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FALTA DE CITAÇÃO
ANULADO O PROCESSO
DESPACHO INTERLOCUTÓRIO
Sumário
I – Mostra-se prejudicada a apreciação de solução jurídica defendida pelo apelante com fundamento em factos julgados não provados; II – Visando o recurso a anulação do processado posterior à petição inicial, designadamente da decisão final, em resultado da verificação de nulidade por falta da citação do réu, verifica-se que a impugnação da sentença se baseia em fundamento que lhe é extrínseco; III – A improcedência da impugnação de despacho interlocutório que julgara não verificada a invocada falta de citação do réu, com a consequente rejeição da pretendida anulação do processado, importa a improcedência do recurso interposto da sentença. (Sumário da Relatora)
Texto Integral
Processo n.º 472/24.8T8ELV.E1
Juízo Local Cível de Elvas
Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre
Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
1. Relatório
(…) intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra (…) e (…), pedindo: a) se decrete a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre autor e réu, relativo a parte do prédio que identifica; b) se condene os réus a procederem à entrega do locado ao autor, livre e devoluto de pessoas e bens, bem como a pagarem ao autor, a título de indemnização, valor mensal correspondente à renda, desde a resolução do contrato até à efetiva entrega do locado; c) se condene os réus a removerem todos os seus pertences do prédio rústico que identifica, bem como a pagarem ao autor o montante de € 6.000,00, a título de contrapartida pelo gozo do prédio rústico nos últimos cinco anos, e a quantia mensal de € 100,00, pela utilização desse prédio desde a citação até ao levantamento de todos os seus bens.
A justificar o pedido alega que, por contrato escrito celebrado em 01-05-1990, cedeu ao réu o gozo temporário, para habitação, de parte do prédio urbano que identifica, mediante o pagamento da quantia mensal de dez mil escudos, correspondente a € 90,00, tendo os réus passado a habitar no locado; acrescenta que os réus mantêm seis canídeos no interior da residência, que emana cheiro a fezes e a urina, e passaram a ocupar uma área exterior ao prédio, não incluída no contrato celebrado, na qual depositam resíduos vários e despejos domésticos, aí mantendo um canídeo que defeca e urina no local, sem que os réus procedam à limpeza diária do espaço, o que tem causado danos ao autor, como tudo melhor consta da petição inicial.
Citados, os réus não contestaram.
O réu veio aos autos, através de requerimento apresentado em 23-10-2024, pelo mesmo subscrito, invocar a incapacidade de facto da ré para ser citada e arguir a falta da sua própria citação; alegou, para o efeito, que as cartas enviadas para a citação de ambos foram recebidas pela ré, que é doente do foro psiquiátrico, tenho-as deitado para o lixo, só posteriormente tendo o réu obtido informação sobre o envio dessas cartas, de cujo teor não tem conhecimento; requer seja admitida a sua comparência na secretaria do Tribunal para ser citado, bem como que a correspondência relativa aos presentes autos lhe seja enviada para a morada que indica, correspondente ao domicílio de sua filha, tendo procedido à junção de um documento.
Notificado para se pronunciar, o autor pugnou no sentido da validade das citações efetuadas, tendo arrolado uma testemunha.
Por despacho de 29-01-2025, foi ordenada a notificação do réu para, no prazo de 10 dias, constituir mandatário judicial, sob pena de ficar sem efeito a defesa por si apresentada.
Em 25-02-2025, o réu juntou aos autos procuração forense.
Por despacho de 03-03-2025, considerou-se que o réu não tem legitimidade para invocar vícios relativos à citação da ré; mais se determinou a notificação do réu para, no prazo de oito dias, informar quando e como teve conhecimento do envio de missiva por parte do tribunal.
Notificado, o réu apresentou exposição em 06-03-2025.
Por despacho de 14-03-2025, decidiu-se o seguinte: Em face do exposto, julgo não verificada a nulidade do processado por falta de citação do Réu e, consequentemente, improcedente o presente incidente, julgando-se válida e regular a citação do Réu. Custas do incidente pelo Réu, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC. – cfr. artigo 7.º, n.º 4, do Regulamento das Custas Processuais e tabela II anexa. Registe e notifique.
De seguida, foi fixado o valor da causa e proferido despacho saneador, após o que se consideraram confessados os factos articulados pelo autor, com exceção daqueles relativamente aos quais a vontade das partes for ineficaz para produzir o efeito jurídico que pela ação se pretende obter e aqueles para cuja prova se exija documento escrito, tendo sido concedido aos mandatários das partes o prazo para alegações previsto no artigo 567.º, n.º 2, do CPC.
O autor e o réu apresentaram alegações escritas.
Por sentença de 06-05-2025, decidiu-se o seguinte: Pelo exposto, julgo parcialmente procedente, por parcialmente provada, a presente ação e, em consequência: 1. Declaro resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre o Autor e o Réu e, em consequência, condeno os Réus a entregarem o arrendado ao Autor, no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado da presente decisão, livre e desocupado de pessoas e bens. 2. Condeno os réus no pagamento de montante equivalente ao valor da renda mensal (€ 90,00) por cada mês de atraso na efetiva entrega do locado, caso não proceda à entrega do mesmo, livre de pessoas e bens, no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado da presente decisão. 3. Absolvem-se os Réus do demais peticionado. Custas pelo Autor e pelos Réus na proporção dos respetivos decaimentos, que se fixam em 69% para o primeiro de 31% para os segundos. Registe e notifique.
Inconformado, o réu interpôs recurso desta sentença, no qual impugnou o despacho 14-03-2025, na parte em que foi considerada não verificada a invocada nulidade por falta de citação do réu, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1. O apelante é inquilino habitacional do apelado, no que concerne a uma pobre, antiga e pequeníssima casa de habitação, a que se reportam os presentes autos.
2. O apelante é iletrado, assim como a sua esposa e ré nos autos em apreço, vivendo ambos de forma muito pobre.
3. O apelante (…) é pedreiro por conta de outrem e a sua esposa é e sempre foi, dama do lar.
4. Sucede que, por razões que a razão desconhece e que apenas Deus Pai sabe, a esposa do apelante começou a evidenciar sinais e comportamentos graves, do foro neurológico, motivados pelo seu apego aos animais e mais concretamente aos de raça canina, sem dono, chegando a fazer imensos quilómetros, a pé, todos os dias, para os alimentar.
5. No quadro deste hábito, a esposa do apelante começou a ficar senil e a maior parte das vezes falava horas a fio com os animais, na rua, tendo, depois, dificuldade para regressar para casa, esquecendo-se do trajecto percorrido.
6. Em virtude dessa sua patologia mental, a esposa do apelante começou por discutir e maltratar o seu marido, ameaçando-o de morte, assim como à sua filha, que é maior de idade, tornando verdadeiramente impossível a paz, a harmonia e a felicidade familiar.
7. Neste contexto e pese embora todos os esforços desenvolvidos pelo apelante e pela sua filha no sentido de que a ré (…) se tratasse, disponibilizando-se para tudo fazerem com vista a esse desiderato, esta revoltava-se, saia de casa, atirava com objectos do lar para o chão, partindo-os, recusando tratar-se e ameaçando ambos (esposo e filha), que os mataria.
8. Neste quadro de miséria material e psíquica, a filha dos apelante e ré, deixou de levar a sua filha, menor de idade, para casa dos seus pais, evitando que esta vivenciasse as situações do quotidiano que aí decorriam.
9. O apelante e a sua esposa, apenas sabem desenhar o seu nome e desenhar alguns números.
10. O apelante (…) sai de casa ao raiar da aurora, de ciclomotor, só chegando a casa ao fim da jornada laboral, pois é com o seu trabalho braçal, que consegue a sua subsistência e a da sua esposa, que fica em casa e deambula pelas redondezas do campo (o imóvel locado situa-se fora da cidade de Elvas), dedicando-se a cuidar dos animais sem dono.
11. O apelante e a ré, sua esposa, já haviam sido demandados pelo apelado, numa outra acção de despejo urbano, que correu termos sob o número 151/21.8T8ELV, do Juiz 1, da Instância Local de Elvas, do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre, em cuja sede foram devidamente citados, onde se defenderam e da qual foram absolvidos – nesta sede a ré ainda estava menos doente do foro neurológico e recebeu as cartas de citação, tendo o Apelante tido conhecimento delas, por as ver em cima de uma mesa, em casa, providenciando pela sua defesa.
12. Naquela acção judicial, como nesta, ciente da falta de fundamento para ambas as causas, o medíocre mandatário signatário decidiu, por sacerdócio, missão e realização profissional, patrocinar este pobre matrimónio, de forma gratuita.
13. O apelante, com os seus parcos rendimentos, sempre pagou religiosamente a renda do locado e todas as despesas correntes do mesmo.
14. Considerando que a cidade de Elvas é uma “pequena aldeia” e designadamente o lugar onde o apelante reside é muito pequeno, este foi informado que o seu senhorio habitacional lhe havia instaurado uma outra acção judicial de despejo.
15. Como não havia recebido nenhuma interpelação judicial, o apelante informou a sua filha, que vive noutro local de Elvas com o seu marido e com a sua filha, menor de idade e, daí em diante, todos os dias estiveram atentos ao correio que fosse expedido para o seu (dele apelante) domicílio.
16. Contudo, o apelante jamais supôs que as cartas de citação para a causa, remetida pela Digníssima Secretaria Judicial, haviam sido recebidas pela sua esposa e também ré, que o funcionário dos CTT lhe as havia dado a assinar, quando é certo e seguro o seu estado de doença do foro neurológico, vulgo, psiquiátrico, e que esta as tivesse deitado para o lixo, de nada tendo dado conhecimento ao seu marido.
17. Por outro lado, não se sabe se o funcionário dos CTT, que obteve a assinatura da esposa do apelante, lhe deu instruções claras e precisas sobre a conduta que teria que fazer, designadamente, relativa à carta dirigida ao seu marido.
18. Como se deixou narrado nos autos, em 23 de Outubro de 2024, no requerimento que o signatário ajudou o apelante e redigir, sem saber os contornos da acção judicial em causa, que ignorava e que deles não tinha como ter conhecimento, cujo número e juízo respectivo havia conseguido apurar através da sua filha, verteu toda a factualidade em que assentava a nulidade da sua citação e impetrou que a mesma fosse reconhecida.
19. Nesse requerimento, o apelante juntou inclusive como prova indiciária, de um processo administrativo em que havia requerido o internamento compulsivo da sua consorte, protestando indicar, os meios de prova que o Digníssimo Tribunal entendesse por bem coligir, designadamente testemunhal.
20. Nesse requesto, o apelante rogou que as futuras notificações judiciais fossem remetidas, por cautela, face ao incidente ocorrido, para o domicílio da sua filha, que indicou nessa sede, onde seriam recebidas e objecto de criteriosa atenção e gestão.
21. Em face do exposto, desde 23 de Outubro de 2024, que o ora apelante suscitou a nulidade da sua citação e fê-lo, também, em 25 de Fevereiro de 2025, já por intermédio do seu mandatário judicial, em 06 de Março de 2025 e em 31 de Março de 2025, como ressuma dos autos e para onde se remete, sempre com a mui devida vénia.
22. O apelante indicou, desde o início, as razões da sua não citação (nulidade), bem assim o facto de não ter recebido a notificação nos termos do disposto no artigo 233.º do Novo Código de Processo Civil, o desconhecimento da acção judicial que lhe foi instaurada, as motivações concretas que o impediram de apresentar a sua defesa, manifestando-se absolutamente ao dispor do Digníssimo Tribunal a quo para cooperar na boa gestão da “vexata quaestio”, com vista a ser salvaguardado o legítimo direito de contestar os factos que lhe são, injusta e de forma inverdadeira imputados.
23. E, com redobrada vénia, manifestou a sua intenção de interpor recurso da decisão que não reconhecesse a nulidade da sua citação, o que protestou fazer, a final, com a decisão do mérito da causa (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 04 de Julho de 2024, Relatora Digníssima Desembargadora, Laurinda Gemas, in processo n.º 3991/20.1T8OER-C.L1-2).
24. Efectivamente, dúvidas não subsistem de que o réu e ora apelante (…), ao invés de se autocolocar numa situação de revelia, moveu no processo uma atitude proactiva, cooperante e determinada a provar o facto que não dominou e que determinou o seu desconhecimento da acção judicial para se dela defender.
25. E juntou procuração forense do mandatário judicial signatário, após ter suscitado por via de requerimento próprio, a nulidade processual decorrente da sua falta de citação e, ainda assim, fê-lo a impulso do Tribunal a quo, já depois de ter precludido o prazo para a apresentação da contestação, vulgo, defesa.
26. E sugeriu até a produção de prova testemunhal e disponibilizando-se para todo e qualquer acto de cooperação judiciária que o Digníssimo Tribunal recorrido entendesse por bem e por segurança, promover.
27. O apelante tem legitimidade e está em tempo para suscitar a nulidade da sua citação, estribando esses pressupostos, designadamente, no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 12 de Outubro de 2023, proferido em sede do processo 769/22.1T8LAG.E1, disponível também em www.dgsi.pt: “A impugnação do despacho que indefere a nulidade da citação tem lugar no âmbito do recurso que venha a ser interposto da decisão final e pode constituir o exclusivo fundamento deste”.
29. Ao decidir da forma estritamente técnica e literal da lei, sem atender à especificidade dos factos que o réu narrou para nos autos, a Meritíssima Juíza a quo fez uma análise desconsiderada da matéria objecto do processo, das razões invocadas pelo demandado e não ordenou, nem convidou este a produzir quaisquer elementos de prova, inclusive testemunhal e de declaração de parte, para a adequada, proporcional e justa concatenação da factualidade excepcionalmente levada a juízo, num caso tão grave que compromete a vida pessoal e familiar de um cidadão, pelo que se considera, sempre com a mui devida vénia, que imensa é, que o Tribunal recorrido, violou os seguintes normativos:
• Artigos 6.º, 7.º, 188.º, n.º 1, alínea e), 191.º, 198.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil e 13.º, n.º 1 e 2, 16.º e 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Estes são os termos em que, nos melhores de direito e com o mui douto suprimento de Vossas Senhorias, deve ser revogado o douto aresto recorrido e substituído douto acórdão que declare nula a citação do réu/Apelante (…), declarando-se nulos todos os actos processuais produzidos nos autos após a datada da expedição da carta registada com aviso de recepção que citaria o réu para a causa, ordenando-se, por forma cautelar, que este compareça, pessoalmente, na Digníssima Secretaria Judicial, para ser devida e regularmente citado, de modo a se lograr a fidúcia da citação e da possibilidade de o mesmo apresentar a sua defesa.
“Ad cautelam”,
A não se entender assim, deverá ser o réu/apelante (…) autorizado a produzir prova testemunhal que reitere a sua falta de citação, designadamente a sua filha, tomando-se também ao impetrante declarações de parte, para a devida percepção do contexto mental da ré (…) e do facto de esta, na sua alienação mental, não ter capacidade para receber uma carta do Tribunal, para a inteligir, para saber as responsabilidades que da recepção emergiriam e para a obrigação de a entregar ao réu, seu marido.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Face às conclusões das alegações do recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as questões seguintes:
i) no âmbito do recurso interposto do despacho interlocutório de 14-03-2025: falta de citação do réu e respetivas consequências;
ii) no âmbito do recurso interposto da sentença: efeitos decorrentes da procedência do recurso do despacho interlocutório de 14-03-2025.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
2. Fundamentos
2.1. Recurso do despacho interlocutório de 14-03-2025
2.1.1. Decisão de facto
2.1.1.1. Factos considerados provados em 1ª instância:
1) Foi expedida, para a morada do Réu, carta registada com aviso de receção, com data de elaboração certificada de 4 de setembro de 2024, dando conhecimento ao Réu de que foi proposta contra si ação, concedendo-lhe o prazo de 30 dias para contestar.
2) Consta do aviso de receção, que a carta registada foi rececionada no dia 6 de setembro de 2024 por “(…)”.
3) Foi expedida, para a morada do Réu, carta registada, com data de elaboração certificada em 10 de setembro de 2024, comunicando ao Réu a data e o modo por que o ato se considerou realizado, o prazo para oferecimento da defesa e as cominações aplicáveis à falta desta, o destinado dado ao duplicado e a identidade da pessoa em que, a citação foi realizada.
2.1.1.2. Factos considerados não provados em 1ª instância:
a) A Ré (…) rececionou a missiva referida em 1) dos factos provados e deitou-a ao lixo.
b) A Ré (…) não deu conhecimento ao Réu de que havia rececionado a missiva referida em 1) dos factos provados.
c) O Réu apenas teve conhecimento do teor da missiva referida em 1) dos factos provados no dia 25 de fevereiro de 2025.
2.1.2. Apreciação do objeto do recurso do despacho interlocutório de 14-03-2025
Na presente apelação, interposta da decisão final, encontra-se impugnado o despacho interlocutório proferido pela 1ª instância em 14-03-2025, na parte em que indeferiu a nulidade arguida pelo réu com fundamento na falta da respetiva citação.
No despacho impugnado, a falta de citação invocada pelo réu foi considerada não verificada pelos motivos seguintes: Nos termos do disposto no artigo 225.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil, a citação de pessoas singulares é feita mediante entrega ao citando de carta registada com aviso de receção. Acrescenta o n.º 4 do citado normativo legal que é equiparada à citação pessoal a efetuada em pessoa diversa do citando, encarregada de lhe transmitir o conteúdo do ato, presumindo-se, salvo prova em contrário, que o citando dela teve oportuno conhecimento. Preceitua o artigo 188.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil que há falta de citação quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável. A falta de citação integra uma nulidade absoluta, de conhecimento oficioso e determina a anulação de todo o processado, após a petição inicial, nos termos do artigo 187.º, alínea a), do Código de Processo Civil e dela trata o artigo 188.º do Código de Processo Civil. Resultando dos factos provados que foi expedida, para a morada do Réu, carta registada com aviso de receção, com data de elaboração certificada de 4 de setembro de 2024, dando conhecimento ao Réu de que foi proposta contra si ação, concedendo-lhe o prazo de 30 dias para contestar. Ademais, consta do aviso de receção, que a carta registada foi rececionada no dia 6 de setembro de 2024 por “(…)”. Por fim, resultou igualmente provado que foi expedida, para a morada do Réu, carta registada, com data de elaboração certificada em 10 de setembro de 2024, comunicando ao Réu a data e o modo por que o ato se considerou realizado, o prazo para oferecimento da defesa e as cominações aplicáveis à falta desta, o destinado dado ao duplicado e a identidade da pessoa em que, a citação foi realizada. Sucede, porém, que resultou não provado que a Ré (…) rececionou a missiva de citação e deitou-a ao lixo, não tendo dado conhecimento ao Réu da mesma. Resultou igualmente não provado que o Réu apenas teve conhecimento do teor de que foi citado para os presentes autos no dia 25 de fevereiro de 2025. Ante o exposto, não se logrou alcançar a conclusão de que o Réu não chegou a ter conhecimento do ato de citação pessoal, por facto que não lhe é imputável, motivo pelo qual não se verifica a situação prevista no artigo 188.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil.
Discordando deste entendimento, o apelante defende que não teve conhecimento da carta enviada pelo Tribunal destinada à sua citação, dando-lhe conhecimento da propositura da ação e do prazo estabelecido para contestar, a qual afirma ter sido recebida e deitada ao lixo pela ré, que alega padecer de doença do foro neurológico, não lhe tendo dado conhecimento do recebimento da carta; conclui que deve ser considerada verificada a falta da sua citação, com a consequente revogação do despacho interlocutório impugnado.
No entanto, esta solução jurídica, defendida pelo apelante para o incidente de arguição de nulidade com fundamento na falta de citação, baseia-se em factualidade que foi julgada não provada no despacho interlocutório impugnado na apelação, concretamente no facto de ter a ré recebido e deitado ao lixo a carta em apreciação, não dando conhecimento ao réu de tal recebimento, o que foi considerado não provado, conforme decorre das alíneas a) e b) de 2.1.1.2..
Verificando que o apelante baseia a solução jurídica que defende para o aludido incidente em factos julgados não provados, sendo certo que não impugnou a decisão relativa à matéria de facto constante do despacho interlocutório proferido pela 1ª instância, mostra-se prejudicada a apreciação da questão de direito suscitada com base em tal factualidade não provada.
Improcede, assim, a apelação, na parte relativa à impugnação do despacho interlocutório de 14-03-2025.
2.2. Recurso da sentença
No recurso da sentença proferida nos presentes autos, o apelante impugnou o despacho interlocutório de 14-03-2025, sendo que tal impugnação constitui o único fundamento da apelação.
Visa o presente recurso, com fundamento na procedência da invocada nulidade por falta da citação do réu, a anulação do processado posterior à petição inicial, designadamente da decisão final.
Assim sendo, a impugnação da decisão final baseia-se em fundamentos que lhe são extrínsecos, constituindo uma decorrência da anulação de tudo o que se processe depois da petição inicial, em resultado da falta de citação do réu.
Nesta conformidade, a improcedência da impugnação do despacho interlocutório de 14-03-2025, com a consequente rejeição da pretendida anulação do processado, designadamente da sentença, importa a total improcedência da apelação.
Em conclusão: (…)
3. Decisão
Nestes termos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se o despacho interlocutório de 14-03-2025 e a sentença recorridos.
Custas pelo recorrente.
Notifique.
Évora, 13-11-2025
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite (Relatora)
Maria Domingas Simões (1ª Adjunta) – (declaração de voto)
Vítor Sequinho dos Santos (2º Adjunto)
Declaração de voto
O aqui autor instaurou contra o apelante e sua mulher a presente ação declarativa constitutiva, pedindo a final, para o que ora releva, que fosse declarado resolvido o contrato de arrendamento para habitação celebrado em Maio de 1990 com o réu marido, tendo por objeto “duas divisões assoalhadas que constituem parte do prédio urbano sito nas (…), com entrada privativa pelo n.º 38, freguesia de (…), Elvas”, e os demandados condenados a restituírem o locado, livre de pessoas e coisas.
Em fundamento alegou, em essência, que os RR mantêm no locado pelo menos 7 animais de raça canídea, um deles no exterior, sem que procedam à limpeza da urina e dejetos originados pelos animais, o que exala maus cheiros, perturbando a vizinhança. Tais factos deram inclusivamente causa a participação feita ao sr. Delegado de saúde, que determinou a vistoria ao local por técnica por si designada, sem que esta tenha acedido interior da habitação – tudo factos que, por força da confissão ficta, se acham comprovados nos autos.
Para efeitos de citação dos RR foram enviadas para a morada do locado duas cartas registadas, as quais foram recebidas em 6 de Setembro de 2024 pela ré (…), que assinou ambos os a/r, tendo ainda facultado ao distribuidor postal o seu documento de identificação, uma vez que surge em ambos a menção ao n.º e data de validade do cartão de cidadão.
Em 23 de Outubro de 2024, esgotado portanto o prazo de que os RR dispunham para contestar, deu entrada em juízo um requerimento subscrito pelo R. marido – ainda que tenha sido introduzido pelo sr. Advogado a favor de quem mais tarde, e na sequência de notificação que para o efeito lhe foi feita, outorgou procuração –, no qual alegou não ter tido conhecimento da carta que lhe foi enviada para citação, dado que a ré mulher teria colocado no lixo ambas as cartas enviadas pelo tribunal, sem que do seu recebimento tivesse dado conhecimento ao arguente. Mais alegou que a esposa sofre de doença do foro psiquiátrico que a impede de entender o sentido e alcance das informações a que alude o artigo 227.º do CPCiv., pelo que também ela não deve considerar-se citada, requerendo a final que lhe fosse permitido apresentar-se na secretaria do tribunal para aí ser pessoalmente citado, tendo indicado como morada para futuras notificações o domicílio da filha do casal.
Juntou cópia de participação feita ao MP pela referida filha em 11 de Junho de 2024, na qual solicita a aplicação a sua mãe da medida de tratamento involuntário.
Notificado o autor, deduziu oposição ao requerido porquanto, reconhecendo embora ter a ré mulher temperamento irascível, notoriamente conhecido na localidade, disse ser a mesma perfeitamente capaz de entender o sentido e alcance do ato de citação.
Foi de seguida proferido despacho a determinar a notificação do R. para constituir mandatário, sob pena de ficar sem efeito a sua defesa, notificação enviada para o locado e que só tardiamente veio a ser cumprida, tendo aquele mais uma vez alegado que a carta enviada para o domicílio não lhe tinha sido entregue.
A Sra. Juíza proferiu de seguida despacho, datado de 3 de Março de 2025 [ref.ª 34191660], no qual, para o que ora releva, declarou não ter o R. legitimidade para invocar eventuais vícios de citação da ré, “a qual não beneficia de qualquer acompanhamento de maior e, portanto, encontra-se processualmente capaz de apresentar contestação/invocar nulidades e/ou falta de citação”.
Foi de seguida proferido despacho saneador, no qual, conhecendo-se da arguida nulidade da falta de citação do R., se julgou a mesma improcedente, por não ter resultado provado o alegado, uma vez que “A prova documental junta (…) não é apta a demonstrar a factualidade por este alegada e com relevância para a decisão da causa, uma vez que as alegações de que a recetora da citação a deitou ao lixo, não deu conhecimento ao Réu da sua receção e conteúdo e que o Réu apenas obteve conhecimento da presente ação no dia 25 de fevereiro do presente ano não encontram ressonância na documentação ora junta”.
Proferida sentença final que, na parcial procedência da ação, decretou a resolução do contrato e consequente despejo dos arrendatários, aqui RR, interpôs o R. marido o presente recurso, circunscrito à decisão prévia que julgara válida e eficaz a citação efetuada, o qual foi julgado improcedente, com a consequente confirmação do julgado, desde logo porque, conforme se assinalou, a decisão proferida sobre os factos não foi impugnada.
Pois bem, reconhecendo sem dificuldade que o ora apelante não trouxe aos autos prova com consistência bastante para que fosse tido como demonstrado que a co ré sua mulher tenha “metido no lixo” a carta de citação que ao primeiro foi dirigida, tal como, efetivamente, não impugnou no recurso a decisão proferida sobre os factos, prevalecendo assim a presumida regularidade da sua citação, ou seja, presume-se que a carta lhe foi entregue pela ré mulher e que dela tomou – ou podia ter tomado – conhecimento, suscita-me dúvida não sanada a afirmada regularidade da citação da ré mulher.
A citação, di-lo a lei, é o ato pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada ação e se chama ao processo para se defender (cfr. artigo 219.º do CPCiv.).
Momento de inquestionável relevância na vida do processo, pelos efeitos que lhe estão associados, a falta de citação, previsão da alínea e) do n.º 1 do artigo 188.º do Código de Processo Civil, constitui uma nulidade principal, conducente à anulação de todo o processo posterior à petição inicial, salvando-se apenas esta (cfr. artigo 187.º, alínea a)). É uma nulidade de conhecimento oficioso e, podendo ser invocada a todo o tempo enquanto não deva considerar-se sanada, conforme resulta das disposições conjugadas dos artigos 196.º, 198.º, n.º 2 e 200.º, n.º 1, constitui ainda fundamento de embargos à execução quando o título executivo é constituído por sentença (cfr. a alínea d) do artigo 729.º).
Ciente de ter prescindido da certeza das citações de outrora, tendo instituído em seu lugar um sistema assente em presunções, mas consciente da importância do ato, o legislador, a quem repugna a revelia, rodeou-se de particulares cautelas, em ordem a assegurar-se de que a citação chega ao conhecimento do seu destinatário. Daí que o artigo 566.º imponha ao tribunal, no caso em que o réu, não tendo deduzido oposição nem constituído mandatário, não intervenha no processo de qualquer forma, que verifique se a citação foi feita com as formalidades legais, devendo ordenar a sua repetição quando encontre irregularidades.
No caso vertente, face à invocação por parte do réu marido, agora recorrente, de que a sua mulher sofria de doença do foro psíquico que a impedia de compreender o sentido e alcance do ato da citação e até as obrigações que para si decorriam do facto de ter recebido citação destinada a um terceiro, a Sra. juíza decidiu lapidarmente: o arguente não tinha legitimidade para arguir a falta de citação da co-ré e esta, porque não beneficia do regime de acompanhamento de maiores, tem capacidade para estar por si em juízo apresentando contestação e arguindo nulidades, designadamente a decorrente da falta de citação.
Cabe aqui relembrar que o réu fez juntar aos autos a participação apresentada pela filha maior do casal nos serviços do MP, solicitando a sua intervenção, tendo em vista aplicar à ré sua mãe a medida de tratamento involuntário, tendo para tanto alegado que esta sofre de doença do foro psíquico, tendo-lhe sido diagnosticado o denominado transtorno de Noé, em consulta única que teve lugar no ano de 2021 com médico da especialidade da psiquiatria, tendo todavia recusado, quer o seguimento, quer o tratamento prescrito. Mais relata que o estado da ré se tem vindo a agravar, assumindo comportamentos violentos contra o réu marido, a quem agride e ameaça, tornando difícil o convívio com a vizinhança. Sabe-se ainda, por resultar dos documentos juntos e informação do R., que tendo esta participação dado origem a um processo nos serviços do MP, o mesmo terá sido arquivado, desconhecendo-se embora os motivos: o réu não os deu a conhecer e o tribunal não considerou relevante averiguar.
Dir-se-á que está em causa um relato da própria filha, sem qualquer corroboração, mas a verdade é que corroboração há e da proveniência menos suspeita: repare-se que é o próprio autor quem alega que os RR mantêm em duas assoalhadas pelo menos 6 cães e um outro no exterior, não garantindo a higiene, nem dos espaços, nem dos animais, o que deu já origem a participação ao delegado de saúde, evidência de que, pelo menos segundo a avaliação do demandante, foi criado um problema de saúde pública, revelando uma conduta que, pelo menos, extravasa dos padrões socialmente aceites.
Depois, não pode aceitar-se a argumentação da Sra. juíza. Vejamos:
Como se acentua no acórdão do TRL de 12/4/2023 (processo n.º 1448/22.5T8PDL.L2-6) “A efectivação da citação pressupõe que o destinatário, citando, esteja em condições, quer físicas quer mentais, de a receber e de entender o alcance do acto e as respectivas consequências. Ou seja, o citando tem de ter efectivaconsciência da natureza do acto que lhes é comunicado e de apreender o seu sentido e finalidade. E face ao objectivo tido em vista pelo legislador no artigo 234.º, n.º 1, é indiferente que se trate de incapacidade permanente ou temporária / acidental”.
O artigo 234.º do CPC, que rege para a incapacidade de facto do citando, deverá ter-se por aplicável à citação por via postal, pelo que quando o distribuidor se dê conta da incapacidade do citando – incapacidade notória nas palavras da lei –, deve abster-se de fazer a citação, lavrar nota da ocorrência e devolver o expediente ao tribunal. Mas a circunstância de a citação ocorrer sem tal incidente não garante a capacidade do citando, sendo de prevenir a possibilidade de se encontrar numa situação de incapacidade – acidental ou permanente, neste caso sem que haja sido instaurado o devido processo de acompanhamento, duas realidades que a Sra. juíza desconsiderou – sem que pelo distribuidor seja notada, considerando desde logo a brevidade que, via de regra, caracteriza os contactos com os destinatários. Quando se verifique uma tal situação, qual o regime a seguir?
Tratando-se de situação não diretamente prevista nem regulada no aludido preceito, e estando em causa incapacidade acidental ou temporária, tendemos a considerar que o citando está impedido de intervir no processo, podendo/devendo fazê-lo logo que cesse o impedimento e indicando prova, ainda que em sede da execução da eventual sentença condenatória, por via de embargos (vide o acórdão do TRC de 2/1/2022, processo n.º 1724/20.1T8VIS.C1, em www.dgsi.pt). Mas a apontada solução do justo impedimento não serve a situação da incapacidade permanente do réu que se presume citado, ainda que possa hipotizar-se eventual interposição de recurso de revisão com fundamento na falta de citação (artigo 696.º, alínea e), i. e ii.), servindo de prova a sentença que decrete a medida de acompanhamento fundada na incapacidade anterior ou contemporânea da citação no processo onde foi proferida a decisão revidenda. Sendo certo, porém, que uma tal solução no âmbito de uma ação de despejo pouco ou nada resolveria, se este tivesse entretanto sido executado.
Aqui chegados, afigura-se que tendo sido junta aos autos informação fundamentada, consubstanciada na participação efetuada pela filha do casal (ainda que tenha sido o R. a promover a sua junção), coadjuvada pela alegação do próprio autor no sentido de a ré sofrer de incapacidade causada por doença do foro psíquico, a qual se manifestava aquando da citação, cabia ao juiz verificar se assumia a gravidade suficiente para comprometer o exercício pela citanda dos seus direitos processuais, determinando, se fosse o caso, a citação em pessoa diversa (cfr. o artigo 234.º, n.º 3 e o citado artigo 566.º). Não o tendo feito, incorreu a 1ª instância, em meu entender, em omissão com influência na decisão da causa (tanto mais que, a fazer-se prova de que a ré padece efetivamente de doença do foro psiquiátrico que é a causa da acumulação dos animais que fundamentaram a resolução do contrato de arrendamento, o facto assumiria ainda relevância na discussão da culpa do arrendatário), com aptidão para afetar a sentença proferida, que assim sofreria, segundo entendimento cada vez mais dominante, do vício de excesso de pronúncia.
Todavia, reconhecendo que não foi arguida a nulidade da sentença nem, em bom rigor, está em causa a nulidade decorrente da falta de citação esta sim de conhecimento oficioso, votei a decisão.
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Maria Domingas Simões