INQUÉRITO JUDICIAL A SOCIEDADE
RECUSA DE EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS COMERCIAIS
Sumário

I – A acção especial de inquérito judicial a sociedade, prevista nos artigos 1048.º e ss. do CPC, no caso de sociedade por quotas, exige que tenha sido recusada informação ou prestada informação incompleta ou não esclarecedora.
II – Quando a informação pretendida pela requerente se reporta a operações de aumento de capital, pela incorporação de reservas, efectuadas com o seu conhecimento e aprovação, deliberadas em assembleias gerais em que esteve presente, votou favoravelmente esses aumentos de capital bem como os balanços elaborados para o efeito, a 1ª delas realizada enquanto era gerente da sociedade, inexiste fundamento para a realização de inquérito judicial.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Processo: 1598/24.3T8STR.E1

SUMÁRIO (da responsabilidade da relatora)
(…)

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Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO
1.1. (…) veio requerer a realização de Inquérito Judicial em processo especial à sociedade “(…), Farmácia de Oficina, Lda.”, requerendo ainda a suspensão de funções de gerente de (…) durante a realização do inquérito judicial, indicando os seguintes pontos de facto a averiguar no inquérito:
- quais instrumentos contabilísticos e financeiros foram utilizados para a realização das operações de aumentos de capital referentes aos anos de 2016 e 2018;
- demonstrar e esclarecer a origem dos lucros, designadamente, nos anos de 2015 e 2017, que conduziram aos subsequentes aumentos de capital;
- demonstração na contabilidade da sociedade requerida a materialização dos aumentos de capital realizados nos anos de 2016 e 2018;
- em que sede foram deliberadas e aprovadas pelos sócios a não distribuição de lucros e a sequente constituição de reservas livres;
- responsabilidade do sócio-gerente por eventual incumprimento das exigências legais para a utilização de reservas livres para a realização dos aumentos de capital realizados nos anos de 2016 e 2018.
Alegou, para o efeito e em síntese, que Requerente e (…) são os únicos sócios da sociedade Requerida, e que em 5 de Setembro de 2023 aquele, sócio-gerente, propôs a aquisição das suas quotas, ao que a Requerente respondeu que a tomada de decisão sobre a venda das suas quotas estava dependente do total conhecimento da situação económico-financeira da sociedade, solicitando-lhe a disponibilização da documentação contabilística da sociedade.
Mais alegou que em 3 de Outubro de 2023 foi-lhe remetida documentação sumariada sobre a vida económica e financeira da sociedade, e face à mesma, por não considerar a informação nela contida satisfatória, tomou outras diligências com vista a analisar a conformidade dessa informação, nomeadamente, pesquisando os actos societários publicados no site do Ministério da Justiça (https://publicacoes.mj.pt/), sendo que só nessa altura veio a ter conhecimento que os aumentos de capital realizados em 2016 e 2018 haviam sido feitos por incorporação de reservas livres, o que até então desconhecia, sendo que tal informação não estava contemplada na documentação sumariada fornecida pelo sócio-gerente em 3 de outubro de 2023, sendo necessário que o sócio-gerente esclarecesse como, efetivamente, realizou tais operações.
Alegou, ainda, que nessa sequência, a requerente, por carta datada de 10/01/2024, pediu acesso às actas das deliberações dos sócios que constituíram as reservas livres, utilizadas para os aumentos de capital, que não só não lhe foram facultadas como não foram dadas explicações cabais sobre os referidos aumentos de capital por incorporação de reservas livres.
Concluiu que as mencionadas operações de aumento de capital sempre careceriam de fundamentação especificada em sede das respetivas assembleias-gerais, o que não aconteceu, o que suscita acrescidas dúvidas quanto às referidas operações e, bem assim, quanto à real intenção do sócio-gerente ao determiná-las unilateralmente.
1.2. Os Requeridos contestaram pugnando pelo indeferimento do inquérito judicial peticionado.
1.3. Após realização de tentativa de conciliação, foi proferida sentença, que indeferiu o pedido de realização de inquérito judicial, com o seguinte teor decisório:
«1) Indefiro, por infundado, ao pedido de realização de inquérito judicial à sociedade (…), Farmácia de Oficina, Lda. e ao demais peticionado pela requerente;
2) Custas a cargo da requerente, fixando-se o valor da acção em € 30.000,01 – artigos 296.º, n.º 1, 304.º, n.º 3, alínea d), 306.º, 527.º e 1052.º, n.º 1, todos do NCPC;
3) Mais julgo totalmente procedentes, por provados, os incidentes de litigância de má-fé deduzidos pelos requeridos e, em consequência, condeno a requerente como litigante de má-fé, em multa processual de 8 (oito) UCs, e em indemnização a fixar em despacho complementar após ser dado cumprimento ao disposto no artigo 543.º, n.º 2, do NCPC;
4) Custas dos incidentes de litigância de má-fé a cargo do requerente, que se fixam no mínimo».
1.4. Inconformada com a sentença proferida a Requerente interpôs o presente recurso de apelação, pedindo que fosse provido e revogada a decisão recorrida, substituindo-a por outra que defira a realização de Inquérito Judicial à Sociedade “(…), Farmácia de Oficina, Lda.” e julgue improcedentes os pedidos de condenação de litigância de má-fé deduzidos pelos aqui Recorridos e, consequentemente, a sua absolvição de tais pedidos, prosseguindo os autos os seus ulteriores trâmites processuais.
Concluiu as suas alegações da seguinte forma (que aqui se reproduz):
«A) A Recorrente não se conforma com o entendimento do Tribunal a quo que proferiu decisão a indeferir a realização de inquérito judicial à sociedade “(…), Farmácia de Oficina, Lda.” e ao demais peticionado pela aqui Recorrente, assim como, julgou procedentes os pedidos de litigância de má-fé deduzidos pelos aqui Recorridos e, em consequência, condenou a aqui Recorrente como litigante de má-fé.
B) Vem o Tribunal a quo a decidir como decidiu porquanto entender que inexiste fundamento para a realização do inquérito judicial à sociedade na medida em que a Recorrente, seja na qualidade de gerente ou na qualidade de sócia teve, ou podia ter tido, dispondo de outros meios para o efeito que não através da realização de inquérito judicial à sociedade, conhecimento de todas questões que pretendia ver esclarecidas.
C) Assim como, atenta a factualidade dada como provada pelo Tribunal a quo, a autora ter litigado com manifesta má-fé processual porquanto ter alterado ostensivamente a verdade dos factos relevantes para a decisão da causa.
D) Ora, a aqui Recorrente veio a requerer a realização de Inquérito Judicial à Sociedade por não ter conhecimento, assim como, na contabilidade da sociedade nada constar, quanto à materialização, fundamento e realização dos procedimentos necessários à constituição de reservas livres que teriam obrigatoriamente de anteceder a realização dos aumentos de capital realizados em 2016 e 2018.
E) Assim, o que fundamentou o presente requerimento de realização de inquérito judicial não foi o desconhecimento do aumento de capital por incorporação de reservas livres, mas sim o facto de a informação de que a aqui Recorrente dispunha ser deficitária e pretender-se ver esclarecido qual a forma e justificação que fundamentaram a constituição das reservas livres que permitiram os sucessivos aumentos de capital.
F) Desconhecendo aquela não só os procedimentos e fundamentos para a constituição de reservas livres, a origem dos lucros que possibilitaram a sua constituição, mais também quaisquer deliberações tomadas pelos sócios para constituição das mesmas.
G) Subsistindo total ausência de justificação plausível e uma recusa objetiva do sócio-gerente em produzir a informação necessária e solicitada sobre a forma de constituição das reservas livres.
H) E não tendo a aqui Recorrente, efetivamente, ao seu dispor qualquer meio apropriado para efetivar os seus direitos face à recusa de informação, outra alternativa não lhe restava se não a de recorrer ao Tribunal, instaurando o presente procedimento de inquérito à sociedade.
I) E, imputando-se factos que justificaram, e continuam a justificar, a requerida realização do inquérito judicial à sociedade, tal requerido foi legitimo e ao abrigo das competentes disposições legais.
J) Assim como, face a não produção dos esclarecimentos solicitados, subsistindo total ausência de informação, impor-se a realização do requerido inquérito judicial quanto às operações que determinaram a constituição de reservas livres e consequente aumento de capital por incorporação das mesmas, assim como, se foram cumpridas as formalidades exigidas pelos artigos 87.º, n.º 1 e 91.º do Código das Sociedades Comerciais.
K) Por outro lado, o Tribunal a quo condenou a aqui Recorrente como litigante de má-fé porquanto entender que aquela terá alterado ostensivamente a verdade dos factos relevantes para a decisão da causa.
L) Ora, conforme foi alegado no presente procedimento, no momento em que ocorreram os aumentos de capital por incorporação de reservas livres a Recorrente nunca questionou o sócio-gerente da forma e procedimento em que consubstanciavam tais aumentos e constituição de reservas livres.
M) Só em 2023 é que a Recorrente teve conhecimento de quais os procedimentos que deviam ter sido adotados, e que não foram, para que tais aumentos de capital por incorporação de reservas livres pudessem ter sido realizados.
N) Sendo tais esclarecimentos solicitados ao sócio-gerente que, injustificadamente, se recusou a prestá-los, não tendo sido apresentada à Recorrente justificação material ou fundamentação para a constituição de reservas livres.
O) E, não lhe sendo facultada a informação verdadeira, completa e elucidativa sobre a gestão da sociedade, o recurso a este procedimento judicial foi legítimo.
P) Deste modo, ao contrário do afirmado na sentença ora recorrida, a aqui Recorrente não alterou, ostensivamente, a verdade dos factos.
Q) Porquanto ter alegado, não o desconhecimento do aumento de capital por incorporação de reservas livres, mas sim desconhecimento das operações necessárias à constituição das reservas livres que antecederam tais aumentos.
R) Operações de constituição de reserva livres que a Recorrente pretende ver esclarecidas no âmbito dos prestes autos.
S) E, consequentemente, não tendo sido alterada a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa, não tendo ocorrido chocante e grosseiro uso dos meios processuais, não se encontram preenchidos os pressupostos previstos no artigo 542.º do CPC para que sejam julgados como procedentes os pedidos de condenação da aqui Recorrente como litigante de má-fé.
T) O Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, violou normas jurídicas, concretamente o disposto nos artigos 1048.º, 1049.º a 1051.º e 542.º, todos do CPC.
U) Razão pela qual, deverão os pedidos de condenação como litigante de má-fé, deduzidos pelos aqui Recorridos serem julgados improcedentes e consequentemente, a aqui Recorrente ser absolvida dos mesmos».
1.5. Os Requeridos apresentaram contra-alegações, nas quais se pronunciaram pela manutenção do decidido.
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Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II – OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do NCPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser as de conhecimento oficioso (artigo 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do artigo 663.º, n.º 2, in fine, ambos do NCPC).
Tendo, então, em atenção as conclusões da Recorrentes as questões submetidas à apreciação deste Tribunal são:
. se estão verificados os pressupostos para deferimento de inquérito judicial;
. se estão verificados os requisitos da litigância de má fé.
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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O Tribunal de 1.ª Instância considerou a seguinte factualidade:
. A sociedade requerida tem um capital social de € 730.000,00, distribuído por duas quotas no valor de € 365.000,00 cada, uma titulada pela requerente e outra titulada pelo requerido (…).
. A sociedade obriga-se com a intervenção de um gerente ou de um procurador, sendo gerente da mesma o requerido (…).
. A requerente foi gerente da sociedade desde 14/10/2014 (Ap. …, de …), encontrando-se inscrita a cessação das suas funções de gerente em diferentes datas consoante as certidões de registo comercial juntas aos autos (na certidão junta pela requerente a cessação das funções de gerente consta da Ap. …, de … – renúncia de 15/07/2018; nas certidões juntas pela sociedade e pelo gerente a cessação consta da Ap. …, de … – renúncia de 01/09/2018).
. (…) é gerente da sociedade desde 14/12/2014 (Ap. …, de …).
. Os aumentos de capital por incorporação de reservas livres de € 159.200,00 e € 430.000,00, relativamente aos quais a requerente pretende informações foram deliberados por assembleias gerais realizadas em 25/11/2016 e 31/08/2018, e mostram-se inscritos na Conservatória do Registo Comercial mediante as Ap. (…), de (…) e Ap. (…), de (…).
. Das actas dessas assembleias juntas aos autos resulta que a requerente esteve presente, deliberou favoravelmente aos aumentos de capital por incorporação de reservas livres e à aprovação dos balanços elaborados para o aumento de capital e assinou as respectivas actas.
. Relativamente à primeira deliberação, à data a requerente era gerente da sociedade.
. Da acta da segunda assembleia, relativamente ao ponto três da ordem de trabalhos (renúncia à gerência da sócia aqui requerente) consta a seguinte deliberação “A sócia (…) comunicou à sociedade por CR/AR que renuncia à gerência em virtude de ter sido aposentada. Posto à votação foi esta deliberação aprovada por unanimidade.”
. Em ambas as assembleias, a requerente aprovou a alteração do Pacto Social da sociedade decorrente dos aumentos de capital, sem quaisquer reservas.
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IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
4.1. Se estão verificados os pressupostos para determinar a realização de inquérito judicial
Lê-se no 1048.º, n.º 1, do CPC que «o interessado que pretenda a realização de inquérito judicial à sociedade, nos casos em que a lei o permita, alega os fundamentos do pedido de inquérito, indica os pontos de facto que interesse averiguar e requer as providências que repute convenientes».
Por isso, o requerente deste processo especial deve indicar os motivos que justificam a sua pretensão de realização de inquérito judicial à sociedade e especificar os concretos pontos de facto que interessa averiguar.
No caso das sociedades por quotas a possibilidade de requerer ao tribunal a realização de inquérito judicial está prevista no artigo 216.º do CSC, que estipula que «1- O sócio a quem tenha sido recusada informação ou que tenha recebido informação presumivelmente falsa, incompleta ou não elucidativa pode requerer ao tribunal inquérito à sociedade. 2- O inquérito é regulado pelo disposto nos n.ºs 2 e seguintes do artigo 292.º».
Daqui resulta que a pretensão de inquérito judicial a uma sociedade por quotas exige que ao sócio:
. tenha sido recusada informação a que tenha direito; ou
.tenha sido prestada informação presumivelmente falsa, incompleta ou não esclarecedora.
Forçoso é, então, que ocorra recusa de prestação de informações ou falsidade / insuficiência nas informações prestadas.
Sobre o direito dos sócios das sociedades por quotas à informação rege o artigo 214.º, n.º 1, do CSC, no qual se estabelece que «os gerentes devem prestar a qualquer sócio que o requeira informação verdadeira, completa e elucidativa sobre a gestão da sociedade, e bem assim facultar-lhe na sede social a consulta da respetiva escrituração, livros e documentos. A informação será dada por escrito, se assim for solicitado», acrescentado o n.º 4 que «a consulta da escrituração, livros ou documentos deve ser feita pessoalmente pelo sócio, que pode fazer-se assistir de um revisor oficial de contas ou de outro perito, bem como usar a faculdade reconhecida pelo artigo 476.º do Código Civil», e o n.º 5 que «o sócio pode inspecionar os bens sociais nas condições referidas nos números anteriores».
Logo, o direito à informação (em sentido lacto) compreende (i). a informação sobre a gestão da sociedade; (ii). a consulta da escrituração, livros e registos; (iii). a inspecção dos bens sociais.
A Requerente fundamentou o pedido de inquérito judicial por, tendo-lhe sido remetida, Outubro de 2023, documentação sumariada sobre a vida económica e financeira da sociedade que pedira para decidir sobre proposta de venda da quota ao outro sócio, e por considerar a informação enviada insatisfatória, diligenciou com vista a analisar a conformidade dessa informação (artigos 23º a 29º da PI) e só nessa altura veio a ter conhecimento que os aumentos de capital realizados em 2016 e 2018 haviam sido feitos por incorporação de reservas livres, o que até então desconhecia (artigos 30º a 31º da PI), concluindo pela necessidade do sócio-gerente esclarecer como, efetivamente, realizou tais operações, acrescentando que para esse efeito pediu em Janeiro de 2024 acesso às actas das deliberações dos sócios que constituíram as reservas livres, utilizadas para os aumentos de capital, que não só não lhe foram facultadas como não foram dadas explicações cabais sobre os referidos aumentos de capital por incorporação de reservas livres (artigos 33º a 36º da PI).
Ou seja, a requerente alicerçou a promoção de inquérito judicial, em primeira linha, no desconhecimento de que as operações de aumento de capital referidas tinham sido efectuadas por incorporação de reservas livres, e não, como agora alega na conclusão E, pelo facto de a informação de que dispunha ser deficitária e pretender ver esclarecido qual a forma e justificação que fundamentaram a constituição das reservas livres que permitiram os sucessivos aumentos de capital.
Importa também referir que sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas (a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso), não pode igualmente o tribunal de recurso conhecer de factos novos como são os invocados nas conclusões L) e M), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se à sua reponderação e consequente alteração e/ou revogação, e não a um novo reexame da causa.
E o certo é que da factualidade considerada pela 1ª instância não se vislumbra que tenha havido sonegação de informação sobre as mencionadas operações de aumento de capital realizadas em 2026 e 2018, ou que lhe tenham sido prestadas informações insuficientes, e sobretudo que a recorrente desconhecesse que os aumentos de capital realizados haviam sido feitos pela incorporação de reservas livres.
Na verdade, apurou-se que os aumentos de capital por incorporação de reservas livres de € 159.200,00 e € 430.000,00 (que se mostram inscritos na Conservatória o Registo Comercial mediante as Ap. …, de … e Ap. …, de …) foram deliberados por assembleias gerais realizadas em 25/11/2016 e 31/08/2018, respectivamente, assembleias essas nas quais a requerente esteve presente, aprovou as deliberações de aumento de capital pela incorporação de reservas livres, bem como os balanços elaborados para esses aumentos de capital, assinou as respectivas actas, era à data da primeira deliberação também gerente da sociedade, tendo sido aprovada a sua renúncia à gerência na assembleia de 31/08/2018, depois da aprovação da deliberação do aumento de capital (renúncia essa que se torna efectiva 8 dias depois da recepção dessa comunicação – artigo 258.º, n.º 1, do CSC).
Estamos, pois, perante operações de aumento de capital realizadas pela incorporação de reservas livres com efectivo conhecimento da requerente, deliberadas e aprovadas por ambos os sócios, e não determinadas unilateralmente pelo co-sócio gerente.
Foram também juntas aos autos as actas das assembleias gerais relativas aos aumentos de capital, resultando da documentação junta aos autos que aquelas actas eram do conhecimento da requerente e que lhe foi fornecida informação contabilística da sociedade.
Acresce ainda que, como refere a sentença recorrida, «em momento [algum] a requerente alega que se dirigiu à sede da sociedade ou a outro local onde se encontrassem os documentos contabilísticos e financeiros da sociedade [e, acrescenta-se, outros documentos, designadamente as actas das assembleias e registos] e que lhe foi recusada a sua consulta», consulta essa, diga-se, na qual o sócio pode fazer-se assistir de um revisor oficial de contas ou de outro perito.
Não vem, do mesmo passo, invocado que nos anos imediatamente antecedentes às deliberações de aumento de capital, em 2015 e 2017, os relatórios de gestão, as contas e os balanços não fossem do conhecimento da requerente, que a eles não tivesse acesso, sendo que nessas datas a requerente era igualmente gerente da sociedade (sem que se mostre invocado na PI que não teve exercício efectivo da gerência).
Nada mais resultou em termos factuais que permita concluir pelo fundado do peticionado, antes se verificando que a informação pretendida se reporta a actos sociais de aumento de capital em que a requerente participou, o 1.º ocorrido enquanto foi gerente da sociedade, quando estava pessoalmente ao seu alcance conhecer os contornos das operações de aumento de capital, que, repete-se eram do seu conhecimento e aprovou, bem como da constituição de reservas, não se detectando qualquer sonegação ou limitação ao seu direito a ser informada quanto a tais actos.
A requerente, no fundo, levanta é suspeitas quanto à regularidade da actuação da gerência (que também era por si exercida) na constituição das reservas livres.
«Conforme sustenta o Acórdão da Relação do Porto de 8.3.2018 (proc. n.º 2929/16.5T8STS.P1, relator Carlos Portela, disponível in www.dgsi.pt.) o recurso ao inquérito judicial não se pode basear em mera suspeita de irregularidades na administração» da sociedade.
«De resto, Menezes Cordeiro (in “Direito das Sociedades”, I, 5ª ed., págs. 656/657) afirma, inclusive, que o inquérito judicial surge como um procedimento complicado e pesado, a usar, somente, quando necessário, sendo um esquema destinado a enfrentar problemas bem mais graves do que a não prestação de informação ou a informação inexacta.
“O direito de requerer inquérito judicial, por denegação do direito à informação, atento o seu tão acentuado caráter intrusivo na vida da sociedade visada, é ou mostra-se suscetível de ser tão grave e perturbador, que não deve ser utilizado em situações de impasse ou desconfiança, atendendo a que a sua utilização tende, não raras vezes, a agravar estas situações, colocando os tribunais como “polícias das sociedades”, tendo, nessa medida, um efeito mais negativo que positivo. Se assim é, o inquérito também não deve ser tomado como mecanismo para a obtenção de meios de prova relativos a outros processos em curso, como tantas vezes ocorre no âmbito de conflitos societários.
Estes aspetos são particularmente importantes e merecem ser retidos: o inquérito judicial deve ser encarado como um instrumento subsidiário do direito à informação e tem, como dissemos, uma inequívoca natureza sancionatória, pois representa forçosamente uma intromissão do tribunal, ou seja, uma intervenção autoritária externa na vida da sociedade, devendo ser reservado para os casos em que o direito à informação é violado, sem possibilidade de auto-composição interna dos interesses no âmbito societário, e em que os vícios da informação prestada (falsidade, incompletude ou falta de clareza) sejam o resultado de uma atuação deliberada do membro órgão de gestão que faça presumir os apontados vícios” – cfr. Diogo Lemos e Cunha, “O inquérito judicial enquanto meio de tutela do direito à informação nas sociedades por quotas, ROA, ano 75, págs. 331/332; também disponível in portal.oa.pt).
Por isso, salienta este mesmo autor (ob. cit., págs. 332/333) que “a prática dos tribunais tem-se revelado – e bem – bastante exigente quanto à possibilidade de conceder provimento ao processo de inquérito judicial, (…), só o admitindo em casos que verdadeiramente o justifiquem, designadamente quando o grau de conflitualidade impõe, inevitavelmente, a intervenção do tribunal para dirimir o litígio, esgotadas que estão todas as possibilidades da sua resolução, nomeadamente pela via extrajudicial, ou então no caso em que a informação possa ser obtida por outra via, que não através de inquérito”» (Ac. do TRP de 10.11.2024, Proc. n.º 8222/23.0T8VNG.P1; disponível em www.dgsi).
E o certo é que, mesmo com recusa da prestação de informações, só deve ser ordenado inquérito judicial quando se mostre de todo impossível a obtenção da informação por outra via, designadamente pela consulta dos documentos, contabilísticos, financeiros, actas e outros, da sociedade.
Inexiste, pois, no circunstancialismo fáctico apurado, fundamento para a promoção do pretendido inquérito.
Termos em que improcede o recurso de apelação, nesta parte.
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4.2. Se estão verificados os requisitos da litigância de má fé.
Insurge-se, ainda, a Recorrente quanto à condenação como litigante de má-fé, sustentando que ao contrário do afirmado na sentença recorrida, não alterou, ostensivamente, a verdade dos factos, por que alegou, não o desconhecimento do aumento de capital por incorporação de reservas livres, mas sim desconhecimento das operações necessárias à constituição das reservas livres que antecederam tais aumentos.
Lê-se no artigo 542.º, n.º 2, alíneas a), b), c) e d), do N.C.P.C., que será considerado litigante de má-fé «quem, como dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, ou tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa, ou tiver praticado omissão grave do dever de cooperação, ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão».
A redacção da referida disposição legal foi introduzida com o Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, que consagrou na disposição em causa um regime mais exigente, em conformidade com o reforço dos deveres de colaboração das partes, consagrados nomeadamente nos artigo 266.º-A (dever de boa fé processual) e no artigo 266.º-B (dever de recíproca correcção) do então C.P.C., admitindo-se expressamente que, ao lado do dolo, figurasse igualmente a negligência grave, por isso se substituindo o necessário conhecimento da falta de fundamento da oposição deduzida, pela obrigação de conhecer a falta de fundamento da oposição deduzida.
Concluindo-se pela má fé, será a parte prevaricadora condenada em multa que sancione o seu comportamento (artigo 542.º, n.º 1, do N.C.P.C.).
O tribunal a quo sustentou a condenação da Recorrente como litigante de má fé nos seguintes termos:
«Para que a parte seja condenada em litigância de má-fé não basta que não se provem os factos pessoais que alegou, uma vez que da inexistência de prova não se pode extrair a prova do facto contrário (cfr., neste sentido, Ac. RP de 19/05/1988, BMJ, 376, pág. 665, Ac. RC de 23/05/1995, BMJ, 447, pág. 586 e Ac. S.T.J. de 16/03/2000).
Reportando-nos ao caso dos autos, atenta a matéria alegada e a que se resulta dos documentos juntos aos autos e não impugnados resulta, de forma evidente, que a requerente litigou de má-fé.
Concretizando, a autora alegou nos artigos 28º e seguintes da petição inicial que apenas após 3 de outubro de 2023, através da consulta dos actos societários publicados no site do Ministério da Justiça, é que teve conhecimento que os aumentos de capital realizados em 2016 e 2018 haviam sido feitos por incorporação de reservas livres, o que não corresponde à verdade.
Com efeito, resulta das actas n.ºs 21 e 24 relativas às assembleias gerais realizadas em 25/11/2016 e 31/08/2018, respectivamente, e juntas aos autos, que a autora aprovou os mencionados aumentos de capital por incorporação de reservas, tendo igualmente aprovado os balanços elaborados para os referidos aumentos e aprovado as alterações do Pacto social decorrentes desses aumentos de capital, bem como assinou as respectivas actas.
Atenta a factualidade provada, dúvidas não existem de que a autora litigou com
manifesta má-fé processual porquanto deduziu alterou ostensivamente a verdade dos factos (alínea b) do artigo 542.º, n.º 2, do CPC)».
Portanto, na base da fundamentação da sua condenação como litigante de má fé está a consideração de:
. ter a requerente alegado nos artigos 28º e seguintes da petição inicial que apenas após 3 de Outubro de 2023, através da consulta dos actos societários publicados no site do Ministério da Justiça, é que teve conhecimento que os aumentos de capital realizados em 2016 e 2018 haviam sido feitos por incorporação de reservas livres;
. resultar das actas n.ºs 21 e 24 relativas às assembleias gerais realizadas em 25/11/2016 e 31/08/2018, respectivamente, precisamente o inverso: que a autora aprovou os mencionados aumentos de capital por incorporação de reservas, aprovou os balanços elaborados para os referidos aumentos e aprovou as alterações do Pacto social decorrentes desses aumentos de capital.
E o certo é que no contexto fáctico alegado pela recorrente na sua petição inicial é afirmado taxativamente que a mesma desconhecia, até 2023, que os aumentos de capital realizados em 2016 e 2018 haviam sido feitos por incorporação de reservas livres – artigo 30º da PI, o que, com vimos, se veio a apurar não corresponder à verdade.
Ora, o discurso argumentativo da pretensão de realização de inquérito judicial na petição inicial parte do desconhecimento pela requerente de que as identificadas operações de aumento capital tinham sido feitas pela incorporações de reservas livres, quando se apurou tratar-se de facto do seu inteiro conhecimento, tendo aprovado as deliberações de aumento do capital através da incorporações de reservas e os balanços em que se basearam, o que avulta como expressão consciente de alteração da verdade dos factos, integradora de má fé processual (alínea b) do n.º 2 do citado artigo 542.º).
Acresce que a recorrente omitiu nos concretos pontos de facto que aduziu na sua petição inicial que aprovou os mencionados aumentos de capital por incorporação de reservas, que aprovou os balanços elaborados para os referidos aumentos e que aprovou as alterações do pacto social decorrentes desses aumentos de capital e ainda que relativamente à primeira deliberação de aumento de capital era também gerente da sociedade, factos que são fundamentais para enquadrar as concretas circunstâncias do caso e ponderar a bondade da pretensão deduzida, o que permite reforçar a verificação do preenchimento dos pressupostos da litigância de má-fé.
Improcede, pois, o recurso de apelação, também nesta parte.
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V – DECISÃO
Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelos Recorrentes e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
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Custas da apelação pela Recorrente (conforme artigo 527.º, n.º 1 e n.º 2, do CPC, por nela ter decaído).
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Évora, 13/11/2025
Maria Isabel Calheiros (relatora)
Anabela Raimundo Fialho (1ª adjunta)
Vítor Sequinho dos Santos (2º adjunto)