ACIDENTE DE TRABALHO
OBRIGAÇÃO DE TRANSFERÊNCIA DE RESPONSABILIDADE
NÃO CADUCIDADE DO DIREITO
ABUSO DE DIREITO / ACORDO DA EMPREGADORA COM O TRABALHADOR PARA RESOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
ANULAÇÃO DA SENTENÇA
Sumário

I - O empregador tem a obrigação de transferir para entidade seguradora a responsabilidade pelo risco emergente de acidentes de trabalho relativamente aos trabalhadores ao seu serviço - artigo 79º, nº 1, da Lei 98/2009, de 04.09.
II - «O direito de ação respeitante às prestações fixadas na presente lei caduca no prazo de um ano a contar da data da alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado ou, se do evento resultar a morte, a contar desta.» - artigo 179º, nº1, da Lei n.º 98/2009, de 04.09.
III - “A participação é, pois, o ato que exprime a intenção de exercer o direito de ação e visa desencadear os mecanismos legais para a obtenção, pelo sinistrado ou seus beneficiários, das prestações devidas pelo acidente de trabalho, isto é, a participação é o ato impeditivo de caducidade.”
IV - Age com abuso de direito, por traduzir “um comportamento desleal que resulta do aproveitamento de uma posição jurídica, ela própria adquirida (…) por abuso do direito”, a Empregadora que invoca a caducidade do exercício do direito de ação pelo Sinistrado, na situação em que aquela não tinha a responsabilidade pelo risco emergente de acidentes de trabalho relativamente a esse trabalhador, transferidas para entidade seguradora, acorda com este após o acidente que “ser-lhe-ia prestada toda a ajuda clínica e monetária e resolver-se-ia extrajudicialmente, voltando depois ao trabalho quando pudesse”, implicando para o Sinistrado não ir para tribunal, desde a data do acidente paga a este o salário sem que compareça ao trabalho, deixando de o fazer, volvidos vários anos.
V - “Se o tribunal de 1.ª instância omitir a pronúncia sobre uma determinada questão de facto e se a resposta a ela for indispensável para a decisão da causa, a consequência de tal omissão será a anulação da decisão proferida em 1.ª instância, seguida da repetição do julgamento sobre tal questão. É a solução que resulta da alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC, na parte em que dispõe que a Relação deve mesmo oficiosamente anular a decisão proferida em 1.ª instância, quando considere indispensável a matéria de facto, combinada com a alínea c) do n.º 3 do mesmo diploma.
Só assim não será se a matéria em questão estiver admitida por acordo, provada por documentos ou por confissão reduzida a escrito. Nestas hipóteses, cabe ao tribunal da Relação tomar em consideração tais factos, sem necessidade de anulação do julgamento. É o que resulta da 2.ª parte do n.º 4 do artigo 607.º do CPC”.

(Da responsabilidade da Relatora (sumário inclui textos de jurisprudência referenciada no acórdão))

Texto Integral

Processo nº 1068-20.9T8VNG.P2
Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo do Trabalho de Vila Nova de Gaia Juiz 1



Recorrente: AA
Recorridos: A..., Ld.ª e BB



4ª Secção



Relatora: Teresa Sá Lopes
1º Adjunto: Desembargador António Luís Carvalhão
2ª Adjunta: Desembargadora Luísa Cristina Ferreira

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório (incluindo texto dos relatórios efetuados nas decisões que foram objeto de recurso):

Por participação entrada em 05.02.2020, subscrita pelo próprio Sinistrado, deu-se conta da eventual ocorrência de um acidente de trabalho de que teria sido vítima AA, residente na Rua ..., traseiras, ... ..., quando exercia funções ao abrigo da sua profissão ao serviço, por conta e no interesse de A... Lda., com sede na Rua ..., ... ....


*


Decorrida a fase conciliatória do processo, as partes não chegaram a acordo.

Resultou assente que inexistia contrato de seguro obrigatório de acidentes de trabalho válido.


*


Veio o Sinistrado requerer a abertura da fase contenciosa do processo contra a Entidade empregadora e contra BB, (perante a inexistência de contrato de seguro de acidente de trabalho) residente na Rua ..., ... ..., alegando para o efeito ter sofrido um acidente de trabalho no dia 15/15/2015, pelas 14h30m, em ..., do qual resultaram lesões e sequelas, pedindo o seguinte:

a) a indemnização que resultar da IP que lhe for atribuída por junta médica, sempre ajustada em conformidade com o nº 5 alª a) das Instruções Gerais da Tabela das Incapacidades;

b) pagamento de todas as retribuições em falta, que o A. liquidará oportunamente, logo que disponha dos necessários elementos;

c) sendo reconhecida a responsabilidade da gerência na produção do acidente, indemnização a cargo dos RR. por danos não patrimoniais sofridos, ao abrigo do artº 18 LAT, nunca inferiores a € 75.000,00;

d) pagamento das despesas de meios de diagnóstico e de outras despesas de que o A. venha a necessitar, ao abrigo do direito de reparação do dano.

e) Pagamento de despesas medicamentosas (680,00 €) e de transporte (100,00 €).

Na contestação, foi invocada a ilegitimidade passiva do 2º Réu, BB, em virtude de ser apenas o gerente da sociedade Entidade empregadora, não vindo alegado que tenha praticado qualquer facto do qual resulte ter sido pessoalmente responsável pela ocorrência do acidente que vitimou o Autor.

Já o Autor pugna pela legitimidade do sócio gerente da entidade empregadora, invocando, em suma, que o artigo 18.º do RRATDP prevê a responsabilidade solidária dos sócios-gerentes da entidade patronal responsável que violou deveres que originaram ou possam ter agravado o acidente.

Na contestação, foi ainda invocada a caducidade do direito de ação por parte do Autor, em virtude de o acidente ter ocorrido em 15.04.2015, ter sido participado ao tribunal em 05.02.2020, cerca de 5 anos após o sinistro, e, não tendo sido participado a uma companhia de seguros, ser de aplicar o prazo de um ano a contar da data do acidente e não da data da comunicação formal da alta, que nunca poderia ter ocorrido.

O Autor defende, em síntese, que o prazo de caducidade não se iniciou, em virtude de nunca lhe ter sido formalmente comunicada a data da alta.

No despacho saneador foi julgada procedente a invocada exceção de ilegitimidade passiva e, em consequência absolvido o Réu BB da instância.

No despacho saneador foi ainda julgada procedente a exceção de caducidade do direito de ação, deduzida pela Ré, e em consequência, absolvida a Ré A..., Lda. do pedido.

Ainda no despacho saneador, foi fixado o valor da causa em 30.000,01€.

Foi interposto recurso pelo Autor.

Em 5.06.2023 foi proferido acórdão em que se julgou procedente a apelação e decidiu revogar a decisão recorrida, determinando-se:
a) O prosseguimento dos autos, nomeadamente, para apuramento de factos necessários ou relevantes à apreciação da questão se caducou ou não o direito de ação do Sinistrado, após produção da prova em audiência de julgamento.
b) Julgar improcedente a exceção de ilegitimidade do 2º Réu.

Em 19.01.2025, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“Nestes termos, e pelo exposto, julgo totalmente procedente por provada a exceção de caducidade invocada pelos réus A... Lda., e BB na sua contestação e, consequentemente, absolvo-os dos pedidos contra si deduzidos na presente ação pelo autor AA.

Custas pelo autor, sem embargo de eventual isenção.

Mantenho o valor de € 30.000,01 fixado na sentença e que o Tribunal da Relação do Porto não alterou.”

Notificado o Autor interpôs recurso, o qual finalizou com as seguintes conclusões:

(…)

Contra-alegou a Ré, finalizando com as seguintes conclusões:

(…)

Foi proferido despacho de admissão do recurso, nos seguintes termos:

“Por legal, tempestivo e interposto por quem tem legitimidade, admito o recurso apresentado pelo Sinistrado à sentença proferida nestes autos, que é de apelação, a subir de imediato e nos próprios autos, artigos 79.º, alínea b), 79.º-A, n.º 1, alínea a), 80.º, n.º 2, 83.º, n.º 1 e 83.º-A todos do Código do Processo do Trabalho.

Não se vislumbra a existência de qualquer nulidade uma vez que o Tribunal fundamentou pormenorizadamente os motivos pelos quais entende ser de seguir a posição dos peritos maioritários. O mesmo se diga quanto à invocada insuficiência da matéria de facto.

Admito as contra alegações.”

Foi emitido parecer pelo Exm.º Procurador Geral Adjunto, nos seguintes termos:

“Isto posto, por razões de celeridade e economia processual, acompanhamos o teor do recurso do apelante, com exceção da invocada inconstitucionalidade. Com efeito, quanto a esta, não foi convocado o processo constitucional a que se alude no art.º 70.º da LOTC, pelo que, qualquer apreciação nesse sentido terá de improceder.

No mais, remetemos para o nosso anterior Parecer n.º 73 / 2022, de 18.07.2022, que se mantem actual, sendo que nele nos manifestamos pela procedência desse recurso.

Está demonstrado que ao recorrente sob o ponto D) do probatório “Nunca foi comunicada … qualquer data da alta.”, pelas várias valências do Serviço Nacional de Saúde que o trataram, mesmo sem intervenção de companhia de seguros. Nem sequer os recorridos demonstram que tenham diligenciado pela obtenção do boletim de alta clínica.

Nesta conformidade, merece censura a sentença recorrida, pois que foi efetuada uma incorreta interpretação e aplicação dos normativos de direito invocados pelo apelante, pelo que tem de ser revogada a procedência da exceção de caducidade do direito de ação, nos termos do disposto nos artigos 179.º n.º 1 da LAT e 331.º n.º 1 do Código Civil, com as devidas consequências legais – cfr. Ac.s do STJ de 19-05-2021 e 22-02-2017, que se pronunciaram sobre esta questão - cfr. www.dgsi.pt.

Sobre o mérito do recurso: procedem, parcialmente, as conclusões formuladas.

A decisão recorrida merece ser expurgada da ordem jurídica.”

Foram os autos a vistos.

Cumpre apreciar e decidir.

Objeto do recurso:

- saber se ocorre erro de julgamento quanto à questão da caducidade.

- consequências, em caso afirmativo, relativamente ao peticionado pelo Sinistrado.

2. Fundamentação:

2.1. Foi esta a decisão de facto proferida na sentença:

a) Factos Provados

Os factos provados, com interesse para a decisão da causa, são os seguintes:

(factos assentes no saneador)

1. No dia 15/04/2015, enquanto trabalhava como tanoeiro, por conta, sob as ordens direção e fiscalização de A... Ldª, por volta das 14:45 horas o Sinistrado AA ao bater com a marreta numa cunha de ferro, saltou uma lasca desta última, que o veio a atingir no olho esquerdo.

2. O referido em 1., nunca foi participado a uma companhia de seguros, sendo que, na data do acidente, não existia seguro de acidentes de trabalho.

3. A participação do acidente em juízo foi feita no dia 05.02.2020.

4. Nunca foi comunicada ao Autor qualquer data da alta.

5. O Autor tomou conhecimento que a sua Entidade empregadora estaria na data da ocorrência sem seguro.

6. A Entidade Patronal liquidou ao Sinistrado as importâncias que se encontram documentadas nos autos.


*


(factos da petição inicial)

7. Não utilizava qualquer equipamento de segurança ou de proteção, visto a R. não o ter ou nunca lho ter facultado.

8. Ao bater com a marreta na cunha, saltou uma lasca desta última que atingiu o olho esquerdo do requerente, perfurando-o e lá ficando alojada.

9. O olho do A. ficou com grande lesão, sendo prontamente levado ao Centro de Saúde ....

10. Perante a gravidade da situação, foi reencaminhado de ambulância para o Hospital 1....

11. Daí foi mandado para o Hospital 2..., no Porto.

12. Por último, tornou para o Hospital 3..., no qual lhe foi diagnosticada “perfuração ocular com desorganização do segmento anterior e perda abundante de conteúdo intraocular”.

13. Aí ficou internado, submetendo-se a intervenção cirúrgica no dia seguinte, 17 de abril.

14. Na cirurgia, realizaram a excisão do tecido uveal desvitalizado, com exploração escleral e sutura da córnea.

15. Após a operação, o A. teve alta hospitalar passados 5 dias, com perda total da visão desse olho.

16. Em meados de abril de 2016, foi submetido a nova cirurgia, desta vez para retirar o olho e, cerca de 2 meses depois, ser-lhe colocada uma prótese.

17. A R. não transferiu a sua responsabilidade emergente de acidentes de viação para qualquer companhia de seguros.

18. Durante meio ano, teve que aplicar na zona do olho esquerdo dexametasona e atropina, despendendo mensalmente cerca de 8,40 € em tais medicações.

19. Passou a utilizar toalhitas para limpeza da pálpebra e uma solução líquida para limpeza da prótese, pelas quais depende cerca de 30 euros mensais.

20. O A. padeceu e tem padecido grande sofrimento e abalo psicológico pelas lesões sofridas, tratamentos a que foi submetido e sequelas decorrentes dessas lesões e tristeza pela perda do olho.


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(Da contestação)

21. O A. sinistrado tomou conhecimento pela própria entidade patronal, pouco dias após o acidente, que estaria na data da ocorrência sem seguro, tendo-lhe sido explicado porquê (o mesmo havia caducado por falta de pagamento por débito direto), de modo que, desde então, sabia aquele que não tinha havido qualquer participação realizada pela 1ª Ré nesses moldes.

22. O autor nunca teve assistência médica por parte de nenhuma seguradora, tendo sido sempre assistido pelo Serviço Nacional de Saúde, encontrava-se de “baixa médica” conferida pela Segurança Social (não remunerada).

23. O A. esteve desde o início representado por mandatária através da qual, chegou a enviar para a 1ª Ré os certificados de incapacidade temporária (CIT) entre outubro de 2017 e abril de 2019.

24. Quer entre as partes, quer mediante os respetivos mandatários fazendo-lhes chegar essa intenção, foi acordado que a situação do autor não seria descuidada, ser-lhe-ia prestada toda a ajuda clínica e monetária e resolver-se-ia extrajudicialmente, voltando depois ao trabalho quando pudesse.

25. O sinistrado, depois do acidente, passou a receber mensalmente a quantia de 640,00 € que a 1ª Ré lhe entregava x 14 meses.

26. À data da ocorrência do acidente, o A. e os demais trabalhadores encontravam-se a trabalhar no Douro, em ... como, aliás, tinham estado toda a semana e vinham já embora nesse dia.

27. Entre outros trabalhos, tinham estado a desmontar e a montar pipas, sendo necessário para tal, retirar e colocar os arcos que andam à volta e ao longo desses vasilhames de madeira apertando-os.

28. Ora, para tal é necessário recorrer a uma marreta que bate numa cunha de ferro (a que também chamam de “chaço”) que vai andando junto ao tal arco, vai percorrendo-o assim a toda a volta para que este se vá ajustado à pipa e a aperte.

29. Sucede que, na 2ª feira anterior, no início dessa semana, como fazem sempre, ao chegar à tanoaria, os trabalhadores da 1ª Ré, prepararam todas as ferramentas e materiais necessários para levar para o Douro para a execução dos trabalhos.

30. Desde a data do acidente em 16.04.2015 que nunca mais compareceu o trabalhador ao trabalho e ao serviço da 1ª Ré.

31. Sucede que, inicialmente quando os pagamentos eram realizados em mão, as baixas iam sendo entregues à empregadora e, depois, eram remetidas (às vezes várias de uma só vez) por e-mail para o mandatário dos R.

32. Desde a data do sinistro, que a Ré empregadora efetuou pagamentos ao A. no valor total de 40.320,00 € (quarenta mil trezentos e vinte euros).


*


(Da resposta)

33. O sinistrado é pessoa simples e com poucos estudos.

Factualidade que resulta da ampliação dos temas de prova nos termos determinados pelo Tribunal da Relação do Porto:

34. A entidade patronal teve conhecimento, poucos dias após a ocorrência do evento, que o contrato de seguro de acidente de trabalho não se encontrava válido.

35. O autor teve conhecimento, poucos dias após a ocorrência do evento, de que não existia contrato de seguro de acidente de trabalho válido.

36. Poucos dias após a ocorrência do evento, e ao longo dos anos que se seguiram, o autor sempre teve conhecimento de que não tinha sido feita qualquer participação pela sua Entidade empregador ao tribunal.

37. O autor sabia que podia participar o acidente de trabalho, mas optou por não o fazer, até ao ano de 2020, porque estava a receber um montante financeiro mensal por parte da entidade patronal.


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(Factos que decorrem do apenso d)

38. O sinistrado, como consequência direta e necessária do evento descrito anteriormente ficou em situação de ITA desde 15.04.2015 até 18.10.2018, fixável num período de 1283 dias.

39. O autor, como consequência direta e necessária do evento descrito anteriormente encontra-se numa situação de IPP de 50,355% a partir de 18.10.2018.


*


b) Factos Não Provados

Resultaram não provados os seguintes factos:

(da petição inicial)

1. A Entidade empregadora protelou e de que forma, durante largos meses o tratamento que o Sinistrado necessitava, apresentando sempre as mais variadas desculpas.

2. A incapacidade de que ficou afetado é impeditiva de exercer a sua profissão habitual.

3. E qualquer outra similar que exija uma visão mais apurada, na medida em que só dispõe da visão do olho direito.

4. Além disso, por causa da prótese no olho esquerdo, não pode fazer qualquer trabalho que obrigue a movimentos bruscos e fortes do corpo.

5. A sua entidade patronal não dispunha de óculos adequados ao trabalho, não desconhecendo a gerência que tal tipo de serviço é perigoso por sua natureza.

6. Os trabalhadores já tinham feito reparos à gerência da R., sobre a necessidade de usarem material de proteção, sem resultado algum.

7. À data do acidente, o A. recebia o salário líquido de € 640, 00.

8. Àquele valor deve acrescer um mês de férias e de subsídio de Natal, que não foram pagos.

9. Do acidente resultou para o A. incapacidade total que o torna inapto para quase todo o serviço.

10. Em transportes para tratamento e cura das lesões no Hospital 3..., gastou cerca de 100,00 €.

11. Desde o acidente que por falta de vontade pouco ou nada convive socialmente.

12. Passou a ser uma pessoa deprimida e bastante isolada.

(Da contestação)

13. Por diversas vezes, em meses em que a 1ª Ré demorava mais uns dias a entregar-lhe o dinheiro que lhe dava mensalmente, o A. fazia questão de frisar bem isso (como que em tom de “ameaça”), fosse perante a gerência ou terceiros que, a pedido daquela, asseguravam sempre junto do A. a entrega do dinheiro, dizia “ah, porque se não me pagar, eu vou participar o caso ao tribunal, só não o faço porque não quero”.

14. Só quando a ré se insurgiu quanto ao desconhecimento do seu estado clínico e da falta de prestação de informações por parte do A. acerca da sua evolução clínica e, mantendo-se a mesma, tendo feito atrasar no final do ano de 2019 os pagamentos para incitar à reação do sinistrado e este prestar informações (visto que também havia deixado há mais de 7 meses de enviar as baixas médicas) é que aquele decidiu então participar o acidente de trabalho.

15. Só que, por razões que desconhecem os R. junto com esses foi levada uma cunha de ferro que já não era usada há muito tempo, mas que estava lá na Tanoaria, embora fosse do conhecimento geral que a mesma não seria para levar por nem se apresentava já como sendo útil.

16. Chegados ao local do trabalho, quando descarregavam tudo e se preparavam para iniciar os trabalhos de conserto apercebeu-se o 2º Réu que essa tal cunha (que deu depois origem ao acidente) teria sido levada junto.

17. E, em face, disso, advertiu logo, diga-se várias vezes, que essa cunha não era para ser usada pois não estaria em condições e ordenou por diversas vezes que não a misturassem com as demais.

18. No entanto, para garantir isso, chegou mesmo o 2.º Réu a ir desviar a cunha do local de trabalho e arrumou-a no fim do armazém.

19. Ora, por razões que se desconhece, por completo, sem que tal se fizesse prever e sem necessidade para tal, já no último dia de trabalhos foi o sinistrado buscar novamente essa cunha de ferro que já havia sido alertado e avisado, proibindo-se o seu uso e utilizou-a contra as ordens da entidade patronal.

20. A verdade é que já não era a primeira vez que tal sucedia, e já na Tanoaria tinha sido proibido pegar-se nessa cunha que já havia contrariado e, não bastando, foi levada junto com os outros materiais de trabalho e, é exclusivamente por sua culpa, incumprindo ordens do empregador que sofreu o acidente.

21. Sucede que, a somar à ausência de informação sobre o seu estado clínico, desconhecendo sempre a empregadora após setembro de 2017 o seu estado, cirurgias ou tratamentos, como corriam os mesmos, qual a sua evolução e qual o ponto de situação para eventual regresso ao trabalho, a partir de abril de 2019 nunca mais foram enviadas baixas médicas para o mandatário da Ré empregadora, nem para a sede da mesma, apesar de ter sido enviado o atestado da junta médica em abril de 2019 com data de janeiro (que mais uma vez era desconhecida) e foi então aí enviada o último CIT.

22. À data do acidente o A. auferia 505,00 € brutos, o equivalente ao salário mínimo nacional na altura.

23. Esses pagamentos efetuados, tal como consta das declarações assinadas pelo A., corresponderam a pagamentos mensais que incluíam o equivalente à remuneração mínima, acrescida de uma compensação que lhe foi sendo adiantada, sendo certo que o sinistro passou a receber o vencimento mensal bruto, acrescido da compensação no valor de 135,00 €.

24. Valor este que a empregadora entendeu na altura poder suportar para ir ajudando o A. em eventuais despesas acrescidas que fosse tendo e para efeitos de adiantamento de compensação futura por uma incapacidade que viesse a apresentar.

25. Situação aliás que passou igualmente pelo conhecimento quer do mesmo, que nesses termos reconheceu assinou as declarações e ainda pelo crivo da sua mandatária que, com certeza, a tal não o aconselharia nem remeteria de volta as declarações assinadas se tal não correspondesse à verdade do acordado.

26. Por fim, explica-se que o A. sempre recebeu em dinheiro porque admitia que lhe era mais conveniente e até porque, segunda afirmava, não teria conta bancária.

27. Aliás, mesmo quando o gerente não podia, como foi o caso dos meses de dezembro de 2016 a maio de 2017 em que esteve incapacitado após um acidente, sempre foi garantido ao A. o pagamento dos 640,00 € através de outras pessoas, da confiança e família da gerência da Ré que nunca lhe faltou o pagamento.

28. Sucede que, a partir dali e após um episódio de enfarte do gerente, evitando muitas vezes ouvir acusações do A. e “ameaças”, passou a evitar-se o encontro e a realizar os pagamentos por transferência.

29. Como bem sabe o A., pela altura do acidente, o empresa quase não tinha trabalho e procurando sempre manter o seu posto de trabalho, mandava-o fazer o supervisionamento nos armazéns das caves do Vinho do Porto, a pedido destas queum trabalhador para essa função, para verificar se os toneis, balseiros os pipas que lá têm cheios de vinho se encontravam bem, se estavam a verter, se era necessária alguma intervenção, isto é, fazia a vigia e o controle nesses armazéns, a quem a empregadora ia cedendo, ao dia, o trabalhador.


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(Da resposta)

30. O sinistrado foi sempre ludibriado pela entidade patronal que, após o acidente, nunca lhe comunicara diretamente a falta de seguro, tendo inclusive protelado durante largos meses o tratamento que o sinistrado necessitava, apresentando sempre as mais variadas desculpas.


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c) Motivação

Para a resposta acima proferida, o tribunal baseou-se na prova testemunhal e por declarações de parte produzida em audiência, bem como na prova documental e pericial constante dos autos.

O sinistrado AA, ficou sem trabalhar desde a data do acidente. Nos últimos 3 meses passou a fazer uns biscates na construção civil.

Nesses cinco dias do internamento logo após o acidente o réu foi visitá-lo diariamente. Durante esses dias nunca se falou da reparação do sinistro e o autor não sabia que a entidade patronal não tinha seguro.

Depois disso foi a uma consulta e transferido para o Hospital 4... onde passado um ano foi novamente operado para tirar o olho e colocar uma prótese.

Depois de ter saído do hospital falou com o patrão que lhe disse que a empresa não tinha seguro porque o contabilista não pagou o prémio do seguro. Não tem dúvidas de que o seu patrão lhe disse isso. Perante isso, o patrão disse que iria assumir as responsabilidades e foi-lhe pagando o salário mensal até 2017. Durante esses dois anos foi pagando o ordenado sem subsídios.

De 2015 a 2017 o réu ia a casa do autor para entregar o salário que era sempre em dinheiro, entregue pelo patrão ou pelo cunhado. Em 2017 deixou de atender o telefonema ao autor e deixou de pagar. Desde essa data nunca mais houve contacto com o réu. Depois de ter o acidente entrou de baixa médica pelo SNS, mas nunca recebeu qualquer quantia da segurança social, “entregava as baixas ao patrão”, mas nunca recebeu qualquer quantia do ISS. Confirma o teor do artigo 28º da contestação no sentido de estar representado por mandatária.

Nega qualquer acordo referido no artigo 29º embora reafirme o que disse anteriormente quanto ao pagamento dos salários e ao assumir da responsabilidade por parte do seu patrão. Quanto ao artigo 65º confirma apenas que recebeu o salário durante dois anos. Quanto às baixas, refere que a mandatária é que entregava as baixas, mas depois de ter renunciado ao mandato foi o autor que passou a entregar as baixas tendo deixado de as conseguir entregar porque a empresa mudou de instalações. Essa impossibilidade existiu a partir do momento em que deixou de receber o salário, ou seja, em 2017. Durante este período sempre foi seguido pelo SNS e sempre obteve o tratamento que considera adequado. O sinistrado nunca pediu qualquer apoio clinico à sua entidade patronal.

Nunca conversaram sobre se o acidente de trabalho tinha ou não sido comunicado ao Tribunal e o autor nunca perguntou ao patrão essa questão.

Quanto à participação do acidente, o autor refere que enquanto o patrão foi pagando optou por não denunciar, mas depois de ele deixar de pagar é que resolveu atuar “tive medo que ele fosse preso”. “Foi o que me ocorreu que ele podia ser preso, sempre fui muito amigo dele”.

Questionado quanto ao tempo que demorou desde que deixou de receber o salário até que finalmente participou o acidente, o autor referiu “não quis fazer sangue, não quis fazer guerra, foi essa a minha razão”.

O autor sabia que tinha a possibilidade de vir para Tribunal, mas optou por não o fazer por uma questão de respeito para com o seu patrão. De uma forma contraditória, como que para justificar a sua opção, o autor descreveu vários exemplos de abnegação e compromisso seus para com a entidade patronal e em que o réu BB o tratou de forma injusta ou sem consideração. Confrontado pelo Tribunal com o facto de que essa forma de tratamento seria mais um motivo para o autor não ter “pruridos” e participar o acidente de trabalho, o autor não soube justificar a sua opção.

Quanto ao evento propriamente dito: no dia em questão estava o autor, o CC, o BB e outro funcionário a trabalhar em .... A determinada altura o autor pediu a marreta e numa das pancadas, quando pretendia apertar os arcos metálicos do tonel, saiu uma limalha de ferro do arco e acertou no olho.

Não sabe se o ferro saiu da marreta ou do chaço.

Confirma o artigo 99º, 100º, 101º.

Nega terminantemente o artigo 104º nunca viu qualquer cunha velha. Nega completamente que tenha ido buscar essa cunha ao armazém ou sequer utilizado, até porque era o CC que estava a utilizar o material momentos antes do acidente.

Na altura do acidente auferia € 640,00, sempre em dinheiro, mas no recibo estava um valor errado e chegou a avisar o BB de que o valor estaria incorreto, mas ele dizia que isso eram coisas do contabilista. Habitualmente não recebia qualquer recibo de vencimento, “só às vezes assinava as folhas de férias”.

Referiu que de 2016 a 2019 não teve advogada, mas depois confrontado com os emails juntos aos autos referiu que não se recorda, “já passou tanto tempo e aconteceu tanta coisa”. Foi confrontado com os documentos juntos com a contestação, “declarações”, e referiu que nunca recebeu esse dinheiro e nunca assinou esses documentos sendo uma assinatura falsa, não tem qualquer dúvida sobre esses factos.

Quanto aos documentos retratados nos movimentos financeiros, a parte esclareceu que não se recorda de ter recebido esses valores, mas admite como possível que tivesse recebido esse valor. Confrontado com o teor dos emails juntos aos autos referiu que é possível que tivesse assinado as declarações, mas referiu “essas assinaturas não me convencem muito, contradizendo tudo o que tinha sido dito anteriormente”, alterando, portanto, as suas declarações quando anteriormente tinha dito que tinha a certeza absoluta de que não tinha assinado os documentos.

Referiu também que no local do acidente não havia qualquer equipamento de protecção, nomeadamente, óculos.

Em sede de declarações de parte: em termos clínicos pagou a medicação e os transportes para ir às consultas.

Desde a data do acidente nunca trabalhou porque “nunca me senti com capacidade para trabalhar”. Em termos de danos morais, o autor refere que ficou muito afetado psicologicamente e teve que pedir ajuda aos vizinhos e teve muitas dores. Actualmente dores não tem. Confirma que numa determinada altura foi levado a uma clinica pela entidade patronal e depois disso foi a outra consulta e fazer um exame médico, mas depois nunca chegou a ser tratado por essas entidades.

Valoração critica do que foi dito quer em sede de depoimento de parte, quer em sede de declarações de parte:

O autor é, de facto, uma pessoa humilde e com limitações na capacidade de expressão, acresce a isto que nos parece uma pessoa honesta e honrada – desde logo estas qualidades extraem-se da forma “desconcertante” com que admitiu que o seu patrão lhe tinha dito que não tinha seguro logo depois do acidente ou com que verbalizou que tinha optado por não participar o acidente para proteger o seu patrão de quem era amigo.

Por este motivo, sem embargo ser evidente (ou talvez também por isso) que parte das suas declarações não correspondem à verdade histórica do que ocorreu, ainda assim, consideramos que o autor as proferiu por esquecimento ou confusão e não por querer mentir.

Reportamo-nos à questão dos montantes pagos pela sua entidade patronal e à questão de ser representado por mandatária ao longo destes anos. O autor negou que tivesse recebido mais qualquer valor a partir do ano de 2017 e referiu que apenas esteve patrocinado por uma advogada cerca de um ano após o acidente.

Contudo, o que a prova documental demonstrar indubitavelmente, é que existiram pagamentos de valores monetários transferidos para a conta do autor até 2019 e que este sempre esteve representado por mandatária – os emails enviados em seu nome por advogada não deixam margem para dúvida.

Estas duas realidades seriam muito facilmente apreendidas pelo autor caso o mesmo tivesse consultado os autos. Esta postura do autor é, para nós, motivo de credibilidade e de que não “preparou” o que vinha dizer a julgamento. Disse o que lhe ia na alma e o que se recordava.

Atente-se que seria muitíssimo fácil ao autor dizer em audiência final que a sua entidade patronal nunca lhe tinha dito que não tinha seguro, ou então que a sua entidade patronal lhe tinha dito que iria participar o acidente sem nunca o ter feito. Contudo, o autor nunca o fez. Disse a verdade mesmo sabendo que essa confissão poderia muito bem afetar a esperança de ver a ação ser julgada procedente.

Por isso é que consideramos que as declarações suprarreferidas (que foram contrariadas pela prova documental) se ficaram a dever a um lapso ou a alguma confusão relacionada com o passar dos anos e com as graves lesões que sofreu (o autor disse inclusivamente que era a sua mulher que geria a parte financeira do agregado) e não a uma atitude dolosa de querer mentir.

Posto isto, o tribunal valorou as declarações do autor quanto ao modo como o acidente ocorreu, quer na dinâmica, quer na questão das ferramentas utilizadas, da mesma forma que valorou as suas declarações no que concerne ao seu conhecimento de que a entidade patronal não tinha seguro e de que foi por opção sua que não participou o acidente de trabalho. O autor prestou depoimento sempre de uma forma muito sincera, respondendo repetidamente de uma forma espontânea e sem denotar qualquer sinal de ter um discurso decorado ou mecanizado.

Se em relação aos factos confessados, constantes da assentada, as suas declarações têm força probatória plena, quanto ao restante (dinâmica do evento e a questão das ferramentas) foram valoradas livremente pelo tribunal e serviram amplamente para dar como provados esses factos do modo alegado na petição inicial – até porque, quanto a esta matéria, a restante prova testemunhal corrobora as declarações do autor: a testemunha CC mentiu ao tribunal e o réu confirmou o enquadramento do evento em termos muito similares aos que o autor fez, valorando-se, evidentemente, que essa parte não assistiu ao acidente.

Como se disse supra, o facto de o autor ser representado por mandatário ao longo do tempo e ainda os montantes financeiros pagos pela entidade patronal, foram dados como provadas face à prova documental junta aos autos pelo que, quanto a esta parte, as declarações do autor não foram valoradas.

A testemunha DD, vizinho do autor. Confirmou que o autor passou por dificuldades financeiras depois do acidente uma vez que deixou de receber o salário. O autor apenas trabalhou nos últimos três meses.

A testemunha EE e FF, trolha. Referiram que depois do acidente o autor deixou de trabalhar e só ultimamente é que passou a fazer uns biscates.

Depois do acidente passou dificuldades financeiras e foi ajudado financeiramente pelos vizinhos.

A testemunha GG, eletricista de automóveis, cunhado do réu BB. Ia à Tanoaria aos Sábados onde passava algum tempo.

De relevante, referiu que foi algumas vezes a casa do autor entregar envelopes com dinheiro.

A testemunha HH, servente de tanoeiro, é funcionário da ré desde 2016. De relevante, disse que também chegou a ir a casa do sinistrado entregar alguns montantes financeiros.

A testemunha II, jurista numa companhia de seguros, é filha do gerente da ré e aqui réu. Todos os conhecimentos que demonstrou são por conta do que ouviu em casa. Referiu a existência de um acordo entre o seu pai e o sinistrado para se pagar uma determinada quantia financeira, “chegou-se a um entendimento que fosse suportável pelos dois lados”.

No mais versou sobre a necessidade de existir uma declaração a justificar a saída de dinheiro da empresa, segundo o que foi dito pelo seu pai. uma vez que a testemunha nunca teve qualquer papel de gestão na empresa. Por estes motivos (não ter um papel na gestão da empresa e ter relatado o que o seu pai disse) o seu depoimento foi pouco relevante.

A testemunha JJ, mulher do réu, mencionou que o que sabe é por conversas que teve com o marido. Foi com o autor ao médico depois do internamento do mesmo no hospital público, foram a três clínicas particulares para saber segundas opiniões clinicas sobre as lesões que o autor sofria.

Depois disso, decidiram que o melhor seria o autor ser seguido no Hospital 5... onde o autor passou a ser acompanhado. Numa determinada altura fez pagamentos em dinheiro ao autor uma vez que o seu marido estava em convalescença devido a um grave acidente que sofrera.

A testemunha depôs, basicamente, sobre os montantes entregues pela entidade patronal ao autor. O depoimento da testemunha não teve grande utilidade considerando o teor da prova documental junta aos autos relativa a esses pagamentos nos termos que veremos infra.

Finalmente, a testemunha CC, estava presente no dia do evento em causa nos autos uma vez que era colega de trabalho do autor.

Depois do acidente nunca mais voltou a estar com o autor. No dia em questão a testemunha estava a “empalhar um tonel” no sentido de vedar o tonel.

Nessa altura o autor estava a trabalhar noutro tonel a alguma distância de si. A determinada viu o autor a caminhar com a mão na vista e a testemunha perguntou o que se passava e o autor explicou.

Nesse dia não trabalhou com o autor no mesmo tonel.

Sabe que o autor estaria a apertar um tonel porque se “ouvia a bater”. Só estavam os dois na adega. O tonel que o autor estava a apertar teria 5000 ou 8000 litros. Para fazer essa operação de apertar o tonel basta uma pessoa.

Esta versão é totalmente contrária ao que o autor explicou em Tribunal.

Esta disparidade de depoimentos, apesar de estranha, é inócua uma vez que a única versão sobre o modo como o evento ocorreu é a conferida pelo autor. Ou seja, por via da explicação da própria testemunha, o seu depoimento torna-se de reduzida utilidade porquanto a testemunha não presenciou o acidente.

No mais, parece-nos que o depoimento da testemunha não é de valorar.

Vejamos: a testemunha referiu num primeiro momento que não sabia o que o autor estava a fazer ou que ferramentas estaria a utilizar; num segundo momento, a instâncias do mandatário da ré, disse que quando chegou ao tonel onde o autor estava a trabalhar, viu o “chaço” estragado junto do tonel e presumiu que fosse o que o autor estava a utilizar.

Confrontado com o que tinha dito anteriormente, no sentido de que não se recordava que ferramentas o autor utilizava no momento do evento e que apenas tinha visto o autor quando o mesmo se encontrava a cerca de 100 metros do local onde estava a trabalhar, a testemunha acrescentou que apenas foi ao local onde o autor se magoou depois deste ter ido para o hospital.

A esta descrição por si só inverosímil, a testemunha acrescentou pormenores ainda mais difíceis de acreditar: diz que se lembra que o seu patrão tinha referido ao retirar a ferramenta da carrinha que existia um “chaço” empenado que não deveria ser utilizado; lembra-se que o seu patrão tinha dito que já tinha avisado o autor de que aquela “chaço” não deveria ser utilizado; diz que se lembra do seu patrão arrumar o “chaço” defeituoso debaixo de uns sacos a cerca de 100 metros de distância daquele local; questionado sobre o que teria motivado o autor a ir buscar essa ferramenta defeituosa quando o patrão tinha dito para não utilizar e a tinha arrumado longe daquele local e quando nesse local havia outras ferramentas em boas condições a testemunha não soube explicar.

Ora, esta explicação não tem a mínima verossemelhança e contrasta fortemente com os conhecimentos vagos e imprecisos que a testemunha demonstrou no início do seu depoimento. Ficamos convencidos de que a testemunha inventou a existência dessa ferramenta defeituosa com o claro fito de proteger a sua entidade patronal. Não tem a mínima lógica que uma testemunha não saiba descrever que trabalho um colega estava a desenvolver ou que ferramentas estaria a utilizar para mais tarde referir que existia no local uma determinada ferramenta especifica e com defeito e que teria sido utilizada pelo trabalhador.

Mais difícil de compreender é o motivo que teria levado um trabalhador a utilizar uma determinada ferramenta com defeito, contra a expressa advertência da sua entidade patronal, quando no local tinha outras ferramentas perfeitamente funcionais (e mais perto do local onde estava a trabalhar).

Finalmente, o próprio réu BB referiu em audiência final que quando saiu da adega o autor estava a trabalhar no mesmo tonel que o CC e que este, depois do trabalho de empalhamento, teria apenas que tapar uma fuga num outro tonel – versão que contraria totalmente o que a testemunha CC disse.

Por estes motivos, o Tribunal não valorou o depoimento da testemunha e não deu como provada a versão da ré quanto ao modo como o evento ocorreu.

Finalmente em sede de declarações de parte ouviu-se o réu BB.

Quando saiu da adega, o autor estava a empalhar um tonel com o colega CC. Depois de empalhar teria que apertar um arco ou dois para fechar o tonel. Essas funções poderiam ser feitas pelo autor, como já tinham sido feitas muitas vezes.

Quando regressou à adega, passados cerca de 15 minutos, o autor estava a meter água no olho.

Depois disso, foi para o Posto médico de ... e daí para o Hospital 1.... Depois disso foi à adega buscar o CC e foram para o Porto.

Nesse local viu um chaço que tinha arrumado na segunda feira e que não seria para utilizar. Essa ferramenta foi arrumada atrás de uns toneis que estavam montados.

Havia outros chaços que estavam a ser utilizados. Não havia qualquer vantagem em utilizar esse chaço estragado. “Até hoje não sei porque é que ele foi buscar essa peça”.

Quanto ao nexo causal entre o chaço e o acidente, a testemunha referiu que esse chaço estava em más condições porque libertava pedaços de aço porque era de má qualidade e depois “eu vi que estava ali um bocadinho que faltava no chaço”.

Referiu que esse chaço estaria junto a peças que seriam para ir para sucata, não sabe explicar o motivo nem a lógica dessa opção.

Quanto aos equipamentos de proteção individual: “quando estava na adega ele estava a usar óculos, mas quando eu me ausentei não vi se ele estava com óculos ou não”.

Quanto à questão do seguro: depois do acidente ia participar e nessa altura veio a saber que não tinha seguro.

Passados alguns dias, conversou com o autor e disse-lhe que não tinha seguro, mas que iria assumir as responsabilidades todas pela situação.

Nessa altura assumiu as responsabilidades pelo acidente.

Depois disso, deixou de pagar porque soube que o autor estava a trabalhar e houve uma altura em que não fazia nada e nem entregava baixas. A ideia era quando ficasse bom e voltasse a trabalhar iria chegar a um acordo com ele para lhe pagar mais alguma coisa.

Disse-lhe que enquanto estivesse em casa de baixa iria pagar o salário dele.

Nunca falaram sobre a participação do acidente, presumiu que o autor não iria participar e que, face ao acordo, também não teria que o fazer. “Ele até ter estado a receber, até 2019, nunca fez nada”.

Quanto às declarações de parte do réu, as declarações foram relevantes para se perceber que entre as partes foi feito um acordo no sentido de que o réu manteria o pagamento do salário enquanto o autor estivesse de baixa e depois regressaria à empresa para trabalhar. Esta versão resultou demonstrada pelas declarações do réu e também do autor e compreende-se no quadro de amizade que existia entre as partes e de um certo prurido que o autor tinha em “denunciar” a sua entidade patronal.

O tribunal valorou ainda estas declarações para dar como provado que só após o acidente teve conhecimento de que o acidente de trabalho não estava em vigor por falta de pagamento do prémio da apólice. De resto, o único meio de prova produzido no processo quanto a essa matéria (para além destas declarações de parte) foi mesmo o depoimento de parte do autor que, quanto a essa matéria, foi valorado – confissão com carácter probatório pleno.

No mais, quanto à dinâmica do evento, as declarações do réu não merecem qualquer credibilidade uma vez que a parte não o viu e a explicação apresentada, relacionada com o uso de um “chaço” defeituoso não nos mereceu qualquer credibilidade porquanto é violadora das normas de normalidade e de experiência comum, cotejado com os restantes meios de prova, como se viu.

No mais, também não nos pareceu credível a questão dos equipamentos de segurança. De facto, quanto a esta parte o autor esclareceu que não existia qualquer equipamento de segurança, versão que nos pareceu de valorar.

A nível de prova documental o tribunal valorou os seguintes documentos:

Desde logo todos os documentos juntos no apenso A do procedimento cautelar e neste processo (com a contestação) e relacionados com os pagamentos efetuados ao autor. Estes documentos – cheques, comprovativos de transferências e “declarações” de recebimento de determinadas quantias - foram relevantes para se dar como provados os pagamentos e respetivo valor nos termos alegados pelo autor. Repare-se que a assinatura do autor aposta em parte desses documentos não foi colocada em causa pelo autor nos articulados. De resto, resulta igualmente da documentação trocada entre mandatários, e que se irá analisar infra, que esses documentos foram efetivamente assinados pelo autor e que este recebeu os valores indicados (tanto assim que esses documentos foram enviados pela mandatária do autor ao mandatário dos réus).

Em idêntico sentido, até por uma questão de coerência expositiva, esses documentos foram muito relevantes para se dar como provado que o salário do autor era de € 640,00.

Quanto a este aspeto, as declarações do autor e os documentos relativos às transferências e pagamentos anuais atestam que o autor auferia mais do que o salário mínimo nacional. Os recibos juntos pelos réus não foram suficientes para alterar este nosso convencimento: recordemos que se trata de uma empresa que pagava os salários em dinheiro – prática recorrentemente utilizada para ocultar parte dos rendimentos auferidos pelos Trabalhadores – e que nem sequer tinha seguro de acidente de trabalho. Isto é, a empresa não apresentou credibilidade para ficarmos convencidos de que os recibos de vencimento emitidos eram efectivamente reais. Muito pelo contrário, os documentos que existem (porque a partir de um determinado momento o autor passou a receber esses valores por transferência bancária) demonstram que o vencimento mensal era de € 640,00.

De resto, esta é até uma conclusão que se impõe dentro da lógica do quadro argumentativo apresentado pela ré, e que foi dado como provado, no que tange à existência de um acordo entre o autor e o legal representante daquela no sentido de esta ir pagando os salários mensais e, por via disso, não se participar o acidente.

Repare-se que se encontra junto ao processo um email enviado em dezembro de 2015 pela mandatária do autor ao mandatário dos réus e onde esta refere o seguinte:

Ora, o valor anual dos montantes pagos (x 14 meses como alegam os réus) contemplam os subsídios pelo valor de € 640,00. Se o valor que o autor auferia fosse o invocado pela ré isso teria efeito no valor dos subsídios (seriam menores).

No mesmo sentido em abril de 2019 a mesma mandatária do autor envia outro email ao mandatário dos réus com o seguinte teor:

Sinal inequívoco de que o valor pago pela entidade patronal correspondia ao salário auferido pelo sinistrado.

Aproveitando o ensejo, também por questões de lógica expositiva, diremos que os recibos de vencimento juntos pelos réus não foram relevantes para estribar o nosso convencimento uma vez que ficamos convencidos de que os valores apostos nesses documentos não são reais – como se tinha dito anteriormente.

Todos os documentos clínicos juntos ao processo foram relevantes para se perceber e dar como provadas as lesões sofridas pelo autor e respetivas incapacidades em cotejo, naturalmente com os exames perícias efetuados neste processo e no apenso D e que deram origem à sentença de fixação de incapacidade proferida nesse apenso e que por nós foi tida em conta.

Os emails enviados entre mandatários foram relevantes para se estribar o nosso convencimento quanto ao montante auferido pelo sinistrado, mas também para dar como provado que o autor sempre soube que não existia contrato de seguro e que foi por opção sua que não participou o acidente.

Em sumula, o tribunal valorou o depoimento do autor para dar como provado a dinâmica do evento à míngua de qualquer outra prova valorável.

As quantias entregues pela entidade patronal foram dadas como provadas, como se viu, com base na prova documental junta aos autos.

Já no que tange aos factos relativos à participação do acidente de trabalho, o tribunal valorou a prova plena que resulta da confissão operada pelo autor que referiu expressamente que soube que não existia acidente de trabalho escassos dias depois de o mesmo ter ocorrido.

No mais, também o autor admitiu que sabia que podia participar o acidente de trabalho, mas optou por não o fazer uma vez que estava a receber dinheiros da sua entidade patronal.

Acresce a isto que mesmo depois de o autor ter deixado de receber os montantes em causa sabia que deveria participar o acidente, mas optou por não o fazer “porque não queria guerras”.

Por outro lado, a prova documental junta aos autos demonstra cabalmente que o autor continuou a receber dinheiro mesmo depois da data indicada ao Tribunal, ou seja, o ano de 2017, o que amplia o nosso convencimento de que o autor, estando a receber esses montantes da entidade patronal, optou por não participar o acidente embora soubesse que o podia fazer.

É igualmente importante sublinhar, como resulta da prova documental, que o autor sempre esteve patrocinado por advogado – de facto, a extensa correspondência trocada entre os mandatários demonstra à saciedade que o autor sempre esteve patrocinado e que, inclusivamente pouco tempo depois do acidente, foi a mandatária que passou a negociar com o mandatário da ré os valores a serem pagos mensalmente pela entidade patronal.

Repare-se neste email datado de julho de 2019:

Extrai-se claramente destes dois emails que o autor, patrocinado por mandatário, tinha plena noção dos seus direitos – de entre eles o recebimento de uma indemnização pela incapacidade – e por opção própria optou por “negociar” diretamente com a entidade patronal ao invés de participar o acidente de trabalho.”

2.2. Fundamentação de direito:

A primeira questão a resolver é a de apurar se caducou o direito de ação do Sinistrado.
O acidente participado dos autos ocorreu em 15.04.2015, sendo o regime jurídico aplicável o da Lei nº 98/2009, de 04.09. (diploma que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, incluindo a reabilitação e reintegração profissionais, nos termos do artigo 284º do Código do Trabalho), que entrou em vigor em 01.01.2010, conforme resulta do nº 1 do seu artigo 187º e do artigo 188º.
Deixamos transcrito um excerto do acórdão desta secção de 14.07.2021 (Conselheiro Domingos Morais, in www.dgsi.pt):
“[O] artigo 179.º - Caducidade e prescrição – [da Lei n.º 98/2009, de 04.09 (LAT)] estatui:
1 - O direito de ação respeitante às prestações fixadas na presente lei caduca no prazo de um ano a contar da data da alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado ou, se do evento resultar a morte, a contar desta.” (…).
Nos termos do artigo 329.º do Código Civil (CC), “O prazo de caducidade, se a lei não fixar outra data, começa a correr no momento em que o direito puder ser legalmente exercido”.
E o artigo 331.º, n.º 1, do mesmo código, estabelece que só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal, do ato a que a lei atribua efeito impeditivo.
Nos termos do artigo 99.º, n.º 1 do C. P. do Trabalho (CPT), o processo para efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho inicia-se com a participação do acidente nos serviços do Ministério Público (cf. ainda artigo 26.º, n.º 3 do CPT).
A participação é, pois, o ato que exprime a intenção de exercer o direito de ação e visa desencadear os mecanismos legais para a obtenção, pelo sinistrado ou seus beneficiários, das prestações devidas pelo acidente de trabalho, isto é, a participação é o ato impeditivo de caducidade.
(…).” (sublinhado introduzido)
Com efeito, a participação nas ações de acidente de trabalho, por força do disposto no artigo 26º, nº 3 do Código de Processo do Trabalho, equivale à petição inicial para efeitos do disposto no artigo 267º do Código de Processo Civil. E se a apresentação da petição em juízo é suficiente para evitar a consumação da caducidade igual papel tem a participação em juízo do acidente por precisamente ambos os atos traduzirem a manifestação de um direito: o exercício do direito de ação - Acórdão do STJ proferido no processo nº 07S2893, em 09.01.2008, in ww.dgsi.pt.
Tratando-se de uma exceção perentória cuja demonstração conduz à extinção do direito, o ónus da prova dos factos integradores da caducidade cabe à Entidade responsável pela reparação do sinistro, nos termos do disposto no artigo 342º, nº 2 do Código Civil.
Consignou-se no anterior acórdão, proferido nestes autos que no âmbito do direito adjetivo, a caducidade é um efeito decorrente do não exercício do direito pelo respetivo titular num determinado período de tempo fixado na lei (artigo 298º, nº 2 do Código Civil).

Na situação dos autos a Entidade empregadora não tinha a responsabilidade transferida para uma seguradora.

Não existindo participação do acidente ao tribunal por parte da entidade obrigada a fazê-lo, em princípio, não pode o sinistrado ser penalizado por tal omissão, já que a ratio que presidiu à faculdade de participação a realizar pelo sinistrado, foi a de impedir que este seja privado do exercício dos seus direitos, protegendo-o, por essa via, de omissões e da inércia das entidades sujeitas à obrigação de participação e sobre as quais, como é sabido, impendem um conjunto de deveres relativamente aos trabalhadores.

Vejamos a matéria apurada, relevante na questão que se aprecia:

- Nunca foi comunicada ao Autor qualquer data da alta.

- A Entidade empregadora teve conhecimento, poucos dias após a ocorrência do evento, que o contrato de seguro de acidente de trabalho não se encontrava válido.

- O Autor/Sinistrado tomou conhecimento pela própria Entidade empregadora, pouco dias após o acidente, que aquela estaria na data da ocorrência sem contrato de seguro de acidente de trabalho válido, tendo-lhe sido explicado porquê (o mesmo havia caducado por falta de pagamento por débito direto), de modo que, desde então, sabia aquele que não tinha havia qualquer participação realizada pela 1ª Ré nesses moldes.

- O Autor/Sinistrado nunca teve assistência médica por parte de nenhuma seguradora, tendo sido sempre assistido pelo Serviço Nacional de Saúde, encontrava-se de “baixa médica” conferida pela Segurança Social (embora não remunerada).

- O Autor/Sinistrado esteve desde o início representado por Mandatária através da qual, chegou a enviar para a 1ª Ré através do Mandatário desta os certificados de incapacidade temporária (CIT) entre outubro de 2017 e abril de 2019.

- E, quer entre as partes, quer mediante os respetivos Mandatários fazendo-lhes chegar essa intenção, foi acordado que a situação daquele não seria descuidada, ser-lhe-ia prestada toda a ajuda clínica e monetária e resolver-se-ia extrajudicialmente, voltando depois ao trabalho quando pudesse.

- Poucos dias após a ocorrência do evento, e ao longo dos anos que se seguiram, o Autor sempre teve conhecimento de que não tinha sido feita qualquer participação pela sua Entidade empregadora ao tribunal.

- O Autor sabia que podia participar o acidente de trabalho, mas optou por não o fazer, até ao ano de 2020, porque estava a receber um montante financeiro mensal por parte da Entidade empregadora.

O Tribunal recorrido reconheceu a caducidade do direito de ação do Requerente.
Lê-se na decisão recorrida: “(…), uma vez que no caso concreto não existia contrato de seguro obrigatório de acidente de trabalho podemos afirmar que a questão da alta é irrelevante para a contagem do prazo de caducidade, justamente porque essa referência legal é feita no pressuposto de que existe uma seguradora a disponibilizar os tratamentos médicos - “a faculdade legal conferida aos sinistrados e beneficiários legais de, por sua própria iniciativa, participarem os respetivos acidentes de trabalho ao tribunal pode mesmo impor-se quando haja incumprimento do dever de participação por parte das entidades ao mesmo legalmente adstritas, sob pena de caducidade do respetivo direito de ação” - João Monteiro - “Fase Conciliatória do Processo Para Efectivação de Direitos Resultantes de Acidente de Trabalho”, in Prontuário de Direito do Trabalho, CEJ, Coimbra Editora, nº 87, Setembro/Dezembro de 2010, p. 135 e ss, citado no acórdão do Tribunal da Relação do Porto.

No caso concreto existe, portanto, um poder/dever de participação pelo próprio Sinistrado e existem consequências jurídicas do seu não exercício. Perante os factos provados, não existe qualquer circunstância que pudesse justificar o não exercício do direito pelo sinistrado.

O sinistrado sabia que não existia seguradora; sabia que não existia participação pela entidade patronal; Sempre esteve representado por advogado; Efectuou um acordo “particular” de recebimento de determinada quantias; Optou, voluntaria e conscientemente por não participar o acidente.

E esta opção manteve-se desde o dia em que o sinistrado soube que não existia contrato de seguro válido, isto é, pouco tempo depois de o acidente ocorrer. Quer dizer, manteve-se durante o ano de 2015, manteve-se depois de ter sido operado e ter colocado uma prótese; manteve-se durante os anos vindouros de 2016, 2017, 2018 e 2019.

Durante este período temporal o sinistrado foi recebendo o seu salário, foi enviando as baixas e comunicado com a sua entidade patronal, sempre com a resolução mental de não participar o acidente.

Uma última palavra para se referir que no caso concreto ficou por apurar o motivo pelo qual a entidade patronal deixou de pagar o salário ao sinistrado: na verdade, este facto e a troca de mandatário terão sido decisivos para que o sinistrado, finalmente, tivesse participado o acidente. Contudo, a impressão que fica é a de que a determinada altura a entidade patronal tomou conhecimento de que a situação clínica do sinistrado estava consolidada e fez pressão para que o mesmo voltasse ao trabalho. Imaginamos que a entidade patronal não estivesse disponível para arcar com o salário do sinistrado (que efetivamente era superior a uma pensão anual e vitalícia decorrente do acidente aqui em causa) ad aeternum.

Relevante para nós é que não se demonstrou que existisse qualquer intenção da entidade patronal de ludibriar o sinistrado convencendo-o a não participar o acidente durante uma determinada baliza temporal para assegurar “a caducidade”. Se assim fosse, seguramente que a entidade patronal teria deixado de pagar ao sinistrado muito antes dos cinco anos efetivamente decorridos.

Tudo sopesado, os factos provados no processo impõem a ideia de que foi o sinistrado, por sua opção, quem decidiu não participar o acidente de trabalho. Esta omissão do sinistrado, como se disse, tem relevância jurídica muito significativa uma vez que fez operar a caducidade invocada pelos réus.

[(…)]”.

Concordamos que não é de menosprezar o princípio subjacente à caducidade: a necessidade de segurança jurídica.

Ainda assim, desde já se adianta que se justifica a revogação da decisão recorrida.

Com respaldo no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no Processo nº 3300/15.1T8ENT-A.E2.S1, em 10.12.2024:

“O art.334 do CC estatui - “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Aceitando o legislador a conceção objetiva, não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu ato à boa-fé, aos bons costumes ou ao fim social e económico do direito exercido.

Pode asseverar-se, em jeito de síntese, que o instituto do abuso de direito implica a flexibilização dos direitos subjetivos ao impor limites ao seu exercício, impedindo que os seus titulares pratiquem atos que, muito embora cobertos pela legitimidade, sejam contrários ao ordenamento jurídico no seu conjunto. Neste contexto, o abuso de direito emerge como um princípio normativo aplicável na situação concreta por servir de fundamento de resolução, reclamando apelo a uma dialética entre o sistema e o problema.

Por isso se entende que o abuso de direito surge como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida, servindo como “válvula de escape” a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social em determinado momento histórico (cf., por ex., Ac STJ de 18-12-2008 (proc nº 08B2688), Ac STJ de 19-10-2017 (proc nº 1468/11), disponíveis em www dgsi).

A boa-fé, que enforma o instituto, concretiza-se também através dos princípios mediadores da tutela da confiança e da primazia da materialidade subjacente.”

Como exemplo do abuso individual do direito, identifica Heinrich Ewald Hörster, in “A Parte Geral do Direito Civil Português”, Livraria Almedina, 1992, pág. 286, entre outros exemplos, “[um] comportamento desleal que resulta do aproveitamento de uma posição jurídica, ela própria adquirida por dolo ou abuso do direito, se daí provir um prejuízo que doutra maneira não se teria verificado; pode servir de exemplo a invocação da prescrição (ou o aproveitamento da caducidade) por parte de quem tiver obstado, com a sua conduta anterior enganadora, a que o titular do direito intentasse a tempo a ação indicada para evitar o decurso do prazo (…).”

Em concreto, decorreram é certo quase 5 anos até o Autor participar o acidente ao tribunal.

Porém, a circunstância que explica o não exercício do direito pelo Autor/Sinistrado – ainda que pouco tempo depois de o acidente ocorrer ter sabido que não existia seguradora e que não existia participação pela Entidade empregadora – afigura-se-nos óbvia: o acordo “particular” feito com esta última de que a respetiva situação não seria descuidada, ser-lhe-ia prestada toda a ajuda clínica e monetária e resolver-se-ia extrajudicialmente, voltando depois ao trabalho quando pudesse, tendo durante os anos de 2016, 2017, 2018 e 2019 recebido da mesma o seu salário.

Justificação que de resto ficou assente: o autor sabia que podia participar o acidente de trabalho, mas optou por não o fazer, até ao ano de 2020, porque estava a receber um montante financeiro mensal por parte da Entidade empregadora.

O aproveitamento da caducidade por parte da Entidade empregadora, tendo esta durante todos aqueles anos pago ao Sinistrado o seu salário, afigura-se-nos traduzir-se num aproveitamento de uma situação criada por ambos, ou seja, criada também pela própria Ré.

Situação que para a Entidade empregadora implicou é certo assegurar a prestação de toda a ajuda clínica e monetária ao Sinistrado, na prática, assumir responsabilidades suas decorrentes do acidente, já que não tinha a responsabilidade pelo risco emergente de acidentes de trabalho relativamente ao Autor, trabalhador ao seu serviço, transferidas para entidade seguradora, como era sua obrigação, por imperativo legal - artigo 79º, nº 1, da Lei 98/2009.

Com o assim dito, não se está a desvalorizar o que a Entidade empregadora fez enquanto assegurou que a situação do Sinistrado não ficasse descuidada, prestando-lhe ajuda clínica e monetária, nomeadamente, pagando o respetivo salário durante os anos de 2016, 2017, 2018 e 2019, em que o Sinistrado não voltou ao trabalho.

Contudo, assinalamos que o acordo “particular” não foi gratuito também para o Sinistrado, já que implicou para este não ir para tribunal. Se tal acordo não tivesse existido, se a situação dele decorrente não se tivesse verificado, o Sinistrado, representado por Mandatária, desde o início, podia ter participado o acidente de trabalho ao tribunal. Aliás, ficou assente que o Autor – tendo tido conhecimento pela própria Entidade empregadora, pouco dias após o acidente, que aquela estaria na data da ocorrência sem contrato de seguro de acidente de trabalho válido – sabia que podia ter participado o acidente de trabalho ao tribunal mas optou por não o fazer, até ao ano de 2020, porque estava a receber um montante financeiro mensal por parte da Entidade empregadora.

Ora, a intenção da Ré/Entidade empregadora que aqui temos como relevante foi a de gerar uma situação, ou na criação da mesma participar que conduziu o Sinistrado a não agir, a não participar o acidente.

E o que consideramos ser “[u]m comportamento desleal que resulta do aproveitamento de uma posição jurídica”, é a Empregadora, tendo se comprometido, da forma como o fez, no acordo “particular” que ficou demonstrado, volvidos os anos em que assegurou esse pagamento após o acidente e deixando depois de pagar o salário, querer que o decurso daquele tempo obste, invocado a caducidade, a que o Autor possa fazer valer judicialmente os direitos que lhe assistem enquanto Sinistrado, sendo que não vir a tribunal fez parte da situação criada por ambos no mesmo acordo “particular”.

Em suma, a conduta anterior da Ré/Entidade empregadora, decorrente do acordo “particular” a que chegou como o Autor/Sinistrado e a situação criada durante os anos que se seguiram até 2020 – ainda que desde a data do acidente, em 16.04.2015, o Sinistrado nunca mais tenha comparecido ao trabalho, o salário foi pago – levou a que o Autor/Sinistrado não intentasse a ação, antes de a Empregadora deixar de lhe pagar o salário, evitando o decurso do prazo de caducidade.

Situação gerada que avaliamos, também ela, de contornos abusivos, desde logo pelo teor pouco explicito no que se refere a “ser-lhe-ia prestada toda a ajuda clínica e monetária e resolver-se-ia extrajudicialmente, voltando depois ao trabalho quando pudesse”, justificando-se questionar se podia/devia o Sinistrado regressar assim que a sua situação estivesse estabilizada mas regressar em que circunstâncias, ou para o exercício de que funções, atendendo a que ficou sem o olho esquerdo?

Consigna-se que não se entende que a baliza, acordada para aquele regresso, como sendo “voltando depois ao trabalho quando pudesse”, implicasse que a Entidade empregadora tivesse de “arcar com o salário do sinistrado (que efetivamente era superior a uma pensão anual e vitalícia decorrente do acidente aqui em causa) ad aeternum”, como dito pelo Mm.º Juiz a quo no exercício de imaginação que fez constar na decisão recorrida. Entendemos sim que o regresso do Sinistrado, projetado nos referidos moldes, necessariamente colide com os seus direitos resultantes das sequelas advindas do acidente a que se reportam os autos, por não ficarem estes direitos cabalmente assegurados pela Ré, sendo certo que nada resulta do teor do referido acordo “particular” que permita aferir ter ficado acautelado um outro desfecho.

O aproveitamento da caducidade por parte da Ré/Entidade empregadora configura como se explicitou uma situação de abuso de direito que não pode ser validada.

Em conformidade, impõe-se revogar a decisão recorrida que absolveu os Réus de todos os pedidos.

Procede como tal a apelação.

Vejamos agora se é possível a este Tribunal conhecer das questões que ficaram prejudicadas na sentença recorrida pela decisão que se impõe revogar.

«Se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários.» - artigo 665º, nº2 do Código de Processo Civil.

Resultou assente:

- O Sinistrado, como consequência direta e necessária do evento descrito anteriormente ficou em situação de ITA desde 15.04.2015 até 18.10.2018, fixável num período de 1283 dias. (item 38. dos factos provados)

- O Autor, como consequência direta e necessária do evento descrito anteriormente encontra-se numa situação de IPP de 50,355% a partir de 18.10.2018. (item 39. dos factos provados)

- Durante meio ano, teve que aplicar na zona do olho esquerdo dexametasona e atropina, despendendo mensalmente cerca de 8,40 € em tais medicações. (item 18. dos factos provados)

- Passou a utilizar toalhitas para limpeza da pálpebra e uma solução líquida para limpeza da prótese, pelas quais depende cerca de 30 euros mensais. (item 19. dos factos provados)

- Não utilizava qualquer equipamento de segurança ou de proteção, visto a R. não o ter ou nunca lho ter facultado. (item 7. Dos factos provados)

Sobre o cálculo das prestações, dispõe o nº1 artigo 71º, da LAT que «[a] indemnização por incapacidade temporária e a pensão por morte e por incapacidade permanente, absoluta ou parcial, são calculadas com base na retribuição anual ilíquida normalmente devida ao sinistrado, à data do acidente.»

Nos termos do nº4 do mesmo artigo «[s]e a retribuição correspondente ao dia do acidente for diferente da retribuição normal, esta é calculada pela média dos dias de trabalho e a respetiva retribuição auferida pelo sinistrado no período de um ano anterior ao acidente.»

Ora, na decisão de facto da sentença, foi considerado não provado que à data do acidente, o Autor recebia o salário líquido de € 640,00 (item 7 dos factos não privados, alegados na petição inicial).

Foi ainda considerado não provado que à data do acidente o Autor auferia 505,00 € brutos, o equivalente ao salário mínimo nacional na altura (item 22 dos factos não provados, alegados na contestação).

Acresce referir que nada consta da mesma decisão sobre a retribuição normal, auferida pelo Sinistrado no período de um ano anterior ao acidente.

No que se afigura ser uma possível contradição, consta da motivação da decisão de facto o excerto que novamente se transcreve:

“Desde logo todos os documentos juntos no apenso A do procedimento cautelar e neste processo (com a contestação) e relacionados com os pagamentos efetuados ao autor. Estes documentos – cheques, comprovativos de transferências e “declarações” de recebimento de determinadas quantias - foram relevantes para se dar como provados os pagamentos e respetivo valor nos termos alegados pelo autor. Repare-se que a assinatura do autor aposta em parte desses documentos não foi colocada em causa pelo autor nos articulados. De resto, resulta igualmente da documentação trocada entre mandatários, e que se irá analisar infra, que esses documentos foram efetivamente assinados pelo autor e que este recebeu os valores indicados (tanto assim que esses documentos foram enviados pela mandatária do autor ao mandatário dos réus).

Em idêntico sentido, até por uma questão de coerência expositiva, esses documentos foram muito relevantes para se dar como provado que o salário do autor era de € 640,00.

Quanto a este aspeto, as declarações do autor e os documentos relativos às transferências e pagamentos anuais atestam que o autor auferia mais do que o salário mínimo nacional. Os recibos juntos pelos réus não foram suficientes para alterar este nosso convencimento: recordemos que se trata de uma empresa que pagava os salários em dinheiro – prática recorrentemente utilizada para ocultar parte dos rendimentos auferidos pelos Trabalhadores – e que nem sequer tinha seguro de acidente de trabalho. Isto é, a empresa não apresentou credibilidade para ficarmos convencidos de que os recibos de vencimento emitidos eram efetivamente reais. Muito pelo contrário, os documentos que existem (porque a partir de um determinado momento o autor passou a receber esses valores por transferência bancária) demonstram que o vencimento mensal era de € 640,00.

De resto, esta é até uma conclusão que se impõe dentro da lógica do quadro argumentativo apresentado pela ré, e que foi dado como provado, no que tange à existência de um acordo entre o autor e o legal representante daquela no sentido de esta ir pagando os salários mensais e, por via disso, não se participar o acidente.” (realce introduzido).

Estas considerações foram plasmadas pelo Mm.º Juiz a quo que considerou também como assente a matéria do item 25. dos factos provados - o sinistrado, depois do acidente, passou a receber mensalmente a quantia de 640,00 € que a 1ª Ré lhe entregava x 14 meses.

Ainda assim, temos como pertinente que o Mm.º Juiz a quo esclareça e supere, sendo esse o caso, a contradição entre o que considerou não provado (item 7 dos factos não provados) e o que fez constar na motivação da decisão de facto.

Do que ficou já dito resulta ainda que o tribunal a quo não incluiu no elenco dos factos provados matéria essencial.

O Acórdão desta Relação de 31.03.2020, proferido no processo nº 1372/19.9T8VFR-A.P1, (Relatora Conselheira Paula Leal de Carvalho, in www.dgsi.pt] elucida:

“Sumariamente, os factos podem ser essenciais ou instrumentais.

Os factos essenciais são os factos integradores da causa de pedir, constitutivos do direito alegado tendo em atenção as previsões integradores das normas substantivas invocadas [ou integradores das exceções perentórias].

Os factos essenciais tanto abrangem os factos essenciais stricto sensu ou principais, a que se reporta o art. 5º, nº 1, do CPC/2013 e 72º, nº 1, do CPT, como os complementares, porquanto, sendo estes relevantes à procedência da pretensão, integram-se no conceito amplo de causa de pedir, a estes se reportando o art. 5º, nº 2, al. b), do CPC – cfr. Rui Pinto, in Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, anotação ao art. 5º, págs 19 a 25.

Segundo Jorge Augusto Pais do Amaral, in Direito Processual Civil, 13ª edição, Almedina, pág. 305, factos essenciais “São os factos que integram a causa de pedir ou fundamentam as exceções. Por outras palavras, são os factos que concretizam a norma jurídica em que se fundamenta o direito invocado pelo autor ou em que se baseia a defesa do réu. São, em suma, os factos que, se virem a ser provados, são decisivos para que a ação ou a exceção possa ser julgada procedente.

Podemos dizer, em síntese, que os factos essenciais ou fundamentais são os que integram a previsão da norma em que se funda a pretensão do autor (ou reconvinte) ou a exceção deduzida pelo réu (ou reconvinte). São, portanto, os factos cuja prova é indispensável para que seja julgada procedente a ação ou a exceção.”

Dos factos essenciais (integrando estes os principais e os complementares) se distinguem os factos instrumentais, os quais não integram a causa de pedir, sendo antes “factos indiciários ou presuntivos da causa de pedir. (…) de acordo com o artigo 349º CC “as Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”. Assim, os factos instrumentais são factos conhecidos que permitem à parte firmar um facto constitutivo (facto desconhecido). Portanto, são factos meramente probatórios e não integram as normas de procedência, i.e., as previsões normativas dos regimes materiais que suportam o pedido do autor.(…)”, categoria esta a que se reporta o art. 5º, nº 2, al. a), do CPC, estando fora do ónus de alegação” – cfr. Rui Pinto, in Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, anotação ao art. 5º, págs 19 a 25” (realce, sublinhado e alteração do tamanho da letra nossos).

Acompanhamos a Relação de Coimbra, no acórdão proferido no processo nº 2941/20.0T8VIS.C1, em 05.03.2024 (Relator Desembargador Vítor Amaral, in www.dgsi.pt) onde se lê: “Dir-se-á ainda que se concorda com o entendimento explicitado no Ac. TRC de 10/05/2022 ([15]) quanto ao aditamento à matéria assente de factos que (embora articulados) não tenham sido objeto de pronúncia/julgamento pela 1.ª instância, podendo ler-se na fundamentação deste aresto:

«Resulta do n.º 1 do artigo 662.º do CPC combinado com a parte final da alínea c) do n.º 2 do mesmo preceito que o dever de a Relação reapreciar a prova produzida, formar a sua convicção e julgar provados ou não provados os pontos de facto indicados pelo recorrente só existe em relação aos factos sobre os quais se tenha pronunciado o tribunal a quo.

Na verdade, só em relação a esta pronúncia é que tem sentido dizer, como faz o n.º 1 do artigo 662.º, do CPC, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Depõe a favor desta interpretação o artigo 640.º do CPC, relativos aos ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, ao impor ao recorrente o ónus de especificar os pontos de facto que considera incorretamente julgados.

Se o tribunal de 1.ª instância omitir a pronúncia sobre uma determinada questão de facto e se a resposta a ela for indispensável para a decisão da causa, a consequência de tal omissão será a anulação da decisão proferida em 1.ª instância, seguida da repetição do julgamento sobre tal questão. É a solução que resulta da alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC, na parte em que dispõe que a Relação deve mesmo oficiosamente anular a decisão proferida em 1.ª instância, quando considere indispensável a matéria de facto, combinada com a alínea c) do n.º 3 do mesmo diploma.

Só assim não será se a matéria em questão estiver admitida por acordo, provada por documentos ou por confissão reduzida a escrito. Nestas hipóteses, cabe ao tribunal da Relação tomar em consideração tais factos, sem necessidade de anulação do julgamento. É o que resulta da 2.ª parte do n.º 4 do artigo 607.º do CPC – aplicável ao acórdão da Relação por remissão do n.º 2 do artigo 663.º do CPC. Precise-se que quando o n.º 4 do artigo 607.º fala em factos provados por documentos quer dizer factos provados plenamente por documentos.».

[(…)]

Como esclarece Abrantes Geraldes ([16]):

«Ligado ao poder de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto está o dever de fundamentação (…).

A exigência legal impõe que se estabeleça o fio condutor entre a decisão sobre os factos provados e não provados e os meios de prova usados na aquisição da convicção, fazendo a respetiva aquisição crítica nos seus aspetos mais relevantes. Por conseguinte, quer relativamente aos factos provados, quer quanto aos factos não provados, o juiz deve justificar os motivos da sua decisão, declarando por que razão (…) deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros, julgou relevantes ou irrelevantes certas conclusões dos peritos ou achou satisfatória ou não a prova resultante de documentos.

É na motivação que agora devem ser inequivocamente integradas as presunções judiciais e correspondentes factos instrumentais em que se apoiam, nos termos do art. 607.º, n.º 4.

Se a decisão proferida sobre algum facto essencial não estiver devidamente fundamentada a Relação deve determinar a remessa dos autos ao tribunal de 1.ª instância, a fim de preencher essa falha com base nas gravações efetuadas ou através de repetição da produção da prova, para efeitos de inserção da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto».

O mencionado deficit/insuficiência/obscuridade de fundamentação, verificado in casu, sempre obrigaria à baixa do processo, com anulação da decisão, para sanação do vício e, outrossim, fundamentação adequada, concreta e coerente pela 1.ª instância, quanto a esta específica factualidade, que, objeto de impugnação recursiva, se reveste de essencialidade para a decisão da causa em vista dos pedidos formulados, âmbito em que vem impugnada, nesta senda, a decisão absolutória da ação (e da reconvenção).”

[(…)]

([15]) Proc. 1932/19.8T8FIG.C1 (Rel. Emídio Francisco Santos), disponível em www.dgsi.pt (com destaques aditados).

([16]) Cfr. Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, ps. 242-244.” (realce e sublinhado aqui introduzidos)

Em suma:

Apenas nas hipóteses de os factos indispensáveis para a decisão da causa, sobre os quais se silenciou a 1ª instância, ser matéria admitida por acordo, provada por documentos ou por confissão reduzida a escrito, cabe ao tribunal da Relação tomar a mesma em consideração, sem necessidade de anulação do julgamento.

É o que resulta da 2ª parte, do nº 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil, comando legal aplicável ao acórdão da Relação por remissão do nº 2 do artigo 663º do mesmo Código.

Como referido no Acórdão da Relação de Évora, proferido no processo nº25/14.9T8LAG.E1, em 22.02.2017, in www.dgsi.pt “[(…)] à semelhança da primeira instância, também a segunda instância está sujeita na elaboração do acórdão ao cumprimento designadamente das regras de direito substantivo.”

Na factualidade provada não consta o que o Sinistrado auferia no dia do acidente, tendo sido dado como não provado que auferisse a quantia de € 640,00 à data do sinistro.

A não prova desse facto está, como supra se referiu, em aparente contradição com a motivação da decisão de facto da 1ª instância.

Assim, e previamente, importa que o Tribunal a quo providencie por sanar a apontada aparente contradição, esclarecendo, na sua motivação de facto, se a prova produzida demonstra ou não que o sSnistrado auferia a quantia de € 640,00 à data do sinistro e, na positiva, fazendo verter tal facto no elenco dos factos provados.

Na negativa, ou seja, caso o Tribunal a quo, ao suprir a apontada contradição, conclua pela não prova de que o sinistrado auferia aquela quantia à data do sinistro e motive em conformidade, deverá o mesmo providenciar por apurar o que o sinistrado recebeu no ano anterior, ampliando a matéria de facto.

Pois que, sendo tal matéria indispensável, dentro dos amplos poderes de reapreciação da matéria de facto deste tribunal, justifica-se utilizar o disposto no artigo 662º, nº 2, alíneas c) e d), do Código de Processo Civil, do qual resulta que a Relação «deve (…) mesmo oficiosamente» anular a decisão proferida pela 1ª instância quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, sem que constem do processo todos os elementos necessários à alteração da decisão, e/ou considere indispensável a ampliação da matéria de facto (alínea c) apontada).

A necessidade prévia de o Tribunal de 1ª instância proceder do modo descrito obsta a que este Tribunal da Relação possa de imediato conhecer das questões suscitadas nos autos que ficaram prejudicadas pela procedência da exceção de caducidade naquela 1ª instância.

A implicar que, para além da revogação da sentença recorrida, na parte em que julgou procedente a exceção de caducidade, se impõe a anulação da sentença na fração em que deu como não provado que o Sinistrado auferisse a quantia de 640,00 à data do sinistro e a sua substituição por outra que proceda à sanação da apontada aparente contradição, com a respetiva e necessária reformulação dos factos respeitantes a esta matéria (provados e não provados), e bem assim que conheça, em seguida, das questões suscitadas nos autos e cujo conhecimento tinha ficado prejudicado com a afirmação da caducidade.

O que tudo se determina.

3. Dispositivo:

Pelo exposto, acordam os juízes desembargadores da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

a) em revogar a decisão recorrida e na consideração da verificação de abuso de direito, julgar improcedente a exceção da caducidade invocada pela Recorrida.

b) em anular a decisão proferida pela 1ª instância na fração em que deu como não provado que o sinistrado auferisse a quantia de 640,00 à data do sinistro, pela aparente contradição supra apontada;

c) em determinar que o Tribunal a quo providencie por sanar a apontada aparente contradição, esclarecendo, na sua motivação de facto, se a prova produzida demonstra ou não que o sinistrado auferia a quantia de € 640,00 à data do sinistro e, na positiva, fazendo verter tal facto no elenco dos factos provados;

d) na negativa, em determinar que esse mesmo tribunal providencie por apurar o que o sinistrado recebeu no ano anterior, fazendo constar a realidade que vier a ser apurada dos factos provados;

e) em determinar que, em seguida, seja proferida sentença expurgada da apontada aparente contradição e, se necessário, com a ampliação da matéria de facto nos moldes supra descritos, sempre com a respetiva e necessária reformulação dos factos respeitantes a esta matéria (provados e não provados), e bem assim que conheça, em seguida, das questões suscitadas nos autos e cujo conhecimento tinha ficado prejudicado com a afirmação da caducidade.

Custas a determinar a final.

Porto, 24 de Setembro de 2025.

Teresa Sá Lopes

António Luís Carvalhão

Luísa Ferreira