RECURSO DE CONTRAORDENAÇÃO
TEMPOS DE CONDUÇÃO
PAUSAS
Sumário

I. Prevendo o art. 7.º, do Regulamento CE n.º 561/2006, de 15 de Março, a necessidade de a condução ser interrompida por pausas e/ou que se lhe suceda um período de pausa e sendo esta definida como o período durante o qual o condutor não pode efectuar nenhum trabalho de condução ou outro e que é exclusivamente utilizado para recuperação, parece-nos a ratio da norma proscreve que essas pausas possam servir para outros propósitos que não aquele para que estão vocacionadas: o descanso e a efectiva recuperação do condutor.
II. Resultando provado que em determinada jornada de trabalho o condutor interrompeu o tempo de condução de 4h30m apenas com uma pausa de 17 minutos e que as demais interrupções se destinaram à realização de “outros trabalhos”, estão verificados os elementos típicos objectivos do ilícito, uma vez qua estas últimas interrupções não satisfazem o desiderato pretendido pela norma.
III. Pese embora o Regulamento (CE) n.º 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março de 2006, e o art. 13.º, n.º 1, da Lei n.º 27/2010, de 30 de Agosto, não exijam que entre o condutor e a empresa de transportes exista a relação de subordinação jurídica própria dos vínculos laborais, supõem, contudo, que entre eles exista uma qualquer relação que suponha a intervenção do dever de vigilância no contexto da actividade e a possibilidade de, de algum modo, ser organizado o trabalho.
IV. Não é suficiente para imputar à empresa de transportes a prática de factos cometidos pelo condutor quando do elenco dos factos provados apenas consta que este conduzia um veículo propriedade daquela e que, numa concreta jornada de trabalho, não observou a pausa após um período de condução de 4h30m.

Texto Integral

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. A sociedade “Transportes Gama, S.A.” foi condenada, por via da decisão proferida pela Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), no pagamento da coima única de € 3.264,00 (32 UC’s), pela prática de factos integradores dos seguintes ilícitos contra-ordenacionais:
i. o previsto e punível pelas disposições conjugadas dos arts. 8.º, n.º 6, 4.º, al. h), do Regulamento CE n.º 561/2006, de 15 de Março, e art. 20.º, n.º 6, al. c), da Lei n.º 27/2010, de 30 de Agosto;
ii. o previsto e punível pelas disposições conjugadas do art. 7.º, do Regulamento CE n.º 561/2006, de 15 de Março, e arts. 14.º, n.º 4, e 19.º, n.º 2, al. c), da Lei n.º 27/2010, de 30 de Agosto.
Foi, ainda, condenada na sanção acessória de publicidade.
1.1. AA, BB e CC foram condenados no pagamento solidário da coima única supra referida.
2. Inconformados, a arguida e os responsáveis solidários interpuserem recurso da decisão proferida pela autoridade administrativa para o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo do Trabalho do Barreiro.
3. Recebido o recurso, foi designada data para realização da audiência de discussão e julgamento.
4. Discutida e julgada a causa, foi proferida sentença cujo dispositivo é o seguinte:
«Pelos fundamentos de facto e de direito supra expostos, o tribunal decide dar provimento à impugnação judicial e, consequentemente, decide:
1 – revogar a decisão administrativa e, consequentemente, absolver a Recorrente TRANSPORTES GAMA, S.A., da prática das contraordenações que lhe vinham imputadas, bem como os responsáveis solidários».
5. O Ministério Público, inconformado com a decisão da 1.ª instância, dela interpôs recurso, rematando as suas alegações com a seguinte síntese conclusiva:
«1.ª- Atento a jurisprudência constante dos acórdãos oportunamente identificados e parcialmente transcritos, mal andou a Mm.ª Juíza a quo ao considerar que para a contraordenação de que a arguida vinha acusada apenas importaria considerar os períodos de condução efetiva, e não os períodos de condução efetiva e outros trabalhos que o trabalhador/motorista realizou após um período de pausa até à outra pausa.
2.ª- Donde que, e por errada interpretação da norma, deve a douta sentença recorrida ser revogada nesta parte e substituída por decisão em que se considere que relativamente à contraordenação em causa, por falta de pausas intercalares/excesso de período de condução, se mostram, desde logo, preenchidos os elementos objetivos da infração.
3.ª- No que respeita ao elemento subjetivo da contraordenação, a Mm.ª Juíza a quo não o deu como provado por considerar, como resulta da fundamentação da matéria de facto, que como o motorista não fez condução ininterrupta, não revelam falta de diligência da Arguida.
4.ª- Acontece que, apesar de não ter feito condução ininterrupta, o motorista fez mais de 4H30 de período de condução (trabalho), sem que tenha feito uma pausa de 45 minutos, pelo que, seguindo o raciocínio subjacente à decisão a quo, tal demonstra a falta de diligência pela arguida.
5.ª- Com efeito, não demonstrou que organizou o tempo de condução e repouso de modo a que o motorista pudesse cumprir as normas comunitária.
6.ª- Por outro lado, não se pode deixar de referir que a prova se resume ao auto de contraordenação que foi levantando, assim como à sua confirmação pela testemunha DD, o agente autuante.
7.ª- Neste contexto, e atento que do disposto no art.º 551º, n.º 1, do Código do Trabalho, conjugado com o disposto no art.º 13.º, n.º 1, disposições estas de que resulta que a arguida é responsável pela infração em causa, entendendo-se, de resto, que se trata de uma responsabilidade presumida (a este propósito vide acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23.04.2021, proc. n.º 4078/20.2T8CBRC.1), mais não resta do que concluir que não tendo junto qualquer prova, assim como não tendo sido produzida qualquer prova, que exclua a sua responsabilidade pela contraordenação, impunha-se dar como provado o tipo subjetivo relativo à infração em causa.
8.ª- Por todo o exposto, isto é, por errada interpretação da norma aplicável e erro quanto à matéria de facto dada como não provada, deverá a sentença recorrida ser revogada nesta parte e substituída por decisão em que se condene arguida/recorrida pela violação do disposto no artigo 7.º do Regulamento (CE) n.º 561/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de março, e alínea c) do n.º 2 do artigo 19º da Lei 27/2010 de 30 de agosto (falta de pausas intercalares), na coima de €2.856,00 (28UC) – infração B/proc. 0322200116»,
Entende, assim, o recorrente dever dar-se provimento ao recurso.
6. O recurso foi admitido por despacho datado de 21 de Maio de 2025.
7. A arguida e os responsáveis solidários, notificados do recurso interposto pelo Ministério Público, apresentaram as suas contra-alegações que terminam com a seguinte síntese conclusiva:
«A. O motorista em questão – EE – não é ou era à data dos factos trabalhador da Sociedade Arguida, não existindo qualquer relação laboral ou contratual entre um e outro. Na verdade, o motorista EE era trabalhador da sociedade Transgama – Transportes J. Gama, S.A., titular do NIPC 500474222 (e não da Sociedade Arguida – Transportes Gama, S.A., NIPC 500 756 236).
B. A única relação existente entre a Sociedade Arguida e os presentes autos, resume-se ao facto da mesma ser proprietária do veículo conduzido pelo supra mencionado motorista na data em que o mesmo foi sujeito a operação de fiscalização que originou os presentes autos.
C. O trabalhador EE conduzia o veículo da Sociedade Arguida, mas não o fazia enquanto seu trabalhador, nem sob suas ordens e instruções.
D. Era à sociedade Transgama – Transportes J. Gama, S.A., titular do NIPC 500474222 que cabia dar as devidas instruções e orientações ao motorista em questão, organizando e distribuindo o serviço ao motorista em questão.
E. Assim, não competia à sociedade Arguida a organização e fiscalização dos tempos de trabalho do motorista EE, não tendo a sociedade Arguida qualquer responsabilidade na determinação dos horários de trabalho do motorista, nem lhe cabendo assegurar que o mesmo cumpria os tempos de trabalho e de descanso.
F. Não sendo o motorista trabalhador da sociedade Recorrida, nem existindo entre ambos qualquer vínculo jurídico, não pode ser atribuído àquela qualquer responsabilidade pela prática de contra-ordenações ocorridas no âmbito de relação laboral do motorista com outra sociedade comercial.
G. Não existe erro na aplicação do direito no que respeita a interpretação dada ao conceito de período de condução, para efeitos do art.º 7.º, do regulamento (CE) n.º 561/2006 do Conselho, de 15.03, não merecendo a sentença recorrida qualquer reparo, devendo manter-se integralmente.
H. Para efeitos de contabilização do tempo de condução na prática desta contra-ordenação, consideram-se apenas os períodos de condução efetiva, não devendo somar-se os períodos de “outros trabalhos”
I. O entendimento do MM Juiz do Tribunal A Quo é efectivamente, aquela que melhor se adequa à legislação em questão, pois artigo 7º do Regulamento (CE) nº 561/2006 refere apenas o termo período de condução, sendo que o artigo 19º da Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto, aplicado no caso concreto refere expressamente “tempo de condução ininterrupta”.
J. Não sendo aceitável considerar como tempo de condução a soma da condução efetiva acrescida do tempo de outros trabalhos, sendo que para determinação da gravidade da contra-ordenação haveria que recorrer a critério diferente, considerando apenas o tempo de condução ininterrupta.
K. O critério deve por isso ser idêntico, tal como doutamente decidido na sentença sob recurso, e tal como ali referido, não ficou comprovado que tenha ocorrido um período de condução ininterrupta superior a 4h30m.
L. Pelo que se mostra acertada a conclusão de que não ocorreu qualquer contra-ordenação, havendo por isso que manter-se a decisão de revogação da decisão administrativa.
M. Não se verifica o alegado erro notório na apreciação da prova, no que respeita ao elemento subjectivo da contra-ordenação em apreço – condução sem respeitar as pausas, devido à errada interpretação do conceito de período de condução da norma aplicável – art.ºs 410 n.ºs 1 e 2, al. c) e 41º n.º 3, ambos do CPP, pois ao contrário do alegado foi demonstrada a exclusão de responsabilidade da sociedade arguida.
N. É defendido que a sociedade Arguida não demonstrou que organizou o tempo de condução e repouso de modo que o motorista pudesse cumprir as normas comunitárias, imputando à sociedade arguida a responsabilidade resultante do artigo 551º nº 1 do Código de Trabalho.
O. Não sendo o motorista trabalhador da sociedade arguida não pode aplicar-se a responsabilidade presumida prevista no artigo 551º nº 1 do Código de Trabalho.
P. Assim, nunca poderia o Tribunal entender que a sociedade arguida não atuou com todo o cuidado que, objetivamente, lhe era devido e de que era perfeitamente capaz, de modo a determinar um horário de trabalho ao motorista que lhe permitisse o cumprimento dos tempos de trabalho e de descanso, pelo que a infração se mostra praticada, dado que não lhe cabia dar as devidas instruções e orientações ao motorista em questão, organizando e distribuindo o serviço ao motorista em questão, não possuindo a sociedade arguida qualquer poder ou responsabilidade sobre o motorista em questão.
Q. Consequentemente, não lhe pode ser imputada a prática da contraordenação em questão, nem aplicada a coima respectiva.
R. Sem necessidade de outras considerações, porque completamente desnecessárias, conclui-se pelo acerto da decisão do Tribunal a quo, uma vez que foi corretamente apreciada a matéria de facto e de direito».
Entendem, assim, que o recurso deverá ser «considerado improcedente por não provado, mantendo-se a douta sentença recorrida».
8. O recurso foi remetido a este Tribunal.
9. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer sufragando a posição assumida pelo Ministério Público na 1.ª instância.
10. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a arguida nada veio alegar ou requerer.
11. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.
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II. Objecto do recurso
1. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação, onde sintetiza as razões da discordância do decidido e resume as razões do pedido – arts. 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, aplicável subsidiariamente por força do disposto, sucessivamente, no art. 60.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações Laborais (RGCOL), aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, e nos arts. 41.º, n.º 1, e 74.º, n.º 4, do Regime Geral das Contraordenações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (RGCO), este com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 356/89, de 17 de Outubro, pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, pelo Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro e pela Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro.
Assim, presentes as conclusões da motivação do recurso, são as seguintes as questões a conhecer: (i) do erro notório na apreciação da prova; (ii) da prática, pela arguida, dos factos integradores do ilícito contra-ordenacional previsto e punido pelas disposições conjugadas do art. 7.º, do Regulamento CE n.º 561/2006, de 15 de Março, e arts. 14.º, n.º 4, e 19.º, n.º 2, al. c), da Lei n.º 27/2010, de 30 de Agosto, e sua consequente condenação no pagamento da coima de € 2.856,00.
Esclarecer, pois, em face da definição do objecto do recurso, que o segmento decisório que absolveu a arguida, bem como os responsáveis solidários, da prática dos factos integradores do ilícito contra-ordenacional previsto e punido pelas disposições conjugadas dos arts. 8.º, n.º 6, 4.º, al. h), do Regulamento CE n.º 561/2006, de 15 de Março, e art. 20.º, n.º 6, al. c), da Lei n.º 27/2010, de 30 de Agosto, transitou já em julgado, uma vez que dele não interpôs recurso o Ministério Público.
Esclarecer, também e finalmente, que a sentença recorrida absolveu os responsáveis solidários do pagamento [solidário] das coimas em que havia sido condenada a arguida e, em particular, a coima resultante da prática do ilícito contra-ordenacional previsto e punido pelas disposições conjugadas do art. 7.º, do Regulamento CE n.º 561/2006, de 15 de Março, e arts. 14.º, n.º 4, e 19.º, n.º 2, al. c), da Lei n.º 27/2010, de 30 de Agosto. No recurso que interpôs, o recorrente apenas peticiona a condenação da arguida, mas já não dos responsáveis solidários, não se surpreendendo nas alegações e conclusões do recurso qualquer menção a estes sujeitos processuais. Nesta conformidade, o recurso terá por objecto, apenas, os fundamentos em que assenta a peticionada condenação da arguida, mas já não dos responsáveis solidários, posto que, quanto a estes, transitou em julgado o juízo decisório que os absolveu.
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III. Fundamentação de facto
Na decisão recorrida foram dados como provados os seguintes factos:
1. No dia 7 de Maio de 2019, pelas 08h15, na Praça 1, a Guarda Nacional Republicana (GNR) realizou uma ação de fiscalização ao veículo pesado de mercadorias de matrícula ..-VX-.., propriedade da Arguida.
2. O veículo supra mencionado estava equipado com um aparelho de tacógrafo digital.
3. Tal veículo era, naquela data, hora e local, conduzido pelo motorista FF.
4. Após análise dos registos tacográficos, verificou-se que o condutor realizou, entre as 00h00 do 23 de Março de 2019 e as 08h25 do dia 25 de Março de 2019, um repouso semanal regular de 56h25, realizando um repouso semanal reduzido de 27h25 das 16H35 do dia 30 de Março de 2019 e as 20H00 do dia 31 de Março de 2019.
5. A arguida juntou aos autos comprovativo de formação com a duração de 03h00 relativa ao motorista FF assim como manual motorista e plano de viagens.
6. No dia 14 de Maio de 2019, o motorista EE, conduzia o veículo pesado de mercadorias com a matrícula ..-CB-.., propriedade da arguida.
7. O veículo identificado foi sujeito a uma fiscalização pela GNR, tendo o agente fiscalizador verificado que o condutor no dia 14 de Maio de 2019 conduziu mais de 04h30 e só efetuou uma pausa de 00h17.
8. No dia 14 de Maio de 2019, o motorista EE, após o gozo de um período de repouso, iniciou a condução às 12H06 (hora nacional) e terminou às 18h47 (hora nacional), tendo feito períodos de condução intercalados com períodos de outros trabalhos.
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IV. Fundamentação de Direito
A recorrida foi absolvida, em 1.ª instância, da prática dos factos integradores do ilícito contra-ordenacional previsto e punido pelas disposições conjugadas dos art. 7.º, do Regulamento CE n.º 561/2006, de 15 de Março, e arts. 14.º, n.º 4, e 19.º, n.º 2, al. c), da Lei n.º 27/2010, de 30 de Agosto.
1. Estatui o citado art. 7.º, que:
«Após um período de condução de quatro horas e meia, o condutor gozará uma pausa ininterrupta de pelo menos 45 minutos, a não ser que goze um período de repouso.
Esta pausa pode ser substituída por uma pausa de pelo menos 15 minutos seguida de uma pausa de pelo menos 30 minutos repartidos pelo período de modo a dar cumprimento ao disposto no primeiro parágrafo».
O mencionado Regulamento densifica, no seu art. 4.º, os vários conceitos a que alude ao longo das suas disposições, identificando, na alínea q), o período de condução. Traduz-se este no «período de condução acumulado a partir do momento em que o condutor começa a conduzir após um período de repouso ou uma pausa, até gozar um período de repouso ou uma pausa. O período de condução pode ser contínuo ou não».
Por seu turno, o conceito de pausa surge no mesmo Regulamento identificado como o «período durante o qual o condutor não pode efectuar nenhum trabalho de condução ou outro e que é exclusivamente utilizado para recuperação» - al. d).
Já o conceito de outros trabalhos caracteriza-se como sendo aquele cujo tempo é ocupado no exercício de todas as actividades definidas como tempo de trabalho na alínea a) do artigo 3.º da Directiva 2002/15/CE, com excepção da «condução», bem como qualquer trabalho prestado ao mesmo ou a outro empregador dentro ou fora do sector dos transportes.
Tendo o Regulamento CE n.º 561/2006, de 15 de Março, por escopo a segurança rodoviária, a melhoria das condições de trabalho dos condutores e o estabelecimento de regras de livre concorrência no transporte por estrada, temos por certo que o ou os períodos de pausa que se interponham num período de condução de quatro horas e meia (15 minutos e 30 minutos) ou o período de pausa de 45 minutos que o condutor deva efectuar findas aquelas quatro horas e meia não se confundem com interrupções do período de condução em cujo tempo sejam executados outros trabalhos.
Prevendo expressamente o art. 7.º, do Regulamento, a necessidade de a condução ser interrompida por pausas e/ou que se lhe suceda um período de pausa e sendo esta definida como o período durante o qual o condutor não pode efectuar nenhum trabalho de condução ou outro e que é exclusivamente utilizado para recuperação, parece-nos ser de linear clareza que a ratio da norma proscreve que essas pausas possam, em bom rigor, servir para outros propósitos que não aquele para que estão vocacionadas: o descanso e a efectiva recuperação do condutor.
Dizer, por isso, que ainda que o período de condução seja interrompido, por mais ou menos tempo, por períodos em que o condutor está a realizar “outros trabalhos”, estes períodos não se confundem nem podem confundir com os períodos de pausa, antes o tempo que neles se gasta concorrendo, em bom rigor, para o conceito de período de condução, posto que, como vimos, o Regulamento não exige que este seja ininterrupto (pode ser contínuo ou não).
À semelhança do que se ponderou no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 3 de Dezembro de 201511, «cremos que só esta interpretação permite alcançar os almejados fins que se visam com o regulamento em causa e que se deixaram supra referidos, maxime quanto à segurança rodoviária e melhoria das condições de trabalho dos condutores: se esse «Outro trabalho» não integrasse o período de condução em análise tal poderia traduzir-se, de facto, que o trabalhador/condutor prestasse o trabalho durante várias horas seguidas, desde que não ultrapassasse as 4h30m de condução efectiva, sem que tivesse qualquer pausa ou repouso, colocando assim em causa a segurança rodoviária na medida em que o trabalhador/condutor havia desenvolvido a sua actividade durante longo período de tempo contínuo sem descansar (…). Uma tal interpretação reduziria ou esvaziaria o fim que se quis atingir com o regulamento (…)».
2. As considerações expostas evidenciam que a sentença recorrida não fez, com todo o respeito, a correcta interpretação do disposto no art. 7.º, do Regulamento que temos vindo de citar, uma vez que considerou que os períodos de “outros trabalhos”, porque entrecortaram o período de condução, impediam que se concluísse que o condutor havia conduzido ininterruptamente pelo período de 4h30.
Todavia, o que os factos provados revelam é que, na jornada do dia 14 de Maio de 2019, o condutor EE, no período compreendido entre as 12h06 e as 18h47, apenas gozou uma pausa de 17 minutos, isto é, tendo por referência o período de quatro horas e meia, não efectuou nem 45 minutos de pausa no seu término e nem o intervalou com uma pausa de 15 minutos e outra de 30 minutos. A interposição, nesse período de referência, de interrupções destinadas à realização de “outros trabalhos” não satisfaz o desiderato pretendido pela norma, na medida em que essas interrupções não se destinaram a um efectivo tempo de recuperação do condutor.
Nesta medida e à semelhança do que defende o recorrente, estamos em crer que os elementos típicos objectivos do ilícito se devem ter por verificados.
A questão que em seguida se coloca consiste, contudo, em saber se o facto ilícito será ou não de imputar à arguida, à luz do que se prevê no art. 13.º, n.º 1, da Lei n.º 27/2010, de 30 de Agosto, visto ser líquido que os factos foram cometidos pelo condutor.
Neste conspecto, consta singelamente dos factos provados que:
«6. No dia 14 de Maio de 2019, o motorista EE conduzia o veículo pesado de mercadorias com a matrícula ..-CB-.., propriedade da arguida.
7. O veículo identificado foi sujeito a uma fiscalização pela GNR, tendo o agente fiscalizador verificado que o condutor no dia 14 de Maio de 2019 conduziu mais de 04h30 e só efetuou uma pausa de 00h17.
8. No dia 14 de Maio de 2019, o motorista EE, após o gozo de um período de repouso, iniciou a condução às 12H06 (hora nacional) e terminou às 18h47 (hora nacional), tendo feito períodos de condução intercalados com períodos de outros trabalhos».
Vale o exposto por dizer que a única materialidade que resulta dos factos é que, no dia 14 de Maio de 2019, o motorista EE conduzia o veículo pesado de mercadorias com a matrícula ..-CB-.., que esse veículo era propriedade da arguida e que nessa jornada de trabalho conduziu por mais de 4h30 sem que tivesse efectuado as pausas impostas pela lei.
Com respeito à relação jurídica que tivesse sido estabelecida entre o motorista e a arguida os factos provados são absolutamente omissos.
Não se desconhece que no quadro jurídico em presença não é exigível que entre o condutor e a empresa de transportes se prove a existência da relação de subordinação jurídica própria dos vínculos laborais o que, de certo modo, constitui um desvio ao regime regra contido no art. 551.º, n.º 1, do Código do Trabalho.
Na verdade, o Regulamento (CE) n.º 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março de 2006, definindo o conceito de condutor, não o identifica como trabalhador da empresa de transportes. No quadro do regulamento europeu, condutor será qualquer pessoa que conduza o veículo, mesmo durante um curto período, ou que, no contexto da actividade que exerce, esteja a bordo de um veículo para poder eventualmente conduzir. Por outro lado, o art. 13.º, n.º 1, da Lei n.º 27/2010, de 30 de Agosto, estatui que «[a] empresa é responsável por qualquer infracção cometida pelo condutor, ainda que fora do território nacional».
De todo o modo, do n.º 2 do art. 13.º da Lei n.º 27/2010, de 30 de Agosto, deriva que a responsabilidade da empresa poderá será excluída se esta demonstrar que organizou o trabalho de modo a que o condutor pudesse cumprir com o disposto na legislação aplicável, mormente os Regulamentos Europeus aí mencionados, o que, como se nos afigura evidente, supõe a existência de uma qualquer relação jurídica, seja ela de que natureza for, à qual se associe a possibilidade de assim proceder. Isto é, sendo embora irrelevante a natureza jurídica do vínculo existente entre o condutor e a empresa de transportes, estas últimas só poderão ser responsáveis por qualquer infracção cometida pelos condutores desde que estes estejam de alguma forma ao seu serviço ou na sua disponibilidade, ainda que por curto período de tempo, de modo a que àquelas seja legítimo ou possível organizar o respectivo trabalho.
Ora, da mera prova acima enunciada não se retira, nem mesmo remotamente, qual a relação jurídica existente entre o condutor EE e a arguida, sendo que a mera prova que o veículo por aquele conduzido era propriedade desta última é insuficiente para que se conclua que, de algum modo, estivesse ao seu serviço ou na sua disponibilidade.
Trata-se esta de questão que se situa a montante do elemento subjectivo, posto que para a imputação dos factos à arguida era necessária a prova de uma qualquer relação que supusesse a intervenção do dever de vigilância no contexto da actividade. Trata-se de prova que não foi produzida, apesar da insistente alegação tecida, ao longo do processo, pela arguida, e que, aliás, foi desconsiderada também ao longo de todo o processo. A caracterização da relação jurídica não consta da decisão administrativa (a ACT não a invocou e nem o Ministério Público, aquando da submissão dos autos a juízo, dela se prevaleceu) e nem da sentença sob recurso, sendo que também dos autos não consta qualquer elemento que consinta a sua aquisição processual.
E se assim é fica prejudicado o conhecimento do demais que é objecto do recurso, em particular o suscitado erro notório na apreciação da prova cujo objectivo era apenas o de consentir imputar à arguida a violação de um concreto dever de cuidado que, por necessário, ter-se-ia que reportar aos factos integradores do elemento típico objectivo. Estes factos, como vimos, não contêm a prova da relação jurídica porventura existente entre o condutor e a arguida, tornando, assim, insubsistente qualquer averiguação quanto à sua culpa (ainda que sob a forma negligente).
Ante o exposto e ainda que com base em diversa fundamentação, que aliás, nos é consentida, por maioria de razão, pelo disposto no art. 51.º, n.º 2, al. a), do RGCOL, nega-se provimento ao recurso.
3. Não são devidas custas, por delas estar isento o recorrente (art. 522.º, do Código de Processo Penal).
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V. Dispositivo
Por tudo quanto se deixou exposto, nega-se provimento ao recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
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Não são devidas custas.

Lisboa, 19 de Novembro de 2025
Susana Martins da Silveira
Celina Nóbrega
Cristina Martins da Cruz

1. Proferido no Processo n.º 646/15.2T8EVR.E1, acessível em www.dgsi.pt.