ACIDENTE DE TRABALHO
JOGADOR PROFISSIONAL
PARTICAÇÃO EM JOGO DA SELEÇÃO NACIONAL
Sumário

I - Constitui acidente de trabalho a lesão desportiva sofrida por jogador profissional de futebol aquando da sua participação em jogo da seleção nacional, uma vez que esta sua atividade se encontra prevista no contrato de trabalho e decorre de obrigações impostas ao jogador e ao clube, não deixando o atleta, nessas circunstâncias, de estar a desempenhar a prática desportiva para a qual foi contratado.
II - Considerando o disposto pelo art.º 79.º, nº 1, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, pelo art.º 9º, nº 1, da Lei n.º 27/2011, de 16 de junho, pelo art.º 2.º, n.º 3, do Anexo I do Regulamento Relativo ao Estatuto e Transferências de Jogadores, da FIFA, e a apólice do seguro, a transferência para a R. seguradora da responsabilidade por acidentes de trabalho abrange todas as dimensões da atividade do atleta que seja desenvolvida em execução do programa contratual contemplado no contrato de trabalho, como é o caso da sua participação em jogos da respetiva seleção nacional.

Texto Integral

Processo n.º 2922/22.9T8OAZ.P1

Origem: Comarca de Aveiro, Juízo do Trabalho de Oliveira de Azeméis

Acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

Relatório

AA propôs a presente ação especial emergente de acidente de trabalho contra a A... – Companhia de Seguros, SA, e o B..., SDUC, pedindo a condenação das rés, na medida da respetiva responsabilidade, a pagar ao sinistrado uma pensão anual e vitalícia, no valor que resultar da consideração do salário invocado (€ 114.046,90), e do grau de desvalorização que lhe vier a ser reconhecido na sequência da junta médica, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa anual de 4%, desde a data do respetivo vencimento até integral pagamento.

Alegou, em síntese, que sofreu acidente que deve ser considerado como de trabalho, porque, apesar de o acidente ter ocorrido quando o sinistrado estava a prestar a sua atividade ao serviço da seleção ... de futebol, agiu com autorização e no interesse económico da própria ré empregadora e, por isso, tem direito às prestações indicadas, sendo que a seguradora deve ser responsabilizada na medida em que não existe, na apólice de seguro, qualquer exclusão.

Contestaram as rés, seguradora e empregadora, defendendo que o evento em discussão não deve ser considerado como um acidente de trabalho, na medida em que o autor exercia a sua atividade, não ao serviço da ré empregadora, mas ao serviço da seleção ... de futebol, sem estar sujeito à autoridade da ré empregadora e sem que exista um interesse económico desta, pelo que não só não estamos perante um acidente de trabalho, nos termos da lei portuguesa, como tal evento não está coberto pelo seguro de acidentes de trabalho celebrado.

Foi proferido despacho saneador, foram delimitados os temas de prova, e foi organizado apenso destinado à fixação da incapacidade permanente, tendo nele sido proferida sentença que fixou em 7,318% a incapacidade permanente parcial de que o autor se encontra afetado.

Realizou-se audiência de julgamento, na sequência da qual foi proferida sentença que culminou no seguinte dispositivo:

“Pelo exposto, julgo procedente a ação e, em consequência, declaro que autor sofreu um acidente de trabalho em 2 de setembro de 2021 com consolidação das lesões em 19 de agosto de 2022 e, por conseguinte, condeno as rés a pagar ao autor as seguintes prestações:

Ré seguradora:

A pensão anual, vitalícia e atualizável de € 4.831,87, devida a partir de 20 de agosto de 2022, atualizada para € 5.237,75 a partir de 1 de janeiro de 2023, para € 5.552,02 a partir de 1 de janeiro de 2024 e para € 5.696,37 a partir de 1 de janeiro de 2025, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o vencimento de cada prestação mensal até integral pagamento; e

Ré empregadora:

A pensão anual, vitalícia e atualizável de € 1.010,30, devida a partir de 20 de agosto de 2022, atualizada para € 1.095,17 a partir de 1 de janeiro de 2023, para € 1.160,88 a partir de 1 de janeiro de 2024 e para € 1.191,06 a partir de 1 de janeiro de 2025, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o vencimento de cada prestação mensal até integral pagamento.

Mais condeno as rés no pagamento das custas, na proporção da responsabilidade.”

O valor da causa foi fixado em: € 97.429,87 (noventa e sete mil quatrocentos e vinte e nove euros e oitenta e sete cêntimos).


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Não se conformando, a ré seguradora interpôs recurso da sentença, impugnando-a de facto e de direito, concluindo as suas alegações nos seguintes termos:

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Também a ré empregadora não se conformou, tendo interposto recurso da sentença, apresentando alegações que culminaram nas seguintes conclusões:

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O autor apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência dos recursos interpostos pelas rés.

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Os recursos foram regularmente admitidos e recebidos os autos neste Tribunal, o Ministério Público, emitiu parecer ao abrigo do disposto pelo art.º 87.º, n.º 3 do Código de Processo do Trabalho (CPT), concluindo pela improcedência dos recursos interpostos pelas rés.

Nenhuma das partes se pronunciou sobre o parecer do Ministério Público.


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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

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Delimitação do objeto do recurso

Resulta do art.º 81.º, n.º 1 do CPT e das disposições conjugadas dos arts. 639.º, nº 1, 635.º e 608.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis por força do disposto pelo art.º 1.º, n.º 1 e 2, al. a) do CPT, que as conclusões delimitam objetivamente o âmbito do recurso, no sentido de que o tribunal deve pronunciar-se sobre todas as questões suscitadas pelas partes (delimitação positiva) e, com exceção das questões do conhecimento oficioso, apenas sobre essas questões (delimitação negativa).

Assim, são as seguintes as questões a decidir:

- se há lugar à alteração a decisão de facto;

- se o autor sofreu um acidente de trabalho da responsabilidade da empregadora;

- em caso de resposta positiva à questão que antecede, se a responsabilidade pela reparação das consequências do acidente de trabalho integra o âmbito do contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado pelas rés.


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Fundamentação de facto

Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:

«1. O Autor é Praticante Desportivo Profissional da modalidade de futebol.

2. Tem nacionalidade ... e, para o que aqui interessa, veio residir, com a sua família, para a cidade ... para aí exercer a sua actividade profissional ao serviço da 2.ª RÉ B... SDUQ.

3. No âmbito da sua profissão, celebrou em 26 de Janeiro de 2021 com a 2.ª Ré B... SDUQ, LDA, um contrato individual de trabalho.

4. Através desse Contrato de Trabalho, o Autor obrigou-se a prestar com regularidade a actividade de futebolista profissional ao clube, em representação, sob autoridade e direcção da 2.ª Ré B..., mediante retribuição (cláusula segunda do contrato de trabalho).

5. Tal contrato de trabalho foi celebrado e válido para as épocas desportivas 2020/2021, 2021/2022 e 2022/2023, com início em 26 de Janeiro de 2021 e teve seu termo final, por caducidade, em 30 de Junho de 2023.

6. A retribuição global dos Praticantes Desportivos Profissionais é acordada, e fixada, por épocas desportivas, que se iniciam em 1 Julho de cada ano e terminam a 30 de Junho do ano seguinte, e não por anos civis.

7. Para a época desportiva de época 2021/2022, e nos termos do n.º 2, n.º 5 e n.º … da Cláusula Terceira, a 2.ª Ré obrigou-se a pagar ao autor:

A) “2. A remuneração global liquida de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), como contrapartida da actividade por este exercida na época desportiva 2021/2022, bem como pela cedência dos direitos referidos na cláusula 10.ª e que será paga em 10 (dez) prestações mensais e iguais, liquidas, de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) cada, as quais incluem os proporcionais correspondentes aos subsídios de férias e de natal, subsídio de refeição e ainda a compensação prevista no art.° 344.°, n.° 2 do Código do Trabalho, com vencimento no dia 05 do mês seguinte a que disser respeito, com início no dia 05 de Setembro de 2021.”

B) “5. Na época desportiva de 2021/2022, a B... pagará também ao JOGADOR um subsídio de fixação, no valor anual líquido de € 2.750,00 (dois mil setecentos e cinquenta euros) que será paga faseadamente, em 11 (onze) prestações mensais, iguais e sucessivas, no valor de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) com vencimento no dia 15 do mês seguinte a que disser respeito, com inicio no dia 15 de agosto de 2021, para a época desportiva de 2021/2022.”

8. A 2.ª Ré B..., logo na época 2020/2021 conseguiu uma classificação final que lhe permitiu disputar na época desportiva de 2021/2022, o escalão máximo do futebol português, denominada de primeira liga ou equivalente.

9. Autor e ré empregadora acordaram, nos termos do n.º 7 da Cláusula Quarta: “7. Caso a B..., na época de 2020/2021 ou 2021/2022, atinja uma classificação final, que lhe permita disputar na época desportiva de 2021/2022 ou 2022/2023, o escalão máximo do futebol português, denominada de primeira liga ou equivalente, o vencimento líquido do JOGADOR sofre um aumento de passando a auferir a remuneração global líquida de € 70.000,00 (setenta mil euros), como contrapartida da actividade por este exercida nas épocas desportivas 2021/2022 e 2022/2023, bem como pela cedência dos direitos referidos na cláusula 10.ª e que será paga em 10 (dez) prestações mensais e iguais, líquidas, de € 7.000,00 (sete mil euros) cada, as quais incluem os proporcionais correspondentes aos subsídios de férias e de natal, subsidio de refeição e ainda a compensação prevista no art.° 344.°, n.º 2 do Código do Trabalho, com vencimento no dia 05 do mês seguinte a que disser respeito.

10. E, pelo facto de nessa época 2021/2022, a Ré B... estar a disputar a 1.ª Liga, a remuneração global líquida do Autor sofreu um aumento de 100%, passando, por efeito do previsto no n.º 5 da Cláusula Quarta, a auferir uma remuneração global líquida de € 70.0000,00, a ser paga em 10 prestações anuais no valor líquido de € 7.000,00.

11. Ao que correspondeu a retribuição anual bruta de € 111.346,90 a título de remuneração, como provam os recibos de vencimento de Agosto de 2021 a Junho de 2022.

12. Ao salário auferido, e porque o Autor não é português nem tinha residência em Portugal, a 2.ª Ré B... também obrigou-se a pagar ao Autor/Sinistrado um subsídio de fixação, conforme n.º 5 e n.º 8 da Cláusula Terceira do Contrato de Trabalho, que aqui se cita:

«5. Na época desportiva de 2021/2022, a B... pagará também ao JOGADOR um subsídio de fixação, no valor anual líquido de € 2.750,00 (dois mil setecentos e cinquenta euros) que será paga faseadamente, em 11 (onze) prestações mensais, iguais e sucessivas, no valor de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) com vencimento no dia 15 do mês seguinte a que disser respeito, com inicio no dia 15 de agosto de 2021, para a época desportiva de 2021/2022.

8. O direito ao subsidio de fixação caduca na data de cessação do presente contrato ou na data em que a competição oficial e treinos for declarada suspensa e/ou finda, independentemente da razão subjacente a tal declaração.»

13. O Autor trabalhou para a Ré B... até 30 de Junho de 2023 e, inclusive, na época 2021/2022, sendo que a 2.ª Ré B..., em cumprimento do acordado no n.º 5 da Cláusula Terceira do Contrato de Trabalho, pagou ao Autor a acordada quantia de € 250,00 x 11 meses a título de subsídio de fixação, no total de € 2.750,00.

14. Tal subsídio de fixação foi mensalmente pago, pela 2.ª Ré ao Autor, através de cheque bancário, durante os 11 meses previstos para a época 2021/2022.

15. Através da Apólice n.º ... junta a estes autos pela Entidade Responsável A..., S.A., a Entidade Patronal tinha a sua responsabilidade pelos danos emergentes do acidente de trabalho parcialmente transferida para a 1.ª Ré Seguradora, através de contrato de seguro, sendo a responsabilidade patronal transferida pela remuneração anual bruta de, pelo menos, € 94.324,56.

16. Submetido a exame médico no GML de Entre Douro e Vouga à ordem dos presentes autos, concluiu que, relativamente ao acidente de trabalho acima descrito:

• Os elementos disponíveis permitem admitir o nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano;

• A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 19/08/2022.

• Incapacidade temporária absoluta fixável num período total de 382 dias.

• Incapacidade permanente parcial fixável em 5,0000%.

17. Durante os períodos de ITA, o Autor/Sinistrado recebeu integralmente o seu salário e demais prestações, sempre pagas pela 2.ª Ré B... SDUQ.

18. Realizada a tentativa de conciliação, viria a mesma a frustrar-se, apenas pelas seguintes razões:

1) O Sinistrado/Autor não se conciliou por discordar da proposta do Procurador do Ministério Público por entender, em resumo:

• Que à data do acidente auferia a retribuição anual ilíquida de € 114.046,90

• Por entender padecer de um grau de Ipp de, pelo menos, 12,5% T.N.I.;

2) A 2.ª Ré A... não aceitou conciliar-se por, e passa-se a citar: «…não aceita qualquer responsabilidade pelo alegado acidente por ter ocorrido ao serviço da selecção nacional da ... e não ao serviço da Entidade patronal. A sua representada não aceita a existência do acidente, nem a sua caracterização como de trabalho, nem o nexo de causalidade entre o mesmo e as lesões sofridas. Aceita apenas a categoria profissional e que o valor de retribuição anual ilíquida transferido pela entidade patronal para a seguradora é de € 94.324,56. Não concorda igualmente com o coeficiente de desvalorização arbitrado ao mesmo pelo Exmo. Perito do Gabinete Médico-Legal e Forense de Entre Douro e Vouga.

Consequentemente, nada aceita pagar ao sinistrado, a titulo de capital de remição, pensão anual ou a titulo de despesas, ou a qualquer outro titulo.»

3) A 3.ª Ré B... não aceitou conciliar-se por, e passa-se a citar: «… não aceita qualquer responsabilidade pelo alegado acidente por ter ocorrido ao serviço da selecção nacional da ... e não ao seu serviço. Pelo que, não aceita a existência do acidente, nem a sua caracterização como de trabalho, nem o nexo de causalidade entre o mesmo e as lesões sofridas. Aceita apenas a categoria profissional e que o valor de retribuição anual ilíquida é de € 94.324,56. Também não concorda com o coeficiente de desvalorização arbitrado ao mesmo pelo Exmo. Perito do Gabinete Médico-Legal e Forense de Entre Douro e Vouga. Consequentemente, nada aceita pagar ao sinistrado, a titulo de capital de remição, pensão anual, ou a titulo de despesas, ou a qualquer outro titulo.»

19. No dia 2 de Setembro de 2021, pelas 20:20 de dia e hora local, durante um jogo de futebol da sua selecção da ... contra a ..., para o Grupo de Apuramento para o Campeonato do Mundo de Futebol no Qatar 2022, disputado no Estádio ..., na cidade ..., na ..., quando o Autor prestava o seu trabalho com a categoria de praticante desportivo profissional de futebol, sofreu um evento que consistiu em, na disputa de um lance e em exercício de corrida com mudança de direcção, sentiu uma dor repentina e fortíssima no tornozelo da sua perna esquerda.

20. Como consequência directa e necessária, rotura total do tendão de aquiles do tornozelo esquerdo, tendo sido substituído do jogo, por impossibilidade física de continuar em campo.

21. De seguida, foi conduzido directamente para o Hospital ..., em ..., onde realizou RMN que confirmou a rotura total do tendão de aquiles esquerdo.

22. Atenta a premente necessidade de intervenção cirúrgica a este tipo de lesões, o Sinistrado foi sujeito a cirurgia para reparação da rotura do tendão de aquiles esquerdo no dia 6 de Setembro.

23. Posteriormente, regressou à cidade ..., onde realizou toda a sua recuperação no departamento clínico da sua Entidade Patronal “B... SDUQ LDA”

24. Durante o tempo de recuperação, o departamento clínico da sua Entidade Patronal, seguindo as prescrições médicas emitidas pelo médico da seleção ... de futebol, prestou ao autor os tratamentos de fisioterapia e demais exercícios físicos tendentes à sua recuperação.

25. Todos os tratamentos realizados na sequência do evento de dia 02.09.2021, após o regresso do autor a Portugal, até à data da sua alta foram realizados pelo Departamento Médico da sua Entidade Patronal.

26. Em resultado das lesões sofridas, o Sinistrado esteve incapaz de exercer a sua actividade profissional (ou seja, ITA), desde o dia do acidente de trabalho (02.09.2021) até o dia 19.08.2022, dia em que voltou ao exercício da sua profissão.

27. O autor estava autorizado pela sua Entidade Patronal “B... SDUQ LDA”, a integrar a referida seleção e a disputar o jogo em causa.

28. A 2.ª Ré “B... SDUQ”:

Recebe os pedidos de convocação dirigidos pelas federações;

Pode, potencialmente, retirar proveitos económicos dessa representação; e

Paga o salário do jogador durante o período em que o jogador está ao serviço da respectiva selecção.

29. A 2.ª Ré “B... SDUQ” SAD recorreu ao mecanismo de compensação económica aos clubes que se vêem privados dos seus jogadores que são vítimas de paragens desportivas prolongadas em razão de acidentes de trabalho ocorridos ao serviço das selecções nacionais dos seus países de origem da FIFA, tendo sido indemnizada por esta pelo período de tempo em que não pode contar com a prestação laboral/desportiva do Autor/Sinistrado.

30. O autor já tinha ido à seleção da ..., o que sucedia desde 2009.

31. Das CONDIÇÕES PARTICULARES DA APÓLICE não consta qualquer exclusão de responsabilidade por acidentes ocorridos pelo exercício da sua profissão de jogador profissional de futebol ao serviço das respectivas selecções nacionais, não podendo, também por aqui conforme previsto na legislação nacional, vir agora a 1.ª Ré A..., S.A. declinar responsabilidade por falta de enquadramento nas condições da apólice. – eliminado o segmento a itálico, nos termos da decisão infra.

32. Das CONDIÇÕES PARTICULARES DA APÓLICE não consta qualquer extensão de responsabilidade por acidentes ocorridos pelo exercício da sua profissão de jogador profissional de futebol ao serviço das respectivas selecções nacionais.

33. O autor nasceu em ../../1990.»


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Apreciação

Seguindo a ordem imposta pela precedência lógica (cfr. art.º 608.º, n.º 1 do Código de Processo Civil), importa começar a apreciação do recurso pelas questões atinentes à matéria de facto.

Nos termos do disposto pelo art.º 662.º, n.º 1 Código de Processo Civil «A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.»

A Relação tem efetivamente poderes de reapreciação da decisão da matéria de facto decidida pela 1ª instância, impondo-se-lhe - sem prejuízo da intervenção oficiosa ao abrigo do n.º 2 do referido art.º 662.º do CPC - no que respeita à prova sujeita à livre apreciação do julgado, a (re)análise dos meios de prova produzidos em 1ª instância, desde que o recorrente cumpra os ónus definidos pelo art.º 640.º do CPC.

Na verdade, quando estão em causa meios de prova sujeitos à livre apreciação do julgador, decorre da conjugação dos art.º 635.º, nº 4, 639.º, nº 1 e 640.º, nº 1 e 2, todos do CPC, que quem impugna a decisão da matéria de facto deve, nas conclusões do recurso, especificar quais os pontos concretos da decisão em causa que considera errados e, ao menos no corpo das alegações, deve, sob pena de rejeição, identificar com precisão quais os elementos de prova que fundamentam essa pretensão, sendo que, se esses elementos de prova forem pessoais, deverá ser feita a indicação com exatidão das passagens da gravação em que se funda o recurso (reforçando a lei a cominação para a omissão de tal ónus, pois que repete que tal tem de ser feito sob pena de imediata rejeição na parte respetiva) e qual a concreta decisão que deve ser tomada quanto aos pontos de facto em questão.

Como refere António Santos Abrantes Geraldes[1], quanto às funções atribuídas à Relação em sede de intervenção na decisão da matéria de facto, «foram recusadas soluções maximalistas que pudessem reconduzir-nos a uma repetição dos julgamentos, tal como foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto, tendo o legislador optado por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas e relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente.»

A modificação da matéria de facto constitui um dever da Relação a ser exercido sempre que a reapreciação dos meios de prova (sujeitos à livre apreciação do tribunal) determine um resultado diverso daquele que for declarado pela 1.ª instância. Porém, como também sublinha António Santos Abrantes Geraldes[2] «(...) a reapreciação da matéria de facto pela Relação no âmbito dos poderes conferidos pelo art. 662.° não pode confundir-se com um novo julgamento, pressupondo que o recorrente fundamente, de forma concludente, as razões por que discorda da decisão recorrida, aponte com precisão os elementos ou meios de prova que impliquem decisão diversa da produzida e indique a resposta alternativa que pretende obter».

Nos termos do n.º 1 do art.º 640.º do CPC, impõe-se, pois, ao recorrente, na impugnação da matéria de facto, a obrigação de especificar, sob pena de rejeição:

“a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

E nos termos do n.º 2 da mesma disposição legal, no caso da alínea b) deve ser observado o seguinte:

“a) quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”

A respeito dos ónus relativos à impugnação da matéria de facto, apesar de apenas ter fixado jurisprudência a respeito da alínea c) do n.º 1 do art.º 640.º do CPC, importa atender à fundamentação do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 12/2023[3].

Importa ainda referir que o Tribunal da Relação deve também, mesmo oficiosamente, alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se tal se impuser (art.º 662º, nº 1 do CPC), como é o caso de existir matéria de direito e/ou conclusiva a invadir a matéria de facto.

Com efeito, o comando normativo do art.º 607.º relativo à discriminação dos factos aplica-se, também, ao Tribunal da Relação, atento o disposto pelo art.º 663.º, n.º 2 do CPC, não podendo o acórdão que aprecie o recurso interposto fundar-se em afirmações meramente conclusivas ou que constituam descrições jurídicas.

Como se escreve no Ac. RP de 08/02/2021[4], “sendo a matéria daqueles itens de natureza conclusiva e também de direito, a mesma é contrária à matéria estritamente factual que deve ser seleccionada para a fundamentação de facto da sentença, como explicitamente decorre do nº4 do art. 607º do CPC [note-se que a inclusão nos fundamentos de facto da sentença de matéria conclusiva (desde que não se reconduza a juízos periciais de facto) e/ou de direito enquadra-se na alínea c), do nº 2, do artigo 662º, do CPC, considerando-se uma deficiência na decisão da matéria de facto]”. E como se lê no Ac. RP de 23/11/2017[5], com o qual concordamos, “a selecção da matéria de facto só pode integrar acontecimentos ou factos concretos, que não conceitos, proposições normativas ou juízos jurídico-conclusivos. Caso contrário, as asserções que revistam tal natureza devem ser excluídas do acervo factual relevante- artº 607º, nº 4, NPCP”.

A ré seguradora veio impugnar a decisão relativa aos pontos 31 e 28 da matéria de facto provada.

Relativamente ao primeiro ponto, a recorrente pretende que seja eliminado um segmento que considera ser conclusivo e relativamente ao segundo, pretende que seja aditada como provada matéria que alega resultar da motivação da decisão.

Ora, considerando o supra exposto quanto às condições de admissibilidade da impugnação da matéria de facto, verifica-se que a recorrente não cumpriu os ónus a que estava obrigada face ao disposto pelo art.º 640.º do CPC, no que respeita à impugnação do ponto 28, o que é causa de rejeição da impugnação.

De facto, a recorrente cumpriu o ónus de indicação, incluindo nas conclusões, dos pontos de facto que considera incorretamente julgados (art.º 640.º, n.º 1, al. a) do CPC), bem como ónus de indicar a decisão que no seu entender, deve ser proferida sobre as decisões de facto impugnadas (art.º 640.º, n.º 1, al. c) do CPC). Porém, não se mostra cumprido o ónus a que se refere o art.º 640.º, n.º 1, al. b) do CPC.

O ponto 28 tem a seguinte redação:

«28. A 2.ª Ré “B... SDUQ”:

Recebe os pedidos de convocação dirigidos pelas federações;

Pode, potencialmente, retirar proveitos económicos dessa representação; e

Paga o salário do jogador durante o período em que o jogador está ao serviço da respectiva selecção.»

A recorrente pretende que a redação passe a ser a seguinte:

«A 2.ª Ré “B... SDUQ”:

(…)

Pode, potencialmente, retirar proveitos económicos dessa representação ou sofrer um prejuízo;

(…)»

E fundamenta a sua pretensão nos seguintes termos:

«Diz-se, neste facto 28, que a entidade empregadora pode, potencialmente, retirar proveitos económicos da representação da seleção nacional por parte do atleta, mas omite-se, na redação deste facto, que, in casu, não ocorreu qualquer proveito económico. Pelo contrário, a entidade empregadora sofreu um revés económico com a lesão do atleta ao serviço da sua seleção nacional.

É o que resulta do seguinte trecho da motivação de facto:

“A questão do proveito económico da participação do autor em atividades da seleção nacional do seu país não pode ser vista de forma diversa. No caso concreto, a situação até pode ter sido causadora de um prejuízo para a ré empregadora, mas não apenas pode haver um proveito económico, tendo o gerente BB e a testemunha CC afirmado que, em teoria, aquela participação pode gerar uma mais-valia em termos de valorização do passe do jogador, mas que, no caso concreto, tal não sucedeu, bem pelo contrário, porque o atleta se lesionou com gravidade. Não há dúvida que existe um potencial proveito económico relacionado com o valor do jogador, embora este potencial proveito económico, não só possa não se concretizar, como pode implicar um prejuízo, como sucedeu.”

Constata-se, pois, que, se é verdade que a entidade empregadora pode, potencialmente, extrair um proveito económico da internacionalização do seu atleta ao serviço da seleção nacional, a inversa também é verdadeira.

Falta colocar, nos factos provados, o reverso da moeda, para que a verdade esteja devidamente retratada na decisão final.»

Ora, a recorrente não põe em causa a matéria constante do ponto 28, pretendendo que seja incluída como provada outra matéria para além daquela. Para isso, impunha-se-lhe que fizesse a indicação dos concretos meios probatórios que sustentassem a sua pretensão, o que não fez, não sendo para o efeito suficiente reproduzir a fundamentação da decisão constante da sentença recorrida.

Rejeita-se, pois, a impugnação da decisão relativa ao ponto 28 da matéria de facto provada.

Sempre se dirá que resultam já da restante matéria de facto provada, nomeadamente dos pontos 17, 24, 25, 26 e 29, as consequências suportadas pela ré empregadora devido à lesão sofrida pelo autor ao serviço da seleção nacional do seu país.

Assim, rejeita-se a impugnação da decisão relativa ao ponto 28.

Já quanto ao ponto 31 a pretensão da recorrente é de considerar procedente.

O teor do ponto 31 da matéria de facto provada é o seguinte:

«31. Das CONDIÇÕES PARTICULARES DA APÓLICE não consta qualquer exclusão de responsabilidade por acidentes ocorridos pelo exercício da sua profissão de jogador profissional de futebol ao serviço das respectivas selecções nacionais, não podendo, também por aqui conforme previsto na legislação nacional, vir agora a 1.ª Ré A..., S.A. declinar responsabilidade por falta de enquadramento nas condições da apólice.»

A recorrente pretende que seja eliminado o segmento que se inicia por “não podendo, também por aqui…” até ao final, alegando que o mesmo “é constituído por matéria opinativa, interpretativa ou conclusiva.”

Tem razão. Saber se a ré seguradora pode ou não declinar a responsabilidade pela reparação das consequências do acidente em discussão é matéria que respeita ao mérito da causa e que como tal não tem lugar ao nível da decisão da matéria de facto.

Nessa medida trata-se de matéria que não só é conclusiva, como juridicamente valorativa, pelo que, à luz das considerações que acima expendemos, não pode manter-se no elenco dos factos provados.

Decide-se, pois, alterar a reação do ponto 31, eliminando o segmento impugnado, passando a redação a ser a seguinte:

31. Das CONDIÇÕES PARTICULARES DA APÓLICE não consta qualquer exclusão de responsabilidade por acidentes ocorridos pelo exercício da sua profissão de jogador profissional de futebol ao serviço das respetivas seleções nacionais.”

Em conclusão rejeita-se a impugnação quanto ao ponto 28 da matéria de facto provada e julga-se a impugnação procedente quanto ao ponto 31.


*

As restantes questões a decidir (suscitadas nos dois recursos) serão apreciadas conjuntamente.

Está em causa decidir se o autor sofreu um acidente de trabalho cujas consequências devem (como conclui o Mm.º Juiz “a quo”) ou não (como defendem as recorrentes seguradora e empregadora) ser da responsabilidade das rés.

Não se discute a ocorrência do evento nem as consequências que dele resultaram para o autor.

Com efeito ficou provado que celebrou o autor celebrou, em 26 de janeiro de 2021, com a 2.ª ré B... SDUQ, LDA, um contrato individual de trabalho, através do qual se obrigou a prestar a atividade de futebolista profissional ao clube, em representação, sob autoridade e direção daquela, mediante retribuição, válido para as épocas desportivas 2020/2021, 2021/2022 e 2022/2023, com início em 26 de Janeiro de 2021 e que teve o seu termo final, por caducidade, em 30 de Junho de 2023 e que no dia 2 de setembro de 2021, pelas 20:20 durante um jogo de futebol da seleção da ... contra a ..., para o Grupo de Apuramento para o Campeonato do Mundo de Futebol no Qatar 2022, disputado no Estádio ..., na cidade ..., na ..., quando o autor prestava o seu trabalho com a categoria de praticante desportivo profissional de futebol, sofreu um evento que consistiu em, na disputa de um lance e em exercício de corrida com mudança de direção, sentiu uma dor repentina e fortíssima no tornozelo da sua perna esquerda.

Como consequência direta e necessária, sofreu rotura total do tendão de Aquiles do tornozelo esquerdo, em resultado do que esteve incapaz de exercer a sua atividade profissional (ou seja, ITA), desde o dia do acidente de trabalho (02.09.2021) até o dia 19/08/2022, dia em que voltou ao exercício da sua profissão, com uma IPP de 7,318%.

A discordância das recorrentes, por se tratar de evento ocorrido durante um jogo da seleção nacional do país do autor e não em jogo disputado pela ré empregadora, é relativa à qualificação de tal acidente como acidente de trabalho, entendendo ainda a seguradora que o acidente não está abrangido pelo contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado com a empregadora.

No que respeita à subsunção de acidente sofrido por um jogador de futebol profissional aquando da sua participação em jogo de seleção nacional à noção de acidente de trabalho, este Tribunal, no Ac. de 27/09/2023, proferido no processo n.º 641/20.0T8MAI.P1[6], do qual foi relator o aqui 2.º adjunto[7], teve já oportunidade de se pronunciar, em termos com os quais concordamos e que, pela sua plena aplicação na situação dos autos, os limitaremos a reproduzir.

Aí se escreveu o seguinte:

«É isento de dúvidas que as lesões desportivas contraídas pelos atletas profissionais durante o exercício da sua atividade laboral consubstanciam acidentes de trabalho[8], sendo o empregador responsável pela reparação, e, dada a especificidade destes acidentes, a reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho dos praticantes desportivos profissionais possui um regime jurídico próprio [presentemente estabelecido pela Lei nº 48/2023, de 22 de agosto, mas o qual não é aplicável ao caso dos autos porquanto esse regime apenas é aplicável aos acidentes ocorridos após a sua entrada em vigor (cfr. artos. 18º e 19º), donde, estando em causa acidente ocorrido em 07/10/2017, ser de considerar o regime que aquela Lei revogou, o constante da Lei nº 27/2011, de 16 de junho].

(…)

Como é sabido, a representação das seleções nacionais é feita no interesse do empregador desportivo (Clube/SAD), que retira proveitos diretos de tais participações, quer ao nível da publicidade e valorização dos direitos de imagem do jogador que são detidos, em exclusivo, pelo Clube, quer pela valorização dos seus jogadores enquanto “ativos económicos”, que muitas vezem triplicam ou quadruplicam de valor económico apenas pelo facto de serem internacionais pelos respetivos países (…), embora não se possa esquecer que as federações nacionais também têm interesse em beneficiar das receitas de patrocínios, transmissões televisivas, etc, além de que o próprio atleta na já referida sua valorização.

Se, como acima se deixou expresso, é pacífico que as lesões desportivas contraídas pelos atletas profissionais durante o exercício da sua atividade laboral consubstanciam acidentes de trabalho, porque, in casu, a lesão desportiva sofrida pelo Autor ocorreu aquando da sua participação em jogo com a sua seleção nacional, questiona-se se ainda assim estamos perante acidente de trabalho.

É que, a participação dos jogadores profissionais nas seleções nacionais gera um vínculo que se caracteriza pela atipicidade, na medida em que o jogador, mantendo-se a relação laboral com o empregador desportivo, nesse período passa a estar sob as ordens da Federação de Futebol (nacional)[9] sem que se estabeleça um vínculo laboral com ela.

Com efeito, o salário é pago pelo Clube/SAD [cfr. ponto 43. dos factos provados][10], pagando a FIFA compensações ao Clube/SAD, não prestação retributiva ao atleta [cfr. ponto 44. dos factos provados][11], deixando o jogador de participar nos treinos/jogos da equipa da empregadora [cfr. ponto 46. dos factos provados].

A este propósito refere Telma Rocha[12] que o regime aplicável ao vínculo entre o atleta e a seleção impor-se-á heteronomamente pela Federação, através do seu poder regulamentar, mal grada a necessidade de atender aos interesses do Clube e do Praticante.

Todavia, tal não obsta a que se afirme que, nesses casos, estarmos perante um acidente de trabalho, pois, como conclui Sofia Carla da Costa Faria na sua dissertação de mestrado[13], a prestação do atleta na seleção nacional está prevista no contrato de trabalho[14], decorre de uma obrigação imposta tanto ao jogador como ao clube[15] [16], integrando a relação laboral desportiva[17]. Não há suspensão do contrato durante a cedência, mantendo-se os efeitos do mesmo, nomeadamente, os acidentes de trabalho sofridos durante a atividade laboral. O atleta, ao encontrar-se ao serviço da seleção nacional, não deixa de desempenhar a prática desportiva para a qual foi contratado e, assim, qualquer lesão que sofra durante o período de cedência enquadra-se num acidente de trabalho.»

O desempenho da atividade de jogador de profissional de futebol ao serviço da seleção do seu país, integra, pois, o objeto do contrato de trabalho celebrado com um empregador desportivo, e o concreto exercício de tal atividade em jogo da seleção reconduz-se ainda à execução do contrato de trabalho.

Dir-se-á que o acidente ocorreu fora do local de trabalho o que afastaria o seu enquadramento no disposto pelo art.º 8.º da LAT, segundo o qual “1 - É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.”

Mas, nos termos do n.º 2, al. a) da mesma disposição legal “2 - Para efeitos do presente capítulo, entende-se por: a) «Local de trabalho» todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador.”

Ora, do nosso ponto de vista, quando o acidente ocorreu, o autor encontrava-se na ... em virtude do seu trabalho, estando a exercer atividade que, como já concluímos, integra o objeto do contrato de trabalho com a ré empregadora, em local onde estava contratualmente obrigado a comparecer e a desempenhar as suas funções enquanto jogador profissional de futebol (cfr. Estatuto, Categoria, Inscrição e Transferência de Jogadores, aprovado pela Direção da Federação Portuguesa de Futebol, de 8 de junho de 2020)

E estava sujeito ao controlo da empregadora.

Na verdade, as obrigações e os direitos do trabalhador e da empregadora mantém-se durante o período em que o jogador executa a sua prestação ao serviço da seleção e o jogador não deixa de estar sob a alçada disciplinar do empregador relativamente a quaisquer factos que constituam violações dos seus deveres laborais que vão para além do desempenho do núcleo essencial das suas funções, salientando-se que o poder disciplinar da Federação, não substitui o da entidade empregadora já que tem um âmbito que não se sobrepõe a este, acrescendo-lhe.

De resto, nem é exigível que o controlo seja direto, bastando-se o legislador com um controlo meramente indireto, que no caso não pode deixar de se reconhecer que existe, ainda que mediado pela intervenção da Federação a cujos regulamentos estão sujeitos quer o jogador quer o empregador desportivo. Salvaguardadas as devidas diferenças trata-se de uma situação que tem algum paralelo com os casos do trabalho temporário em que apesar de o trabalhador estar sujeito às ordens da empresa utilizadora, a responsabilidades por acidentes de trabalho é, em primeira linha da empresa de trabalho temporário, que assume a posição de empregadora.

Sendo assim, face ao disposto pela Lei n.º 27/2011, de 16/06, máxime pelo seu art.º 10.º e pelo art.º 8.º, n.º 1 e 2 da Lei 98/2009 de 04/09, conclui-se que o autor sofreu um acidente de trabalho ocorrido durante um jogo da seleção ..., sendo a ré empregadora responsável pela sua reparação, importando ainda decidir se tal responsabilidade se encontrava ou não transferida para a ré seguradora no âmbito do contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado entre ambas as ré.

Ora, da qualificação do evento como acidente de trabalho com os fundamentos referidos, acaba por resultar, por si só, a resposta à questão de saber se a cobertura do contrato de seguro celebrado entre as rés abrange o acidente de trabalho em apreço, questão relativamente à qual divergimos da posição que, por maioria, fez vencimento no Acórdão desta Relação acima citado.

Com efeito, o art.º 2.º, n.º 3, do Anexo I do Regulamento Relativo ao Estatuto e Transferências de Jogadores, da FIFA[18], cuja aplicação no caso não foi questionada, determina que o clube em que o jogador está inscrito é responsável pela cobertura de seguro contra doença e acidentes durante todo o período da cedência à respetiva seleção nacional, cobertura que deve estender-se a quaisquer lesões sofridas pelo jogador durante qualquer jogo internacional para o qual tenha sido cedido.

Desta disposição resulta claro que impende sobre os clubes a responsabilidade de celebrarem contratos de seguro que garantam a reparação de doenças ou acidentes ocorridos com os “seus” jogadores enquanto estes estão ao serviço das respetivas seleções. A norma não qualifica a natureza do contrato (de acidentes pessoais, de acidentes de trabalho), nem se, a existência de seguro de acidentes de trabalho, como acontece obrigatoriamente, pelo menos no caso português, dispensa a realização daquele seguro.

A resposta a estas questões encontramo-la no Ac. do STJ de 08/02/2024[19], que revogou, nesta parte, o Ac. desta Relação acima citado e que, concordando com o respetivo teor, passamos a transcrever:

«Resulta das Condições Particulares da Apólice (cfr. doc. nº 1 junto com a contestação da Ré, como consta do ponto nº 8 da matéria de facto), nomeadamente, que: “a legislação aplicável é a Lei 98/2009 e as respetivas normas regulamentares, bem como a Lei 27/2011”; “foi celebrado entre a A... e a ENTIDADE EMPREGADORA um contrato de seguro do ramo Acidentes de Trabalho de Praticantes Desportivos Profissionais”; “o referido contrato de seguro tem por objeto garantir, nos termos previstos na Lei 27/2011, de 16 de junho, a reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho (…) ao serviço da ENTIDADE EMPREGADORA (…)”.

Ora, conjugando o clausulado pelas partes com a sobredita norma estipulada pela FIFA, com o disposto no art. 79.º, nº 1, da Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro (LAT), segundo o qual “o empregador é obrigado a transferir a responsabilidade pela reparação prevista na presente lei para entidades legalmente autorizadas a realizar este seguro”, bem como com a norma especial a este propósito constante do art. 9º, nº 1, da Lei n.º 27/2011, de 16 de junho (“No ato do registo do contrato de trabalho desportivo (…) é exigida prova da celebração do seguro de acidentes de trabalho”), em vigor à data dos factos, não pode deixar de concluir-se que a transferência para a R. seguradora da responsabilidade por acidentes de trabalho relativos ao autor (ao serviço da 2ª R.) abrangia todas as dimensões da atividade desenvolvida pelo atleta em execução do programa contratual contemplado no contrato de trabalho, como é o caso da sua participação em jogos da respetiva seleção nacional.

Com efeito, o contrato de seguro abrange todas as lesões sofridas no âmbito da prestação de trabalho do sinistrado, a qual também incluía os jogos internacionais para os quais aquele fosse cedido (devidamente autorizado pela empregadora, como ocorreu no caso vertente), não havendo qualquer razão para distinguir esta vertente do seu trabalho, tanto mais que a entidade patronal tinha interesse na participação do autor no jogo de futebol onde ocorreu a lesão, uma vez que poderia resultar proveito económico pelo facto de o autor ser jogador internacional pelo seu país [(…)]; a representação das seleções nacionais é feita no interesse da Entidade Patronal, que retira proveitos diretos de tais participações, quer ao nível da publicidade e valorização dos direitos de imagem do jogador que são detidos, em exclusivo, pelo Clube, quer pela valorização dos seus jogadores enquanto “ativos económicos”, que muitas vezem triplicam ou quadruplicam de valor económico apenas pelo facto de serem internacionais pelos respetivos países [(…)]; e a FIFA institui compensações económicas aos clubes que dispensam jogadores às respetivas seleções [(…)], assim se compreendendo que seja o clube a pagar o salário do jogador durante o período em que ele está ao serviço da respetiva seleção [(…)].

Por outro lado, em face da obrigação legal que o empregador tem de transferir para uma entidade seguradora a responsabilidade emergente de acidentes que se verifiquem em qualquer dimensão da atividade laboral do jogador profissional de futebol – obrigação que era naturalmente conhecida pelas rés e que dela estavam cientes, como desde logo decorre do texto da apólice –, é revelador que a apólice do seguro em causa não inclua qualquer exclusão de responsabilidade por acidentes ocorridos ao serviço da seleção nacional do sinistrado.

Também no sentido da posição do recorrente aponta o facto de o jogador, enquanto está ao serviço da seleção nacional, não participar nos treinos e jogos do respetivo clube, pelo que, estando em causa a mesma atividade, o risco infortunístico é idêntico nas duas situações. Na verdade, não se vislumbrando, no caso da participação do jogador em jogos da seleção nacional, qualquer risco não expetável, nem qualquer acréscimo de risco, em relação à atividade desenvolvida no âmbito estrito do clube, inexistem razões justificativas de desigual tratamento das duas situações.

Em suma: todos os elementos disponíveis impõem concluir que a cobertura do contrato de seguro celebrado entre as rés abrange o acidente de trabalho em apreço (…).».

Estas considerações são totalmente transponíveis para o caso dos autos, pelo que, sem necessidade de outras considerações concluímos, como ali o fez o nosso mais alto tribunal, que o acidente de trabalho sofrido pelo autor, com vínculo laboral ao B..., SDUC, ao serviço da seleção ..., está abrangido pelo âmbito de cobertura do contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado entre as rés.

Consequentemente, os recursos interpostos pela ré empregadora e pela ré seguradora, improcedem.


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Nos termos do art.º 527.º do CPC, as custas são da responsabilidade de cada uma das recorrentes, já que ficaram integralmente vencidas nos respetivos recurso.

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Decisão

Por todo o exposto, acorda-se julgar os recursos interpostos pelas rés improcedentes, confirmando-se a sentença recorrida, apenas com a alteração da matéria de facto decidida.

Custas por cada um das recorrentes.


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Notifique.

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Porto, 08/09/2025
Maria Luzia Carvalho
Nelson Fernandes
António Luís Carvalhão

(assinaturas eletrónicas nos termos dos arts. 132º, n.º 2, 153.º, n.º 1, ambos do CPC e do art.º 19º da Portaria n.º 280/2013 de 26/08)
__________________
[1] In “Recursos em Processo Civil”, Almedina, 7ª edição atualizada, 2022, pág. 195.
[2] Ob. cit., pág. 350.
[3] Publicado no DR, Série I, n.º 220/2023, de 14-11-2023 - cujo sumário foi retificado pela Declaração de Retificação n.º 35/2023, de 28 de novembro, publicado no DR, Série I, de 28-11-2023.
[4] Processo n.º 641/20.0T8MAI.P1, acessível em www.dgsi.pt.
[5] Processo n.º 811/13.3TBPRD.P1 e no mesmo sentido, entre outros, o Ac. RP de 08/02/2021, Processo n.º 7011/19.0T8PFR.P1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
[6] Acessível em www.dgsi.pt.
[7] O qual, quanto ao mais que apreciaremos adiante, aqui revê a sua posição.
[8] Nota [14] do Acórdão com o seguinte teor: “Que o art.º 8º da LAT (Lei nº 98/2009, de 04 de setembro) diz ser aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução da capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.”
[9] Nota [21] do Acórdão com o seguinte teor: “Daí prever o art.º 58º do Regulamento sobre o Estatuto, Categoria, Inscrição e Transferência de Jogadores aprovado pela Direção da Federação Portuguesa de Futebol (consultável em www.fpt.pt» Menu» Institucional» Estatutos e Regulamentos) a obrigatoriedade de cedência do jogador convocado.
[10] No nosso caso cfr. pontos 17 e 28 dos factos provados.
[11] No nosso caso cfr. ponto 29 dos factos provados.
[12] Nota [22] do Acórdão com o seguinte teor: ““A participação nas seleções nacionais – uma introdução”, in Revista de Direito e do Desporto, nº 2 (2019), FPF/AAFDL Editora, págs. 44-93 (estando o referido na pág. 84).
[13] Nota [23] do Acórdão com o seguinte teor: ““A responsabilidade civil das federações desportivas perante os clubes profissionais pelas lesões dos atletas contraídas ao serviço das seleções nacionais – o caso do futebol profissional”, Universidade do Minho, Escola de Direito, outubro de 2019, consultável (formato pdf) em www.repositorium.sdum.uminho.pt, págs. 78-81.
[14] Nota [24] do Acórdão com o seguinte Teor: “No caso em apreço o contrato prevê [cláusula 13ª] a aplicação do CCT outorgado entre o Sindicato Nacional de Jogadores Profissionais de Futebol e a Liga Portuguesa de Futebol Profissional [que no art.º 14º prevê – al. g) – ser proibido à entidade patronal impedir a participação do jogador nos trabalhos das seleções nacionais] e aplicação da Lei nº 28/98, de 26 de junho (regime jurídico do contrato de trabalho do praticante desportivo e do contrato de formação desportiva), que no art.º 12º, al. c), previa o dever de a empregadora desportiva permitir que os praticantes, em conformidade com o previsto nos regulamentos federativos, participem nos trabalhos de preparação e integrem as seleções ou representações nacionais [atualmente art.º 11º, al. d) da Lei nº 54/2017, de 14 de julho] e no art.º 13º, al. b), previa o dever de o praticante desportivo participar nos trabalhos de preparação e integrar as seleções ou representações nacionais [atualmente art.º 13º, al. b) da Lei nº 54/2017, de 14 de julho].
[15] Nota [25] do Acórdão com o seguinte teor: “Cfr. legislação referida na nota anterior.
Por estar o empregador desportivo obrigado a deixar participar o atleta nos trabalhos da seleção nacional, compreende-se que tenha a 2ª Ré recebido a convocatória [ponto 41. dos factos provados].
[16] Nota [26] do Acórdão com o seguinte teor: “Emílio A. Garcia Silvero fala numa missão de interesse para o Estado (“A libertação de desportistas para as seleções nacionais: aspetos jurídicos e económicos”, in “Desporto & Direito – Revista Jurídica do Desporto”, nº 9 (2006), Coimbra Editora, pág. 372.
Veja-se o art.º 45º da Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto (Lei nº 5/2007, de 16 de janeiro).
[17] Nota [27] do Acórdão com o seguinte teor: “Em Espanha, José Antonio Buendía Jiménez escreve que toda a prestação de serviços do jogador, seja para o clube que o contratou, seja para a seleção nacional, deve considerar-se como própria e integrante da relação laboral que mantém com o clube, pelo que a lesão que o jogador sofra durante essas funções deve considerar-se acidente de trabalho (“La lesión sufrida por un ftbolista durante su participación com su selección nacional y la protección por acidente de trabajo”, in Revista Jurídica del Deporte, Thomson Aranzadi, nº 11, 2004, págs. 301/302.
[18] Acessível em https://digitalhub.fifa.com/m/196c746445c58051/original/Regulations-on-the-Status-and-Transfer-of-Players-August-2021.pdf.
[19] Processo n.º 641/20.0T8MAI.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.