ANULAÇÃO DE SENTENÇA
LIMITES E EFICÁCIA
PRIVAÇÃO DO USO DE VEÍCULO
Sumário

1 – Anulando o tribunal de recurso uma sentença com a exclusiva finalidade de o tribunal recorrido sanar determinadas contradições e obscuridades detectadas no enunciado da matéria de facto provada, está vedado, ao segundo, ao proferir a nova sentença, alterar pontos desse enunciado que nada têm a ver com a causa da anulação da anterior, sob pena de violação do disposto no n.º 1 do artigo 613.º do CPC.
2 – A circunstância de ter, ao seu serviço, cinco veículos automóveis, com características diversificadas e afectos a fins também diversificados (transporte da gerência, de trabalhadores e de materiais), não obsta a que se reconheça que uma sociedade sofreu um dano em consequência de ter estado impossibilitada de utilizar um desses veículos durante o tempo que demorou a reparação dos estragos decorrentes de um acidente de viação em que o mesmo interveio.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Processo n.º 594/22.0T8SSB.E2


*


(…) – Montagem de Andaimes, Lda., propôs acção declarativa de condenação, com processo comum, contra (…) – Companhia de Seguros, S.A. e (…) – Companhia de Seguros, S.A..

A autora formulou os seguintes pedidos:

«a) Ser a 1ª Ré condenada a pagar à Autora, a título de danos, o valor de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) ou o valor que se venha a fixar com base na equidade, por cada dia em que a Autora esteve ilegalmente privada do uso da viatura durante os indicados cento e cinquenta dias e que ascende a € 41.500,00 (quarenta e um mil e quinhentos euros), ou ao valor que resultar do valor diário fixado com base na equidade multiplicado pelo número de dias de privação de uso, acrescido da quantia paga de € 172,20 (cento e setenta e dois euros e vinte cêntimos) correspondente ao valor pago pelo aluguer por quatro dias, todos acrescidos de juros de mora à taxa supletiva desde a citação até efetivo e integral pagamento;

b) Caso se entenda que a responsabilidade pelo ressarcimento dos danos cabe à 2ª Ré, em virtude do sinistro ter sido regularizado ao abrigo da Convenção IDS, deverá esta ser condenada a pagar à Autora, a título de danos, o valor de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) ou o valor que se venha a fixar com base na equidade, por cada dia em que a Autora esteve ilegalmente privada do uso da viatura durante os indicados cento e cinquenta dias e que ascende a € 41.500,00 (quarenta e um mil e quinhentos euros), ou ao valor que resultar do valor diário fixado com base na equidade, multiplicado pelo número de dias de privação de uso, acrescido da quantia paga de € 172,20 (cento e setenta e dois euros e vinte cêntimos) correspondente ao valor pago pelo aluguer por quatro dias, todos acrescidos de juros de mora à taxa supletiva desde a citação até efetivo e integral pagamento.»

Ambas as rés contestaram.

Foi proferido despacho saneador.

Realizou-se a audiência final, na sequência da qual foi proferida sentença cujo dispositivo era o seguinte:

«(…) julgo a presente ação totalmente improcedente quanto à Ré (…) – Companhia de Seguros S.A., absolvendo-a do pedido; e julgo a ação parcialmente procedente quanto à Ré (…) – Companhia de Seguros SA, condenando-a a pagar a Autora a quantia correspondente ao referido aluguer por quatro dias, no valor de € 172,20 (…), acrescidos dos juros de mora contados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento, à taxa legal em vigor para os juros moratórios civis de 4% ao ano.

(…)»

A autora e a ré (…) recorreram da sentença.

Por acórdão proferido em 13.03.2025, o tribunal ad quem anulou a sentença recorrida, para que o tribunal a quo elaborasse outra que não contivesse as obscuridades e contradições naquela detectadas.

O tribunal a quo proferiu nova sentença, cujo dispositivo é o seguinte:

«(…) julgo a presente ação totalmente improcedente quanto à Ré (…) – Companhia de Seguros, SA, absolvendo-a do pedido; e julgo a ação parcialmente procedente quanto à Ré (…) – Companhia de Seguros, SA, condenando-a a pagar à Autora a quantia correspondente ao referido aluguer por quatro dias, no valor de € 172,20 (…) acrescidos dos juros de mora contados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento, à taxa legal em vigor para os juros moratórios civis de 4% ao ano.

(…)»

A autora e a (…) também recorreram desta sentença, sendo o recurso da primeira independente e o da segunda subordinado.

As conclusões do recurso interposto pela autora são as seguintes:

«I. Por Acórdão proferido no âmbito dos presentes autos pelo Tribunal a Relação de Évora de 13-03-2025 a sentença proferida em 28-08-2024 foi anulada na sua totalidade por conter obscuridades e contradições (sublinhado nosso).

II. Apesar das obscuridades e contradições referirem-se às datas relacionadas com o período no qual foi disponibilizada a viatura de substituição foi suprimida a matéria de facto alegada no artigo 28º da PI anteriormente dada como provada ponto 24.

III. A primeira decisão foi anulada na totalidade, porém, a considerar-se existir caso julgado, sempre a decisão proferida padece de nulidade, a qual se invoca, meramente por mera cautela de patrocínio.

IV. Entende a Recorrente que a sentença em crise não ajuizou devidamente, segundo a prova produzida, e que também segundo o direito aplicável não poderia ser esta a decisão do Tribunal a quo.

V. Não foram corretamente dados como não provados os factos vertidos nos pontos 1º a 3º dos factos dados como não provados, bem como não foram corretamente dados como provados os factos vertidos nos pontos 35º e 36º dos factos dados como provados.

VI. Na decisão da matéria de facto quanto à factualidade supra referida, o Tribunal a quo baseou-se do depoimento da testemunha (…), do qual concluiu que a gerência da Recorrente utilizava um veículo Tesla, que a declaração amigável junta com a PI está assinada por esta testemunha na qualidade de gerente da Recorrente, sendo gerente de facto da mesma e que (…) afirmou que é ele que usa a viatura sinistrada.

VII. O Tribunal a quo considerou o depoimento desta testemunha imparcial, credível e com conhecimento pessoal e direto dos factos (sublinhado nosso).

VIII. No que se refere à prova documental, o Tribunal a quo sustentou-se na declaração amigável que foi junta com a PI considerando que a testemunha subscreveu tal documento na qualidade de gerente da Recorrente, mas, como resulta do documento foi subscrito por (…) enquanto condutor da viatura sinistrada e não como gerente (sublinhado nosso).

IX. Esta conclusão que é contraditória com o ponto 10 dos factos dados como provados, dado que o Tribunal a quo, para dar como não provados os factos vertidos nos pontos 1 a 3 dos factos dados como não provados, sustenta que (…) subscreveu a declaração na qualidade de gerente quando dá como provado que a declaração foi subscrita pelos condutores.

X. Quanto à utilização da viatura Tesla, a testemunha efetivamente fez tal menção nas suas declarações, no entanto, de imediato indicou que a mesma estava imobilizada no período em causa, isto é, no período em que a viatura sinistrada esteve em reparação (sublinhado nosso).

XI. O Tribunal a quo ignorou tal facto e, para formar a sua convicção, retirou das declarações da testemunha apenas que a gerência utilizava um Tesla.

XII. A testemunha (…), nas declarações que prestou, como resulta da ata de 08 de Maio de 2024, encontram-se gravadas em sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso pelo Tribunal a quo, identificando-se especificadamente o início e o fim de cada passagem transcrita com referência à duração das declarações esclareceu que a viatura Tesla estava avariada, imobilizada, conforme resulta da passagem 00:27:05 a 00:27:35 do depoimento.

XIII. Se a viatura Tesla estava imobilizada na altura não poderia a gerência da Recorrente ter utilizado esta viatura enquanto a viatura sinistrada estava em reparação.

XIV. No que se refere ao facto da viatura sinistrada ser utilizada pela testemunha (...) e não pela gerência da Recorrente, mais uma vez, o Tribunal a quo errou na apreciação desta prova testemunhal, dado que, o que a testemunha declarou foi que não usava a viatura sinistrada no dia-a-dia, que esporadicamente utilizou a viatura e que era o carro da … (gerente) da Recorrente que ela também utiliza para eventos, não que só utiliza para eventos e era o carro que utilizava diariamente (sublinhado nosso).

XV. É o que consta nas seguintes passagens do seu depoimento 00:04:50 a 00:07:20; 00:14:45 a 00:16:40 e 00:21:05 a 00:23:20

XVI. Entende a Recorrente que o Tribunal a quo errou na apreciação e valoração do depoimento da testemunha em causa e concluiu do mesmo o contrário do que a testemunha afirmou, sendo que o depoimento foi considerado credível e imparcial.

XVII. Estão erradamente dados como não provados os factos vertidos nos pontos 1 a 3 dos factos dados como não provados, os quais têm que ser dados como provados, bem como estão erradamente dados como provados os factos vertidos nos pontos 35º e 36º da matéria de facto dada como provada, que têm de ser dados como não provados, com base nos seguintes elementos de prova: passagens 00:04:50 a 00:07:20; 00:14:45 a 00:16:40; 00:21:05 a 00:23:20; 00:27:05 a 00:27:35 do depoimento da testemunha (…), prestado no 08 de Maio de 2024, encontram-se gravado em sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso pelo Tribunal a quo, identificando-se especificadamente o início e o fim de cada passagem transcrita com referência à duração das declarações e documento n.º 5 junto com a PI.

XVIII. No que se refere ao facto vertido no ponto 35º dos factos dados como provados admite a Recorrente que em vez de ser dado como não provado possa ser alterada a sua redação de acordo com os meios de prova supra elencados para: “O veículo sinistrado é usado pontualmente por (…)” (sublinhado nosso).

XIX. Deve ainda ser aditado aos factos dados como provados a seguinte factualidade, alegada pela Recorrente no artigo 28º da PI, como ponto 44º da matéria de facto dada como provada, dado que o Tribunal a quo errou na apreciação desta matéria de facto: “44. A Autora diligenciou junto da 2ª Ré para que a viatura de substituição fosse facultada, no entanto, a disponibilização foi negada.”

XX. O Tribunal a quo, reconhece que esta matéria resultou da prova produzida, mas não a levou à factualidade assente: “A negação pela 2ª Ré de viatura de substituição para além dos dias aprazados para a reparação, constantes no relatório da peritagem efetuada ao Aston Martin pela (…), foi confirmada pelo mediador de seguros da Autora, a testemunha (…) que teve conhecimento destes factos por ter contactado com as duas seguradoras Rés com vista a ajudar na solução do problema suscitado pela sua cliente, a (…) – Montagem de Andaimes, Lda.. Não havia peças de marca branca para a reparação da viatura da Autora, pelo que as peças tiveram de vir das instalações da marca sitas no estrangeiro, o que demorou muito tempo, sendo certo que também estávamos plena época de pandemia Covid 19 pelo que as peças demoravam mais tempo a chegar do que habitual, como afirmou esta testemunha. A viatura ficou sem puder circular, na sequência do acidente de viação sofrido e precisava das peças para voltar a funcionar, mais afirmou a testemunha.”

XXI. A testemunha (…), nas declarações que prestou, como resulta da ata de 08 de Maio de 2024, encontram-se gravadas em sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso pelo Tribunal a quo, identificando-se especificamente o início e o fim de cada passagem transcrita, com referência à duração das declarações, esclareceu que apesar de todas as insistências nenhuma das Rés deu viatura de substituição, além do período que tinha sido apontado como de reparação no relatório da peritagem elaborado, como resulta das seguintes passagens deste depoimento: 00:04:30 a 00:05:30; 00:08:32 a 00.09:25; 00.17:05 a 00:17:40 e 00:22:20 a 00:22:40

XXII. Além do depoimento desta testemunha existe também prova documental, nomeadamente os documentos 8 e 9 juntos com a PI.

XXIII. Desta forma, da conjugação do depoimento da testemunha em causa com a prova documental deve ser aditada à matéria de facto dada como provada um ponto 44 com o seguinte teor: “44. A Autora diligenciou junto da 2ª Ré para que a viatura de substituição fosse facultada, no entanto, a disponibilização foi negada.”

XXIV. Uma vez que o Tribunal a quo não julgou procedente a ação quanto ao ressarcimento do dano da privação de uso com fundamento no facto da viatura sinistrada ser utilizada, não pela gerente da Recorrente mas sim pelo seu companheiro, e que não era dado um uso diário pela gerência, dando como provados tais factos indevidamente dados como não provados, bem como dando como não provados os factos identificados, deve a ação ser julgada totalmente procedente nos termos peticionados pela Recorrente.

XXV. O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao não ter condenado nenhuma das Recorridas no pagamento da indemnização pela privação de uso nos períodos de 19-09-2021 a 07-10-2021 e 23-10-2021 a 16-03-2022.

XXVI. Independentemente da alteração da matéria de facto dada como provada, da conjugação da factualidade dada como provada deve ser alterada a decisão proferida condenando a Recorrida (…), ou se assim a Recorrida (…), no pagamento do valor da privação de uso nos períodos identificados.

XXVII. Entendeu o Tribunal a quo não condenar nenhuma das Recorridas no ressarcimento do dano de privação de uso, em virtude de considerar que não ficou provado o uso da viatura pela gerência da Recorrente mas sim pelo companheiro da gerente da Recorrida.

XXVIII. A simples privação de uso, mesmo que desacompanhada de prova de utilização efetiva do bem, constitui um dano suscetível de reparação pecuniária.

XXIX. A privação de uso de um bem constitui em si só um dano patrimonial por excluir uma das faculdades conferidas pelo direito de propriedade nos termos do artigo 1305.º do Código Civil, isto é, o uso e fruição que assistem ao proprietário.

XXX. A supressão destas faculdades ao proprietário, não permitindo extrair do bem todas as utilidades, constitui juridicamente um dano com expressão pecuniária que tem de ser ressarcido.

XXXI. Os Tribunais não estão vinculados ao disposto no artigo 42.º do Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de agosto quanto à disponibilização de veículo substituição, e ressarcimento dos danos decorrentes da privação de uso, visando tal disposição regular a fase extrajudicial, não vinculando os Tribunais na fase judicial, sendo aplicáveis os princípios gerais de direito, nomeadamente o regime geral da responsabilidade civil.

XXXII. No que se refere à legitimidade da Recorrida (…), como resulta da matéria de facto dada como provada, o sinistro foi regularizado no âmbito convenção IDS pelo que é esta em primeira linha que responde pelo ressarcimento sem prejuízo do reembolso por parte da congénere, pelo que, apenas se a responsabilidade for atribuída à Recorrida (…) em primeira linha, e fora da IDS, é que a Recorrida (…) deixa de ter legitimidade passiva.

XXXIII. Aliás, nos presentes autos, a Recorrida (…) foi condenada no pagamento de um dos valores peticionados, o que implica que a mesma seja considerada parte legitima, pese embora esse valor no encontro de contas entre as recorridas seja imputado a final à Recorrida (…).

XXXIV. Resultou da factualidade dada como provada que a responsabilidade pela ocorrência do sinistro foi atribuída à condutora do outro veículo e que, apesar da solicitação da Recorrente, nos períodos de 19-09-2021 a 07-10-2021 e 23-10-2021 a 16-03-2022, não foi disponibilizada viatura de substituição à Autora nem pela 1ª Ré, nem pela 2ª Ré e que a viatura sinistrada tem um valor diário de aluguer de mercado de pelo menos € 300,00 (trezentos euros), teria o Tribunal a quo de condenar a Recorrida (…) ou, se assim não se entender, a Recorrida (…) no pagamento do valor peticionado pela Recorrente a título de privação de uso, ou em montante fixado de acordo com a equidade, tendo em consideração os contornos e factos dados como provados no caso concreto.

XXXV. Ao não condenar nenhuma das Recorridas no pagamento, o Tribunal a quo violou, pelo menos, o disposto nos artigos 566.º, n.º 3, 483.º, 563.º, 562.º, 566.º, 564.º e 1305.º do Código Civil, os quais devem ser interpretados no sentido de, no caso concreto, ser a Recorrente indemnizada pela privação de uso quer no valor peticionado ou noutro fixado com recurso à equidade.»

As conclusões do recurso interposto pela ré (…) são as seguintes:

«A) A condenação da 2ª Ré (…), aqui Recorrente, no pagamento de € 172,00, referentes aos 4 dias a mais que a Autora reteve o veículo não está correto, nem em conformidade com a prova produzida.

B) Efectivamente, a entrega do veículo de substituição que deveria ter ocorrido em 18/10/2021, só veio a ocorrer em 22/10/2021, por iniciativa e exclusiva responsabilidade da Autora contra as indicações dadas pela 2ª Ré, aqui Recorrente. Por isso mesmo, a 2ª Ré não assumiu esses dias em excesso porque os não autorizou.

C) A nosso ver, salvo o devido respeito e melhor opinião, mal andou o Tribunal a quo, ao considerar que foi a 2ª Ré que deu indicações à Autora nesse sentido; sendo certo que, de resto nenhuma prova existe neste sentido, em que o Tribunal se possa basear.

D) De facto, a 2ª Ré não deu indicação nesse sentido à Autora, pelo contrário, foi esta que por sua iniciativa ou de (…), manteve o veículo de substituição para além do período contratado pela 2ª Ré, junto da empresa de aluguer, como resulta dos factos provados 20 e 22.

E) Sendo certo que, o período de utilização até 18/10/2021, teve em consideração, o exposto no artigo 42.º, n.º 6, do D.L. n.º 291/2007, de 21 de Agosto.

F) De facto, ao referir a Sentença do Tribunal a quo que “foi por indicação da 2ª Ré que a entrega do veículo foi a 22/10/2021 e não a 18/10/2021”, está a própria Sentença do Tribunal a quo a ir contra os factos provados 20 e 22.

G) Actuando a (…), aqui 2ª Ré, por conta da 1ª Ré, (…), ao abrigo do Protocolo IDS a sua actuação deverá corresponder às normas do DL 291/2007. Logo,

H) Nos termos do artigo 42.º, n.º 6, do D.L. 291/2007, “Sempre que a reparação seja efetuada em oficina indicada pelo lesado, a empresa de seguros disponibiliza o veículo de substituição pelo período estritamente necessário à reparação, tal como indicado no relatório de peritagem”, no caso até 18/02/2021.

I) Existindo uma contradição na Sentença de que ora se recorre, que deverá ser corrigida por esse Venerando Tribunal com efeito.

Apesar de na motivação da Sentença o Tribunal a quo “A oficina onde foi realizada a reparação foi escolhida pela Autora”), levou este facto à matéria ao ponto 4 dos factos não provados quando este ponto 4 deveria constar dos factos provados.

J) Conforme afirmado pela testemunha (…) a minutos 34:47 a 35:49; (…) minutos 11:57 a 12:58 e (…) de minutos 07:22 a 09:48, do seu depoimento. Sendo que esta última adiantou que, devido ao facto de ser um carro raro em Portugal (Aston Martin) não havia oficina convencionada (cfr. depoimento desta testemunha … a minutos 07:22 a 07:53).

Donde,

L) Mal andou o Tribunal a quo ao considerar que por não haver oficina convencionada significa que a 2ª Ré (…) “… Teria sido facilitada, no mínimo, até mesmo apoiada pela seguradora”. Quando,

M) Efectivamente, tal indica o contrário: se não existe oficina convencionada com a 2ª Ré, significa, isso mesmo, que esta não tinha qualquer oficina para sugerir. Tendo sido por isso mesmo a Autora a escolher uma oficina que representasse a marca em Portugal (Oficina …, em Cascais), para onde de resto o veículo foi logo rebocado (facto provado 16).

N) Donde, não tem qualquer fundamento a afirmação do Tribunal a quo quando refere: “Todavia, o Tribunal entende que a oficina não foi livremente escolhida pela cliente e lesada, a aqui Autora, uma vez que não havia oficina convencionada com a Seguradora por se tratar de um carro raro”. Ora tal facto de não haver oficina convencionada com a 2ª Ré só por si já significa que esta 2ª Ré não tinha oficina para sugerir e assim sendo não existem elementos que, nos autos permitam concluir que a oficina não foi escolhida pela Autora.

Aliás, o facto da testemunha (…) afirmar, a minutos 07:22 a 07:53 do seu depoimento, que não havia oficina convencionada com a 2ª Ré, significa, ao contrário, do que entendeu o Tribunal a quo, que não existe à partida nenhuma oficina, sequer, para a 2ª Ré recomendar à Autora.

O) Igualmente não é correcto o que se afirma na Sentença do Tribunal a quo, ao dizer que não existindo oficina convencionada anula a intenção da livre escolha da Autora. Sendo certo que, de forma nenhuma se pode concluir daí que a oficina não foi escolhida pela Autora, porque esta poderia ter optado pela marca, ou por outra qualquer que entendesse. Não sendo legítimo daí concluir, como o faz a Sentença do Tribunal a quo, que foi a 2ª Ré e a 1ª Ré indiretamente que promoveram a oficina, quando, ainda por cima, afirma na motivação da sua Sentença que o veiculo foi transportado para a oficina escolhida pela Autora.

P) Deste modo, o facto não provado 4 deverá ser dado como provado.

Q) Ao referir a Sentença do Tribunal a quo que “foi por indicação da 2ª Ré que a entrega do veículo foi a 22/10/2021 e não a 18/10/2021”, está a própria Sentença do Tribunal a quo a ir contra os factos provados 20 e 22.

R) Inexistindo deste modo qualquer responsabilidade da recorrente no pagamento da quantia de € 172,00, acrescido de juros, ao contrário do que consta a parte da Sentença do Tribunal a quo, de que ora se recorre.»

Ambos os recursos foram admitidos, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

As questões a resolver são as seguintes:

1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

2 – Se a autora tem direito a ser reembolsada, pela ré (…), da quantia que pagou pelo tempo de utilização do veículo de substituição contra a vontade desta;

3 – Se a autora tem direito a ser indemnizada por não ter podido usar o seu veículo durante o período que mediou entre o acidente e a reparação, por quem e em que montante.

Os factos julgados provados na sentença recorrida são os seguintes:

«1. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica às atividades de construção e reparação de embarcações metálicas, aluguer de máquinas e equipamentos para a indústria, construção e engenharia civil, montagem, aluguer e venda de andaimes;

2. As 1ª Ré e 2ª Ré são sociedades comerciais que se dedicam à atividade seguradora;

3. A Autora é proprietária do veículo com a matrícula (…), de marca Aston Martin e modelo Vantage, desde abril de 2021;

4. No dia 19-09-2021 a viatura referida quando circulava na Nacional 10, (…), Quinta do Conde, sentido (…), sofreu um acidente de viação;

5. O qual foi causado pelo veículo com a matrícula (…) de marca Citroen, modelo C1, que embateu na traseira do veículo (…);

6. A viatura com a matrícula (…) era tripulada por (…);

7. A viatura com a matrícula (…) era tripulada por (…);

8. A Autora celebrou com a 2ª Ré o contrato de seguro de responsabilidade civil do seu veículo com a matrícula (…), apólice (…), estando válido à data do sinistro;

9. A responsabilidade civil por danos decorrentes da utilização do veículo com a matrícula (…) foi transferida para a 1ª Ré mediante contrato de seguro celebrado por (…), na qualidade de tomador, apólice (…), válido à data do sinistro;

10. Ambos os condutores subscreveram a declaração amigável de acidente de viação;

11. Tendo o acidente sido participado às seguradoras de ambos os veículos, respetivamente;

12. As companhias de seguros entenderam que o sinistro reunia os pressupostos para ser regularizado no âmbito da Convenção IDS (indemnização direta ao segurado), doravante CIDS;

13. Na sequência, a 2ª Ré por ofício datado de 19-10-2021 comunicou à Autora que: “Concluímos que a responsabilidade do acidente é do condutor do veículo terceiro”;

14. A responsabilidade pelo sinistro foi atribuída à condutora do veículo com a matrícula (…), segurado pela 1ª Ré;

15. Atentos os danos sofridos no sinistro, a viatura da Autora ficou sem condições de circulação na via pública;

16. Na sequência, foi rebocado para a oficina (…), em Cascais (Estrada da …), representante da marca da viatura da Autora com a matrícula (…);

17. Nessa oficina foi realizada a peritagem;

18. Sucede que, segundo informação da oficina, atento o veículo ser de gama alta, não existiam peças de imediato para proceder à reparação;

19. Sendo que, a Autora, por indicação da 2ª Ré e da empresa que procedeu ao aluguer da viatura de substituição, teve de entregar a mesma no dia 22-10-2021, mas teve de pagar o aluguer correspondente a 4 dias de € 172,20 (cento e setenta e dois euros e vinte cêntimos) desse período compreendido até 22.10.2021, correspondentes a € 43,05/dia, dado que a 2ª Ré apenas suportou parte do custo do aluguer, sendo que a viatura disponibilizada foi um mero utilitário nada coincidente com as características do veículo da Autora;

20. Segundo informou a empresa que procedeu ao aluguer, a 2ª Ré deu ordens expressas que a Autora tinha de entregar a viatura, correspondendo os 4 dias pagos à ultrapassagem da data imposta para a entrega por parte da 2ª Ré;

21. Antes do sinistro o veículo da Autora estava em condições de circulação;

22. A 2ª Ré solicitou a entrega da viatura de substituição com o argumento de que apenas seria disponibilizada a viatura pelo tempo da reparação e quando esta estivesse em reparação;

23. As peças em falta eram essenciais para que a viatura da Autora pudesse circular;

24. Só em 16-03-2022 a 2ª Ré comunicou à Autora que a reparação tinha sido concluída;

25. Nesse mesmo dia, a Autora foi contatada pela oficina a indicar que a viatura estava reparada e pronta para levantamento;

26. Nos períodos de 19-09-2021 a 07-10-2021 e 23-10-2021 a 16-03-2022, não foi disponibilizada viatura de substituição à Autora nem pela 1ª, nem pela 2ª Rés;

27. Tal veículo pelas suas características tem o valor de mercado para aluguer de pelo menos € 300,00 (trezentos euros) diários, quer em 2021, quer em 2022;

28. O preço indicado por empresa especializada para aluguer de viatura de gama equivalente foi de € 23.990,00 (vinte e três mil e novecentos e noventa euros) pelo período de 90 dias, o que equivale a € 266,56 (duzentos e sessenta e seis euros e cinquenta e seis cêntimos) por dia, mas limitado a 6.000 quilómetros e cada quilómetro extra € 3,00 (três euros);

29. O valor de aluguer diário indicado de uma viatura com caraterísticas semelhantes tem incluídos impostos e margem de lucro;

30. A resolução do referido sinistro foi realizada no âmbito da Convenção IDS, tendo a 1ª Ré (…) liquidado à 2ª Ré, a (…), a quantia por esta peticionada a título danos patrimoniais decorrentes do referido sinistro;

31. A (…) – Companhia de Seguros, S.A., não acompanhou o processo de averiguação dos danos do veículo, nem o posterior acompanhamento dado à Autora, não tendo tido qualquer contacto com a Autora;

32. O processo de averiguação dos danos do veículo da Autora foi exclusivamente conduzido pela (…), aqui 2ª Ré, ao abrigo do Protocolo IDS;

33. Bem como determinou o tempo necessário à sua reparação;

34. (…) renunciou à gerência da Autora em 11 de março de 2015;

35. O veículo sinistrado é usado por (…);

36. A gerência da Autora, durante o alegado período em que a viatura sinistrada esteve na oficina a aguardar pelas peças e pela reparação, dispôs de outro veículo automóvel para efetuar as suas deslocações ao serviço da Autora;

37. A Autora foi contactado pela Ré (…), a 04/10/2021, para marcação de peritagem para verificação de danos a 06/10/2021, sendo que neste período se sucederam as várias deslocações à oficina;

38. A viatura de substituição foi disponibilizada entre 08.10.2021 e 22.10.2021, data da entrega da mesma após prorrogação autorizada pela referida empresa e pela 2ª Ré, a (…), para o período verificado depois de 18.10.2021, sendo que os custos depois desta data foram suportados pela Autora;

39. O veículo atribuído foi aceite pela Autora, já que inexistem veículos disponíveis com as características do veículo da Autora;

40. Todas as deslocações feitas à oficina, e acompanhamento efetuado pela 2ª Ré, bem como a cedência de veículo de substituição, foi no âmbito do regime da IDS;

41. No âmbito desta convenção IDS (Indemnização Direta ao Segurado), a regularização dos danos sendo efetuada pela 2ª Ré, (…), junto da Autora, sua segurada, foi posteriormente reembolsada pela congénere, a 1ª Ré, pelo custo do sinistro, uma vez que no âmbito desta convenção do IDS e sendo o segurado da 1ª Ré quem responde pelos custos do mesmo, sendo que a (…) apenas assumiu a gestão do sinistro como credora da 1ª Ré;

42. Autora é proprietária de um outro veículo;

43. Ao abrigo da apólice n.º (…) que garante o veículo (…), não estava a vigorar à data da ocorrência do sinistro qualquer cobertura facultativa de choque, colisão e capotamento.»

Os factos julgados não provados na sentença recorrida são os seguintes:

«1. O veículo em causa é usado pela gerência da Autora nas suas deslocações ao serviço da Autora;

2. Uso esse que a Autora não pode dar enquanto o veículo esteve imobilizado;

3. A Autora dava um uso diário à viatura;

4. A oficina onde foi realizada a reparação foi escolhida pela Autora;

5. O período de tempo referido no facto provado 39 correspondente ao prazo de reparação da viatura da Autora».


*


1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

1.1. A finalidade da anulação da sentença anteriormente proferida pelo tribunal a quo foi a eliminação de obscuridades e contradições relativas às datas da disponibilização de um veículo de substituição à autora. O tribunal a quo fê-lo, mas foi mais além, eliminando indevidamente uma parte do ponto 17 e a totalidade do ponto 24 do enunciado dos factos provados (EFP). Concretamente, foi eliminada, do EFP, a seguinte matéria de facto, que transcende a questão das datas da disponibilização de um veículo de substituição à autora: i) apesar das diversas insistências da autora, a ré (…) apenas disponibilizou viatura de substituição no dia (…); ii) a autora diligenciou junto da ré (…) para que a viatura de substituição fosse facultada, no entanto, a disponibilização foi negada.

Ao proceder nos termos descritos, o tribunal a quo violou o disposto no n.º 1 do artigo 613.º do CPC. Tomada uma decisão sobre aquela matéria de facto, acerca da qual o tribunal ad quem nada determinou, o poder jurisdicional do tribunal a quo encontrava-se esgotado, não lhe sendo permitido introduzir-lhe qualquer alteração. Consequentemente, a sentença recorrida é nula nessa parte, por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC.

Assiste, pois, razão à autora ao insurgir-se contra o descrito procedimento do tribunal a quo. Todavia, o fundamento indicado pela autora não é exacto, pois a violação foi do princípio do esgotamento do poder jurisdicional e não do caso julgado.

Esta nulidade da sentença é suprível pelo tribunal ad quem, nos termos do n.º 1 do artigo 665.º do CPC. Tal suprimento deverá consubstanciar-se na repristinação do ponto 24 e da parte indevidamente suprimida do ponto 17 do EFP. Daí resultará a reposição da numeração do EFP constante da sentença anulada e, consequentemente, a sanação do lapso de escrita constante do ponto 5 do enunciado dos factos não provados (EFNP), apontado pela autora.

1.2. A autora pretende que os pontos 1 a 3 do EFNP passem a integrar o EFP e que os pontos 35 e 36 do EFP passem a integrar o EFNP.

Está em causa a seguinte matéria de facto:

EFP:

35. O veículo sinistrado é usado por (…);

36. A gerência da autora, durante o alegado período em que a viatura sinistrada esteve na oficina a aguardar pelas peças e pela reparação, dispôs de outro veículo automóvel para efectuar as suas deslocações ao serviço da autora;

EFNP:

1. O veículo em causa é usado pela gerência da autora nas suas deslocações ao serviço da autora;

2. Uso esse que a autora não pode dar enquanto o veículo esteve imobilizado;

3. A autora dava um uso diário à viatura.

O tribunal a quo formou a sua convicção sobre esta matéria de facto com base no depoimento prestado pela testemunha … e no teor da declaração amigável de acidente de viação. A autora argumenta que o tribunal a quo valorou mal estes meios de prova.

A declaração amigável de acidente de viação é irrelevante para a prova da matéria de facto em questão. A esse respeito, escreveu-se na sentença recorrida o seguinte: «(…) acresce o que está escrito na declaração amigável assinada pelos condutores junta com a petição inicial quando se lê que (…) é gerente da (…) – Montagem de Andaimes, Lda., o que é indicador de que seja gerente de facto ou com funções de elevada responsabilidade representativa na e da Autora.» Independentemente do acerto desta última conclusão, não alcançamos em que medida a mesma possa influir no julgamento daquela matéria de facto, nem a sentença recorrida o esclarece.

Interessa, sim, o depoimento prestado pela testemunha (…). Relativamente à matéria de facto constante dos pontos 35 e 36 do EFP e dos pontos 1 a 3 do EFNP, esta testemunha afirmou, sinteticamente, o seguinte:

- Na data em que o acidente ocorreu, a testemunha não era sócia, gerente ou empregada da autora, embora auxiliasse a gerente desta, com quem vivia e continua a viver em união de facto;

- A testemunha não era, nem é, proprietária de qualquer veículo automóvel;

- A testemunha não tinha, nem tem, um veículo automóvel afecto ao seu uso exclusivo;

- A testemunha utilizava pontualmente o veículo que interveio no acidente, à semelhança do que fazia com os outros quatro veículos da autora;

- A gerente da autora utilizava diariamente o veículo que interveio no acidente, nomeadamente para ir a eventos e reuniões;

- Durante o período de imobilização do veículo que interveio no acidente, a gerente da autora deixou de fazer algumas deslocações e de participar em alguns eventos importantes, tendo ainda atrasado reuniões;

- Um dos outros quatro veículos da autora é da marca «Tesla» e «estava imobilizado»;

- Dois dos outros veículos da autora são da marca «Mercedes», têm 9 lugares e são usados para transportar pessoal que andava nas obras;

- O restante veículo da autora destina-se ao transporte de mercadorias.

No que concerne à questão de saber quem utilizava o veículo que interveio no acidente (…), aquilo que resulta do depoimento da testemunha (…) é que tanto ele como a gerente da autora o faziam. O uso do (…) por um deles não exclui o seu uso pelo outro. Vivendo a testemunha (…) em união de facto com a gerente da autora, é até muito natural que ambos o utilizassem. Sendo assim, o ponto 35 do EFP deverá manter-se, mas os pontos 1 e 3 do EFNP, que também têm correspondência com a realidade, retratando uma parte desta, deverão transitar para o EFP.

Logicamente, também o ponto 2 do EFNP deverá transitar para o EFP. Sendo a gerente da autora um dos utilizadores do (…), necessariamente deixou de o poder fazer enquanto o mesmo esteve imobilizado, ou seja, desde a data do acidente até à da reparação.

Resta o ponto 36 do EFP. A afirmação, feita pela testemunha (…), de que o veículo da marca «Tesla» se encontrava imobilizado é enigmática. Imobilizado porquê e durante quanto tempo? Não sabemos. Sendo assim, não há fundamento para concluir que a autora não o pudesse utilizar, nomeadamente para o transporte da sua gerente. Acresce que a autora tinha mais dois veículos de transporte de pessoas, que poderiam ser utilizados com a finalidade referida no ponto 36. Sendo assim, também este último deverá permanecer no EFP.

1.3. A ré (…) pretende que o ponto 4 do EFNP passe a integrar o EFP, invocando, como fundamento, os depoimentos das testemunhas (…), (…) e (…).

A ré (…) tem razão. Em face dos depoimentos das testemunhas (…) e (…), é seguro que o (…) não foi reparado numa oficina para a qual aquela ré (ou a co-ré) o tenha encaminhado. Ambas as referidas testemunhas afirmaram, de forma sustentada, que a oficina que efectuou a reparação foi escolhida pela autora, como não poderia deixar de ser atendendo a que, devido à escassez de veículos da marca do … (Aston Martin) em Portugal, não havia oficina para o efeito convencionada com a ré …. Consequentemente o ponto 4 do EFNP deverá passar a integrar o EFP.

1.4. Em conformidade com o exposto em 1.1, 1.2 e 1.3, determina-se que o EFP passe a ser o seguinte:

1. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica às atividades de construção e reparação de embarcações metálicas, aluguer de máquinas e equipamentos para a indústria, construção e engenharia civil, montagem, aluguer e venda de andaimes.

2. As 1ª e 2ª Rés são sociedades comerciais que se dedicam à atividade seguradora.

3. A Autora é proprietária do veículo com a matrícula (…), de marca Aston Martin e modelo Vantage, desde abril de 2021.

4. No dia 19-09-2021 a viatura referida quando circulava na Nacional 10, (…), Quinta do Conde, sentido (…), sofreu um acidente de viação.

5. O qual foi causado pelo veículo com a matrícula (…), de marca Citroen, modelo C1, que embateu na traseira do veículo (…).

6. A viatura com a matrícula (…) era tripulada por (…).

7. A viatura com a matrícula (…) era tripulada por (…).

8. A Autora celebrou com a 2ª Ré o contrato de seguro de responsabilidade civil do seu veículo com a matrícula (…), apólice (…), estando válido à data do sinistro.

9. A responsabilidade civil por danos decorrentes da utilização do veículo com a matrícula (…) foi transferida para a 1ª Ré mediante contrato de seguro celebrado por (…), na qualidade de tomador, apólice (…), válido à data do sinistro.

10. Ambos os condutores subscreveram a declaração amigável de acidente de viação.

11. Tendo o acidente sido participado às seguradoras de ambos os veículos, respetivamente.

12. As companhias de seguros entenderam que o sinistro reunia os pressupostos para ser regularizado no âmbito da Convenção IDS (indemnização direta ao segurado), doravante CIDS.

13. Na sequência, a 2ª Ré, por ofício datado de 19-10-2021, comunicou à Autora que: “Concluímos que a responsabilidade do acidente é do condutor do veículo terceiro”.

14. A responsabilidade pelo sinistro foi atribuída à condutora do veículo com a matrícula (…), segurado pela 1ª Ré.

15. Atentos os danos sofridos no sinistro, a viatura da Autora ficou sem condições de circulação na via pública.

16. Na sequência, foi rebocado para a oficina (…), em Cascais (Estrada da …), representante da marca da viatura da Aurora com a matrícula (…).

17. Nessa oficina foi realizada a peritagem; apesar das diversas insistências da autora, a 2ª Ré apenas disponibilizou viatura de substituição no dia 08.10.2021.

18. Sucede que, segundo informação da oficina, atento o veículo ser de gama alta, não existiam peças de imediato para proceder à reparação.

19. Sendo que, a Autora, por indicação da 2ª Ré e da empresa que procedeu ao aluguer da viatura de substituição, teve de entregar a mesma no dia 22-10-2021, mas teve de pagar o aluguer correspondente a 4 dias de € 172,20 (cento e setenta e dois euros e vinte cêntimos) desse período compreendido até 22.10.2021, correspondentes a € 43,05/dia, dado que a 2ª Ré apenas suportou parte do custo do aluguer, sendo que a viatura disponibilizada foi um mero utilitário nada coincidente com as características do veículo da Autora.

20. Segundo informou a empresa que procedeu ao aluguer, a 2ª Ré deu ordens expressas que a Autora tinha de entregar a viatura, correspondendo os 4 dias pagos à ultrapassagem da data imposta para a entrega por parte da 2ª Ré.

21. Antes do sinistro o veículo da Autora estava em condições de circulação.

22. A 2ª Ré solicitou a entrega da viatura de substituição com o argumento de que apenas seria disponibilizada a viatura pelo tempo da reparação e quando esta estivesse em reparação.

23. As peças em falta eram essenciais para que a viatura da Autora pudesse circular.

24. A Autora diligenciou junto da 2ª Ré para que a viatura de substituição fosse facultada, no entanto, a disponibilização foi negada.

25. Só em 16-03-2022 a 2ª Ré comunicou à Autora que a reparação tinha sido concluída.

26. Nesse mesmo dia, a Autora foi contactada pela oficina a indicar que a viatura estava reparada e pronta para levantamento.

27. Nos períodos de 19-09-2021 a 07-10-2021 e 23-10-2021 a 16-03-2022, não foi disponibilizada viatura de substituição à Autora nem pela 1ª, nem pela 2ª Rés.

28. Tal veículo pelas suas características tem o valor de mercado para aluguer de pelo menos € 300,00 (trezentos euros) diários, quer em 2021 quer em 2022.

29. O preço indicado por empresa especializada para aluguer de viatura de gama equivalente foi de € 23.990,00 (vinte e três mil e novecentos e noventa euros) pelo período de 90 dias, o que equivale a € 266,56 (duzentos e sessenta e seis euros e cinquenta e seis cêntimos) por dia, mas limitado a 6.000 quilómetros e cada quilómetro extra € 3,00 (três euros).

30. O valor de aluguer diário indicado de uma viatura com caraterísticas semelhantes tem incluídos impostos e margem de lucro.

31. A resolução do referido sinistro foi realizada no âmbito da Convenção IDS, tendo a 1ª Ré (…) liquidado à 2ª Ré, a (…), a quantia por esta peticionada a título danos patrimoniais decorrentes do referido sinistro.

32. A (…) – Companhia de Seguros, S.A. não acompanhou o processo de averiguação dos danos do veículo, nem o posterior acompanhamento dado à Autora, não tendo tido qualquer contacto com a Autora.

33. O processo de averiguação dos danos do veículo da Autora foi exclusivamente conduzido pela (…), aqui 2ª Ré, ao abrigo do Protocolo IDS.

34. Bem como determinou o tempo necessário à sua reparação.

35. (…) renunciou à gerência da Autora em 11 de março de 2015.

36. O veículo sinistrado é usado por (…).

37. A gerência da Autora, durante o alegado período em que a viatura sinistrada esteve na oficina a aguardar pelas peças e pela reparação, dispôs de outro veículo automóvel para efetuar as suas deslocações ao serviço da Autora.

38. A Autora foi contactado pela Ré, (…), a 04/10/2021, para marcação de peritagem para verificação de danos a 06/10/2021, sendo que neste período se sucederam as várias deslocações à oficina.

39. A viatura de substituição foi disponibilizada entre 08.10.2021 e 22.10.2021, data da entrega da mesma após prorrogação autorizada pela referida empresa e pela 2ª Ré, a (…), para o período verificado depois de 18.10.2021, sendo que os custos depois desta data foram suportados pela Autora.

40. O veículo atribuído foi aceite pela Autora, já que inexistem veículos disponíveis com as características do veículo da Autora.

41. Todas as deslocações feitas à oficina, e acompanhamento efetuado pela 2ª Ré, bem como a cedência de veículo de substituição, foi no âmbito do regime da IDS.

42. No âmbito desta convenção IDS (Indemnização Direta ao Segurado), a regularização dos danos sendo efetuada pela 2ª Ré, (…), junto da Autora, sua segurada, foi posteriormente reembolsada pela congénere, a 1ª Ré, pelo custo do sinistro, uma vez que no âmbito desta convenção do IDS e sendo o segurado da 1ª Ré quem responde pelos custos do mesmo, sendo que a (…) apenas assumiu a gestão do sinistro como credora da 1ª Ré.

43. A Autora é proprietária de um outro veículo.

44. Ao abrigo da apólice n.º (…) que garante o veículo (…), não estava a vigorar à data da ocorrência do sinistro qualquer cobertura facultativa de choque, colisão e capotamento.

45. O veículo (…) é usado pela gerência da Autora nas suas deslocações ao serviço desta.

46. Uso esse que a Autora não pôde dar enquanto o veículo esteve imobilizado.

47. A Autora dava um uso diário ao veículo (…).

48. A oficina onde foi realizada a reparação foi escolhida pela Autora.

Permanecendo no EFNP apenas a seguinte matéria:

1. O período de tempo referido no facto provado 39 correspondente ao prazo de reparação da viatura da Autora.

2 – Se a autora tem direito a ser reembolsada, pela ré (…), da quantia que pagou pelo tempo de utilização do veículo de substituição contra a vontade desta:

O n.º 6 do artigo 42.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.08, estabelece que, quando a reparação for efectuada em oficina indicada pelo lesado, a empresa de seguros é obrigada a disponibilizar veículo de substituição pelo período estritamente necessário à reparação tal como indicado no relatório da peritagem.

Como vimos em 1.3, o (…) foi reparado na oficina que a autora escolheu. Nenhuma das partes põe em causa que, de acordo com o relatório da peritagem, o tempo estritamente necessário para proceder à reparação não excedia aquele em que a ré (…) proporcionou um veículo de substituição à autora. Sendo assim, a ré (…) não era obrigada a continuar a fazê-lo após 18.10.2021 e, logicamente, não tinha de pagar o aluguer correspondente aos quatro dias seguintes, em que a autora reteve indevidamente o veículo de substituição.

Resulta do exposto que a autora não tem direito ao reembolso, pela ré (…), da quantia que pagou pelo tempo de utilização do veículo de substituição contra a vontade desta. Procede, assim, o recurso subordinado, devendo a sentença recorrida ser revogada nesta parte.

3 – Se a autora tem direito a ser indemnizada por não ter podido usar o seu veículo durante o período que mediou entre o acidente e a reparação, por quem e em que montante:

3.1. Resulta do EFP que o (…) pertencia à autora e era utilizado, embora não exclusivamente, pela gerente desta para se deslocar no exercício das suas funções. Durante o tempo de imobilização do veículo, tal utilização não foi possível. Coloca-se a questão de saber se a autora tem direito a ser indemnizada por tal privação da possibilidade utilizar o seu veículo.

A questão de saber quais são os pressupostos do direito à indemnização pela privação do uso de uma coisa por quem a tanto tem direito, maxime pelo seu proprietário, vem suscitando divergências na jurisprudência e na doutrina.

Deparamo-nos, fundamentalmente, com três teses:

1 – A ressarcibilidade do dano da privação do uso depende da alegação e prova da frustração de um concreto propósito do proprietário de utilizar a coisa, directamente ou cedendo o seu gozo mediante um contrato já projectado nos seus elementos essenciais;

2 – O dano da privação do uso constitui um dano autónomo, não dependendo o seu ressarcimento da alegação e prova do propósito referido em 1; basta, para tanto, que o proprietário se veja privado do gozo da coisa em consequência de acto ilícito e culposo de terceiro;

3 – O dano da privação do uso depende da alegação e prova de um genérico propósito de utilizar a coisa, directamente ou mediante a cedência onerosa do seu gozo a terceiro; a prova desse propósito pode decorrer «de presunções naturais ou judiciais a retirar pelas instâncias da factualidade envolvente»[1].

A questão da ressarcibilidade do dano decorrente da privação do uso é complexa. Desde logo, a sua própria formulação não será, porventura, a mais rigorosa, pois aquilo que verdadeiramente está em discussão é a ressarcibilidade do dano decorrente da privação da possibilidade de uso da coisa pelo seu proprietário. Assim se coloca o ponto de partida da discussão a montante daquele a que a habitual formulação da questão convida, o que poderá proporcionar uma discussão mais ampla e rigorosa. Nomeadamente, evitar-se-á a tentação de deduzir a solução da mera referência, no habitual enunciado da questão, da privação ao uso e não à possibilidade de uso.

A primeira das teses que enunciámos é de afastar, porquanto se mostra inadequada para uma justa composição dos interesses em jogo, uma vez que coloca uma verdadeira probatio diabolica a cargo do lesado. Carece de justificação razoável que, a pretexto da existência de situações, seguramente excepcionais, em que é seguro que o proprietário não pretende utilizar nem rentabilizar a coisa durante o período em que dela ficou privado, se exija, em todos os casos, que o proprietário prove a existência de um concreto propósito de utilização ou rentabilização da coisa, deixando, assim, inúmeras situações lesivas destituídas de tutela por efeito de um standard de prova demasiadamente exigente.

As duas restantes teses que enunciámos conduzem, na grande maioria das hipóteses, a resultados semelhantes. Tal decorre da circunstância de, em princípio, o proprietário de uma coisa ter o propósito de exercer os seus poderes de gozo sobre ela, com maior ou menor intensidade e/ou frequência, ou, em alternativa, de a rentabilizar, cedendo esse gozo a terceiro mediante retribuição. Admitindo os partidários da terceira tese que a prova desse propósito se faça com apelo a presunções naturais ou judiciais, o resultado prático acaba por ser a exclusão da ressarcibilidade do dano da privação da possibilidade de uso apenas quando fique demonstrado que o proprietário não pretendia ou não podia, de todo, retirar qualquer utilidade da coisa durante o período em que dela esteve privado, o que acontecerá num número contado de casos.

No caso dos autos, está provado que a autora utilizava o (…) e que, entre a data do acidente (19-09-2021) e a da reparação (16.03.2022), ela ficou privada da possibilidade de o fazer. Entre os dias 08.10.2021 e 18.10.2021, a autora beneficiou gratuitamente de uma viatura de substituição, o que compensou a falta do (…). Porém, de 19.09.2021 a 07.10.2021 e de 19.10.2021 a 16.03.2022, a autora ficou, efectivamente, com menos um veículo à sua disposição. Entre 19.10.2021 e 22.10.2021, a autora dispôs de um veículo de substituição, mas teve de pagar o custo do seu aluguer, pelo que sofreu o dano correspondente.

Apesar de a autora ser proprietária de outros veículos, deve presumir-se, à luz das regras da experiência comum, que a privação da possibilidade de uso do (…) lhe causou constrangimentos qualificáveis como danos para o efeito previsto no n.º 1 do artigo 483.º do CC e, como tal, indemnizáveis. Com efeito, tendo a autora comprado cinco veículos automóveis, com características diversificadas, para acudir a um conjunto de necessidades, e suportando os respectivos encargos, é de presumir que todos eles fossem necessários para o exercício da actividade económica que constitui o seu objecto. Logo, a falta de qualquer deles causará, presumivelmente, os referidos constrangimentos.

Argumentar que, tendo a autora outros veículos ao seu serviço, a falta do (…) é insusceptível de lhe causar danos, é ignorar a realidade de uma empresa que tem de providenciar pelo transporte da sua gerente, dos seus trabalhadores e de materiais, o que envolve, necessariamente, a utilização de diversos veículos. Partindo-se, como se deve partir, do princípio de que a autora necessita de todos os veículos que tem ao seu serviço, a falta de qualquer deles terá, necessariamente, consequências negativas no desenvolvimento da sua actividade.

Assim concluímos que a autora sofreu um dano em consequência de não ter podido utilizar, nem o (…), nem uma viatura de substituição que lhe fosse proporcionada sem contrapartida pecuniária, durante 168 dias. Tem, pois, direito a ser indemnizada por esse dano, nos termos dos artigos 483.º, n.º 1, e 562.º e seguintes do CC.

3.2. A responsabilidade pelo ressarcimento do dano decorrente da privação da possibilidade de uso do (…) durante o período que referimos recai sobre a ré (…), uma vez que era esta a seguradora do veículo cuja condutora causou o acidente, conforme o ponto 9 do EFP.

3.3. Resta quantificar a indemnização a que a autora tem direito.

A autora pretende que o cálculo dessa indemnização seja feito à razão de € 250,00 por dia, quantia esta fixada tendo em conta o valor do aluguer diário de um veículo igual ao (…). Trata-se, contudo, de um valor que não se harmoniza com o critério de equidade estabelecido na 2ª parte do n.º 3 do artigo 566.º do CC. O (…) é um veículo de luxo, sendo o valor diário do seu aluguer desproporcionado relativamente à utilidade que o seu uso representa para a autora e, logicamente, ao dano resultante da privação da possibilidade do seu uso.

Em vez do referido valor, manifestamente exorbitante, de € 250,00, parece-nos equilibrado um valor correspondente ao aluguer de um veículo de substituição idêntico àquele que foi temporariamente disponibilizado à autora e que serviu perfeitamente para satisfazer as necessidades desta, valor esse que é de € 43,05 por dia. Multiplicando € 43,05 por 168 dias, obtemos o resultado de € 7.232,40. É este o valor da indemnização que a autora tem direito a receber da ré (…), acrescido de juros de mora à taxa supletiva desde a citação até efectivo e integral pagamento. Nesta medida, deverá o recurso interposto pela autora proceder.


*


Dispositivo:

Pelo exposto, delibera-se:

- Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela autora, condenando-se a ré (…) – Companhia de Seguros, S.A. a pagar, àquela, uma indemnização no valor de € 7.232,40, acrescida de juros de mora, à taxa legal supletiva, desde a citação até efectivo e integral pagamento;

- Julgar totalmente procedente o recurso interposto pela ré (…) – Companhia de Seguros, S.A., absolvendo esta da totalidade do pedido contra si formulado pela autora.

As custas do recurso da autora são da responsabilidade desta e da ré (…) – Companhia de Seguros, S.A., na proporção do seu decaimento.

As custas do recurso da ré (…) – Companhia de Seguros, S.A. são da exclusiva responsabilidade da autora.

Notifique.


*


Sumário: (…)

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13.11.2025

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Mário João Canelas Brás (1º adjunto)

José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho (2º adjunto)

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[1] Acórdão do STJ de 26.05.2009 (Moreira Alves).