PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
ATOS OU DECISÕES DO ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO PARA O JUIZ
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
LEILÃO ELETRÓNICO
TEMPESTIVIDADE DAS PROPOSTAS
Sumário

I – Em termos gerais, não é admissível, no âmbito do processo de insolvência, a reclamação para o juiz em relação ao conteúdo substantivo de actos ou decisões do administrador de insolvência em matérias que são da competência deste, designadamente no âmbito da liquidação do activo (definição da modalidade da venda ou aceitação/rejeição de propostas), não assistindo ao juiz o poder de se substituir ao administrador nessas decisões nem o poder de nelas interferir ou de as revogar ou alterar.
II – Essa regra/princípio – instituído pelo CIRE – não afasta, contudo, o regime próprio de arguição de nulidades e, consequentemente, a possibilidade de reclamação para o juiz da insolvência de irregularidades ou vícios formais dos procedimentos ou actos do administrador da insolvência.
III – Tendo sido determinada a venda por leilão electrónico e fixado o valor base, a proposta de aquisição do bem que venha a ser apresentada pelo credor garantido considera-se apresentada em tempo útil para os efeitos previstos no n.º 3 do art.º 164.º do CIRE se for apresentada até ao início do leilão ou durante e no âmbito do próprio leilão; uma vez terminado o leilão com apresentação de propostas de valor superior ao valor mínimo previamente definido, o administrador da insolvência fica vinculado à proposta de maior valor que ali tenha sido obtida e qualquer outra proposta que venha a ser apresentada – designadamente pelo credor garantido – apenas pode ser considerada se o leilão vier a ser anulado ou se o proponente que apresentou a melhor proposta vier a incumprir a sua obrigação de pagamento do preço e se, por força dessa situação, a venda ficar sem efeito nos termos previstos no art.º 825.º do CPC.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

Nos autos de insolvência referentes a A..., S.A., melhor identificada nos autos, e no âmbito de leilão electrónico que terminou no dia 26/01/2023 foi identificada como melhor proposta – em relação ao prédio rústico descrito na Conservatória do registo predial sob o nº ...73 e inscrito na matriz predial rústica sob o art.º ...59 – a apresentada pela B..., Unipessoal, Lda., com o ...23, no valor de € 490.000,00.

Na sequência desse facto e face aos requerimentos que vinham sendo apresentados em que se pedia a suspensão ou cancelamento do leilão, o Sr. Administrador veio solicitar que o tribunal e os credores se pronunciassem sobre a aceitação e validade do leilão.

Sobre essa matéria e na sequência de vários requerimentos e respostas que foram apresentados, veio a ser proferido o despacho de 19/04/2023, onde se decidiu indeferir a requerida anulação do leilão, considerando o mesmo válido e eficaz, despacho que veio a ser confirmado por Acórdão desta Relação de 12/09/2023.

Entretanto – em 16/11/2023 – a C..., S.A. apresentou ao Sr. Administrador da Insolvência uma proposta para aquisição do referido imóvel no valor de 600.000,00€.

A anterior proponente – B..., Unipessoal, Lda – pronunciou-se pela extemporaneidade da aludida proposta nos termos do art.º 164º nº2 e 3 do CIRE.

Na sequência desses factos, o Sr. Administrador veio pedir ao tribunal – em 02/05/2024 – que se pronunciasse sobre a questão, originando o despacho de 29/05/2024 onde se disse, em linhas gerais, que não cabia ao Tribunal, mas ao Exmº AI, apreciar se a proposta apresentada pela credora C..., SA é extemporânea ou não, e se deve ou não ser aceite, o que veio a ser reafirmado por despacho de 29/01/2025.

Em 17/03/2025 – na sequência das notificações do tribunal para informar que decisão havia tomado em relação àquela matéria – o Sr. Administrador veio prestar informação com o seguinte teor:

“...Na reunião de 13.12.2024, foi o ponto primeiro da ordem de trabalhos decidir que se adjudicasse a verba 1 à C..., a tal propósito votou favoravelmente os Credores C... e D..., tendo votado contra o Credor Autoridade Tributária.

Sucede que a eficácia de tal decisão ficou suspensa para que o aqui signatário submetesse ao Juiz do processo, a apreciação da tempestividade da proposta efetuada pela C... ao abrigo do disposto no n.º 3 do art. 164 do CIRE.

Ora, tendo o tribunal informado que não era da sua competência aferir da tempestividade ou não da proposta apresentada, o aqui signatário deu conhecimento da mesma ao proponente B... Lda., contendo a proposta da Credora C..., a qual foi formulada depois de decidida para si a adjudicação, informando que o Credor C... não se oporia a que, em alternativa, se pudesse adjudicar à B... a verba 1, pelo montante de 660.000 euros, ou seja, em valor superior em 10% do valor de adjudicação à C..., por tal se mostrar mais favorável aos interesses de todos os Credores.

Ora, apesar de se colocar aqui em causa a extemporaneidade da proposta apresentada, porquanto a mesma só veio a verificar-se após o encerramento do processo de venda no e-leilões, a verdade é que a mesma é bastante superior à proposta apresentada pela proponente B... Lda. e é mais favorável aos interesses de todos os Credores, pois que traz para a massa insolvente uma verba monetária superior e, por tal facto, não deve ser desconsiderada.

Assim, apesar do voto contra da Autoridade Tributária e as várias reticências do aqui signatário, a verdade é que a venda à C... é mais vantajosa para a massa insolvente e deve, por isso, ser aceite.

Desta posição assumida pelo signatário vai ser dado conhecimento à proponente B... Lda. para que a mesma possa agir em conformidade.

Poder-se-á porventura até sugerir um leilão presencial entre ambas as partes, se as mesmas concordarem com esse facto, algo que pode trazer alguma transparência ao presente caso”.

Confrontada com essa informação/decisão, B... Unipessoal, Lda veio apresentar reclamação, pugnando pela desconsideração da proposta apresentada pela C... (por ser extemporânea) e pela manutenção da validade do leilão com a consequente adjudicação do imóvel à Requerente (proponente) pelo valor da proposta aí apresentada.

 

Após pronúncia do Sr. Administrador e resposta da Insolvente e das credoras C... S.A. pugnando pela improcedência da reclamação e adjudicação do imóvel à C... conforme deliberado pela comissão de credores, veio a ser proferido despacho – em 16/05/2025 – onde se decidiu nos seguintes termos:

“...julgo procedente a reclamação deduzida pela proponente B..., Unipessoal, Lda. através do seu reqº de 27/03/2025 e, consequentemente, revogo a decisão do Exmº Sr. Administrador de Insolvência constante do ponto 1. da sua informação junta a este apenso no dia 17/03/2025, com respeito à aceitação da proposta efectuada pela credora C..., SA (no valor de 600.000€) relativamente à aquisição da Verba nº 1, e mantendo-se válido o referenciado leilão electrónico, determino que o Sr. Administrador da Insolvência promova toda a tramitação necessária à efectiva adjudicação de tal Verba à proponente B..., Unipessoal, Lda., desde logo a respectiva notificação para pagar o preço de € 490.000,00 e demonstrar o cumprimento das obrigações fiscais inerentes”.

Inconformada com essa decisão, a credora D..., Lda. veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…).

A credora C..., S.A., veio também interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…).

Igualmente inconformada com a decisão, a Insolvente A..., S.A., veio também interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…).

B... Unipessoal, Lda. respondeu ao recurso da Insolvente, formulando as seguintes conclusões:

(…).


/////

II.

Atendendo às conclusões das alegações – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – os recursos (três) incidem, no seu conjunto, sobre as seguintes questões:

1. Impugnação dos factos provados nºs 3 e 4;

2. Extinção do poder jurisdicional em face dos despachos de 29/05/2024 e 29/01/2025;

3. Competência do tribunal em relação às decisões do administrador da insolvência (no que toca a aceitação de propostas no âmbito da liquidação e venda dos bens) e forma de impugnação destas decisões;

4. Tempestividade ou extemporaneidade da proposta apresentada pela C..., S.A. e sua aceitação (ou não) em detrimento da proposta anteriormente apresentada pela B..., Unipessoal, Ld.ª.


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III.

Na decisão recorrida enunciaram-se como relevantes – e demonstrados nos autos – os seguintes factos:

1º. A ora Reclamante B... efectuou, no site e-leilões, uma proposta referente à aquisição da Verba nº 1 do auto de apreensão, correspondente ao prédio rústico sito em ..., união de freguesias ... e ..., concelho ..., descrito na Conservatória do registo predial sob o nº ...73 e inscrito na matriz predial rústica sob o art. ...59, colocada à venda pelo valor mínimo de € 390.000,00. (cfr. informação do Exmº AI de 31/01/2023, constante do presente apenso)

2º O leilão eletrónico em causa terminou no dia 26-01-2023, pelas 10h29m, tendo sido identificado na respectiva certidão de encerramento como melhor proposta a apresentada pela B..., Unipessoal, Lda., com o ...23, no valor de € 490.000,00, e como resultado «Superior ao mínimo». (cfr. informação do Exmº AI de 31/01/2023 constante do presente apenso)

3º A venda do imóvel em causa apenas não foi formalizada por a Insolvente, A..., S.A. e o seu Administrador, AA, terem colocado em crise o referido leilão, tendo solicitado o cancelamento e a anulação do mesmo, sendo que por decisão de 19/04/2023 foi indeferida a requerida anulação do referenciado leilão electrónico e foi o mesmo considerado válido e eficaz, tendo sido apresentado recurso desta última decisão, recurso esse que foi julgado improcedente (cfr., para além do mais, reqºs da Insolvente de 20/01/2023, 23/01/2023 e de 27/01/2023, informação do Exmº AI de 31/01/2023, reqº da B... de 22/02/2023, reqº do Exmº AI de 03/03/2023, reqº da Insolvente de 08/03/2023, despachos de 17/03/2023 e de 19/04/2023, alegações de recurso da Insolvente e de AA de 09/05/2023, despacho de 09/06/2023, informação do Exmº AI de 27/08/2024, todos constantes deste apenso, e os d. acórdãos da Relação de Coimbra proferidos no ap. O) .

4º Todos os procedimentos legais referentes ao leilão em causa foram cumpridos, tendo o referido leilão se realizado sem que fossem invocados, até à data do seu terminus, qualquer vício por parte dos credores, nomeadamente com garantia real, e sem que tivessem sido apresentadas, subsequentemente ao encerramento do referido leilão, quaisquer propostas nos termos do art. 164º, nº 3, do CIRE. (cfr. o que consta do presente apenso, nomeadamente a informação do Exmº AI de 31/01/2023 e o reqº do Exmº AI de 03/03/2023)

5º A sociedade C..., SA adquiriu, para além do mais, os créditos anteriormente detidos pela E..., SARL, incluindo o(s) crédito(s) garantido(s) por hipoteca voluntária em 1º grau sobre o prédio que constitui a verba nº 1, sendo que a referida C... foi, por sentença de 05/12/2023 proferida no ap. P, julgada habilitada para prosseguir os ulteriores termos dos autos de insolvência (e respectivos apensos) no lugar da cedente E... S.A.R.L. (cfr. o que consta dos apensos E e P).

6º A C..., SA, por carta datada de 16/11/2023 e remetida ao Exmº AI, referenciou que adquiriu os créditos que a E..., SARL e a F..., SARL detinham no âmbito do presente processo, pelo que adquiriu a qualidade de credora no âmbito do mesmo, «(…) apresentando, pela presente, ao abrigo do disposto no artigo 164º, nº 3, do CIRE, uma proposta, pelo valor de € 600.000,00 euros (seiscentos mil euros) para aquisição do prédio rústico sito em ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...73, da freguesia ..., e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo nº ...59, da união de freguesias ... e ....

Para o efeito, e nos termos do artigo 164º, nº 4, do CIRE, serve ainda o presente para remeter cheque visado, emitido à ordem da massa insolvente da A..., administrada por V.Exa, no valor de € 60.000,00 euros, correspondente a 10% do montante da proposta, encontrando-se a credora e aqui proponente dispensada do depósito do remanescente do preço, nos termos conjugados do disposto no artigo 165º, do CIRE com o disposto no artigo 815º, do CPC.

(…)». (cfr. reqº da C... de 16/11/2023, constante do presente apenso)

7º Notificado, por várias vezes, o Exmº AI para informar que decisão tomou sobre a adjudicação da verba nº 1 e sobre a tempestividade da apresentação da referida proposta por parte da C..., o Exmº AI, no ponto 1. do seu reqº de 17/03/2025 informou o seguinte a esse respeito:

«(…)

Na reunião de 13.12.2024, foi o ponto primeiro da ordem de trabalhos decidir que se adjudicasse a verba 1 à C..., a tal propósito votou favoravelmente os Credores C... e D..., tendo votado contra o Credor Autoridade Tributária.

Sucede que a eficácia de tal decisão ficou suspensa para que o aqui signatário submetesse ao Juiz do processo, a apreciação da tempestividade da proposta efetuada pela C... ao abrigo do disposto no n.º 3 do art. 164 do CIRE.

Ora, tendo o tribunal informado que não era da sua competência aferir da tempestividade ou não da proposta apresentada, o aqui signatário deu conhecimento da mesma ao proponente B... Lda., contendo a proposta da Credora C..., a qual foi formulada depois de decidida para si a adjudicação, informando que o Credor C... não se oporia a que, em alternativa, se pudesse adjudicar à B... a verba 1, pelo montante de 660.000 euros, ou seja, em valor superior em 10% do valor de adjudicação à C..., por tal se mostrar mais favorável aos interesses de todos os Credores.

Ora, apesar de se colocar aqui em causa a extemporaneidade da proposta apresentada, porquanto a mesma só veio a verificar-se após o encerramento do processo de venda no e-leilões, a verdade é que a mesma é bastante superior à proposta apresentada pela proponente B... Lda. e é mais favorável aos interesses de todos os Credores, pois que traz para a massa insolvente uma verba monetária superior e, por tal facto, não deve ser desconsiderada.

Assim, apesar do voto contra da Autoridade Tributária e as várias reticências do aqui signatário, a verdade é que a venda à C... é mais vantajosa para a massa insolvente e deve, por isso, ser aceite.

Desta posição assumida pelo signatário vai ser dado conhecimento à proponente B... Lda. para que a mesma possa agir em conformidade.

Poder-se-á porventura até sugerir um leilão presencial entre ambas as partes, se as mesmas concordarem com esse facto, algo que pode trazer alguma transparência ao presente caso.

(…)»

(cfr. despachos de 18/04/2024, 29/05/2024, 29/01/2025 e de 05/03/2025, e reqº do Exmº AI de 17/03/2025, todos constantes do presente apenso).


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IV.

Apreciemos então as questões suscitadas nos recursos acima enunciadas.

1. Impugnação dos factos provados nºs 3 e 4

(…).

(…) altera-se a redacção do citado ponto de facto que passará a ter a seguinte redacção:

4º Todos os procedimentos legais referentes ao leilão em causa foram cumpridos, tendo o referido leilão se realizado sem que fossem invocados, até à data do seu terminus, qualquer vício por parte dos credores, nomeadamente com garantia real, e sem que tivessem sido apresentadas quaisquer outras propostas, subsequentemente ao encerramento do referido leilão e até à data da apresentação da proposta referida no ponto 6.

2. Extinção do poder jurisdicional em face dos despachos de 29/05/2024 e 29/01/2025

Sustenta a Insolvente que, uma vez proferidos os despachos em causa – em que o Tribunal havia considerado e decidido que a decisão sobre a tempestividade e aceitação de propostas era da competência do Sr. Administrador da Insolvência e não do Tribunal – estava extinto o poder jurisdicional sobre essa matéria e, portanto, não podia ter vindo a apreciar essa questão (assumindo competência para tal) na decisão recorrida.

Salvo o devido respeito, não lhe assiste razão, porque os despachos em questão foram proferidos com base em pressupostos diferentes.

Os despachos de 29/05/2024 e de 29/01/2025 foram proferidos num momento em que não existia ainda qualquer decisão do Sr. Administrador sobre a matéria – ou seja, sobre a aceitação/rejeição das propostas em causa – e a decisão recorrida foi proferida após essa decisão do Sr. Administrador e em apreciação de reclamação deduzida em relação a essa decisão. Ora, o facto de se decidir que o Tribunal não tinha competência para decidir no primeiro momento (em substituição do Sr. Administrador porque este ainda não havia proferido qualquer decisão) não implicou qualquer decisão (expressa ou tácita) de que essa competência também não existisse em relação a reclamação que viesse a ser deduzida contra a decisão do Sr. Administrador que viesse a ser proferida e, nessa medida, tais despachos não obstavam a que o Tribunal viesse a assumir competência – como sucedeu – para apreciar e decidir esta reclamação.

Improcede, portanto, esta questão.

3. Competência do tribunal em relação às decisões do administrador da insolvência (no que toca a aceitação de propostas no âmbito da liquidação e venda dos bens) e forma de impugnação destas decisões;

Todas as Recorrentes contestam a competência do tribunal para se substituir ao administrador de insolvência na decisão sobre aceitação (ou não) da proposta aqui em causa e para revogar ou alterar a decisão por ele tomada, sustentando ainda a Insolvente que as decisões do administrador não são impugnáveis por reclamação incidental, mas sim por impugnação judicial com aplicação subsidiária do art.º 125.º do CIRE.

Apreciemos.

Com relevância para esta matéria, importa atentar, designadamente, nas seguintes disposições legais (todas do CIRE):

Art.º 55.º

1 - Além das demais tarefas que lhe são cometidas, cabe ao administrador da insolvência, com a cooperação e sob a fiscalização da comissão de credores, se existir:

a) Preparar o pagamento das dívidas do insolvente à custa das quantias em dinheiro existentes na massa insolvente, designadamente das que constituem produto da alienação, que lhe incumbe promover, dos bens que a integram;

(...)

Artigo 58.º

O administrador da insolvência exerce a sua actividade sob a fiscalização do juiz, que pode, a todo o tempo, exigir-lhe informações sobre quaisquer assuntos ou a apresentação de um relatório da actividade desenvolvida e do estado da administração e da liquidação”.

Art.º 158.º

1 - Transitada em julgado a sentença declaratória da insolvência e realizada a assembleia de apreciação do relatório, o administrador da insolvência procede com prontidão à venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente, independentemente da verificação do passivo, na medida em que a tanto se não oponham as deliberações tomadas pelos credores na referida assembleia...

(...)

Art.º 164.º

“1 - O administrador da insolvência procede à alienação dos bens preferencialmente através de venda em leilão eletrónico, podendo, de forma justificada, optar por qualquer das modalidades admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente.

(...)”.

Aquilo que se retira do CIRE e, designadamente, das referidas disposições legais é que, no âmbito das funções que lhe estão legalmente cometidas e, designadamente, em matéria de liquidação e venda dos bens onde se inclui a aceitação (ou não) de propostas que sejam apresentadas, é ao administrador de insolvência – e não ao juiz – que está atribuído o poder e o dever de tomar as decisões que sejam necessárias.

Releva notar que, em conformidade com o disposto no art.º 58.º, o juiz tem apenas um poder de fiscalização da actividade do administrador (que inclui o poder de lhe exigir informações ou apresentação de relatórios) sem que lhe seja atribuído qualquer poder – designadamente de direcção – que, de algum modo, lhe permita substituir-se ao administrador nas decisões que a este competem ou dar-lhe, nessa matéria, qualquer tipo de ordem ou instrução, não estando sequer prevista na lei a possibilidade de reclamação para o juiz em relação a actos ou decisões do administrador. Refira-se que a lei prevê, no art.º 78.º, a possibilidade de reclamação para o juiz de deliberações da assembleia de credores, pelo que, não tendo sido prevista essa possibilidade para os actos e decisões do administrador, impor-se-á concluir que o legislador pretendeu excluir, pelo menos em termos gerais, a intervenção judicial, no âmbito do processo de insolvência, para sindicância dos actos e decisões do administrador da insolvência. Esta conclusão está, aliás, perfeitamente alinhada com a afirmação constante do preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE, onde se refere na parte final do ponto 10 que “...na vertente da desjudicialização, há também que mencionar o desaparecimento da possibilidade de impugnar junto do juiz tanto as deliberações da comissão de credores (que podem, não obstante, ser revogadas pela assembleia de credores), como os actos do administrador da insolvência (sem prejuízo dos poderes de fiscalização e de destituição por justa causa)”.

Isso mesmo também é afirmado por Carvalho Fernandes e João Labareda[1] quando, depois de chamarem a atenção para o facto de ter desaparecido no actual Código o poder de direcção do juiz que lhe era atribuído pelo anterior CPEREF, dizem que essa circunstância tem como “...reflexo fundamental a circunstância de, fora dos poderes que lhe estão concretamente assinados, o juiz não dispor da faculdade de instruir o administrador sobre o modo de proceder, não poder impedi-lo de atuar, nem por contrapartida, o administrador estar sujeito a cumprir indicações que, nesses domínios, o juiz seja tentado a dar-lhe (...) Do mesmo modo, o juiz deixa de ter qualquer poder de censura dos atos do administrador praticados no exercício das suas funções, o que, aliás, é exaltado no preâmbulo do diploma que aprovou o Código (cfr.n.º 10, in fine)”.

Em matéria de liquidação da massa, os mesmos autores[2], depois de chamarem a atenção para a intensificação da desjudicialização do processo assumida pelo actual Código, referem que ela se traduziu em retirar ao juiz qualquer poder de decisão ou intervenção e, a nível ainda mais significativo, no desaparecimento da possibilidade de impugnar junto do juiz tanto as deliberações da comissão de credores como os actos do administrador da insolvência, sem prejuízo dos poderes de fiscalização e destituição sem justa causa, existindo, por outro lado, um reforço da competência do administrador que, sem prejuízo dos actos previstos na lei que dependem de autorização da comissão de credores ou da assembleia de credores,  “...não depende, em regra, de ninguém mais para promover a liquidação nas suas diversas manifestações...”, não existindo “... também, por regra, a possibilidade de reagir contra os seus atos em termos de os poder afetar, diferentemente do que antes sucedia”.

Não será, portanto, admissível, em termos gerais, a reclamação para o juiz em relação ao conteúdo substantivo de actos ou decisões do administrador, transferindo, dessa forma, para o juiz a decisão de matérias que são da competência do administrador da insolvência. O legislador – numa preocupação assumida de desjudicialização do processo – optou, de forma clara, por solução diferente, atribuindo essa competência ao administrador, responsabilizando-o pelos seus actos e pelos danos que eles venham a provocar nos termos previstos no art.º 59.º do CIRE, sem prejuízo da possibilidade de ser determinada a sua destituição nos termos previstos no art.º 56.º.

 Essa conclusão não poderá implicar, no entanto, a impossibilidade de reclamação para o juiz de irregularidades ou vícios formais dos procedimentos ou actos do administrador ao abrigo do regime geral de arguição de nulidades. Embora não lhe tenha sido conferido o poder de decidir e interferir no conteúdo substantivo das decisões ou opções que são da competência do administrador, não poderá deixar de ser reconhecido ao juiz o papel de garante da legalidade - em função do qual lhe foi conferido o poder de fiscalização da actividade do administrador da insolvência (cfr. art.º 58.º) – e de, nessa medida, poder controlar, a requerimento dos interessados, a regularidade formal dos actos e decisões do administrador e as eventuais nulidades processuais que por ele possam ser cometidas.

Essa possibilidade tem vindo, aliás, a ser admitida na nossa jurisprudência – ao nível, designadamente, da possibilidade de arguição da nulidade da venda no âmbito do processo de insolvência – argumentando-se que a negação dessa via processual implicaria violação do art.º 20.° da CRP por não assegurar tutela efectiva para o direito infringido e desconsiderar a possibilidade de pronta intervenção do julgador[3]. Refira-se que, em reconhecimento da necessidade de garantir aos interessados a arguição de nulidades praticadas no processo e, designadamente, a nulidade da venda que aí seja efectuada, o Tribunal Constitucional já julgou inconstitucional “...por violação do artigo 20.º, n.º 4, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, a norma contida nos artigos 163.º e 164.º, n.os 2 e 3, do CIRE, na interpretação segundo a qual o credor com garantia real sobre o bem a alienar não tem a faculdade de arguir, perante o juiz do processo, a nulidade da alienação efetuada pelo administrador com violação dos deveres de informação do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada[4].

Sobre esta matéria, importa ainda fazer alusão ao Acórdão do STJ de 09/07/2020 (processo n.º 1094/11.9TYLSB-R.L1.S1)[5]. Neste acórdão reconheceu-se que o legislador do CIRE pretendeu efectivamente afastar a possibilidade de impugnação dos actos do administrador directamente perante o juiz da insolvência, atribuindo, em contrapartida, aos credores e ao devedor um direito indemnizatório contra o administrador da insolvência pelos danos causados em decorrência da inobservância culposa dos respectivos deveres (substantivos ou de procedimento). Sustenta-se, no entanto, neste acórdão que aquela solução foi pensada unicamente para os credores e o insolvente, e, mesmo assim, apenas “por regra”, sendo certo que, estando em causa um terceiro – mais concretamente (em situação idêntica à que ocorre nos presentes autos) o terceiro que se apresentou como proponente no procedimento de venda e que invoca a irregularidade desse procedimento pelo facto de não ter sido dada sequência a esse procedimento e ter vindo a adjudicar o bem a outro interessado – a impugnação pode e deve ser deduzida de forma incidental no próprio processo de insolvência por aplicação do disposto nos artigos 91.º, n.º 1, 195.º, n.º 1, 723.º, n.º 1, alíneas c) e d), e 822.º, n.º 1 do CPC, aplicáveis por força dos artigos 1.º e 17.ºdo CIRE, acrescentando (na anotação 4) que “...a interpretação de uma qualquer norma do CIRE, nomeadamente a do n.º 1 do art. 164.º, no sentido de que está afastada a possibilidade de um terceiro prejudicado impugnar perante o juiz do processo de liquidação insolvencial o ato irregular do administrador da insolvência, tendo esse terceiro que recorrer necessariamente a uma ação judicial autónoma como meio de neutralizar o ato, viola o artigo 20.º, n.ºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa, por não assegurar imediatamente no processo uma tutela jurisdicional efetiva para o direito infringido, atentando desse modo contra o princípio da proibição da indefesa”.

À luz de tudo o exposto, poderemos então concluir:

· Em termos gerais – por opção e vontade do legislador e no contexto do regime legal por ele definido –, não é admissível, no âmbito do processo de insolvência, a reclamação para o juiz em relação ao conteúdo substantivo de actos ou decisões do administrador de insolvência em matérias que são da competência deste, designadamente no âmbito da liquidação do activo (definição da modalidade da venda ou aceitação/rejeição de propostas), não assistindo ao juiz o poder de se substituir ao administrador nessas decisões nem o poder de nelas interferir ou de as revogar ou alterar;

· Essa regra/princípio – claramente instituído pelo CIRE – não afasta, contudo, o regime próprio de arguição de nulidades e, consequentemente, a possibilidade de reclamação para o juiz da insolvência de irregularidades ou vícios formais dos procedimentos ou actos do administrador da insolvência

Tendo presentes essas conclusões, reportemo-nos agora directamente à situação dos autos.

A reclamação apreciada pela decisão recorrida incide sobre a decisão do Sr. Administrador que, confrontado com duas propostas nos termos acima descritos e com a invocação da extemporaneidade da segunda proposta, decidiu aceitar esta última.

É indiscutível que, na sequência do que se disse supra, a decisão sobre aceitação/rejeição de propostas apresentadas no âmbito da liquidação é da competência do administrador de insolvência e, não estando prevista – e não sendo, por isso, admissível – a reclamação para o juiz de actos/decisões do administrador, dir-se-ia, em princípio, que a decisão em questão não era susceptível de reclamação incidental no âmbito do processo de insolvência[6].

Mas, como também já se disse, não poderá deixar de ser admitida – e apreciada – a reclamação que visa atacar o acto ou decisão do administrador com fundamento em irregularidades ou vícios formais que, se reconduzem, em bom rigor, a nulidades processuais. Uma solução contrária a essa afectaria, de modo relevante, os interessados envolvidos que, perante uma irregularidade/ilegalidade que poderia ser fácil e imediatamente neutralizada, seriam obrigados a recorrer a meios mais complexos e morosos que, eventualmente, nem seriam adequados a satisfazer integral e atempadamente o seu direito, culminando – como se considerou nos Acórdãos acima mencionados – numa violação do art.º 20.º da CRP por não ser assegurada uma tutela jurisdicional efectiva para o direito em causa.

Ora, no caso em análise, a reclamação assenta – como se disse – na extemporaneidade da proposta que veio a ser aceite pelo Sr. Administrador por não ter sido apresentada no “tempo útil” a que se reporta o n.º 3 do art.º 164.º do CIRE, estando em causa, portanto e em bom rigor (ainda que a questão possa não ser inteiramente líquida), uma ilegalidade e vício formal (por, alegadamente, estar em causa uma proposta irregular que não podia ser aceite e por não ter sido dada sequência ao procedimento que se impunha após a conclusão do leilão com vista à adjudicação do bem à proponente que aí havia apresentado a proposta de maior valor) que, na sequência do que se disse supra, pode e deve ser apreciada pelo juiz do processo de insolvência na sequência de reclamação apresentada pelo proponente preterido, conforme também se considerou (em situação idêntica) no Acórdão do STJ de   09/07/2020 supra referido.

 Improcede, portanto, em razão do exposto, a questão em apreciação que foi suscitada pelas Recorrentes. A decisão do Sr. Administrador era impugnável por via de reclamação para o juiz, nos termos mencionados, e, como tal, o Tribunal (o juiz) tinha competência para a apreciar.

4. Tempestividade ou extemporaneidade da proposta apresentada pela C..., S.A. e sua aceitação (ou não) em detrimento da proposta anteriormente apresentada pela B..., Unipessoal, Ld.ª

Esta questão relaciona-se com o disposto no art.º 164.º do CIRE onde se determina que o credor com garantia real sobre o bem a alienar – como era o caso da C... – é informado do valor base fixado ou do preço da alienação projectada a entidade determinada, podendo o credor, no prazo de uma semana, ou posteriormente mas em tempo útil, propor a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projectada ou ao valor base fixado, caso em que o administrador da insolvência, se não aceitar a proposta, fica obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação a esse preço, caso ela venha a ocorrer por preço inferior.

Discute-se nos autos se a proposta apresentada pela C... foi ou não apresentada em tempo útil para os efeitos da referida disposição legal, em termos que permitissem ao Sr. Administrador aceitar essa proposta em detrimento da proposta (de menor valor) que havia sido apresentada no leilão electrónico a que se havia procedido e que correspondia à melhor proposta aí obtida.

A decisão recorrida considerou que não, dizendo que “...a então credora com garantia real (E..., SARL) apenas poderia ter apresentado uma proposta no prazo de uma semana a partir da determinação da modalidade da venda e da fixação do valor base, ou em tempo útil, considerando-se este até ao termo do leilão efectuado” (sublinhado nosso) e que a C..., enquanto adquirente/cessionária do crédito em causa, não poderia beneficiar de prazos que já estavam ultrapassados. Assim, considerando – com apelo às regras legais do leilão electrónico – que a proposta da B... aí apresentada se deve considerar aceite (ainda que não tivesse depositado o preço e pago os respectivos impostos porque não havia sido notificada para tal) e considerando que a proposta apresentada pela C... era extemporânea, julgou procedente a reclamação, revogando a decisão do Sr. Administrador e determinando a tramitação necessária para adjudicação do bem à proponente B..., Unipessoal, Lda. pelo valor da proposta que havia apresentado no leilão (490.000,00€).

Analisemos.

Apesar de aludir à possibilidade de apresentação de proposta pelo credor garantido após o decurso do prazo de uma semana ali estabelecido (prazo que, no caso, já estava ultrapassado) desde que o seja em tempo útil, a lei não esclarece o que deve entender-se por “em tempo útil”.

Segundo Carvalho Fernandes e João Labareda[7], a proposta é apresentada em tempo útil se o for antes da concretizada a venda ou da tomada de compromisso firme de vender assumido pelo administrador.

Aceitando essa orientação, resta, no entanto, saber quando se deve ter por assumido o compromisso firme de vender quando – como aqui acontecia – está em causa uma venda por leilão electrónico que havia terminado com a selecção da melhor oferta (da B...) que era superior ao valor base fixado.

Refira-se, desde já, que, ao contrário do que sustenta a Apelante C..., não há razões que justifiquem a aplicação por analogia do regime legalmente estabelecido para o direito de remição, onde se determina que esse direito pode ser exercido até ao momento da entrega dos bens ou da assinatura do título que documenta a venda (cfr. art.º 843.º, n.º 1, b), do CPC). E não há razões para estabelecer essa analogia porque, ao contrário do que acontece no direito de remição – onde o direito é exercido em relação ao valor de uma venda ou adjudicação já realizada ou acertada (ainda que não formalizada ou materialmente concretizada pela entrega dos bens) – o credor garantido, no exercício da faculdade conferida pelo citado art.º 164.º, não tem o direito de adquirir o bem pelo valor de uma venda ou adjudicação já assente e definida, tendo apenas o direito de apresentar, nos prazos ali estabelecidos, uma proposta que, caso seja superior ao valor pelo qual o bem venha a ser vendido, o coloca na posição definida na referida disposição legal, ou seja, em posição de dever ser colocado na situação que decorreria da alienação pelo preço que havia proposto.

Ao definir que, para os efeitos referidos na citada disposição legal, a proposta em questão deve ser apresentada em tempo útil, o legislador terá pretendido reportar-se a um momento anterior àquele em que a venda ou adjudicação é realizada, ou seja, a um momento em que não esteja ainda configurado, em termos definitivos, o propósito de vender/adjudicar a pessoa determinada e mediante condições já definidas.

E em que momento devemos ter como reunidas essas circunstâncias no caso de venda por leilão electrónico?

A venda por leilão electrónico é prevista pelo art.º 837.º do CPC, onde se determina que ela é regulada por portaria – mais concretamente a Portaria n.º 282/2013 de 29/08 – e, em tudo o que não se encontre previsto nessa Portaria, pelas regras relativas à venda em estabelecimento de leilão, importando ainda atender ao Despacho n.º 12624/2015, de 09 de Novembro que estabelece as regras de funcionamento da plataforma disponibilizada para a realização dos leilões.

O leilão electrónico corresponde a uma licitação, realizada nos termos ali definidos, que se destina a encontrar a melhor oferta pelo bem e, uma vez apurada esta proposta (a proposta de maior valor que seja superior ao valor mínimo e que se considera escolhida ou selecionada à luz do disposto no art.º 23.º da referida Portaria) – facto que é certificado após a conclusão do leilão[8] –, determina o n.º 10 do art.º 8º do citado Despacho que o agente de execução (ou o administrador da insolvência) deve dar início, no prazo de dez dias, a toda a tramitação necessária para que a proposta se considere aceite e o bem seja adjudicado ao proponente, nos termos previstos para a venda por proposta em carta fechada. Parece, portanto, que, ao contrário do que acontece na abertura de propostas em carta fechada (cfr. arts. 820.º e 821.º do CPC), não existe no leilão electrónico qualquer deliberação posterior tendente à aceitação ou rejeição da proposta de maior valor; uma vez selecionada a melhor oferta findo o leilão, desde que ela seja superior ao valor mínimo, o agente de execução (ou administrador de insolvência) fica obrigado a aceitar a proposta e a dar início aos procedimentos tendentes à adjudicação do bem que apenas poderá deixar de ser efectuada se o proponente não cumprir as suas obrigações (pagando o preço devido) ou se vier a ser exercido qualquer direito que possa e/ou deva ser exercido após esse momento, como é o caso do direito de preferência ou remição.

Significa isso, portanto, que, uma vez decidido que a venda é feita por leilão electrónico e fixado e definido o preço mínimo, o agente de execução (ou o administrador de insolvência) não é admitido a rejeitar a proposta de maior valor que aí venha a ser apresentada e que seja superior ao valor mínimo, só lhe sendo permitido vender ou adjudicar a outrem o bem em questão se o proponente incumprir a sua obrigação de pagamento do preço ou se for exercido algum direito que, nos termos da lei, possa e deva ser exercido após esse momento, como é o caso do direito de preferência ou do direito de remição (direitos que, conforme se referiu, são exercidos em relação a uma venda já assente e definida). E, se é certo que o citado art.º 164.º não confere ao credor garantido qualquer direito de preferência ou de remição, tão pouco se poderá afirmar – como afirma a Insolvente – que lhe confira um direito potestativo que deve ser enquadrado no art.º 26.º, n.º 2, da Portaria n. 282/2013, porquanto, ao contrário do que acontece com o direito de preferência ou de remição, não existe nenhuma disposição legal que confira ao credor garantido o direito de se sobrepor na aquisição do bem em relação a uma proposta que já foi ou se deva ter por aceite e, consequentemente, em relação a uma venda cuja concretização já se deve por ter como firmada entre as partes (o proponente e o administrador); não é esse o direito que é conferido ao credor garantido pelo art.º 164.º do CIRE, mas sim o direito de apresentar e ver considerada uma proposta que seja apresentada em tempo útil, ou seja, antes de consumado o compromisso firme de vender a outrem, o que, no caso do leilão electrónico, se deve ter como verificado com o encerramento do leilão e em relação à proposta de maior valor que aí tenha sido apresentada e que seja superior ao valor mínimo.

Nas circunstâncias referidas, a proposta do credor garantido para os efeitos previstos no n.º 3 do art.º 164.º do CIRE será apresentada em tempo útil se for apresentada até ao inicio do leilão ou se for apresentada durante e no âmbito do próprio leilão. Uma vez terminado o leilão com apresentação de propostas de valor superior ao valor mínimo previamente definido, o administrador da insolvência está vinculado à proposta de maior valor que ali tenha sido obtida – independentemente de qualquer declaração expressa da sua aceitação  – e qualquer proposta que venha a ser apresentada pelo credor garantido apenas pode ser considerada se o leilão vier a ser anulado ou se o proponente que apresentou a melhor proposta vier a incumprir a sua obrigação de pagamento do preço, determinando que a venda fique sem efeito nos termos previstos no art.º 825.º do CPC[9].

No caso em análise, o leilão electrónico havia terminado em 26/01/2023 com a certificação de que a melhor proposta obtida (superior ao valor mínimo) era a proposta apresentada pela B..., Lda, no valor de 490.000,00€ e, não tendo existido qualquer irregularidade no leilão, o Sr. Administrador estava vinculado, nos termos acima mencionados, a essa proposta e estava obrigado a executar os procedimentos necessários com vista à respectiva adjudicação, sem que lhe fosse permitido, nesse momento, aceitar qualquer outra proposta (ainda que de valor superior). Nessas circunstâncias, a proposta de maior valor que veio a ser apresentada pela C... uns meses mais tarde (em 16/11/2023) apenas poderia ser aceite se a anterior proponente viesse a faltar ao cumprimento das suas obrigações e não procedesse ao pagamento do preço, determinando que a venda ficasse sem efeito (cfr. art.º 825.º do CPC e art.º 25.º da Portaria acima identificada).

Em face disso, coloca-se agora a questão de saber se a proponente faltou (ou não) ao cumprimento da sua obrigação de pagamento do preço.

Sustentam as Apelantes que tal obrigação não foi cumprida em momento oportuno, sendo certo que não tal não foi feito no prazo legal após o leilão, tendo a proponente B... permanecido inactiva durante 7 meses após a validação do leilão e confirmação da sua eficácia pela Relação de Coimbra.

Pensamos, porém, que a posição sustentada pelas Apelantes não tem fundamento.

Na verdade, ainda que, como se disse, o agente de execução ou administrador de insolvência estejam vinculados a aceitar a melhor proposta que, sendo superior ao valor mínimo, seja obtida no leilão, isso não significa que não tenham o dever de notificar aos interessados o resultado do leilão e de notificar o proponente que apresentou a proposta seleccionada (a de maior valor) para depositar o preço e cumprir as suas obrigações fiscais em conformidade com o disposto no art.º 824.º, n.º 2, do CPC, ainda que essa notificação se considere efectuada pela publicação na plataforma www.e-leiloes.pt. a que o agente de execução ou administrador de insolvência estão obrigados (cfr. n.º 11 do art.º 8.º e art.º 10.º do Despacho 12624/2015).

Ora, no caso em análise, não há notícia de que o Sr. Administrador tenha procedido a tal notificação (fosse directamente à proponente ou fosse por via da sua publicação na plataforma em questão).

Na verdade, conforme resulta dos autos, o Sr. Administrador limitou-se a comunicar aos autos – em 31/01/2023 – o resultado do leilão, pedindo que o Tribunal e os credores se pronunciassem sobre a aceitação e validade do leilão, tendo em conta as dúvidas que vinham sendo levantadas sobre a sua regularidade, tudo indicando que não chegou a efectuar qualquer notificação ao proponente com vista ao depósito do preço, sendo certo que não lhe fez qualquer alusão, o que, além do mais, veio a ser confirmado pela proponente mediante requerimento de 22/02/2023.

Ou seja, o Sr. Administrador não deu sequência ao procedimento que se impunha na sequência do leilão com vista à adjudicação do bem à proponente e não o fez por causa das dúvidas que vinham sendo suscitadas a propósito da regularidade do leilão.

Tão pouco seria exigível à proponente que procedesse, por sua iniciativa e independentemente de qualquer notificação, ao depósito do valor da proposta que havia apresentado, tendo em conta a tramitação processual na sequência do leilão e a indefinição que se gerou sobre essa matéria (num primeiro momento, a indefinição sobre a validade do leilão que veio a culminar com o indeferimento do pedido de anulação do leilão por decisão confirmada por Acórdão desta Relação de 12/09/2023 e posterior Acórdão de 21/11/2023 incidente sobre arguição de nulidade e pedido de reforma do primeiro Acórdão; num segundo momento, a indefinição provocada pela apresentação da proposta da C... que veio colocar a questão – que está em apreciação neste recurso – de saber qual das duas propostas devia ser aceite). Não seria, portanto, exigível que a proponente B... procedesse ao depósito do preço sem que tivesse sido notificada para o efeito e sem que fosse esclarecido e definido se a sua proposta seria ou não considerada.

Assim, ao contrário do que sustentam as Apelantes, não há fundamento para concluir que a proponente B... tenha faltado ao cumprimento da sua obrigação de pagamento do preço.

Concluímos, portanto, em razão de tudo o exposto, que a proposta da C... não pode, por ora, ser aceite. Essa proposta apenas poderá ser considerada se, após notificação para o efeito, a B... não depositar o preço correspondente ao valor da proposta que apresentou no âmbito do leilão electrónico e se, por força dessa situação, a venda vier a ficar sem efeito nos termos previstos no art.º 825.º do CPC.

Improcedem, portanto, os recursos, confirmando-se a decisão recorrida.


******

SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

(…).


/////

V.
Pelo exposto, negamos provimento aos recursos, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo das Apelantes.
Notifique.

                              Coimbra,

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                                      (Paulo Correia)

                                                (José Avelino Gonçalves) 


[1] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, págs. 340 e 341.
[2] Cfr. ob. cit., pág. 603.
[3] Cfr. Acórdãos do STJ de 04/04/2017 (processo n.º 1182/14.0T2AVR-H.P1) e de 15/02/2018 (processo n.º 4488/11.6TBLRA-M.C1.S1); Acórdão da Relação do Porto de 24/10/2019 (processo n.º 264/15.5T8VNG-E.P1); Acórdãos da Relação de Lisboa de 08/03/2022 (processo n.º 150/19.0T8BRR-C.L1-1) e de 23/05/2019 (processo n.º 1094/11.9TYLSB-R.L1-2) e Acórdão da Relação de Guimarães de 22/10/2020 (processo n.º 1942/19.5T8GMR-F.G1), todos disponíveis em https://www.dgsi.pt.
[4] Cfr. Acórdão n.º 616/2018, de 21/11/2018 (processo n.º 251/2018) em www.tribunalconstitucional.pt
[5] Disponível em https://www.dgsi.pt.
[6] Assim se considerou nos Acórdãos da Relação de Lisboa 12/04/2018 (processo n.º 19657/15.1T8LSB-F.L1-2), da Relação do Porto de 29/05/2014 (processo n.º 615/11.1TYVNG-D.P1) e da Relação de Guimarães de 30/06/2022 (processo n.º 956/14.6TBVRL-AB.G1), disponíveis em https://www.dgsi.pt.   
[7] Ob. cit., pág. 619.
[8] Certificação que, nos termos previstos no art.º 2.º, n.º 1, alínea c), e art.º 8.º, n.º 2, do Despacho 12624/2015 corresponde a acto público, em regra presidido por agente de execução.
[9] Em sentido idêntico ou próximo, vejam-se os Acórdãos da Relação do Porto de 24/09/2024 (processo n.º 1844/22.8T8AMT-E.P1) e de 05/11/2024 (processo n.º 505/14.6T8AMT-F.P1); o Acórdão da Relação de Lisboa de 16/01/2025 (processo n.º 1373/23.2T8SNT-C.L1-8) e o Acórdão da Relação de Évora de 27/05/2021 (processo n.º 676/18.2T8OLH-C.E1), todos disponíveis em https://www.dgsi.pt.