de 2023 até à insolvência.
13. Apesar de sem rendimento, suportou encargos mensais relevantes, incluindo habitação e despesas do dia a dia.
14. Com o dinheiro da venda do imóvel, devolveu valores que lhe haviam sido emprestados: - € 54.000,00 ao pai … (em três momentos) – doc. n.º 1; - € 10.000,00 à irmã (…); - € 9.600,00 ao amigo … (MBWay e numerário que recebia pagou de volta em numerário) docs. n.º 2 a 38. Total: € 74.100,00.
15. Pagou ainda contas da empresa a partir da sua conta pessoal, num total de € 3.872,14 (veja-se documento que se junta : Doc. n.º 39 a 45).
16. Os pagamentos efetuados antes da insolvência tinham como objetivo cumprir compromissos informais assumidos com quem sustentou a Recorrente e o filho.
17. A Recorrente admite a falta inicial de comprovativos devido à informalidade, a falta de lembrança da existência e dificuldade de aceder e ao uso de numerário.
18. A Recorrente colabora, juntando documentos e identificando os beneficiários sempre que possível. A ausência de comprovativos deve-se a limitações práticas e não a ocultação dolosa.
19. Na data da venda do imóvel, não havia incumprimentos nem ações judiciais em curso contra a Recorrente.
20. A quantia que a insolvente recebeu foi gasta em suporte da sua vida pessoal e familiar e não em benefício pessoal oculto ou com intuito de defraudar credores.
21. O destino dos valores após a venda do imóvel foi devidamente esclarecido.
22. Da Inexistência da violação do dever de informação - É afirmado pelo douto Tribunal não existirem dúvidas quanto à violação do dever de informação pela ora recorrente, sobre o destino do montante recebido com a venda da habitação e o passivo declarado.
23. A Recorrente esclarece que não houve intenção de ocultação, que o quinhão foi omitido por desconhecimento, que o valor levantado foi declarado e justificado, e que colaborou de boa-fé.
24. Não houve violação do dever de informação nem ocultação intencional; a Recorrente agiu com lealdade e colaboração.
25. Da inaplicabilidade da alínea e) e g) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE – A decisão fundamenta-se na alínea e), que prevê indeferimento quando houver indícios de culpa do devedor na insolvência.
26. Poderá haver confusão ou lapso na decisão quanto à aplicação da alínea g) pois no final do Despacho na vem mencionado na ultima linha apesar de no texto anterior vir mencionado.
27. A alínea g) trata do incumprimento do dever de informação e colaboração com dolo ou culpa grave.
28. Apesar de omissão, a questão da alínea g) deve ser considerada com cautela.
29. Não houve violação dos deveres de informação e colaboração pela Recorrente.
30. Ausência de prova de dolo ou culpa grave, e dificuldades documentais não implicam violação qualificada.
34. Ausência de factos que comprovem os requisitos legais para indeferimento pela alínea e).
35. O indeferimento liminar com base na alínea e) é indevido; a decisão deve ser revogada e o pedido apreciado.
36. Conduta da Recorrente – A Recorrente não agiu de má-fé, nem ocultou propositadamente qualquer informação relevante.
37. Houve cooperação e esforço em esclarecer e regularizar a situação.
38. Ausência de dolo, má-fé ou prejuízo intencional a terceiros. O regime de exoneração visa dar uma segunda oportunidade a pessoas honestas em sobre-endividamento sem culpa ou dolo.
39. Recorrente não deve ser penalizada injustamente por formalismos que não refletem a sua conduta.
40. Considerações finais:
• A Recorrente agiu com boa-fé e colaboração sincera.
• O regime visa proteger devedores honestos, o que é o caso da Recorrente.
• A decisão de indeferir liminarmente, com base em juízos infundados, compromete a função reabilitadora do regime e deve ser revogada”.
Concluiu pela revogação da decisão recorrida e pela sua substituição por outra que defira a exoneração do passivo restante.
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O Ministério Público apresentou contra-alegações, nas quais pugnou pela improcedência do recurso com manutenção da decisão recorrida.
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III. Questões a solucionar
São três as questões a solucionar neste acórdão, a saber:
a) A questão prévia da admissibilidade dos documentos oferecidos pela Recorrente com as respetivas alegações de recurso.
b) O aditamento aos factos provados de outros com interesse para a decisão de mérito.
c) A questão de fundo, que está em saber se estão verificados os pressupostos do indeferimento liminar do requerimento de exoneração do passivo restante.
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Fundamentação

a) Admissibilidade processual dos documentos oferecidos com a alegação
Com as respetivas motivações de recurso, a Recorrente oferece 46 documentos, sendo um deles cópia de decisão de deferimento do requerimento de apoio judiciário que já se mostrava junta à ação.
Dispõe o artigo 425.º do Código de Processo Civil:
Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.
Complementando essa norma, preceitua o nº 1 do art.º 651.º do mesmo código:
As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância”.
A impossibilidade de junção, que constitui o primeiro critério da admissibilidade do documento, decorrerá da superveniência objetiva do meio de prova (tipicamente, o documento que apenas se formou em momento posterior), ou da inviabilidade da sua apresentação anterior (o documento que sendo conhecido, não estava na posse do apresentante e que só nesse momento foi viabilizado) ou, ainda, da superveniência subjetiva do mesmo, esta fundada no facto de a parte apenas ter tido, comprovadamente, conhecimento da existência do documento após aquele limite processual (no sentido exposto, nomeadamente, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, Volume 2.º, 3ª Edição, Almedina, pág. 243 e Geraldes, Pimenta e Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina pág. 502).
Na segunda das circunstâncias para que aponta o n.º 1 do artigo 651.º acima transcrito, é a própria decisão recorrida que, seja pela novidade dos factos em que se baseou, seja pela imprevisibilidade do direito aplicado, gera a necessidade da apresentação do documento.
Isto posto, verifica-se que o documento que constitui cópia da decisão de apoio judiciário é redundante e como tal desnecessário, devendo ser rejeitado em conformidade com o critério geral plasmado no artigo 443.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Os restantes documentos oferecidos pela Recorrente são de produção anterior à decisão recorrida (são datados dos anos de 2020 a 2024).
Os mesmos não se tornaram necessários pelo teor dessa mesma decisão, que se baseia, em exclusivo, nos factos que estavam acessíveis na ação à data da respetiva prolação.
A Recorrente, para fundamentar o requerido, invoca que “embora (…) tenha inicialmente afirmado não possuir certos comprovativos de pagamentos, por falta de acesso na altura ou inexistência, o que é certo é que atualmente conseguiu obter alguns desses documentos que pensava não ter, pelo que procede à sua junção”.
A mesma não demonstra o conhecimento superveniente da existência desse acervo e é certo que ele é constituído quase exclusivamente (todos, com exceção de um) por documentos que são dirigidos à sua pessoa ou que patenteiam movimentos feitos numa conta bancária por ela titulada.
A atuação com a diligência exigível, considerados os vários despachos prolatados sobre a questão na ação, teria permitido à Recorrente juntar esses documentos no momento processual próprio.
O processo civil é um encadeamento ordenado de atos, definido pela lei e que se impõe às partes e ao Tribunal (sem prejuízo do poder/dever de adequação formal previsto no artigo 547.º do respetivo Código).
Para que o mesmo se desincumba da sua função instrumental face ao direito substantivo (que é permitir a obtenção, em prazo razoável, de uma decisão que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão de tutela jurisdicional concretamente deduzida – artigo 2.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), o mesmo não pode prescindir de constrangimentos e limites na forma como se atuam os direitos processuais, dados, nomeadamente, pela preclusão e pela autorresponsabilidade das partes.
Do exposto resulta que não estão verificados os pressupostos para a admissão de documentos nesta fase, pelo que o requerido não pode proceder, sendo rejeitados a final os documentos oferecidos com a motivação do recurso.
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b.1) Factos provados na decisão recorrida
Para fundamentação a decisão em análise, o Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos (que se reproduzem com utilização da ortografia emergente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990):
1. A insolvente apresentou-se à insolvência por requerimento de 07/06/2024.
2. Alegou que recorreu a créditos bancários, designadamente, cartão de crédito, e crédito pessoal, assim como foi avalista, na qualidade de sócia e gerente da sociedade (…), Lda., de crédito desta, a qual posteriormente se apresentou à insolvência.
3. E que o seu passivo ascendia a € 42.800,95, distribuído pelos seguintes credores: Banco (…) Consumer (…), EFC, SA, Sucursal em Portugal, no montante de € 3.185,20, (…) Bank SAL, Sucursal em Portugal, no montante de € 6.690,39, Banco (…), no montante de € 7.286,28, BPI, S.A., nos montantes de € 1.787,76 e € 23.851,32.
4.. Declarou não ter quaisquer bens.
5. Por sentença proferida em 11/06/2024 foi declarada a sua insolvência.
6. Por título de compra e venda, em 04/12/2023 a insolvente vendeu a (…), pelo preço de € 210.000,00, a fração autónoma designada pela letra “G” do prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial de Santarém sob o n.º (…).
7. O preço mencionado no número anterior foi pago da seguinte forma:
a) em 14/11/2023 a quantia de € 21.000,00, mediante transferência bancária para conta bancária do BPI, S.A.;
b) em 04/12/2023, as quantias de € 104.985,22 e € 84.014,78, mediante dois cheques bancários.
8.. Questionada pelo sr. AI sobre o destino dos montantes mencionados em 6 a insolvente declarou que os mesmos se destinaram à liquidação da hipoteca que incidia sobre o imóvel e para fazer face a outras dívidas.
9.. Por despacho proferido em 27/11/2024 foi a insolvente notificada para juntar documentos comprovativos do pagamento aos credores através do montante recebido com a alienação do imóvel, tendo a mesma junto o título de compra e venda e documentos bancários relativos à liquidação da hipoteca e alegado que o remanescente foi gasto nas despesas do dia a dia e do seu filho por ser a sua única fonte de rendimento à data.
10. O cheque no valor de € 104.985,22 destinou-se à amortização do empréstimo garantido por hipoteca sobre o prédio mencionado no n.º 6.
11. Questionada pelo tribunal sobre o destino que deu ao cheque no valor de € 84.014,78, a mesma alegou que procedeu ao seu levantamento em numerário no balcão do banco.
12. Por sentença proferida em 02/04/2024, já transitada em julgado, no âmbito do Proc. n.º 96/94.0T8STR, a correr termos no Juiz 2 deste tribunal, foi declarada a insolvência de (…), Lda., com sede na Rua (…), n.º 16, 3º Esq., Santarém, pessoa coletiva n.º (…), com fixação de residência aos gerentes (…) e (…).
13. A insolvência de (…), Lda. havia sido requerida por (…) – Importação e Comércio, Lda. em 12/01/2024.
14. A referida sociedade foi constituída em 31/03/2014 sendo único sócio e gerente (…) até 11/05/2017, data a partir da qual a insolvente passou igualmente a ser sócia e gerente da sociedade, o que sucedeu até à sua declaração de insolvência.
15. (…), Lda. cessou a sua atividade em 31/12/2023.
16. Nesses autos de insolvência foram reconhecidos créditos no montante global de € 224.039,11.
17. Nos presentes autos o sr. AI apreendeu a favor da massa insolvente o direito ao quinhão hereditário (1/3) que a insolvente detém na herança aberta por óbito de sua mãe, (…), falecida em 11/07/2020, composto por 1/24 de um prédio rústico e metade de valores monetários depositados em contas bancárias nos montantes de € 1.483,32 e € 13.049,48.
18. Nos presentes autos, por sentença proferida em 20/01/2025, já transitada em julgado, foram reconhecidos créditos no montante global de € 99.499,63, dos quais os créditos reconhecidos ao Banco BPI, S.A. ascendem a € 44.274,34 (livranças avalizadas pela insolvente; data de incumprimento de 02/04/2024), os créditos reconhecidos ao Banco Comercial Português, S.A. ascendem a € 35.464,91 (dois contratos de mútuo e livrança avalizada pela insolvente; datas de incumprimento de 18/11/2024 e 02/01/2024), os créditos reconhecidos a (…) Consumer (…) EFC, S.A. ascendem a € 3.831,83 (cartão de crédito; data de incumprimento de junho de 2024), os créditos reconhecidos a (…) – Soc. Garantia Mútua, S.A. ascendem a € 7.841,75 (livrança avalizada pela insolvente; data de incumprimento de abril de 2024) e os créditos reconhecidos a (…) Bank, S.A. ascendem a € 8.086,80 (crédito ao consumo; data de incumprimento de junho de 2024).
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b.2) Aditamento de outros factos relevantes
Em conformidade com o disposto no artigo 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, é aplicável ao acórdão do Tribunal da Relação o disposto no artigo 607.º do mesmo Código, de cujo n.º 4 resulta que o Tribunal deve considerar, na decisão da matéria de facto, a matéria admitida por acordo, bem como a plenamente provada por documento e por confissão reduzida a escrito.
Resulta desse enquadramento legal que este Tribunal tem o poder/dever de modificar aquela decisão para nela incluir factos plenamente provados por documento, como o são os factos processuais, que lhe estão acessíveis pela leitura dos autos.
Integram esse conceito os seguintes factos, não considerados pela sentença recorrida, que resultam dos atos praticados na insolvência e que assumem relevância para a decisão do objeto do recurso:
(i) O requerimento do credor Banco Comercial Português, S.A. de 18 de outubro de 2024.
(ii) A resposta da Insolvente a esse requerimento.
(iii) O teor integral da resposta da Insolvente ao despacho de 27 de novembro de 2024;
(iv) A data e o teor integral do despacho a que se refere o n.º 11 da factualidade considerada na decisão recorrida.
(v) A resposta integral da Recorrente ao mesmo.

Efetuado o proposto aditamento, reescrevem-se os factos provados nos seguintes termos:
1. A insolvente apresentou-se à insolvência por requerimento de 07/06/2024.
2. Alegou que recorreu a créditos bancários, designadamente, cartão de crédito, e crédito pessoal, assim como foi avalista, na qualidade de sócia e gerente da sociedade (…), Lda., de crédito desta, a qual posteriormente se apresentou à insolvência.
3. E que o seu passivo ascendia a € 42.800,95, distribuído pelos seguintes credores: Banco (…) Consumer (…), EFC, SA, Sucursal em Portugal, no montante de € 3.185,20, (…) Bank, S.A, Sucursal em Portugal, no montante de € 6.690,39, Banco (…), no montante de € 7.286,28, BPI, S.A., nos montantes de € 1.787,76 e € 23.851,32.
4. Declarou não ter quaisquer bens.
5. Por sentença proferida em 11/06/2024 foi declarada a sua insolvência.
6. Por título de compra e venda, em 04/12/2023 a insolvente vendeu a (…), pelo preço de € 210.000,00, a fração autónoma designada pela letra “G” do prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial de Santarém sob o n.º (…).
7. O preço mencionado no número anterior foi pago da seguinte forma:
a) em 14/11/2023 a quantia de € 21.000,00, mediante transferência bancária para conta bancária do BPI, S.A.;
b) em 04/12/2023, as quantias de € 104.985,22 e € 84.014,78, mediante dois cheques bancários.
8. Questionada pelo sr. AI sobre o destino dos montantes mencionados em 7, a insolvente declarou que os mesmos se destinaram à liquidação da hipoteca que incidia sobre o imóvel e para fazer face a outras dívidas.
9. Por requerimento de 18 de outubro de 2024 o credor Banco Comercial Português, S.A. veio peticionar o indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante, formulado pela Insolvente.
10. Alegou, nomeadamente, o seguinte:
− A realidade é que, com os elementos que até agora foram disponibilizados nos autos, sabe-se que a Insolvente vendeu o único bem – ou pelo menos aquele com valor comercial mais relevante – no preciso momento em que entrava em incumprimento com os seus credores a sociedade de que era gerente e à qual tinha prestado o seu aval pessoal.
− Razão pela qual não pode deixar de se concluir que a venda teve como único objetivo subtrair ao seu património o único bem suscetível de penhora e, deste modo, retirar aos credores a possibilidade de executar esta garantia caso não cumprisse, como não cumpriu, com as obrigações por si assumidas.
− Pelas razões supra expostas, deverá ser indeferido o pedido de exoneração do pedido restante formulado pela Insolvente, nos termos do disposto na alínea d) do artigo 186.º/2, do CIRE ex vi da alínea e) do artigo 238.º/1, do mesmo diploma.
11. Notificada desse requerimento, a Insolvente veio afirmar o seguinte:
1. Na data da venda do imóvel não havia dívidas por liquidar.
2. A insolvência da empresa (…), Lda. apenas se deu em 2024”.
12. Por despacho proferido em 27/11/2024 foi a insolvente notificada para juntar documentos comprovativos do pagamento aos credores através do montante recebido com a alienação do imóvel, tendo a mesma junto o título de compra e venda e documentos bancários relativos à liquidação da hipoteca e alegado o seguinte:
Relativamente a comprovativos de pagamento aos credores a mesma não detém e parte do valor também foi gasto nas despesas do dia a dia e do seu filho a seu cargo sendo única fonte de rendimento na época.
De salientar que na data da venda do imóvel não havia dívidas por liquidar, a responsabilidade cumprida e que motivo que levou ao pedido de insolvência pessoal se deveu ao aval que entretanto se estava a fazer cumprir, aval esse para a empresa mas aval pessoal que uma vez que se deu a insolvência da empresa (…), Lda. em 2024, pelo valor do aval viu-se a insolvente com necessidade de recorrer à mesma”.
13. O cheque no valor de € 104.985,22 destinou-se à amortização do empréstimo garantido por hipoteca sobre o prédio mencionado no n.º 6.
14. Em 22 de maio de 2025 foi proferido despacho judicial na insolvência, do qual, além do mais, se fez constar:
“(…) compulsado o extrato bancário da conta do BPI, S.A. junto pela insolvente em 28/03, verifica-se que o cheque de € 84.014,78 mencionado no título de compra e venda junto em 9/12 não foi depositado na conta do BPI, S.A..
Assim, notifique a insolvente para, no prazo de 10 dias, esclarecer qual o destino que deu ao mencionado cheque, designadamente em que conta foi depositado, juntando comprovativo do alegado”.
15. A esse despacho a Insolvente respondeu nos seguintes termos:
A insolvente não depositou o cheque passado a si em conta alguma, a mesma levantou em numerário no balcão do banco. Não tem na sua posse comprovativo.
Quanto ao outro cheque do empréstimo bancário foi visado ao banco e entregue no acto da escritura ao representante”.
16. Por sentença proferida em 02/04/2024, já transitada em julgado, no âmbito do Proc. n.º 96/94.0T8STR, a correr termos no Juiz 2 deste tribunal, foi declarada a insolvência de J(…), Lda., com sede na Rua (…), n.º 16, 3º-Esq., Santarém, pessoa coletiva n.º (…), com fixação de residência aos gerentes (…) e (…).
17. A insolvência de (…), Lda. havia sido requerida por (…) – Importação e Comércio, Lda. em 12/01/2024.
18. A referida sociedade foi constituída em 31/03/2014 sendo único sócio e gerente (…) até 11/05/2017, data a partir da qual a insolvente passou igualmente a ser sócia e gerente da sociedade, o que sucedeu até à sua declaração de insolvência.
19. (…), Lda. cessou a sua atividade em 31/12/2023.
20. Nesses autos de insolvência foram reconhecidos créditos no montante global de € 224.039,11.
21. Nos presentes autos o sr. AI apreendeu a favor da massa insolvente o direito ao quinhão hereditário (1/3) que a insolvente detém na herança aberta por óbito de sua mãe, (…), falecida em 11/07/2020, composto por 1/24 de um prédio rústico e metade de valores monetários depositados em contas bancárias nos montantes de € 1.483,32 e € 13.049,48.
22. Nos presentes autos, por sentença proferida em 20/01/2025, já transitada em julgado, foram reconhecidos créditos no montante global de 99.499,63€, dos quais os créditos reconhecidos ao Banco BPI, S.A. ascendem a € 44.274,34 (livranças avalizadas pela insolvente; data de incumprimento de 02/04/2024), os créditos reconhecidos ao Banco Comercial Português, S.A. ascendem a € 35.464,91 (dois contratos de mútuo e livrança avalizada pela insolvente; datas de incumprimento de 18/11/2024 e 02/01/2024), os créditos reconhecidos a (…) Consumer (…) EFC, S.A. ascendem a € 3.831,83 (cartão de crédito; data de incumprimento de junho de 2024), os créditos reconhecidos a (…) – Soc. Garantia Mútua, S.A. ascendem a € 7.841,75 (livrança avalizada pela insolvente; data de incumprimento de abril de 2024) e os créditos reconhecidos a (…), Bank, S.A. ascendem a € 8.086,80 (crédito ao consumo; data de incumprimento de junho de 2024).

c) Verificação dos pressupostos do indeferimento liminar do requerimento de exoneração do passivo restante.
A insolvência é por definição legal um processo de execução universal, cuja finalidade é satisfação dos direitos de crédito sobre o património do insolvente, preferencialmente através de um plano de insolvência ou, não sendo este possível, mediante a liquidação daquele património e distribuição do produto dessa operação pelos credores (artigo 1.º, n.º 1, do CIRE).
Para que o processo de insolvência se desenvolva na sua plenitude e alcance as finalidades para que está vocacionado é determinante a disponibilidade de toda a informação relevante sobre o património do insolvente.
Nesse sentido, o artigo 24.º do CIRE predispõe um dever de disponibilização, pelo devedor, quando seja ele o requerente da insolvência, logo na petição inicial, de um conjunto de dados, de que se destacam, com relevância para o caso vertente, dois: a identificação de todos os credores, com indicação, designadamente, dos montantes dos respetivos créditos e a relação de todos os bens na sua titularidade (alíneas a) e e) do n.º 1 do citado artigo).
As duas informações em causa têm por objeto factos pessoais que estão sob o domínio do conhecimento do próprio e de que dificilmente o devedor, colocado perante o pedido da sua insolvência, se pode escusar a fornecer com exatidão e rigor.
Após a declaração de insolvência e em complemento desse dever específico de informação, o artigo 83.º (com a epígrafe “dever de apresentação e de colaboração”), no seu n.º 1, alínea a) preceitua que “o devedor insolvente fica obrigado a fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal”.
Acrescenta o n.º 3 que “a recusa de prestação de informações ou de colaboração é livremente apreciada pelo juiz, nomeadamente para efeito da qualificação da insolvência”.
A recusa de prestação de informação, a omissão de informação relevante, a prestação de informação falsa ou incompleta podem ainda repercutir-se negativamente no incidente de exoneração do passivo restante, por via do disposto no artigo 238.º, n.º 1, alínea g), do CIRE.
Escreve a este propósito a Professora Maria do Rosário Epifânio “No âmbito da exoneração do passivo restante, a lei não só densifica o conteúdo deste dever de informação, como até, em alguns casos, estende a sua vigência para além do encerramento do processo de insolvência. Assim, desde logo, e regulando diretamente a matéria, o artigo 238.º, n.º 1, alínea g), preceitua que o pedido de exoneração do passivo restante é liminarmente indeferido se “o devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência” (destaque nosso)” (A Exoneração do Passivo Restante – algumas questões – Julgar, n.º 48, 2022, pág. 51).
Ao insolvente, quando pessoa singular, o legislador reservou, nos artigos 235.º a 248.º-A do CIRE, um mecanismo de exoneração do passivo não satisfeito no processo.
Transcreve-se o artigo 235.º:
Se o devedor for uma pessoa singular pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste, nos termos do presente capítulo”.
Introduzido na legislação nacional, em 2004, pelo CIRE, a exoneração do passivo restante “(…) consiste em traços gerais na afectação, durante certo período após a conclusão do processo de insolvência, dos rendimentos do devedor à satisfação dos créditos remanescentes, produzindo-se, no final, a extinção daqueles que não tenha sido possível cumprir, por essa via, durante esse período” (Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 3ª Edição, Almedina, pág. 772).
Segundo a mesma Lição “a intenção da lei é a de libertar o devedor das suas obrigações, realizar uma espécie de azzeramento da sua posição passiva, para que, depois de «aprendida a lição», ele possa retomar a sua vida e, se for caso disso, o exercício da sua actividade económica ou empresarial” (Ob. e pág. Cit).
Numa outra abordagem “o instituto, tal como se mostra atualmente consagrado, tem subjacente este pendor social e solidário: em última linha, o seu objetivo máximo é a reabilitação do devedor, libertando-o de parte ou da totalidade do seu passivo. Repare-se que em tal finalidade envolvem-se, em primeira linha, os credores (não todos, como resulta do artigo 245.º, n.º 2) que desta forma se vêem obrigados a abrir mão de parte dos seus créditos, senão da totalidade, como sucede frequentemente, como verdadeira consagração de uma distribuição do risco de concessão de crédito, mas também a sociedade em geral pois que também muitas vezes o devedor não dispõe de qualquer património, nem de quaisquer rendimentos passíveis de cessão, sendo o Estado a suportar as despesas com as remunerações do administrador e do fiduciário, as despesas do processo de insolvência e demais custos inerentes” (Cláudia Oliveira Martins, Especificidades do Processo de Insolvência de Pessoas Singulares, Insolvência e Processo de Especial de Revitalização, março de 2017, ebook, Coleção Formação Contínua, Centro de Estudos Judiciários).
Do ponto de vista dos respetivos efeitos sobre as dívidas do insolvente “rigorosamente, a exoneração qualifica-se como uma (nova) causa de extinção das obrigações – extraordinária ou avulsa relativamente ao catálogo de causas tipificado no Código Civil (cfr. artigos 837.º a 874.º)” (Catarina Serra, Ob, pág. 774).
Formulado o pedido de exoneração do passivo restante, ele pode não ultrapassar a fase liminar se se mostrarem verificadas alguma das circunstâncias previstas no n.º 1 do artigo 238.º do CIRE.
A demonstração dessas circunstâncias, posto que elas constituem factos impeditivos do direito do insolvente, incumbe aos credores e/ou ao Administrador da Insolvência (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil e, na jurisprudência, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12 de junho de 2012, proferido no processo n.º 1034/11.5T2AVR-C.C1, disponível em www.dgsi.pt).
A previsão dessas causas no n.º 1 do citado artigo 238.º é taxativa.
O elenco inclui a par de fundamentos processuais, como a apresentação intempestiva do requerimento (alínea a) do n.º 1), a redundância na obtenção do benefício em circunstâncias que demonstram que o insolvente não soube aproveitar a oportunidade da exoneração anteriormente concedida (alínea c) do n.º 1) e comportamentos do insolvente, antes e durante o processo, que a lei especialmente reprova (alíneas e), f e g), do n.º 1).
Em concreto, nela se incluem, com interesse para a decisão deste recurso, as seguintes circunstâncias típicas:
Na alínea e) – “constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º”.
Na alínea g) – “o devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência”.
Como se vê pela natureza dos fundamentos do indeferimento, na altura da prolação da decisão correspondente, deve estar disponível no processo o manancial de prova que permite ao juiz da insolvência precipitar na sua decisão, fundamentando-a, a factualidade que foi alegada e que interessa ao preenchimento daquelas alíneas.
Nessa medida, a figura do indeferimento liminar não é a que melhor retrata processualmente a decisão em causa.
Assim, se é certo que a lei qualifica a decisão judicial como um ato de indeferimento liminar “a verdade é que, por um lado, as causas previstas na norma impossibilitam que se fale com propriedade em indeferimento liminar, uma vez que quase todas implicam a produção de prova e obrigam a uma apreciação de mérito por parte do juiz” (Catarina Serra, Ob. Cit, pág. 779).
Sobre o significado das causas de indeferimento pertinentes ao comportamento do insolvente, pode ler-se:
Todos os requisitos elencados nas alíneas b) a g) manifestam a intenção do legislador, tal como sucede com o período de cessão e as obrigações a este inerentes, de que a exoneração do passivo restante não passe de um mero e indiscriminado perdão de dívidas (na senda do modelo norte-americano) exigindo antes do devedor uma conduta norteada por princípios éticos presentes no momento anterior e durante todo o período de duração quer do processo de insolvência, quer do incidente” (Cláudia Oliveira Martins, Ob. Cit. pág. 118).
Da previsão da alínea e) retém-se a necessidade de estar demonstrada, no momento da decisão de indeferimento, uma factualidade (um comportamento do insolvente) que indicie – diz a letra da lei – com toda a probabilidade (probabilidade qualificada ou quase certeza), a culpa do devedor na criação ou no agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º do CIRE.
O n.º 1 deste artigo considera culposa a insolvência quando criada ou agravada, pela atuação do devedor nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Atente-se, para melhor ilustrar a hipótese típica, em alguns exemplos das decisões jurisprudenciais sobre a previsão da referida alínea e) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE:
· “temos por evidente que, por via das aludidas transmissões, do seu veículo automóvel e do único imóvel do seu património, então não onerado com garantias reais, cerca de dois anos antes de ser declarada a insolvência, os insolventes, dispondo daqueles bens a favor de terceiro (seu filho) agravaram a sua situação de insolvência, tanto assim é que o processo foi arquivado por inexistirem bens para serem apreendidos para a massa insolvente. Toda a cronologia dos acontecimentos (incumprimento do devedor principal, seu afiançado, e sua posterior declaração de insolvência, a transmissão dos bens pelos ora insolvente ao seu filho e sua posterior oportunidade que a concessão do benefício da exoneração do passivo restante visa conceder. declaração de insolvência) não nos deixam dúvidas de que o comportamento dos mesmos não é merecedor da oportunidade que a concessão do benefício da exoneração do passivo restante visa conceder” (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de outubro de 2021, no processo n.º 2213/20.0T8BRR.L1-1, disponível em www.dgis.pt).
· “preenche a previsão da alínea e) do n.º 1 do artigo 238.º do C.I.R.E. a conduta do devedor traduzida na circunstância de três anos antes de se apresentar à insolvência, ceder a terceiros, pelo valor de € 30.000,00, crédito que vinha executando no valor de € 38.557,81, acrescido de juros comerciais vincendos desde 21/09/2004 (sendo certo que os cessionários obtiveram dos executados, cerca de dois meses e meio após a cessão, o pagamento da quantia de € 42.000,00”(Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28 de setembro de 2010, no processo n.º 995/09.9TJPRT-F.P1, no mesmo suporte).
· “justifica-se o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, no âmbito do artigo 238.º, n.º 1, alínea e), do CIRE, se o devedor teve em vista, face à sua situação de insolvência, ocultar a existência de um crédito hipotecário (no valor de vários milhares de euros), declarando transmiti-lo, com a hipoteca, a sua irmã – pelo preço de 100 mil euros, declarado já recebido –, para que não respondesse pelas suas dívidas” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 5 de abril de 2022, no processo n.º 4386/18.2T8.LRA-G-C1, no mesmo suporte).
· “É motivo de indeferimento liminar do pedido de exoneração, à luz dos artigos 238.º, n.º 1, alínea e) e 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea d) e n.º 4, do CIRE, o facto de os devedores terem doado ao seu filho os únicos bens de que eram proprietários, nele se incluindo um imóvel liberto de quaisquer ónus e encargos, bens esse que eram suficientes para liquidar a divida de que eram devedores, numa altura em que estavam já em incumprimento, e dois anos antes de se terem apresentado à insolvência” Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de outubro de 2021, no processo n.º 2213/20.0T8.BRR-L1-1, no mesmo suporte).
Ao remeter para o artigo 186.º, o artigo 238.º, n.º 1, alínea e), ambos do CIRE, assume como fundamentos do indeferimento da exoneração do passivo, entre outras, as causas de insolvência culposa previstas no n.º 2, por força do n.º 4, ambos do primeiro daqueles artigos.
Segundo esse n.º 2, “considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quanto os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor
O n.º 4 do artigo 186.º declara esse regime aplicável “com as necessárias adaptações, à actuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações”.
Estamos perante uma presunção inilidível de culpa na insolvência (Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3ª edição, págs. 284 e 285, apud Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de abril de 2025, no processo n.º 2718/24.3T(STB-B.L1-1 e, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 2 de maio de 2019, no processo n.º 665/14.6TBEPS-E.G2, em www.dgsi.pt).
Sobre a precipitação dessa previsão normativa em casos concretos, lê-se:
· “preenche a alínea a) do n.º 2 do aludido artigo 196.º do CIRE o facto de não terem sido encontrados os bens móveis que a devedora tinha registado contabilisticamente em inventário, sem que a mesma tivesse prestado qualquer esclarecimento à administradora da insolvência sobre o seu paradeiro” (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de abril de 2025, atrás citado);
· “como também se refere na sentença recorrida, a expressão legal «fazer desaparecer» deve ser interpretada na perspectiva dos credores do insolvente, que assumem a condição, após a declaração da insolvência, de credores da respectiva massa, pressupondo que o preço declarado como contrapartida da aquisição, a tratar-se de um contrato de compra e venda ou outro negócio translativo da propriedade, não «retorne» ao património de onde se excluiu o bem, e onde constitui garantia de todos os credores (artigo 601.º do CC)” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23 de novembro de 2010, no processo n.º 1088/06.6TBPMS-A.C1, no mesmo suporte).
Na situação em presença, cerca de 88% das dívidas da Insolvente são provenientes da sua qualidade de garante do pagamento de obrigações da sociedade comercial de que era sócia e gerente e que foi, também ela, declarada insolvente (aval de livranças subscritas a favor dos credores BPI, BCP e …) (n.º 22 supra).
O ato de disposição patrimonial – venda da fração autónoma – foi praticado em 4 de dezembro de 2023 (n.º 6), ou seja, no decurso dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (este datado de 2024).
Escassos 27 dias depois desse ato, a sociedade comercial atrás referida cessou a atividade (n.º 17).
Os créditos sobre a Insolvente, naquela parte, venceram-se em janeiro, abril e novembro de 2024 (idem n.º 20), mas sendo os mesmos provenientes de responsabilidades da sociedade, não satisfeitas por esta, é razoável convir que esses vencimentos se anunciavam desde o momento em que a referida sociedade deixou, ela mesma, de cumprir as suas obrigações.
Posto que, com o preço obtido da venda, a Insolvente pagou o crédito hipotecário sobre o imóvel vendido, liquidando, desse modo, uma parte relevante do seu passivo (€ 104.985,22), o que o ato de disposição tem de relevante para esta discussão é a circunstância de ele ter proporcionado à Insolvente a quantia remanescente de € 84.014,78, cujo destino não foi apurado (n.ºs 7 e 13 supra).
Impõe-se aqui um breve parênteses.
A Recorrente vem, nesta sede, alegar factos relativos à utilização desse dinheiro, mas sendo o recurso, como é consabido, um meio processual de revisão de decisões, e não de conhecimento de factos novos, não pode este Tribunal atender ao que, no momento da decisão recorrida, não estava presente.
Segundo a Lição do Professor Rui Pinto “No nosso sistema positivo o objeto dos recursos civis é, na sua extensão máxima possível, determinado pelo efeito devolutivo: tantum devolutum quantum iudicatum (…). Repisando palavras anteriores, nos nossos recursos julga-se a decisão viciada nos limites do objeto desta (o objeto a quo).
(…)
Portanto, e em suma, os nossos recursos são meios de impugnação de certo ato processual, não são meios de reabertura do contraditório” (Manual do Recurso Civil, volume I, Reimpressão, AAFDL Editora, págs. 350 e 351).
A referida quantia remanescente não foi encontrada, não o tendo sido, nomeadamente, na conta bancária titulada pela Insolvente, acabando esta por afirmar, quando notificada, pelo Tribunal recorrido, para explicitar o destino do cheque pertinente, que levantou este em numerário (n.º 15 dos factos provados).
Essa circunstância induz a verificação da previsão da alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, devidamente adaptada à natureza de pessoa singular da Insolvente, uma vez que significa o desaparecimento de uma parte considerável (no valor de € 84.014,78, sendo que os créditos reclamados ascendem ao montante global de € 99.499,63) do património daquela.
Com efeito, a venda de parte do seu património, sem que aquela parte do preço recebido tivesse ingressado, como deveria, no mesmo património, significa a subtração indevida de valor à garantia geral dos credores, o que é equivalente ao desaparecimento tipificado na norma.
Conclui-se, assim, que se mostra verificada, no caso concreto, a causa de indeferimento liminar da exoneração do passivo restante, prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 238.º, por referência à alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º, ambos do CIRE.
Sob a égide da alínea g) do mesmo artigo, o pedido de exoneração do passivo restante deve ser indeferido quando o devedor – usando de dolo ou culpa gravetenha violado o dever de informação que para ele resulta do CIRE, no decurso do processo.
Os deveres de informação que para o insolvente resultam da lei são quer os previstos no artigo 83.º, n.º 1, alínea a), do CIRE acima citado e que supõe a declaração de insolvência, quer os que decorrem do artigo 24.º para o momento da apresentação do devedor no processo (nesse sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25 de setembro de 2025, proferido no processo n.º 3601/22.2T8GMR.G3).
Elencam-se, bem assim, algumas decisões que se pronunciaram sobre o indeferimento liminar da exoneração do passivo, com o fundamento da alínea g) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE:
· “Para a verificação da grave negligência não basta a verificação de um qualquer comportamento negligente, descuidado e imprevidente, exigindo-se um elevado grau de imprudência, intolerável e anormal, merecendo elevado grau de reprovação.
(…) a omissão pelo recorrente da existência de um crédito é enquadrável na omissão de informação sobre a existência de património apreensível e consequentemente o seu comportamento omissivo preenche os requisitos da alínea g) do n.º 1 do artigo 238.º” (aresto acima citado).
· “Como resulta da factualidade provada – e só esta releva – na petição inicial os credores indicaram como único credor a CGD, relacionando um crédito com o montante de € 174.400,64 (…) Todavia, nos itens 6º e 7º, foram reclamados e reconhecidos créditos, no valor total de € 1.707.722,79, relativamente a oito credores.
(…)
Não é crível que os devedores ao indicarem, na petição inicial, um único credor, não soubessem que omitiram os demais, dada a grande discrepância quer relativamente ao montante dos débitos que assumiram, quer ao número de credores” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10 de dezembro de 2019, proferido no processo n.º 43/19.0T8VLF-E.C1, disponível em www.dgsi.pt).
· “A declaração, no requerimento dos devedores, de que não têm acções pendentes contra si, apesar de existir uma execução a correr termos contra os requerentes, em que estes deduziram oposição, constitui uma violação dos deveres de informação e colaboração a que se refere a alínea g) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, que é motivo de indeferimento do pedido de exoneração do passivo” (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18 de janeiro de 2011, no processo n.º 5984/09.TBBRG-E.G1, no mesmo suporte).
Voltando ao caso em presença, a factualidade provada evidencia as seguintes violações do dever de informação, por parte da Insolvente:
- a omissão da indicação de bens (que a mesma disse não possuir – n.º 4), vindo a apurar-se que tinha no seu património o direito a uma herança (n.º 21);
- a informação de que o seu passivo ascendia a € 42.800,95, quando se apuraram créditos no montante global de € 99.499,63 (n.ºs 3 e 22);
- a não demonstração do destino da quantia de € 84.014,78 acima referida.
As primeiras duas violações são compatíveis com uma atuação culposa, mas denotam culpa grave, já é especialmente reprovável que a Recorrente, ao apresentar-se à insolvência, não conheça e não procure conhecer, com exatidão, o conteúdo do seu património e as suas dívidas.
A segunda das omissões é necessariamente dolosa, seja ela praticada com dolo necessário (consciência e intenção de omitir o facto) seja como dolo meramente eventual (atuação que se conforma com o efeito de sonegar informação).
A Insolvente foi confrontada, em primeira mão, pelo Administrador da Insolvência, sobre o destino da referida quantia e respondeu que a mesma serviu “para fazer face a outras dívidas (n.º 8 supra). Notificada do requerimento em que um dos credores pugnava pelo indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante com fundamento no ato de dissipação patrimonial, respondeu que na data da venda do imóvel não havia dividas por liquidar” (n.º 11). Foi notificada para juntar comprovativos dos alegados pagamentos aos credores e alegou que relativamente a comprovativos de pagamento aos credores a mesma não detém e parte do valor também foi gasto nas despesas do dia a dia e do seu filho a seu cargo” (n.º 12). Notificada, desta feita, para esclarecer qual o destino que deu ao cheque da referida quantia, veio dizer que “não depositou o cheque passado a si em conta alguma, a mesma levantou em numerário no balcão do banco. Não tem na sua posse comprovativo” (n.º 15).
A Insolvente escusou-se sistematicamente a demonstrar o destino que deu à referida quantia, sabendo que essa informação era relevante para massa insolvente, oferecendo explicações díspares e acabando por nunca fornecer, como lhe incumbia, a prova da respetiva utilização.
A atuação configura uma violação dolosa dos deveres de informação a que a Insolvente estava vinculada na insolvência.
Nada há, pois, a censurar à decisão recorrida quando a mesma concluiu que a conduta da Insolvente integra as previsões das alíneas e) e g) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE e que essa asserção justifica o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
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III. Responsabilidade tributária
A Recorrente decai no recurso, mas não havendo custas de parte nem encargos a liquidar, não haveria custas da sua responsabilidade, sendo certo que a mesma beneficia de apoio judiciário que as abrangeria caso existissem.
*
Decisão
Face ao acima exposto, acordam os Juízes que compõem a 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, no seguinte:
a) Não admitir os documentos oferecidos pela Recorrente (…) com as respetivas alegações de recurso, ordenando a sua desassociação do processo, após trânsito em julgado.
b) Julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela Insolvente (…) e, por consequência, mantêm a decisão prolatada em 19 de julho de 2025 que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.

Sem custas.
Évora, 13 de novembro de 2025
Maria Emília Melo e Castro
Miguel Teixeira
Isabel Maria Socorro de Matos Peixoto Imaginário
*
SUMÁRIO (elaborado nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil)
(…)