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DECLARAÇÕES DE PARTE
HORÁRIO FLEXÍVEL
COLISÃO DE DIREITOS
Sumário
1. Estando os trabalhadores a praticar horários de trabalho flexíveis solicitados ao empregador porque este lhes comunicara a intenção de os recusar mas a CITE dera parecer desfavorável à recusa, a alteração daqueles horários de trabalho por determinação unilateral do empregador viola o disposto no n.º 7 do art. 57.º do Código do Trabalho, segundo o qual, se o parecer for desfavorável, o empregador só pode recusar o pedido após decisão judicial que reconheça a existência de motivo justificativo. 2. Estando outros trabalhadores a praticar horários de trabalho flexíveis solicitados ao empregador e que este aceitara, a alteração daqueles horários de trabalho por determinação unilateral do empregador viola o disposto no n.º 4 do art. 217.º do Código do Trabalho.
Texto Integral
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Relatório
Prosegur – Companhia de Segurança, Lda. intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra AA e outros, pedindo que seja reconhecido e declarado:
A) Que existe uma colisão de direitos em termos de horários de trabalho (limitados ou condicionados, seja qual for a sua origem) dos vários Réus no que respeita ao exercício dos mesmos ao serviço da Autora e nas funções de Vigilantes Aeroportuários (ou APA - Assistentes de Portos e Aeroportos), no Aeroporto Internacional de Lisboa;
B) Que tal colisão de direitos pode ser solucionada ao abrigo do regime da colisão de direitos do art. 335.º do Código Civil, através do respectivo rateio (ou repartição do seu exercício) efectuado de acordo com os seguintes critérios:
I - Todos os Réus têm como forma de rateio do gozo dos dias de fim de semana (Domingo incluído), mantendo-se o cenário pressuposto, não trabalhar e folgar 34 dias de fim-de-semana por ano, sendo que tais dias de fim-de-semana, na prática, correspondem aos que constam de cada escala mensal de serviço periodicamente entregue, organizada sob aquele critério de rateio (respeitando o direito de não prestar trabalho em dias de Domingo, ou, coincidente a dias de fim-de-semana - Sábado e Domingo -, no fundo de gozar o dia descanso obrigatório e complementar (folgas) em 4 dias de fim-de-semana em cada 8 semanas);
II – Como forma de concretização do rateio anual de gozo dos horários limitados ou condicionados dos APA, ora Réus (com excepção dos referidos no peticionado em C), e mantendo-se o cenário pressuposto, o seguinte (base do adoptado e comunicado aos Réus pela entidade empregadora ora Autora):
- Nos turnos horários dos APA com início entre as 00h00 horas e as 06h00 de cada dia, tendo em conta a disponibilidade de horários, e mantendo-se o cenário pressuposto, será atribuído o seu gozo sem qualquer rateio;
- Nos turnos horários APA com início às 07h00 horas de cada dia, de cada um dos APA, o gozo de turnos com este início horário passa a ser de metade dos seus dias de trabalho;
- Nos turnos horários APA com início às 08h00 horas de cada dia, cada um dos APA passa a gozar anualmente 110 turnos de serviço com início a esta hora, o que dá uma média mensal de 10 dias de trabalho com turnos com este início horário;
- Nos turnos horários APA com início entre as 12h00 e as 21 horas, tendo em conta as actuais disponibilidades de horários e mantendo-se o cenário pressuposto, é atribuído sem qualquer rateio;
- Nos turnos horários com início às 22h00 de cada dia, cada um dos APA, tendo em conta a actual disponibilidade de horários, passa a gozar cerca de 176 turnos de serviço com este horário, o que dá uma média mensal de 16 turnos com início a esta hora;
Tais dias e turnos específicos de horário de trabalho, em termos práticos, correspondem aos que, de acordo com e respeitando tal critério, constem ou passem a constar de cada escala mensal de serviço periodicamente entregue;
C) Que a inexistência de rateio anual de gozo dos turnos de horários dos ora três Réus BB, CC e DD, os quais têm também funções de Chefe de Equipa (vulgo team leaders), se deve à disponibilidade de horários de trabalho coincidentes, porque são só 3 os vigilantes aeroportuários em tal situação, e pressupõe a manutenção do cenário existente à data da interposição da acção;
D) Que futuros casos individuais de dias e de horários de trabalho de alguma forma condicionados ou limitados (horários flexíveis e outros) de que venham a gozar outros trabalhadores ao serviço da Autora com a categoria profissional de Vigilantes Aeroportuários – APA, e com tal categoria profissional e funções Chefes de Equipa no Aeroporto Internacional de Lisboa, que colidam no seu exercício com os dos demais colegas de trabalho, possam ter a medida do seu gozo efectivo solucionado de acordo com o mesmo regime da colisão de direitos do art. 335.º do Código Civil.
Alega, em síntese, que a Autora presta serviços de vigilância aeroportuária no Aeroporto de Lisboa da ANA, S.A., no âmbito dos quais os Réus prestam o seu trabalho de vigilantes aeroportuários por conta da Autora, em regime de turnos. Todavia, todos os Réus têm, de alguma forma, horários de trabalho condicionados ou limitados, só podendo trabalhar em determinados dias da semana ou em determinados intervalos horários, previamente solicitados e atribuídos. Tal inviabiliza a referida prestação de serviços da Autora, sendo o rateio entre os Réus dos respectivos direitos, nos termos constantes do pedido supra, a forma de ultrapassar a situação.
Foram apresentadas contestações, algumas com arguição de excepções e ou dedução de reconvenção, esta fundamentada, em síntese, na ilicitude da alteração aos seus horários de trabalho determinada unilateralmente pela Autora e da qual resultaram para os reconvintes danos patrimoniais e não patrimoniais.
Procedeu-se ao saneamento do processo, tendo, além do mais, sido admitidos liminarmente os pedidos reconvencionais e julgadas improcedentes as excepções, salvo a de caducidade do direito de acção, cujo conhecimento foi relegado para final.
A instância foi julgada extinta, com fundamento em inutilidade superveniente da lide, relativamente aos seguintes Réus, uns por cessação dos respectivos contratos de trabalho com a Autora, outros por terem aceitado as alterações aos seus horários de trabalho determinadas pela Autora:
(…)
Em consequência, a instância mantém-se quanto aos seguintes Réus:
(…)
Após audiência de julgamento, foi proferida sentença, que terminou com o seguinte dispositivo: «Pelo exposto, e nos termos dos fundamentos de direito invocados, o tribunal decide: - Julgar a ação improcedente porque não provada e, consequentemente, declarar a inexistência de colisão de direitos dos vários Réus no que respeita ao exercício dos mesmos ao serviço da Autora e nas funções de Vigilantes Aeroportuários (ou APA - Assistentes de Portos e Aeroportos), no Aeroporto Internacional de Lisboa; - Julgar prejudicado o pedido de rateamento dos horários formulado pela Autora; - Julgar parcialmente procedente o pedido reconvencional formulado pelos Réus nos seguintes termos: * Julgar a inutilidade superveniente da lide relativamente aos pedidos formulados pelos referidos Réus quanto ao reconhecimento e declaração de inexistência de qualquer colisão de direitos em termos de horários de trabalho flexível; declaração de ilicitude do rateio peticionado; na reposição do precedente horário laboral flexível da Ré; no pagamento pela Autora de sanção pecuniária compulsória de € 250,00 por cada dia de atraso no cumprimento desta reclamada reposição do horário flexível; * Condenar a Autora no pagamento das retribuições vencidas desde 01.06.2018 até ao termo do contrato com cada um dos Réus EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO, PP, QQ, RR, SS, TT, UU, VV, WW, XX, YY, ZZ, AAA e BBB, acrescidas de juros vencidos e vincendos à taxa legal desde a data do respetivo vencimento, a liquidar em sede de incidente próprio. * Condenar a Autora no pagamento aos seguintes Réus de uma indemnização a título de danos não patrimoniais nos seguintes montantes: • EE: € 4000; • FF: € 5000; • GG: € 7000; • HH: € 5000; • II: € 6000; • JJ: € 6000; • LL: € 5000; • MM: € 5000; • NN: € 5000; • OO: € 5000; • PP: € 5000; • RR; € 8000; • SS: € 5000; • TT: € 7000; • UU: € 6000; • VV: € 5000; • WW: € 7000; • XX: € 7000; • YY: € 6000; • ZZ: € 4000; • AAA: € 7000; • BBB: € 4000; • CCC: € 5000. - Absolver a Autora dos pedidos reconvencionais no que tange à atribuição de danos não patrimoniais formulados por DDD, EEE, FFF, KK, QQ. - Absolver a Autora do pedido de condenação como litigante de má-fé. Custas a cargo da Autora (art. 527.º n.º 1 do Código de Processo Civil).»
A Autora interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…)
Os Réus LL, YY, OO, RR, NN, XX, QQ, UU, MM, KK, VV, FF, SS, TT, GG, PP, WW, ZZ, AAA, II, JJ, GGG, CCC, BBB, EE e DDD apresentaram resposta ao recurso da Autora, pugnando pela sua improcedência.
Admitido o recurso, e remetidos os autos a esta Relação, observou-se o disposto no art. 87.º, n.º 3 do CPT, tendo o Ministério Público emitido parecer no sentido da improcedência do recurso.
Cumprido o previsto no art. 657.º do CPC, cabe decidir em conferência.
2. Questões a resolver
Tal como resulta das conclusões do recurso, que delimitam o seu objecto, as questões que se colocam a este tribunal são as seguintes, por ordem de precedência lógica:
- nulidade da sentença;
- alteração da decisão sobre a matéria de facto;
- (i)licitude da alteração do horário de trabalho dos Réus;
- em caso de ilicitude, se cabe revogar ou alterar a indemnização aos Réus fixada na sentença.
3. Fundamentação
3.1. Os factos considerados provados são os seguintes:
(…)
3.2. Os factos considerados não provados são os seguintes:
(…)
3.3. A Apelante sustenta, em síntese, que ocorre nulidade da sentença por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d) do CPC, na medida em que a mesma desconsiderou vários factos alegados na petição inicial e que foram confessados ou aceites por acordo pelos Réus, mormente factos pessoais atinentes àqueles Réus relativamente aos quais a instância foi julgada extinta por inutilidade superveniente da lide e ainda outros, de carácter geral, atinentes à operativa da Autora no Aeroporto de Lisboa.
Ora, a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, prevista na disposição legal invocada, está relacionada com o estabelecido no art. 608.º, n.º 2 do CPC, nos termos do qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, só é relevante como causa de nulidade da sentença a omissão de pronúncia sobre «questões», como tal se entendendo os pedidos formulados e respectivas causas de pedir e as excepções que lhes sejam opostas, o mesmo não sucedendo com a falta de consideração de alguns factos ou linhas de fundamentação jurídica que as partes hajam invocado1.
Isto é, em sede de nulidade da sentença, a omissão de pronúncia quanto a simples fundamentos de facto ou de direito, sob pena de contradição, só releva na medida em que traduza falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, nos termos da alínea b) do citado n.º 1 do art. 615.º do CPC, sendo certo que, como diz Fernando Amâncio Ferreira2, “[a] falta de motivação susceptível de integrar a nulidade de sentença é apenas a que se reporta à falta absoluta de fundamentos, quer estes respeitem aos factos, quer ao direito (…)”.
Por outras palavras, a mera insuficiência de fundamentos da sentença, ainda que decorra de o juiz não ter considerado factos ou argumentos jurídicos alegados pelas partes nos articulados, não constitui a causa de nulidade da sentença tipificada como falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, nem a tipificada como omissão de pronúncia sobre questões que devessem ser apreciadas, o que se justifica porque a sua relevância depende da apreciação da correcção da decisão proferida pelo tribunal de primeira instância, isto é, da indagação sobre se este incorreu em erro de julgamento, mormente quanto à matéria de facto, nos termos e com os efeitos previstos no art. 662.º, n.º 2, al. c) do CPC3, o que não se confunde com os vícios a que alude o citado art. 615.º, que respeitam unicamente à validade formal da sentença.
Em suma, uma vez que a não consideração dos factos referidos pela Recorrente não se reconduz a omissão de pronúncia, para o que aqui releva, improcede a nulidade arguida.
3.4. Cumpre apreciar, então, a impugnação que a Apelante faz da decisão sobre a matéria de facto.
Estabelece o art. 662.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe «Modificabilidade da decisão de facto», no seu n.º 1, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Acrescenta o n.º 2 que a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente, além do mais, conforme decorre da alínea c), anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta.
Constata-se, antes de mais, que deu-se como provado o seguinte:
7. A Autora continuava, até pelo menos Novembro de 2019, a prestar os mesmos serviços de vigilância aeroportuária no Aeroporto de Lisboa da ANA, SA., actualmente ao abrigo do contrato adjudicado e celebrado por esta em 2016.
Ora, tal enunciado afigura-se equívoco, posto que, em rigor, contempla a hipótese de a prestação de serviços se ter mantido posteriormente a Novembro de 2019, o que é absolutamente contrário à prova produzida, da qual resultou sim que a prestação de serviços se manteve apenas até Novembro de 2019, conforme, aliás, é expressamente afirmado na sentença em sede de fundamentação de direito.
Cumpre, pois, sanar tal obscuridade de acordo com a prova adquirida nos autos, passando o ponto em apreço a ter a seguinte redacção:
7. A Autora continuou a prestar os mesmos serviços de vigilância aeroportuária no Aeroporto de Lisboa da ANA, S.A., ao abrigo do contrato adjudicado e celebrado por esta em 2016, até Novembro de 2019.
Das conclusões de recurso i) a xli) decorre que a Recorrente também formula a pretensão de que, com base, essencialmente, em confissão ou acordo das partes, sejam dados como provados os factos alegados na petição inicial atinentes aos Réus relativamente aos quais a instância foi julgada extinta por inutilidade superveniente da lide, bem como vários respeitantes à Autora e a todos os Réus que não foram considerados como provados, em qualquer dos casos por serem alegadamente relevantes para a apreciação das questões a resolver quanto aos Réus abrangidos pela decisão recorrida e pelo recurso.
Ora, conforme decorre do antes exposto, este é efectivamente o momento e o meio próprio para apreciar alegados erros consistentes em insuficiência da matéria de facto para a decisão das questões de direito que cumpre solucionar, bem como em incorrecto julgamento dos factos alegados nos articulados das partes. Sucede, todavia, que, ao contrário do sustentado pela Recorrente, a factualidade indicada nas citadas conclusões é irrelevante para a apreciação das questões a resolver quanto aos Réus relativamente aos quais a instância ainda não se extinguiu, conforme oportunamente resultará demonstrado4.
Assim, uma vez que, nos termos do art. 130.º do CPC, com a epígrafe “Princípio da limitação dos actos”, não é lícito realizar no processo actos inúteis, tem de reputar-se como inadmissível o conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto na parte em apreço, atenta a sua irrelevância para a solução do litígio5.
Nas conclusões de recurso xlii) a lviii), a Apelante formula ainda a pretensão de que sejam considerados como não provados factos dados como provados referentes à motivação pelos Réus dos pedidos reconvencionais, a saber:
(…)
Vejamos.
O tribunal recorrido fundamentou a sua decisão sobre a matéria de facto, na parte relevante para a factualidade impugnada, nos seguintes termos:
(…)
Antes de mais, cabe sublinhar que, tendo a Autora determinado unilateralmente alterações parciais aos horários flexíveis que os ora Réus praticavam anteriormente, daí decorre como certo que, por um lado, eram indesejadas e impertinentes as apresentações dos Réus ao serviço em horários constantes das escalas anteriores a 1-06-2018 que não constassem das escalas em vigor a partir de então, e, por outro lado, seriam consideradas como injustificadas as faltas nos horários constantes das novas escalas ainda que não constassem das escalas anteriores a 1-06-2018, pelo que a factualidade dada como provada nos pontos 147, 148, 155, 216, 218, 265, 266, 267 in fine, 294, 336 in fine, 357, 373, 443, 445, 446 in fine e 449 é irrelevante no caso de a conduta da Autora ser considerada lícita e desnecessária no caso de ser considerada ilícita, o que impõe que não se conheça da impugnação nesta parte (art. 130.º do CPC).
No que respeita à restante matéria de facto provada e impugnada, cumpre apreciar o principal argumento da Apelante para sustentar que a mesma deve ser tida como não provada e que se traduz em alegadamente estar suportada apenas na prestação de declarações de parte dos respectivos Réus reconvintes.
Com interesse para a questão do valor das declarações de parte, há que atender ao art. 466.º do CPC, que estabelece:
1 - As partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1.ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento directo.
2 - Às declarações das partes aplica-se o disposto no artigo 417.º e ainda, com as necessárias adaptações, o estabelecido na secção anterior.
3 - O tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.
Atenta a formulação do n.º 3, semelhante à utilizada para a prova testemunhal, a prova pericial, a prova por inspecção judicial e a prova documental que não tenha valor legalmente vinculado, não se vislumbra fundamento para, a priori, atribuir às declarações de parte um valor probatório diferente. A circunstância de serem prestadas por quem tem interesse directo no desfecho do litígio não pode só por si funcionar como factor de eliminação ou diminuição do seu valor, tanto mais que tal circunstância se verifica também, em diversas situações, no caso da prova testemunhal. Assim, como sucede com esta, o que compete ao tribunal é apreciar criticamente as declarações de parte segundo critérios comuns, de modo a concluir pela sua maior ou menor suficiência para formação da sua convicção. Neste sentido, veja-se a posição de Luís Filipe de Sousa6, assim sintetizada: “(i) a degradação antecipada do valor probatório das declarações de parte não tem fundamento legal bastante, evidenciando um retrocesso para raciocínios típicos e obsoletos de prova legal; (ii) os critérios de valoração das declarações de parte coincidem essencialmente com os parâmetros de valoração da prova testemunhal, havendo apenas que hierarquizá-los diversamente. Em última instância, nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação.”
Ora, conforme resulta dos excertos da fundamentação do tribunal recorrido, este explicita a medida em que as declarações de parte dos vários Réus em questão lhe mereceram crédito e as razões para tanto. Acresce que, maioritariamente, e ao contrário do afirmado pela Recorrente, as declarações de parte mostram-se corroboradas por depoimentos testemunhais e/ou prova documental, quanto aos pontos da matéria de facto em apreço, nos termos indicados e realçados na transcrição supra. Por outro lado, tanto esses factos como aqueles – poucos – para cujo suporte são indicadas apenas as declarações de parte referem-se a comportamentos, estados psicológicos ou alterações na vida dos Réus que, na realidade, têm sustentação suficiente não somente naquelas e, sendo o caso, nos demais meios de prova que as corroboram, mas ainda na sua concatenação com outros factos dados como provados – e não impugnados – atinentes aos motivos pelos quais os Réus beneficiavam dos antecedentes horários, às suas contingências pessoais, familiares e económicas e às alterações impostas pela Autora em tais horários sob pena das consequências que adviriam do respectivo incumprimento, tudo de acordo com as regras da experiência.
Nesta medida, afigura-se-nos que os factos tidos como assentes e a prova produzida não impõem decisão diversa quanto aos factos dados como provados em apreço (art. 662.º, n.º 1 do CPC).
Em face do exposto, improcede o recurso no que concerne à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
3.5. Aqui chegados, é momento de relembrar que a Autora propôs a presente acção, em 7-05-2018, pedindo que seja reconhecido e declarado:
A) Que existe uma colisão de direitos em termos de horários de trabalho (limitados ou condicionados, seja qual for a sua origem) dos vários Réus no que respeita ao exercício dos mesmos ao serviço da Autora e nas funções de Vigilantes Aeroportuários (ou APA - Assistentes de Portos e Aeroportos), no Aeroporto Internacional de Lisboa;
B) Que tal colisão de direitos pode ser solucionada ao abrigo do regime da colisão de direitos do art. 335.º do Código Civil, através do respectivo rateio (ou repartição do seu exercício) efectuado de acordo com os seguintes critérios:
I - Todos os Réus têm como forma de rateio do gozo dos dias de fim de semana (Domingo incluído), mantendo-se o cenário pressuposto, não trabalhar e folgar 34 dias de fim-de-semana por ano, sendo que tais dias de fim-de-semana, na prática, correspondem aos que constam de cada escala mensal de serviço periodicamente entregue, organizada sob aquele critério de rateio (respeitando o direito de não prestar trabalho em dias de Domingo, ou, coincidente a dias de fim-de-semana - Sábado e Domingo -, no fundo de gozar o dia de descanso obrigatório e complementar (folgas), em 4 dias de fim-de-semana em cada 8 semanas);
II – Como forma de concretização do rateio anual de gozo dos horários limitados ou condicionados dos APA, ora Réus (com excepção dos referidos no peticionado em C), e mantendo-se o cenário pressuposto, o seguinte (base do adoptado e comunicado aos RR. pela entidade empregadora ora Autora):
- Nos turnos horários dos APA com início entre as 00h00 horas e as 06h00 de cada dia, tendo em conta a disponibilidade de horários, e mantendo-se o cenário pressuposto, será atribuído o seu gozo sem qualquer rateio;
- Nos turnos horários APA com início às 07h00 horas de cada dia, de cada um dos APA, o gozo de turnos com este início horário passa a ser de metade dos seus dias de trabalho;
- Nos turnos horários APA com início às 08h00 horas de cada dia, cada um dos APA passa a gozar anualmente 110 turnos de serviço com início a esta hora, o que dá uma média mensal de 10 dias de trabalho com turnos com este início horário;
- Nos turnos horários APA com início entre as 12h00 e as 21 horas, tendo em conta as actuais disponibilidades de horários e mantendo-se o cenário pressuposto, é atribuído sem qualquer rateio;
- Nos turnos horários com início às 22h00 de cada dia, cada um dos APA, tendo em conta a actual disponibilidade de horários, passa a gozar cerca de 176 turnos de serviço com este horário, o que dá uma média mensal de 16 turnos com início a esta hora;
Tais dias e turnos específicos de horário de trabalho, em termos práticos, correspondem aos que, de acordo com e respeitando tal critério, constem ou passem a constar de cada escala mensal de serviço periodicamente entregue;
C) Que a inexistência de rateio anual de gozo dos turnos de horários dos ora três Réus, BB, CC e DD, os quais têm também funções de Chefe de Equipa (vulgo team leaders), se deve à disponibilidade de horários de trabalho coincidentes, porque são só 3 os vigilantes aeroportuários em tal situação, e pressupõe a manutenção do cenário existente à data da interposição da acção;
D) Que futuros casos individuais de dias e de horários de trabalho de alguma forma condicionados ou limitados (horários flexíveis e outros) de que venham a gozar outros trabalhadores ao serviço da Autora com a categoria profissional de Vigilantes Aeroportuários – APA, e com tal categoria profissional e funções Chefes de Equipa no Aeroporto Internacional de Lisboa, que colidam no seu exercício com os dos demais colegas de trabalho, possam ter a medida do seu gozo efectivo solucionado de acordo com o mesmo regime da colisão de direitos do art. 335.º do Código Civil.
Relembra-se também que, posteriormente, a instância foi julgada extinta por inutilidade superveniente da lide relativamente aos Réus identificados no Relatório supra, uns por cessação dos respectivos contratos de trabalho com a Autora, outros por terem aceitado as alterações aos seus horários de trabalho determinadas pela Autora.
Sucede que, como provado sob o ponto 7., a Autora prestou os serviços de vigilância aeroportuária no Aeroporto de Lisboa da ANA, S.A., a que se alude nos autos, mormente no sobredito pedido formulado na petição inicial, até Novembro de 2019. Em consequência, tal como a acção perdeu toda a sua utilidade relativamente aos Réus que, posteriormente à sua propositura, cessaram os respectivos contratos de trabalho com a Autora ou aceitaram as alterações aos seus horários de trabalho por ela determinadas, o mesmo tem de considerar-se relativamente a todos os demais Réus, também identificados no Relatório, que, por cessação da prestação de serviços da Autora no Aeroporto de Lisboa, deixaram de estar na situação pressuposta na pretensão contra eles deduzida na petição inicial.
Concorda-se, pois, na essência, com a sentença recorrida, na parte em que refere: «Aqui chegados, a primeira constatação a fazer é a de que a Autora já não mantém qualquer dos contratos em causa com a ANA e com os Réus. Assim, a conclusão relativamente à existência ou não da colisão de direitos apenas é suscetível de ter repercussões a nível das reconvenções deduzidas. Efetivamente, estando justificada a atuação da Autora, inexiste fundamento para ressarcimento de eventuais danos causados; inexistindo justificação, há que analisar a factualidade subjacente a cada um dos pedidos reconvencionais e aferir da sua eventual procedência.»
Por outras palavras, a instância mostra-se extinta, por inutilidade superveniente da lide, nos termos do art. 277.º, al. e) do CPC, relativamente à acção proposta pela Autora contra todos os Réus, posto que a utilidade da mesma ficou confinada ao conhecimento das reconvenções deduzidas por alguns Réus contra a Autora. E, assim sendo, fica prejudicada a apreciação do recurso no que concerne aos pedidos formulados na acção.
Acresce que a instância mostra-se também extinta, pelo julgamento, nos termos do art. 277.º, al. a) do CPC, quanto aos pedidos reconvencionais que foram julgados totalmente improcedentes, posto que os respectivos Réus não interpuseram recurso da decisão.
Deste modo, em suma, apenas cabe conhecer dos pedidos reconvencionais que foram julgados parcialmente procedentes – e sem prejuízo do trânsito em julgado na parte em que improcederam, visto que os respectivos demandantes não interpuseram recurso da decisão – e que foram deduzidos pelos seguintes Réus:
21.º AAA,
36.º HH,
43.º MM,
47.º BBB,
51.º YY,
58.º ZZ,
67.º KK,
69.º VV,
70.º FF,
72.º SS,
82.º RR,
90.º NN,
91.º OO,
94.º II,
95.º JJ,
98.º LL,
106.º XX,
107.º QQ,
108.º TT,
109.º GG,
111.º WW,
112.º CCC,
119.º PP,
121.º UU,
122.º EE.
Deste modo, as questões que se equacionam são, por um lado, a de saber se é ilícita ou lícita a alteração do horário de trabalho de que os Réus em causa beneficiavam, por determinação unilateral da Autora através de cartas de 9-05-2018, para produzir efeitos a partir de 1-06-2018, e, por outro lado, caso se conclua pela ilicitude, se deve ser revogada ou alterada a sentença na parte em que reconheceu aos Réus direito a indemnização por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais.
Ora, resulta da factualidade provada que os Réus 36.º HH, 43.º MM, 67.º KK, 69.º VV, 70.º FF, 72.º SS, 82.º RR, 90.º NN, 91.º OO, 94.º II, 95.º JJ, 98.º LL, 106.º XX, 107.º QQ, 108.º TT, 109.º GG, 111.º WW, 112.º CCC, 119.º PP, 121.º UU e 122.º EE praticavam horários flexíveis por si solicitados à Autora, na medida em que, tendo esta lhes comunicado a intenção de os recusar e observado o procedimento legalmente previsto, a CITE deu parecer desfavorável à recusa.
Como resulta do provado sob o ponto 131, da respectiva documentação de suporte e é do conhecimento oficial dos intervenientes processuais que interessam para o caso, a Autora propôs em 23-05-2018 contra todos os citados Réus, entre outros, acção destinada a obter o reconhecimento da existência de motivo justificativo para a recusa dos respectivos pedidos de horário flexível, a qual, quanto aos aí réus relativamente aos quais a instância não foi julgada extinta por inutilidade superveniente da lide, foi julgada improcedente por decisão que transitou em julgado em Dezembro de 20237.
Por outro lado, relativamente ao Réu 21.º AAA, provou-se com interesse:
25. O 21.º Réu (AAA), admitido na Empresa em 14.12.2007 e desde 22 de Março de 2013 a prestar actividade de VA no Aeroporto de Lisboa, no dia 18.05.2016 solicitou que lhe fosse permitido prestar actividade apenas entre as 10h e as 18h, bem como prestar a sua actividade apenas num feriado em cada dois, justificado no facto de ter um filho menor de 6 anos e no acordo de responsabilidades parentais estabelecido.
26. A Autora assentiu no requerido, pelo que o Réu (AAA) não presta actividade no período entre as 18h de um dia e as 10h do outro (noites e manhãs), trabalhando apenas um feriado em cada dois, desde Junho de 2016.
No que toca ao Réu 47.º BBB, provou-se com interesse:
43. O 47.º Réu (BBB), admitido na Empresa em 4 de Março de 2011 e a prestar actividade de VA no Aeroporto de Lisboa desde essa data, no dia 7 de Abril de 2017 requereu que fosse permitido prestar actividade apenas no período das 07h às 15h, bem como não prestar atcividade aos fins-de-semana, fundamentando a sua pretensão na necessidade de prestar assistência inadiável e imprescindível ao filho menor, com 10 anos, nascido em 20 de Março de 2007, a viver com ele em comunhão de mesa e habitação.
44. A Autora aceitou o requerido pelo Réu (BBB) por comunicação datada de 13 de Abril de 2017, nos termos da qual este passou a prestar actividade no período das 07h às 15h, não prestando actividade aos fins-de-semana, o que se verifica desde Maio de 2017.
Quanto à Ré 51.ª YY, provou-se com interesse:
45. A 51.ª Ré (YY), admitida na Empresa em 15 de Maio de 2005 e a prestar actividade de VA no Aeroporto de Lisboa desde 1 de Fevereiro de 2006, no dia 22 de Maio de 2017 requereu que lhe fosse permitido prestar actividade apenas no turno da manhã, concretamente, das 06h as 14h, bem como não prestar actividade aos fins-de-semana, fundamentando a sua pretensão na necessidade de prestar assistência inadiável e imprescindível aos seus dois filhos, com 4 e 9 anos, respectivamente, e a viver com ela em comunhão de mesa e habitação.
46. A Autora aceitou o requerido, pelo que, por carta datada de 26 de Abril de 2017, informou a Ré (YY) que passaria a prestar actividade no período das 06h às 14h, não prestando actividade aos fins-de-semana, o que se verifica desde Junho de 2017.
Relativamente ao Réu 58.º ZZ, provou-se com interesse:
47. O 58.º Réu (ZZ), admitido na Empresa em 17 de Maio de 2008, presta actividade de VA no Aeroporto de Lisboa desde essa data, e no dia 17 de Julho de 2017 requereu que lhe fosse permitido prestar actividade das 22h às 06h, com descanso obrigatório ao Sábado e exclusão dos feriados, fundamentando a sua pretensão na necessidade de prestar assistência inadiável e imprescindível à filha de 07 anos de idade/nascida em 03.05.2010, a viver com ele em comunhão de mesa e habitação.
48. A Autora aceitou o requerido e nessa medida o Réu (ZZ), a partir de Agosto de 2017, passou a prestar actividade no período das 22h às 06h, de domingo a sexta-feira, não prestando actividade aos feriados.
Estabelece o art. 56.º, n.º 1 do Código do Trabalho que o trabalhador com filho menor de 12 anos ou, independentemente da idade, filho com deficiência ou doença crónica que com ele viva em comunhão de mesa e habitação, tem direito a trabalhar em regime de horário de trabalho flexível, podendo o direito ser exercido por qualquer dos progenitores ou por ambos.
Acrescenta o art. 57.º:
Autorização de trabalho a tempo parcial ou em regime de horário flexível
1 - O trabalhador que pretenda trabalhar a tempo parcial ou em regime de horário de trabalho flexível deve solicitá-lo ao empregador, por escrito, com a antecedência de 30 dias, com os seguintes elementos:
(…)
2 - O empregador apenas pode recusar o pedido com fundamento em exigências imperiosas do funcionamento da empresa, ou na impossibilidade de substituir o trabalhador se este for indispensável.
3 - No prazo de 20 dias contados a partir da recepção do pedido, o empregador comunica ao trabalhador, por escrito, a sua decisão.
4 - No caso de pretender recusar o pedido, na comunicação o empregador indica o fundamento da intenção de recusa, podendo o trabalhador apresentar, por escrito, uma apreciação no prazo de cinco dias a partir da recepção.
5 - Nos cinco dias subsequentes ao fim do prazo para apreciação pelo trabalhador, o empregador envia o processo para apreciação pela entidade competente na área da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, com cópia do pedido, do fundamento da intenção de o recusar e da apreciação do trabalhador.
6 - A entidade referida no número anterior, no prazo de 30 dias, notifica o empregador e o trabalhador do seu parecer, o qual se considera favorável à intenção do empregador se não for emitido naquele prazo.
7 - Se o parecer referido no número anterior for desfavorável, o empregador só pode recusar o pedido após decisão judicial que reconheça a existência de motivo justificativo.
8 - Considera-se que o empregador aceita o pedido do trabalhador nos seus precisos termos:
a) Se não comunicar a intenção de recusa no prazo de 20 dias após a recepção do pedido;
b) Se, tendo comunicado a intenção de recusar o pedido, não informar o trabalhador da decisão sobre o mesmo nos cinco dias subsequentes à notificação referida no n.º 6 ou, consoante o caso, ao fim do prazo estabelecido nesse número;
c) Se não submeter o processo à apreciação da entidade competente na área da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres dentro do prazo previsto no n.º 5.
(…)
Ora, no que respeita aos Réus que praticavam horários flexíveis solicitados à Autora porque esta lhes comunicara a intenção de os recusar mas a CITE dera parecer desfavorável à recusa, a alteração de tais horários de trabalho por determinação unilateral da Autora através de cartas de 9-05-2018, para produzir efeitos a partir de 1-06-2018, viola frontalmente o disposto no n.º 7 do acima transcrito art. 57.º do Código do Trabalho, que estatui que, se o parecer for desfavorável, o empregador só pode recusar o pedido após decisão judicial que reconheça a existência de motivo justificativo.
Com efeito, a referida alteração, em conformidade com um pretenso rateio dos direitos conflituantes de vários trabalhadores, por razões reconduzíveis a exigências imperiosas do funcionamento da empresa, mais não é do que uma recusa parcial do horário flexível solicitado pelos mesmos e que, por conseguinte, apenas podia ser efectivada após decisão judicial que reconhecesse a existência de motivo justificativo para tal recusa parcial, o que, porventura, poderia ter sido peticionado a título subsidiário na acção identificada no ponto 131, para o caso de a mesma improceder quanto ao reconhecimento de existência de motivo justificativo para a recusa total8. Acresce que, antecipando objecções atinentes à inviabilidade de se aguardar por tal decisão, não se vislumbra, à partida, fundamento para que a tutela do interesse da Autora não pudesse ser prevenida em procedimento cautelar dependente de tal acção.
A Apelante, aliás, estriba fervorosamente o seu recurso na fundamentação expendida no Acórdão da Relação de Lisboa de 05-06-202499, a propósito da aplicação da figura da colisão de direitos prevista no art. 335.º do Código Civil em matéria de direito dos trabalhadores a horário de trabalho flexível, mas “esquece-se” de mencionar que tal aresto tem por objecto, precisamente, uma acção intentada pelo empregador nos termos do art. 57.º, n.º 7 do Código do Trabalho. Aí se refere, designadamente, que “[n]os termos do artigo 57.º n.º 7 do CT, o parecer desfavorável do CRITE tem natureza constitutiva, ou seja, confere eficácia imediata ao pedido da trabalhadora, recorrente. A empregadora, recorrida, só mediante decisão judicial pode obter o reconhecimento da existência do motivo justificativo para recusar a passagem da trabalhadora para o regime de horário flexível. (cf. Francisco Liberal Fernandes, O Trabalho e o Tempo, Centro de Investigação Jurídico-Económica, Biblioteca RED, 2018, página 41).”
No que respeita aos Réus 21.º AAA, 47.º BBB, 51.ª YY e 58.º ZZ, a Autora não comunicou a intenção de recusa dos horários flexíveis que solicitaram, o que, se tivesse sucedido, permitiria a intervenção da CITE nos sobreditos termos, antes aceitou-os e, nessa sequência, os mesmos foram postos em prática. Por conseguinte, é de entender que tais horários de trabalho individualmente acordados também não podiam ser unilateralmente alterados pela Autora, por força do disposto no art. 217.º, n.º 4 do Código do Trabalho10, a não ser, eventualmente, na sequência de acção proposta com finalidade similar à prevista no art. 57.º, n.º 7 do mesmo diploma, sob pena de incoerência com o regime aplicável em caso de recusa11.
Em face do exposto, e sem necessidade de quaisquer outras considerações, conclui-se que as alterações aos horários de trabalho flexíveis dos ora Réus reconvintes, por determinação unilateral da Autora, são ilícitas na medida em que afrontam os arts. 57.º, n.º 7 e 217.º, n.º 4 do Código do Trabalho12.
Resta, pois, decidir se, ainda assim, deve ser revogada ou alterada a sentença na parte em que reconheceu aos Réus direito a indemnização por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais, como reclama a Apelante.
Ora, a Autora determinou alterações parciais aos horários flexíveis que os ora Réus praticavam anteriormente, em conformidade com as quais, por um lado, eram indesejadas e impertinentes as suas apresentações ao serviço em horários constantes das escalas anteriores a 1-06-2018 que não constassem das escalas em vigor a partir de então, e, por outro lado, seriam consideradas como injustificadas as faltas nos horários constantes das novas escalas ainda que não constassem das escalas anteriores àquela data, pelo que, sendo aquelas alterações ilícitas, as apontadas situações são imputáveis à Autora e não aos Réus e as mesmas não podem ter qualquer consequência negativa nas retribuições destes vencidas desde então13.
Acresce que, para a hipótese de se considerarem ilícitas as alterações aos horários de trabalho dos Réus, a Recorrente nada aduz em concreto que que tange à fixação de indemnização pelos danos patrimoniais.
Por outro lado, no que respeita aos danos não patrimoniais, a Recorrente limita-se a afirmar genericamente no seu recurso – cfr. conclusões xciii) e xciv), que reproduzem e consomem tudo o que a propósito é dito na p. 154 do corpo das alegações – que, atentos os requisitos previstos no art. 496.º do Código Civil e os factos que efectivamente se provaram em relação a cada um dos Réus, em muitos casos não se provaram factos que mereçam a tutela do direito e/ou demonstrem o nexo de causalidade entre a conduta da Autora ‒ alteração dos horários – e os danos sofridos.
Ora, tendo-se julgado improcedente a alteração da decisão sobre a matéria de facto, pressuposta em tal afirmação, mostra-se prejudicado que se possam descortinar casos que não sejam merecedores da tutela do direito ou não tenham o nexo de causalidade demonstrado, sendo certo que também nada se argumentou quanto à adequação dos montantes fixados.
Improcede, pois, o recurso também nesta parte.
4. Decisão
Nestes termos, acorda-se em:
- declarar a inutilidade superveniente da lide no que respeita à acção, ficando prejudicada a apreciação do recurso no que concerne aos pedidos formulados na petição inicial;
- julgar improcedente o recurso quanto à reconvenção, confirmando-se a sentença no que à mesma respeita.
Custas pela Apelante.
Lisboa, 19 de Novembro de 2025
Alda Martins
Francisca Mendes
Maria José Costa Pinto
_______________________________________________________
1. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, Almedina, 2017, p. 737.
2. Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 6.ª edição, p. 52.
3. Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-03-2018, processo n.º 290/12.6TCFUN.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
4. V. ponto 3.5. infra.
5. V. Acórdão da Relação de Lisboa de 11-07-2024, processo n.º 3637/23.6T8FNC.L1-4, disponível em www.dgsi.pt.
6. «As declarações de parte. Uma síntese.», Abril de 2017, acessível em https://trl.mj.pt/wp-content/uploads/2022/09/As-declaracoes-de-parte.-Uma-sintese.-2017-1.pdf.
7. V. Acórdão da Relação de Lisboa de 22-11-2023, processo n.º 12323/18.8T8LSB.L1-4, disponível em www.dgsi.pt, no qual intervieram as ora Relatora e 1.ª Adjunta nas mesmas qualidades.
8. Cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-03-2022, processo n.º 17071/19.9T8SNT.L1.S1, com o seguinte sumário: “I- O horário flexível é, antes de mais, um horário de trabalho pelo que bem pode a trabalhadora, no seu pedido, precisar quais os seus dias de descanso. II- Tendo rejeitado parcialmente o pedido de horário flexível, o empregador deve pedir o parecer da CITE e não o tendo feito, e por força da lei, o pedido deve considerar-se como tendo sido aceite “nos seus precisos termos” e, portanto, também na parte atinente aos dias de descanso semanal.”; e o Acórdão da Relação do Porto de 23-01-2023, processo n.º 2649/22.1T8MAI-A.P1, em cujo sumário se diz: “I - À trabalhadora com responsabilidades parentais é, nos termos do art. 56º do CT/2009, consentido proceder à indicação, para atribuição pelo empregador de horário flexível, de horário compatível com tais responsabilidades, incluindo nos dias úteis (2ª a 6ª feira), designadamente hora de saída, e aos dias de descanso, designadamente sábados e domingos. II - Pretendendo rejeitar parcialmente o pedido de horário flexível, o empregador deve pedir previamente o parecer da CITE, o qual, e desde que seja favorável ao indeferimento, constitui pressuposto indispensável a esse indeferimento e sem o qual o pedido deve considerar-se como tendo sido aceite “nos seus precisos termos” e, portanto, também na parte atinente ao referido em I.” (ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
9. Proferido no processo n.º 1993/23.5T8PDL.L1-4, disponível em www.dgsi.pt, em que foi 2.ª Adjunta a ora 1.ª Adjunta.
10. Cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-03-2018, processo n.º 4279/16.8T8LSB.L1.S1, em cujo sumário se refere: “IV- Competindo ao empregador definir, no âmbito do seu poder de direcção, os horários de trabalho dos trabalhadores ao seu serviço, dentro dos condicionalismos legais, a sua alteração não pode ser unilateralmente determinada nos casos em que os horários tenham sido individualmente acordados. V- Sendo ilegal a fixação de novo horário de trabalho em virtude da trabalhadora não ter dado o seu acordo à alteração do horário que tinha acordado por escrito com a empresa, recusando-se a cumprir o novo horário unilateralmente fixado pela empregadora, a trabalhadora não incorre em faltas injustificadas.”; e o Acórdão da Relação de Évora de 26-05-2022, processo n.º 275/21.1T8TMR.E1, em cujo sumário se diz: “VII- Tendo a empregadora alterado unilateralmente o horário de trabalho que anteriormente havia acordado com a trabalhadora, tal alteração é ilegal (artigo 217.º, n.º 4 do Código do Trabalho), pelo que a trabalhadora não está obrigada a descansar nos dias de semana estipulados no novo horário como sendo dias de descanso.” (ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
11. Nesta medida, a situação destes Réus não pode comparar-se à que é objecto do Acórdão da Relação do Porto de 26-04-2010, processo n.º 123/09.0TTVNG.P2, disponível em www,dgsi.pt, invocado pela Apelante para sustentar a sua pretensão, uma vez que neste não está em causa um horário de trabalho flexível.
12. Deste modo se clarificando a inutilidade de apreciar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto na parte abrangida pelas conclusões de recurso i) a xli), como referido no ponto 3.4. do presente Acórdão.
13. Deste modo se clarificando a inutilidade de apreciar a impugnação da decisão sobre a factualidade dada como provada nos pontos 147, 148, 155, 216, 218, 265, 266, 267 in fine, 294, 336 in fine, 357, 373, 443, 445, 446 in fine e 449, como referido no ponto 3.4. do presente Acórdão.