I – Nos diversos preceitos que regulam o processo especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira, a lei aplica quer o termo sentença (cf. art.s 979º, 980º-a) e 983º-2 do CPC), quer o termo decisão (cf. art.s 978º e 981º do CPC), o que significa que o âmbito objetivo do processo especial não se limita exclusivamente às típicas sentenças emanadas dos Tribunais, incluindo também decisões provindas de ordenamentos jurídicos que prevejam formas diversas de resolução de litígios e de tutela e regulação de interesses privados juridicamente relevantes.
II – No âmbito normativo previsto no art.º 978º, n.º 1 do CPC incluem-se decisões proferidas por qualquer autoridade à qual o Estado de origem tenha cometido poder jurisdicional, desde que o documento regulador dos interesses privados em presença, ainda que de natureza administrativa, traduza uma decisão da autoridade competente, com carácter vinculativo.
III – É o caso do pedido de revisão e confirmação de uma “Escritura Pública de Divórcio” lavrada por Tabelião de Notas da Comarca de S. Paulo, Brasil, através da qual os aí outorgantes declararam, por mútuo consentimento, colocar um fim ao vínculo matrimonial por divórcio e onde o referido Tabelião, em face dessa declaração de vontades, exarou «fica estabelecido o divórcio dos outorgantes».
IV – Essa escritura reveste, portanto, força jurídica igual à das sentenças uma vez que foi emitida por entidade brasileira legalmente competente para o efeito, não carecendo de homologação judicial para se impor na Ordem Jurídica brasileira, sendo de admitir a sua revisibilidade pelos Tribunais portugueses.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Afigurando-se que a questão a decidir se reveste de simplicidade, decide-se proferir decisão sumária (cf. art.s 656º e 982º-2 do CPC).
AA e BB, melhor identificados nos autos, vieram conjuntamente intentar a presente ação de revisão e confirmação de escritura pública notarial brasileira de declaração de divórcio entre ambos.
Resultam documentalmente provados os seguintes factos:
1. Por escritura pública outorgada em 26.10.2015, intitulada de “Escritura Pública de Divórcio”, lavrada no Livro ...00, a páginas 23 e 24, do Cartório do 16.º Tabelião de Notas, a cargo de CC, da cidade e comarca de S. Paulo, República Federativa do Brasil, foi declarado o divórcio entre os autores, relativamente ao casamento entre si celebrado em 09.04.2015, sob o regime da comunhão parcial de bens, constante da Matrícula n.º ...97-91, Registo de Pessoas Naturais do 18.º Subdistrito Ipiranga, Estado de S. Paulo.
2. Na escritura referida em 1 os autores declararam não ter filhos, prescindirem mutuamente da pensão de alimentos e não terem bens a partilhar.
3. Na escritura referida em 1 os autores declararam ainda nada ter de opor à natureza pública da escritura de divórcio em causa, aceitando-a em todos os seus termos e cláusulas, cujo conteúdo foi lido e explicado aos outorgantes que a aceitaram e assinaram.
4. Na escritura referida em 1 foi consignado pelo indicado Tabelião de Notas, além do mais, o seguinte: «(…) III - Divórcio - Declarando os outorgantes, sem hesitação, que estão firmes no propósito de pôr fim ao vínculo matrimonial (…) pela presente escritura pública, nos termos da Emenda Constitucional n.º 66, de 13/07/2010, publicada no Diário Oficial da União de 14/07/2010, que deu nova redação ao artigo 266, § 6º, da Constituição Federal, fica estabelecido o divórcio dos outorgantes (…)».
5. O casamento entre as partes encontra-se averbado ao assento de nascimento do autor, através do averbamento n.º 2 de 27.12.2024, na Conservatória do Registo Civil de Lisboa, conforme Assento n.º ...24.
(…).
A única questão jurídica que importa dilucidar é apurar se estão verificados os requisitos legais de que depende a revisão e confirmação da escritura pública de divórcio estrangeira apresentada.
Importa apreciar se estão verificados os requisitos legais de que depende a revisão e confirmação da sentença estrangeira apresentada.
O art. 980º do Código de Processo Civil estabelece os requisitos necessários para a confirmação de sentença estrangeira, e que são os seguintes:
i. que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença, nem sobre a inteligência da decisão;
ii. que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
iii. que provenha do Tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos Tribunais portugueses;
iv. que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a Tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
v. que o réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do Tribunal de origem e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
vi. que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português (para além da sua previsão legal, vd., sobre a densificação destes requisitos, António Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2ª ed., Almedina, 2022, pp.450-453; e, inter alia, no recente Ac. do STJ de 16.09.2025, rel. Henrique Antunes, proc. n.º 543/25.3YRLSB.S1. O nosso sistema de revisão de sentenças estrangeiras é um sistema, em regra, de delibação ou de revisão meramente formal em que o tribunal competente se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo, pois, do fundo ou mérito da causa: vd., neste sentido, o Ac. STJ de 12.07.2011, proc. n.º 987/10.5YRLSB.S1; e o Ac. do STJ de 05.03.2013, rel. Oliveira Vasconcelos, proc. n.º 75/11.7YREVR.S1).
No caso dos autos não estamos propriu sensu perante uma sentença, mas em face de uma escritura pública onde se declara, por vontade livre das partes, o divórcio entre as mesmas até aí casadas, pondo termo ao vínculo matrimonial de casamento antes celebrado entre si, lavrada por Tabelião de Notas da Comarca de S. Paulo, Brasil.
Nos diversos preceitos que regulam o processo especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira, a lei aplica quer o termo sentença (vd. art.s 979º, 980º-a) e 983º-2 do CPC), quer o termo decisão (vd. art.s 978º e 981º do CPC), o que significa, tal como tem vindo a entender a doutrina categorizada, que «o âmbito objetivo do processo especial não se limita exclusivamente às típicas “sentenças” emanadas de tribunais, nos moldes consagrados no nosso sistema jurídico», podendo aceitar-se que no seu âmbito possam incluir-se outras decisões provindas de ordenamentos jurídicos que prevejam formas diversas de resolução de litígios e de tutela e regulação de interesses juridicamente relevantes (cf. António Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2ª Ed., Almedina, 2022, p. 445).
Mesmo entre nós, na Ordem Jurídica portuguesa, estão previstos mecanismos de produção de decisões emanadas de autoridade pública que não são tribunais, como são os casos de decisões emitidas ao abrigo de competências atribuídas ao Ministério Público ou a Conservatórias do Registo Civil (cf. o DL n.º 272/2001, de 13-10, com última alteração introduzida pela Lei n.º 85/2019, de 03-09 que operou a atribuição e transferência de competências relativas a um conjunto de processos especiais dos tribunais judiciais para o Ministério Público e às Conservatórias de Registo Civil, regulando os correspondentes procedimentos, como são os casos do suprimento do consentimento, sendo a causa de pedir a menoridade; o acompanhamento ou a ausência da pessoa; a autorização para a prática de atos pelo representante legal do menor ou do acompanhado, quando legalmente exigida; a autorização para a alienação ou oneração de bens do ausente, quando tenha sido deferida a curadoria provisória ou definitiva; a confirmação de atos praticados pelo representante do menor ou do acompanhado sem a necessária autorização: cf. art.s 1º, 2º-1, 12º e 14º. Vid., ainda, quanto à competência atribuída às conservatórias do registo civil para a tramitação do processo de divórcio ou de separação de pessoas e bens e para a partilha do património conjugal na sequência dos mesmos, os art.s 271º, 272º e 272º-A do Código do Registo Civil, aprovado pelo DL n.º 131/95, de 06-06, com última alteração introduzida pela Lei n.º 39/2025, de 01-04), neste caso com competência legal para o decretamento do divórcio por mútuo consentimento, como se empreendeu no caso dos autos sob a autoridade e supervisão do referido Tabelião de Notas brasileiro.
Isto posto, é de aceitar que no âmbito normativo de aplicação das normas de revisão e confirmação de sentenças estrangeiras a menção a tribunal estrangeiro abarque também «qualquer autoridade à qual o Estado de origem tenha cometido o poder jurisdicional», conquanto que o documento regulador dos interesses privados em presença traduza «uma decisão da autoridade competente de natureza administrativa» (cf. António Geraldes e Outros, Código de Processo Civil Anotado, II, cit., p. 446).
Atento o exposto, é de admitir a revisibilidade pelos tribunais portugueses da escritura pública através da qual se declarou e realizou, por via notarial, de livre vontade, o divórcio entre os autores, outrora casados entre si e que deve ser reconhecida como revestida de força igual à das sentenças, porquanto foi emitida por entidade brasileira legalmente competente para o efeito, não carecendo de homologação judicial para se impor na Ordem Jurídica brasileira, a qual é, de resto, suficiente para, por via dela, se proceder ao averbamento de registos que haja necessidade de se fazer (Com efeito, prescreve o art. 733.º do Código de Processo Civil brasileiro, aprovado pela Lei n.º 13.105, de 16.03.2015 - sucessor do revogado CPC de 1973 -, o seguinte: «O divórcio consensual, a separação consensual e a extinção consensual de união estável, não havendo nascituro ou filhos incapazes e observados os requisitos legais, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições de que trata o art. 731.º § 1º A escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras. § 2º O tabelião somente lavrará a escritura se os interessados estiverem assistidos por advogado ou defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.»).
Por conseguinte, extrai-se do teor da escritura revidenda que os autores, ambos assistidos no ato notarial por advogado, declararam perante o Tabelião de Notas brasileiro pretender divorciar-se por mútuo consentimento, não terem filhos e não terem bens a partilhar. Para além de que, como consta assente dos factos apurados, o referido oficial público fez constar do texto da escritura, além do mais, que em face das declarações das partes e verificados os legais pressupostos, «(…) fica estabelecido o divórcio dos outorgantes», o que, na substância, equivale a uma decisão administrativa vinculativa de acordo com a Ordem Jurídica brasileira.
De harmonia com a jurisprudência dos tribunais superiores portugueses, tem vindo a negar-se a revisão e confirmação de meras declarações feitas por interessado em escritura pública, quando essa escritura não encerra, em si, uma decisão [Veja-se, a propósito, a seguinte constelação de casos analisados pela nossa jurisprudência superior:
(i) No Ac. do STJ de 02.02.2023, rel. cons. Fátima Gomes, proc. n.º 2014/22.0YRLSB.S1, seguiu-se o entendimento segundo o qual, apesar de provinda de uma autoridade administrativa estrangeira - in casu um tabelião brasileiro -, essa escritura não podia considerar-se abrangida pela previsão do art. 978º-1 do CPC e, como tal, não podia ser revista e confirmada. Discutiu-se neste aresto que, afinal, nessa escritura pública não constava qualquer decisão do tabelião, mas apenas uma declaração do outorgante - declaração de reconhecimento da paternidade -, a qual não podia, por isso, estar abrangida pela previsão do art. 978º-1 do CPC, não podendo, por isso, ser revista e confirmada. Considerou-se que rever e confirmar a escritura de reconhecimento da paternidade tal como peticionado conduziria a um resultado manifestamente incompatível com princípio da ordem pública internacional do Estado Português - o princípio da verdade biológica -, pois o reconhecimento da paternidade por escritura pública é um reconhecimento voluntário por perfilhação (art. 1853º-c) do CC), de sorte que confirmar a escritura implicaria convertê-lo num reconhecimento judicial e, em consequência, coartaria a possibilidade de impugnação do reconhecimento quando o mesmo, porventura, não corresponda à verdade biológica (art. 1859º-1 do CC);
(ii) No Ac. STJ de 20.01.2022, rel. Nuno Pinto Oliveira, proc. n.º 151/21.8YRPRT.S1-A, considerou-se que após análise da “escritura pública” cuja revisão e confirmação se peticionara, verificou-se que a mesma se limitava a confirmar as aludidas declarações dos aí requerentes - in casu a afirmação de que conviviam maritalmente desde certa data, o que não provava que fosse verdadeira a afirmação -, sem que o Tabelião tivesse sobre elas feito incidir qualquer juízo vinculativo, com força de caso julgado, e que, enquanto tal, tivesse competência para emitir, daí ter decidido por não reconhecer a tal “escritura pública” a natureza de “decisão” a que alude o art. 978º-1 do CPC, concluindo pela ausência de virtualidade para poder ser revista e confirmada pelos Tribunais portugueses; no Ac. do STJ de 10.12.2019, rel. Sacarrão Martins, proc. n.º 249/18.0YPRT.S2, entendeu-se que a declaração dos requerentes numa escritura pública declaratória de “união estável”, perante uma autoridade administrativa estrangeira (tabelião) de que vivem em união de facto desde Julho de 2013, não deve ser considerada como abrangida pela previsão do art. 978º-1 do CPC, não podendo, por isso, ser revista e confirmada para produzir efeitos em Portugal, porquanto os aí requerentes não tinham obtido na escritura uma decisão homologatória por parte do tabelião que pudesse servir de base à peticionada revisão. Em sentido análogo já antes se decidira no Ac. do STJ de 09.05.2019, rel. Nuno Pinto Oliveira, proc. 828/18.5YRLSB.S1, no sentido de que a escritura pública declaratória de união estável prevista pelo direito brasileiro não é suscetível de ser confirmada ou revista nos termos do art. 978º do CPC; bem como, com idêntica solução, no Ac. do STJ de 21.03.2019, rel. Sacarrão Martins, proc. n.º 559/18.6YRLSB.S1; e, ainda, no Ac. do STJ de 28.02.2019, rel. Nuno Pinto Oliveira, proc. n.º 106/18.0YRCBR.S1 que entendeu que nem a escritura declaratória de união estável prevista pela lei brasileira, nem a declaração da junta de freguesia prevista pelo direito português fazem com que o ato composto pelas declarações dos requerentes seja “caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido”, com a consequência de a escritura declaratória de união estável apresentada pelos requerentes não poder ser confirmada ou revista por tribunal português. Estes casos acabaram por desembocar no AUJ do STJ n.º 10/2022, de 19.10.2022, rel. cons. Nuno Manuel Pinto Oliveira, proc. n.º 151/21.8YRPRT.S1 -A que estabilizou a jurisprudência obrigatória no seguinte sentido: «A escritura pública declaratória de união estável celebrada no Brasil não constitui uma decisão revestida de força de caso julgado que recaia sobre direitos privados; daí que não seja susceptível de revisão e confirmação pelos tribunais portugueses, nos termos dos arts. 978.º e ss. do Código de Processo Civil»].
Assim sendo, para além dos referidos elementos, verifica-se que do processo não consta qualquer elemento donde se possa retirar a existência de uma situação de litispendência ou de caso julgado (cf. art.s 580º e 581º do CPC), com fundamento em causa afeta a um Tribunal português, nem que não tenham sido cumpridos os princípios do contraditório e da igualdade das partes (cf. art.s 3º e 4º do CPC).
De igual modo, não existe qualquer elemento que permita concluir que a sentença, cuja confirmação é pretendida, provenha de Tribunal ou, como sucede no caso dos autos, de autoridade administrativa com poderes públicos, cuja competência tenha sido provocada em fraude à lei.
De notar, ainda, que a matéria sobre a qual a sentença versa não é da exclusiva competência dos Tribunais portugueses (cf. art. 63º do CPC).
Por último, verifica-se que não houve impugnação do pedido e que não foi posta em causa a ordem pública internacional do Estado português.
Em conclusão, consideram-se verificados todos os pressupostos legais necessários para que a escritura pública que decretou o divórcio (na escritura utilizou-se o vocábulo “estabeleceu”) entre os requerentes possa ter eficácia em Portugal.
(…).
Atento o exposto, decide-se:
a. Julgar procedente a pretensão dos requerentes e, em consequência, conceder a revisão da mencionada Escritura Pública de Divórcio (outorgada em 26.10.2015 e lavrada no Livro ...00 a páginas 23 e 24 do Cartório do 16.º Tabelião de Notas da cidade e comarca de S. Paulo, República Federativa do Brasil) que decretou/estabeleceu o divórcio entre os requerentes AA e BB que, assim, se confirma.
b. Condenar os requerentes no pagamento das custas processuais.
Valor: €30.000,01.
Coimbra, 06.11.2025.
Marco António de Aço e Borges