i) Ao interessado que, em sede de inventário sujeito à Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, tiver reclamado contra a relação de bens, por nesta pretender ver incluída a quantia resultante da venda de um imóvel dos inventariados, em vida destes, cabe alegar os factos – essenciais ou principais – determinantes da sujeição de tal quantia à colação.
ii) O princípio do inquisitório não significa que o juiz possa substituir-se às partes naquele dever de alegação.
(Sumário da Relatora)
II. FUNDAMENTOS
1. De facto
Os factos relevantes são os que constam do relatório que antecede e, ainda, os seguintes, que resultam da tramitação do processo principal (cfr. referências citius 94065342 e 94065326):
i) O processo iniciou-se em 2017, por requerimento de inventário dirigido a cartório notarial.
ii) Por despacho notarial de 10/08/2023 foi determinada a remessa do processo para o tribunal judicial, por estar “preenchido o pressuposto previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 12.º da Lei n.º 117/2019, de 13/09”.
2. Conhecimento das questões suscitadas no recurso
2.1 Da lei aplicável
Tendo o inventário em questão iniciado os seus termos na vigência da Lei n.º 23/2013, de 5 de março (de acordo com a qual, designadamente, passaram os cartórios notariais a ter competência exclusiva para efetuar os atos e termos do processo de inventário), importa, antes de mais e face à entrada em vigor – em 01/01/2020 – da Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro (que reintroduziu o processo de inventário no CPC), determinar a lei aplicável.
De acordo com o artigo 11.º, n.º 1, da Lei n.º 117/2019, esta aplica-se «aos processos iniciados a partir da data da sua entrada em vigor, bem como aos processos que, nessa data, estejam pendentes nos cartórios notariais mas sejam remetidos ao tribunal nos termos do disposto nos artigos 11.º a 13.º».
E, efetivamente, no caso dos autos a remessa do processo para o tribunal resultou do preenchimento do pressuposto previsto no artigo 12.º, n.º 2, alínea b), do mesmo diploma, ou seja, do facto de o inventário estar parado, sem realização de diligências úteis, há mais de seis meses.
Como tal, ao inventário em questão aplica-se o disposto na Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro.
2.2 Do indeferimento das diligências probatórias requeridas pelo interessado
Em causa está o indeferimento da realização de diligências probatórias requeridas pelo interessado tendo por objeto o produto da venda de um imóvel, levada a cabo em vida pelos inventariados.
O tribunal a quo indeferiu tais diligências por ter entendido que apenas devem integrar a relação de bens as quantias monetárias existentes à data do óbito dos inventariados, com exceção das situações em que haja sido invocada a existência de um crédito a favor da herança, subtraído sem autorização ou contra a vontade dos inventariados, o que não seria o caso.
Ora, se é certo que os bens da herança que hão-de figurar no inventário são, à partida, os que se encontravam na posse do inventariado ao tempo da sua morte[1], não é menos certo que esta regra encontra exceções, nomeadamente quando haja herdeiros legitimários e o falecido haja doado bens ou despendido gratuitamente de bens em proveito dos descendentes.
Efetivamente, «o respeito pela integridade das legítimas força à relacionação dos bens doados pelo inventariado sucedendo-lhe herdeiros legitimários, e isto quer as doações tenham sido feitas a estranhos quer a herdeiros a quem a lei outorga direito a legítima. Em ambos os casos é mister averiguar se subsiste inoficiosidade para, em caso afirmativo, proceder à revogação ou redução das doações […] No caso em referência, cumprirá, pois, relacionar as liberalidades feitas pelo inventariado a seus descendentes (artigo 2110.º-1), mesmo quando a colação seja dispensada ou quando a lei presume a dispensa (artigo 2113.º-1 e 3), casos em que serão imputadas na quota disponível do doador (artigo 2114.º-1)»[2].
Ou seja, o instituto invocado pelo Recorrente em sede recursal (colação) efetivamente poderia levar ao relacionamento de bens que não existissem na esfera dos inventariados à data do seu óbito.
Acontece que, para que tanto acontecesse, era mister que se mostrassem alegados os factos de que depende a colação, também para que a cabeça de casal quanto aos mesmos pudesse pronunciar-se (art. 1105.º, n.º 1, do CPC).
Na verdade, a tramitação do processo de inventário sofreu, com a Lei n.º 117/2019, uma alteração de paradigma, apostada em afastar o sistema anterior, que permitia grande liberdade de atuação às partes, num regime de «quase irresponsabilidade, atenta a falta generalizada de preclusões»[3]. Com tal escopo em mira, procedeu o legislador ao aumento do princípio da responsabilidade das partes nos atos processuais, o que «resulta, desde logo, na introdução das preclusões – até aqui quase inexistentes – “obrigando” assim as partes a conferir especial atenção a todas as questões que considerem relevantes no momento da apresentação dos seus articulados, sejam estes a petição do inventário ou a oposição»[4].
No que tange à oposição, este princípio mostra-se materializado não só na enunciação das faculdades que podem ser exercidas pelos interessados na oposição (artigo 1104.º, n.º 1, do CPC), como também na obrigatoriedade de indicação das provas no respetivo requerimento (artigo 1105.º, n.º 2, do CPC).
Volvendo ao caso dos autos, temos que o interessado, ora Recorrente, na oposição se limitou a relacionar a falta da quantia de € 95.000,00, indicando tratar-se do produto da venda de um imóvel pelos inventariados. E, se é certo que o interessado concretizou o negócio, demonstrando-o através da respetiva escritura pública, desta apenas resulta terem os inventariados procedido à venda – a terceiros – de um imóvel.
Nada referiu o interessado quanto ao motivo por que entendia dever dar-se o relacionamento de tal quantia. Fê-lo, apenas, em sede de recurso, referindo “Alegou o Recorrente que essa quantia foi para à posse da Cabeça de Casal sendo que não houve doação por conta da quota disponível”, o que, além do mais, não encontra reflexo no texto da oposição.
Ora, conforme se extrai, além do mais, do artigo 627.º do CPC, o tribunal de recurso aprecia recursos de decisões dos tribunais inferiores, ou seja, o tribunal de recurso não aprecia questões novas, a menos que sejam de conhecimento oficioso, o que não é manifestamente o caso. Está, como tal, excluída a possibilidade de se suscitar em recurso questões novas, sobre as quais não pôde debruçar-se a primeira instância, por não terem ali sido colocadas.
Efetivamente, o novo regime do processo de inventário reforçou os poderes inquisitórios do juiz, conforme se extrai do artigo 1105.º, n.º 3, do CPC, que permite a produção de prova determinada pelo juiz, à semelhança do que se mostra estatuído no artigo 411.º do CPC. Acontece que este poder não visa a substituição das partes pelo juiz no que tange ao ónus de alegação dos factos ínsitos ao direito que invocam (artigo 5.º, n.º 1, do CPC). O juiz poderá decidir a produção de prova para além da enunciada pelas partes, quanto a factos que se mostrem alegados. Mas não pode alegar pelas partes.
Por outras palavras, o juiz deverá providenciar pela obtenção da prova necessária à demonstração da sua convicção quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer e estes são: os factos principais alegados pelas partes, os factos instrumentais e os factos que sejam complementares ou concretizadores dos alegados pelas partes e os factos principais que, excecionalmente, a lei lhe permita conhecer oficiosamente (artigo 5.º do CPC).
No caso, porém, os factos não foram, de todo, alegados, pelo que não podia o tribunal a quo determinar a realização de diligências tendentes a provar o que só em sede de recurso viria a ser alegado.
2.3 Da inclusão da quantia de € 95.000,00 na relação de bens
O Recorrente pretende, igualmente, que esta Relação admita a quantia de € 95.000,00 no ativo da relação de bens.
Para o efeito, contudo, teria o interessado de ter alegado, na oposição, os factos que tornavam possível o relacionamento, o que como vimos, não fez, pois apenas em recurso invocou a possibilidade de tal quantia ter de ser sujeita a colação.
Resta, portanto, a constatação de que, em vida, os inventariados venderam um imóvel a terceiros, pelo preço de € 95.000,00, o que não justifica que tal quantia – inexistente à data do óbito – seja levada à relação de bens.
O Recorrente invocou, ainda, a nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC.
Para o efeito limitou-se a referir que o tribunal a quo deixou de se pronunciar sobre questão que deveria apreciar.
Se bem se compreende, pretendeu o Recorrente reportar-se ao facto de, na sequência do indeferimento das diligências probatórias, o tribunal a quo não ter apreciado se a quantia de € 95.000,00 deveria ou não ser sujeita a colação.
Ora, tendo o tribunal a quo excluído, à partida, aquela quantia do relacionamento de bens, não fazia sentido que se pronunciasse sobre qualquer outro aspeto à mesma atinente.
Assim, inexiste a invocada nulidade.
3. Custas
Custas pelo Recorrente, atento o decaimento (artigo 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC e tabela I-B do Regulamento das Custas Processuais).
III. DECISÃO
Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Évora, 13 de novembro de 2025
Sónia Kietzmann Lopes (Relatora)
Filipe Aveiro Marques (1º Adjunto)
António Fernando Marques da Silva (2º Adjunto)
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[1] Neste sentido, Lopes Cardoso, in “Partilhas Judiciais”, Volume I, Almedina, pág. 425.
[2] Lopes Cardoso, in ob. cit., nota de rodapé 1232.
[3] “Inventário: o novo regime”, e-book CEJ, maio de 2020, pág. 20 – disponível em https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=8LotKRQOhKg=&portalid=30
[4] “Inventário: o novo regime”, in ob. e local citados.