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DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
INDÍCIOS SUFICIENTES
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
DIREITO À HONRA E CONSIDERAÇÃO SOCIAL
Sumário
Sumário (da responsabilidade da Relatora): I. A instrução tem natureza facultativa cuja finalidade é a de comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art.º 286.º do Código de Processo penal (CPP)). II. Na instrução pretende-se apurar a existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança (art.º 308.º, n.º1, do CPP). III. Os indícios serão suficientes sempre que, por via deles, o Juiz de instrução chegue a um juízo de prognose em que a condenação do arguido é mais provável (probabilidade dominante/elevada) do que a absolvição, e que em julgamento será ultrapassada a barreira do in dubio pro reo. IV. O direito ao bom nome, à honra e à reputação e o direito à liberdade de expressão, de informação e crítica são ambos direitos constitucionalmente protegidos respectivamente nos art.ºs 26.º, n.º1 e 37.º, da Constituição da República Portuguesa (CRP), que devem ser compatibilizados, não estabelecendo a CRP qualquer hierarquia entre eles, nem deve ser conferida aprioristicamente e em abstracto a precedência de qualquer um dele, importando, em caso de conflito, um balanceamento concreto e não abstracto. V. A concordância prática do direito à integridade moral, ao bom-nome e à reputação, por um lado, com o direito de cada um exprimir e divulgar livremente o seu pensamento através da palavra, da imagem ou qualquer outro meio, por outro, tem de se afirmar, não apenas pela interpretação e aplicação das normas constitucionais e legais internas, mas também pela aplicação das normas que integram as convenções internacionais a que Portugal está obrigado, com particular realce para a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), tal como vêm sendo interpretadas e aplicadas pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH). VI. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tem vindo a enfatizar de forma consistente, a centralidade do direito à liberdade de expressão consagrado no art.º 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) como elemento conformador e estruturante de uma sociedade livre, pluralista e autenticamente democrática e uma das condições primordiais do seu progresso e do direito à manifestação de cada um, devendo, as limitações previstas no art.º 10.º, n.º2 da CEDH ser interpretadas nos termos restritos, nomeadamente em assuntos de interesse público, como o são a título de exemplo os ligados à saúde e à assistência médica. VII. A Jurisprudência do TEDH tem considerado que a liberdade de expressão não sendo um direito absoluto, tem limites imanentes, devendo ser objecto de restrições que correspondam a uma imperiosa necessidade social, para tutela de direitos de personalidade, em que se incluem o direito à honra, à imagem e à reserva da vida privada e familiar. VIII. Mais, tem sido considerado pelo TEDH que os políticos e outras figuras públicas, com cargos públicos ou incumbidos de funções públicas, pela sua exposição, pela discutibilidade das suas ideias e até pelo controlo e escrutínio das condutas a que devem ser sujeitos, quer pela comunicação social, quer pelo cidadão comum, devem ser mais tolerantes a críticas do que os particulares, sendo admissível um maior grau de intensidade das críticas admitindo-se a aceitação, com alguns limites, de expressões ou outras manifestações que criticam, ferem, chocam, inquietam ofendem, exageram ou distorcem a realidade. IX. O TEDH tem sublinhado a necessidade de se proceder a uma valoração do conteúdo ou sentido das expressões em causa, integrando-as no contexto em que surgiram, considerando que mesmo os juízos de valor susceptíveis de reunirem indiscutivelmente apenas um conteúdo ofensivo, podem afinal merecer a protecção da liberdade de expressão, desde que sejam dotados de uma base factual mínima e de uma explicação objectivamente compreensível de crítica sobre realidades objectivas em assunto de interesse público ou em debate de natureza política. X. No campo restrito das comunicações sobre factos, ou seja, sobre acontecimentos da vida real, o Tribunal tem entendido que a protecção pela liberdade de expressão depende da veracidade desses mesmo factos ou, no limite, da ocorrência de fundamento bastante para que o agente, agindo de boa fé e com a informação disponível, acreditasse na veracidade desses mesmos factos. XI. A doutrina e a jurisprudência têm enunciado várias teses e metodologias quanto à articulação possível entre a liberdade de expressão, por um lado, e o direito à honra e à imagem, por outro, designadamente: critério da ponderação de bens; critério do âmbito material da norma; critério do princípio da proporcionalidade; critério da concordância prática; critério da restrição de direitos prima facie pela existência de outros direitos prima facie. XII. Na compatibilização desses direitos fundamentais deve ter-se em conta a mais recente orientação do Supremo Tribunal de Justiça e dos Tribunais da Relação, devendo exigir-se um juízo de prognose sobre a hipotética decisão que o TEDH adoptaria se o caso lhe tivesse sido submetido, no sentido de se verificar se é de admitir como muito provável que, se a questão viesse a ser colocada ao TEDH, tal órgão jurisdicional entenderia que a concreta afirmação/imputação extravasaria os limites toleráveis do exercício da liberdade de expressão e informação. XIII. No caso concreto, integrando as imputações e juízos contidos nas expressões “foi uma contratação de uma comissária política, porque nem sequer foi contratada com concurso público” proferidas pelo arguido na entrevista exibida no telejornal Açores, das 20.00h, programa transmitido pela RTP Açores, no âmbito de uma reportagem com o título “críticas Saúde”, que versou sobre o funcionamento do Serviço Regional de Saúde e também sobre o Hospital X, versando sobre o estado em que se encontrava o Serviço Regional de Saúde e também o Conselho de Administração do Hospital X, no contexto em que surgiram, dotados de uma base factual mínima e de uma explicação objectivamente compreensível de crítica sobre realidades objectivas, tendo em conta o interesse público do assunto e chamando à colação o critérios da ponderação dos bens em causa, o princípio da concordância prática, do âmbito de protecção das normas pertinentes, o princípio da proporcionalidade e fazendo um juízo de prognose sobre a hipotética decisão que o TEDH adoptaria se o caso lhe tivesse sido submetido, concluímos que o arguido actuou a coberto do exercício do direito à liberdade de expressão e critica, não extravasando os limites desse exercício, não sendo a sua conduta passível de responsabilidade penal, imputando-se a prolacção de despacho de não pronúncia do arguido, porquanto a ser submetido a julgamento é mais provável a sua absolvição do que a sua condenação. XIV. Tal conduta consubstanciada nas aludidas expressões, corresponde ao exercício do direito de crítica à actuação do Conselho de Administração de Hospital de que o assistente faz parte sendo pessoa pública, incumbida de funções públicas, não se afirmando como dotadas das características que pudessem atingir o núcleo essencial conexo à dignidade da pessoa humana, não revestindo de carga ofensiva que a faça alcançar o patamar da tipicidade e justifique a atribuição de dignidade penal. XV. Outra posição penalmente sancionatória constituiria, uma ingerência inadmissível no exercício do direito à critica e à liberdade de expressão, nomeadamente traduzindo restrições ao discurso político ou ao debate sobre questões de interesse público, como o são as ligadas à saúde e às políticas a ela inerentes, dando peso desproporcional aos direitos à reputação e à honra, em contraste com o direito à liberdade de expressão e à crítica, excederia a margem de apreciação que é reconhecida aos Tribunais no que respeita às limitações aos debates de interesse público e redundaria num "efeito dissuasor" num “efeito de arrefecimento de condutas” de que fala a chilling effect doctrine, num tipo de intimidação, como forma de calar os opositores, adversários, concorrentes etc., o que é particularmente delicado em assuntos de interesse público.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – RELATÓRIO
1.
Pelo Juiz de Instrução Criminal (JIC) de Ponta Delgada, Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, no âmbito do processo n.º 2220/23.0..., foi proferido despacho de não pronúncia do arguido AA, devidamente identificados nos autos.
2.
Inconformado com esta decisão, veio o Assistente BB interpor recurso, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição): A. O presente recurso tem por objecto a decisão instrutória de não pronúncia proferida no dia ... de ... de 2025, com a referência 59034782 nos termos da qual o Tribunal a quo rejeitou levar o arguido a julgamento pelo crime de difamação com publicidade e calúnia, p.e.p. pelos artigos 180.º, n.º 1, 183.º, n.º 1 alínea a) e n.º 2, todos do Código Penal que lhe fora imputado pela acusação particular deduzida. B. Considera o Assistente que a decisão recorrida viola o disposto nos artigos 180.º, n.º 1, 183.º, n.º 1 alínea a) e n.º 2, todos do Código Penal do Código ( Neste sentido o Supremo Tribunal de Justiça em acórdão, acessível através do link Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça) Penal, na medida em que o Tribunal a quo faz uma interpretação errônea da referida norma punitiva aos factos; C. A decisão instrutória considera, em síntese, que o arguido não excedeu os limites da licitude da liberdade de expressão. D. A acolher o alegado, significaria desvirtuar por completo as normas legais que tipificam os crimes contra a honra constantes do Capítulo VI do Código Penal (artigos 180.º a 189.º do referido diploma). E. Para que tenha lugar a causa de exclusão da ilicitude prevista no n.º 2 do artigo 182.º do Código Penal é necessário que a conduta do arguido tenha sido feita: i) para realizar interesses legítimos e, ii) que o agente prove a verdade da mesma imputação ou que demonstre que tinha razões para em boa-fé, a reputar como verdadeira. F. Foram proferidas pelo arguido , publicamente, no telejornal, as seguintes expressões (aos minutos 4: 11 segundos acessível através do link Telejornal Açores de ... - RTP Play “Nós temos no mundo vários generais sem tropas. É o que acontece com a radioncologia no Hospital X (“...”). Aquilo que aconteceu no Hospital (…) foi uma contratação de uma comissária política, porque nem sequer foi contratada com concurso público, para gerir toda a área de oncologia” G. Acusou, o arguido a Administração do Hospital X de ter feito a contratação de uma comissária política para chefiar o serviço de radioconlogia – sem concurso, portanto, à revelia da lei, visando tanto o assistente como os demais membros do Conselho de Administração do Hospital. H. Tendo o arguido referido que: “nem sequer foi contratada com concurso público” e que não teria “experiência absolutamente nenhuma de gestão”. I. Tais imputações/expressões deixaram no ar aos telespectadores que assistiram ao telejornal que o assistente e os restantes membro do Conselho de Administração fizeram contratações políticas, J. com base em favores, cunhas ou com objetivos políticos, sem critérios de mérito ou legalidade – em prejuízo do bem público e da saúde pública. Contudo, K. Ao contrário do que o arguido refere, a contratação da Dra. CC - visada pelas declarações do arguido - foi feita em conformidade com a lei, L. pelo que não poderá colher a tese da decisão recorrida de que a imputação de facto se mostra sustentada em prova documental – quando existe documentação, junta aos autos, que demonstram à saciedade o dolo e a má-fé do arguido. M. Não e concorda com a tese da decisão recorrida que decidiu que o arguido “não teceu nenhum juízo de valor individualmente ou sobre a pessoa do assistente, dirigindo antes a sua crítica às escolhas do conselho de administração enquanto órgão colegial” – pois tal conclusão é irrelevante para a pronúncia do arguido pelo crime que lhe é imputado. N. Num meio pequeno como o de Ponta Delgada, ao referir-se o arguido ao Conselho de Administração do Hospital estaria, como realizou e efetuou, a referir-se a todos os seus membros, nomeadamente ao aqui Assistente. O. A acrescer e ao contrário do vertido na decisão recorrida que decidiu que o discurso do arguido não era “ostensivamente insultuoso (não há recurso a obscenidade, palavrões ou tabuísmos), nem se evidencia qualquer intenção de rebaixar, escarnecer ou humilhar ou, sequer, de ofender a honra e a dignidade do assistente”; P. As palavras proferidas pelo arguido foram de molde a humilhar, insultar, rebaixar o assistente, imputando-lhe factos – a prática de actos corruptivos – aos membros do Conselho de Administração, do qual o assistente é membro, como é de conhecimento geral num meio pequeno como Ponta Delgada. Q. Também não concordamos com a tese vertida na decisão instrutória de que não pode ser imputado ao arguido o crime de que vem acusado pelo facto de “as declarações não se afastaram do temário, nem surgem de forma desnecessária e/ou descontextualizada”. R. Pelo contrário, é patente da prova produzida nos autos que o arguido não, cumpriu o mínimo de diligência, como lhe cabia, antes de proferir as afirmações que proferiu – designadamente confirmar a veracidade das mesmas. S. Na verdade resultou demonstrado pelo assistente que: a. A Dra. CC foi contratada – à semelhança de outros profissionais da área da saúde, num total de 319 – durante a pandemia para enfrentar as necessidades da luta contra o COVID-19 a partir de ..., contrato esse que foi, posteriormente, regularizado; b. Posteriormente, foi realizado o competente concurso público para o posto de trabalho em apreço, tendo o mesmo sido publicado na Bolsa de Emprego Público dos Açores; c. Neste âmbito, foi celebrada a Convenção Coletiva de Trabalho n.º 29/2020, de 25 de novembro entre o Hospital X, o Hospital Y, o Hospital Z, e os sindicatos dos médicos da Zona Sul e o sindicato Independente dos Médicos Ao abrigo da Portaria de Extensão n.º 11/2022, tal convenção coletiva passou a ser aplicável, também, às relações de trabalho entre empregadores outorgantes e os trabalhadores ao seu serviço – alínea a), do n.º 1 da cláusula 6.ª do Anexo III, decorrendo a obrigação de ser tornada pública a abertura do procedimento concursal na página eletrónica da entidade e na Bolsa de Emprego Público – o que foi feito, conforme número de oferta 859/...; T. Conclui-se que o arguido bem sabia que os factos imputados não eram verdadeiros, o que demonstra à saciedade, a existência de dolo directo. U. Por fim, e quanto segundo requisito, para que se possa considerar verificada a causa de exclusão da ilicitude - nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 31.º do Código Penal é necessário que exista interesse legítimo por parte do arguido – o que não se verifica. V. A liberdade de expressão apenas assume proteção quando a opinião prestada não seja desprovida de base fatual e seja de boa-fé – o que não se verifica no caso concreto. W. Quanto ao elemento subjetivo, o tipo de ilícito basta-se com o dolo eventual, não exigindo um dolo directo. X. De resto, ao contrário do decidido pelo Tribunal a quo não existe qualquer interesse legítimo por parte do arguido, nem este sequer ficou minimamente demonstrado. Y. Efetivamente, não existe o exercício por parte do arguido de um interesse legítimo de natureza pública (como os jornalistas – dever de informar) nem privada (como os advogados – exercício do direito de defesa). Z. É que as palavras proferidas pelo arguido vão mais além do que a mera informação ou crítica social ou política, pelo contrário, são aptas a lesar a honra e a dignidade do aqui assistente como já aqui referido. AA. A crítica objetiva, não directa e imediatamente dirigida à pessoa ou ao órgão de gestão do Hospital X constitui uma conduta típica e, por essa razão, com relevância penal. BB. O TEDH tem entendido que o direito à liberdade de expressão só não prevalece sobre outros direitos, entre os quais o segredo de justiça, o direito ao bom nome ou às garantias de defesa - esta posição resulta da interpretação que o TEDH faz e tem vindo a fazer dos artigos 6.º e 10.º da CEDH. CC. Conclui-se, assim que, não estando preenchidos os pressupostos da causa da exclusão da ilicitude ínsita no n.º 2 do artigo 180.º do CP deverá o arguido ser pronunciado pelo crime constante da acusação particular e, consequentemente, ser levado a julgamento. Nestes termos e nos melhores de Direito, dado que seja, por V. Exas., Venerandos Desembargadores, o V. douto suprimento, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, em consequência, ser determinada a revogação da decisão recorrida, substituindo-se por outra que, acolhendo os fundamentos expostos, decida pela prolação de despacho de pronúncia do arguido pelo crime de difamação com publicidade e calúnia, p.e.p. pelos artigos 180.º, n.º 1, 183.º, n.º 1 alínea a) e n.º 2, todos do Código Penal de que vem acusado na acusação particular deduzida. Fazendo-se, desta forma, inteira e sã JUSTIÇA!
3.
O recurso foi admitido por despacho proferido, em .../.../2024, com o seguinte teor (transcrição): Por ser admissível, estar em tempo, vir acompanhada das respetivas alegações, que contêm conclusões, e assistir legitimidade e interesse em agir ao assistente BB, admito o recurso interposto da decisão instrutória (despacho de não pronúncia), a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, nos termos e ao abrigo do disposto nos arts. 310º a contrario sensu, 399º, 401º/ 1/ b), 406º/ 1, 407º/ 2/ a) e i), 408º a contrario sensu, 411º/ 1/ c), 412º/ 1 e 2 e 414º/ 1, todos do Código de Processo Penal (refªs 6279663 e 6280039, ambas de ........2025, a fls. 145 e ss. do suporte físico dos autos). Notifique, sendo ainda o Ministério Público e o arguido AA nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 411º/ 6 e 413º/ 1, ambos daquele Código..
4.
O Ministério Público apresentou resposta ao recurso pugnando pela manutenção do decidido, apresentando as seguintes conclusões(transcrição): I- BB, assistente, recorre da decisão instrutória que não pronunciou o arguido AA pelo crime de difamação com publicidade e calúnia, p.e.p. pelos artigos 180.º, n.º 1, 183.º, n.º 1 alínea a) e n.º 2, todos do Código Penal. II -Todavia, entendemos que a decisão do Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal não merece qualquer reparo. II- Estão em causa as palavras proferidas pelo arguido, numa entrevista no telejornal da RTP Play na qual refere: “ ter sido levada a efeito «uma contratação de uma comissária política, porque nem sequer foi contratada com concurso público, para gerir toda a área de oncologia, tendo acabado de se formar na área da radioncologia; sem experiência absolutamente nenhuma de gestão. Excelentes qualidades técnicas, reconhecidas pelos seus pares, mas na forma como foi contratada, nas funções que lhe foram atribuídas, as consequências eram previsíveis e estão à vista: o mau ambiente, os bloqueios na ligação, que eu diria exemplar que sempre existiu desde o início entre os cuidados hospitalares e a clínica de radioncologia DD (…) isso foi seriamente prejudicado», declaração esta que visava o assistente (a par dos restantes membros da administração) enquanto responsável pela contratação. III- No nosso entendimento, o arguido proferiu uma opinião pessoal sobre o funcionamento do Hospital X, onde o assistente exercia a função de vogal do conselho de administração. IV- Não se apurou que tenha proferido qualquer juízo de valor quanto á dignidade pessoal do assistente. V- Ao contrário do que entende o assistente as palavras proferidas pelo arguido não são mais que critica politica não tendo sido aptas a lesar a honra e dignidade do ora assistente. VI -A honra é entendida no ordenamento jurídico-penal português, como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior. VII- Como refere Faria Costa, in "Comentário Conimbricense do Código Penal", Tomo I, para aferir se as palavras proferidas são ou não ofensivas da honra e consideração de uma pessoa, há que atender ao contexto situacional, pese embora, existam palavras cujo sentido primeiro e último seja tido, por toda a comunidade falante, como ofensivo da honra e consideração e que exprimem e carregam consigo um indesmentível desvalor, objectivamente ofensivo. VIII- Quanto ao elemento subjectivo do tipo, traduz-se na vontade livre de praticar o acto com a consciência de que as expressões utilizadas ofendem a honra e consideração alheias, ou pelo menos são aptas a causar aquela ofensa, e que tal acto é proibido por lei. IX- Quanto ao elemento objectivo, há duas modalidades do comportamento que integram, a igual título, o tipo: o comportamento do agente pode traduzir-se na imputação de um facto ou na formulação de um juízo. X- Se é certo que o nosso Código Penal adopta uma concepção normativo pessoal de honra em que esta é vista como bem jurídico complexo que abrange quer o valor interior ou subjectivo de cada indivíduo, quer a sua reputação ou consideração exterior, não se discute igualmente o carácter fragmentário ou de última ratio do direito penal, sendo ainda verdade para o nosso ordenamento jurídico-penal que nos arts 180º e 181º do C. Penal tutela a dignidade e o bom nome do visado e não a sua especial suscetibilidade e melindre. XI -Assim, impõe-se levar devidamente em conta logo ao nível do preenchimento do tipo de ilícito que o direito penal tutela apenas os valores essenciais e fundamentais da vida em sociedade, obedecendo a um princípio de intervenção mínima, bem como de proporcionalidade imanente ao Estado de Direito, e que nem tudo o que causa contrariedade, é desagradável, pouco ético, ou que envergonha e perturba ou humilha, cabe na previsão das normas dos arts 180º e 181º - sublinhado nosso (Oliveira Mendes, O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, p. 37). XII- Decorre dos princípios ínsitos nos artigos artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) – aplicável ex vi artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 37. º da CRP que a restrição de direitos, liberdades e garantias terá de respeitar os critérios constitucionais da legalidade, necessidade (ou exigibilidade) e adequação (proporcionalidade em sentido restrito). Como vem sendo entendido, a necessidade supõe a existência de um bem juridicamente protegido. XIII- Decorre assim do disposto no artigo 18º, n.º 2 da CRP o princípio da necessidade da tutela penal do qual resulta que, não basta a violação de bem jurídico-penal, uma tal violação terá de ser absolutamente indispensável à livre realização da personalidade de cada um na comunidade. Decorre ainda desta norma basilar do nosso ordenamento jurídico o princípio da proibição do excesso, que impõe que o Direito Penal só possa intervir nos casos em que todos os outros meios de política social se revelem inadequados ou insuficientes. XIV- Deste modo, ao ponderar todos estes elementos em face da prova produzida, o Ministério Público entende que o arguido não praticou o crime de difamação. Por todo o exposto, entende o Ministério Público que, no despacho de não pronuncia não foi violado o disposto nos artigos 308º n.º1 do Código de processo penal e artigos 180º, 181º, 183ºnº1 alínea a) todos do Código penal, devendo manter-se a decisão de não pronuncia. V. Exas., porém, com mais elevada prudência, decidirão conforme for de Direito e Justiça!
6.
Uma vez remetido a este Tribunal, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta deu parecer no seguinte sentido (transcrição parcial): * O âmbito do recurso é definido pelas conclusões no âmbito das quais o recorrente resume as razões do seu pedido, corolário da motivação apresentada. As conclusões assim definidas delimitam as questões passiveis de serem apreciadas pelo tribunal ad quem sem prejuízo de este estar obrigado ao conhecimento oficioso dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995). Foi nos presentes autos proferida decisão de não pronuncia do arguido AA pela prática em autoria material, de um crime de difamação com publicidade e calúnia, p. e p. pelos arts. 180º/ 1 e 183º/ 1/ a) e 2, ambos do Código Penal conforme imputado na acusação particular deduzida pelo assistente BB. Inconformado com a decisão dela recorre o assistente. O Ministério Publico de 1º Instância respondeu ao recurso interposto, defendendo a manutenção da decisão recorrida. Considerando as peças processuais em análise, secundamos inteiramente a análise efectuada em sede de decisão instrutória. O trecho da entrevista seccionado reflecte uma opinião pessoal, que encerra uma critica à actuação de um órgão gestionário, sem que o seu conteúdo permita individualizar a pessoa do assistente, o que por maioria de razão não permite a ilação de que do seu conteúdo se possa extrair a intenção de imputar ao assistente factos ofensivos da sua honra e consideração. Como se refere no Ac do tribunal da Relação do porto proferido a 22-02-2023 no processo 1493/20.5T9VFR.P1 consulta em www.dgsi.pt: Sumário: I – Porque há que conciliar a tutela do direito à honra atingido pelo crime de difamação e a liberdade de expressão e crítica, há que distinguir entre a crítica da atuação de uma pessoa e a crítica que atinge a própria pessoa na sua dignidade, entre um juízo sobre essa atuação (que poderá até ser injusto, exagerado, formulado em termos agressivos, ou indelicados e descorteses) e um juízo sobre a pessoa. II - Esta distinção também vale, e vale especialmente, no âmbito da atuação política; a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos sobre a importância e alcance da liberdade de expressão neste âmbito não anula tal distinção, como se o direito à honra deixasse de ser tutelado quando são visados agentes políticos. Consideração que em nosso entendimento, se deve aplicar analogicamente considerando o teor da entrevista realizada e o contexto em que o comentário foi proferido. Entendemos, sem necessidade de maiores desenvolvimentos, atenta a fundamentação da decisão proferida, que esta não merece reparo. *
Cumprido o preceituado no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, veio o assistente responder, ao parecer da Exma. PGA. , dizendo que: Salvo o devido respeito e melhor opinião, consideramos que a tese apresentada pelo Ministério Público não pode colher, porquanto não concordamos que exista – no caso em apreço – impossibilidade de individualizar a pessoa do assistente se atendermos às palavras proferidas pelo arguido. Com efeito, existe jurisprudência que considera que uma conduta direcionada para um colectivo deve ser considerada como uma conduta que pretende atingir a honra de cada um dos elementos desse mesmo colectivo. Perfilhando essa tese que aqui se invoca, cumpre citar o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 11.02.20229 no âmbito do processo 665/04.4TAVIS.C1, acessível através do link Acórdão nº 665/04.4TAVIS.C1 de Tribunal da Relação de Coimbra, 11-02-... – vLex Portugal, que se debruçou sobre factos em tudo semelhantes aos dos presentes autos – difamação de um Conselho de Administração de Hospital e, consequentemente, das pessoas que o compunham, tendo decidido no seguinte sentido: Se a responsabilização criminal duma pessoa colectiva não prescinde da responsabilização criminal de quem no acto a representou, a inversa também é verdadeira. Ou seja, ao lançar vitupérios sobre a pessoa colectiva, sem qualquer ressalva, atinge-se quem no momento a compunha. Assim, é forçoso concluir que o arguido ao proferir declarações manifestamente falsas e atentatórias da honra dos membros do Conselho de Administração, está, assim, a afectar os seus membros – factos que realizou e que logrou concretizar, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. Refere, ainda, o Ministério Público que as palavras proferidas pelo arguido tratam-se de juízos e de opinião pessoal. Recordamos, a este respeito, que estamos perante não meros juízos de valor, mas, sim, a imputação de um facto objetivamente falso que afecta – como afectou – a honra do assistente, não estando reunidos os pressupostos da causa da exclusão da ilicitude a que o n.º 2 do artigo 180.º do CPP faz alusão – como, de resto, já se expôs na motivação de Recurso. O Arguido profere falsamente (o que era facilmente constatável pelo mesmo) que o Conselho de Administração contratou uma “comissária política, porque nem sequer foi contratada com concurso público, para gerir toda a área de oncologia”. Com isto, transmite a informação errada de que o mesmo Conselho está corrompido por favores, cunhas e clientelismo político, não cumprindo obrigações que neste caso até têm consagração constitucional. Isto num caso tão sério como a chefia de uma área crucial – oncologia -, em que afeta, assim, a saúde pública ou mesmo colocam vidas em risco. Uma afirmação desta gravidade afeta – como afectou – sem margem para dúvidas, a honra do assistente bem como dos restantes membros do Conselho de Administração. Ainda para mais, se atendermos à confiança que o público que assistiu às declarações do arguido depositou nas declarações do próprio, pelo facto de ser o médico fundador do serviço de oncologia no Hospital X. Ainda que o arguido venha invocar que o conteúdo da entrevista não permite individualizar a pessoa do assistente, mesmo que não tenha sido referido explicitamente o seu nome, a verdade é que no contexto em que a entrevista foi dada e para o público-alvo, era inequivocamente o aqui assistente bem como os restantes elementos do Conselho de Administração que estavam a ser visados, permitindo, desta forma, a sua identificação imediata e directa. Assim, não se trata, como o MP o afirma de uma mera “opinião pessoal” excluída de relevância jurídico-penal, efectivamente, o teor da entrevista excedeu manifestamente o limite do direito de crítica, desencadeando num ataque pessoal à honra e consideração do assistente. De resto e quanto ao argumento de que não se pode extrair a intenção de imputar ao assistente factos ofensivos da sua honra e consideração, importa aqui referir que o crime de difamação exige dolo, mas não um dolo específico, bastando o dolo genérico, ou seja, que o agente tenha a consciência do carácter ofensivo das suas palavras e, ainda, assim, as profira. O direito à honra e consideração não é, nem pode ser considerado como meramente subjectivo, mas, sim, objetivamente merecedor de tutela. O que foi dito pelo Arguido ultrapassou a margem de tolerância conferida pela liberdade de expressão. Em face do que aqui se expôs, conclui-se nos mesmos termos da motivação apresentada, pugnando que seja dado provimento ao recurso interposto.
*
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência a que alude o artigo 419.º do Código de Processo Penal, cumpre decidir.
*
II -FUNDAMENTAÇÃO
II.1.A decisão instrutória de não pronuncia proferido pelo Juiz de Instrução Criminal de Ponta Delgada, tem o seguinte teor (transcrição):
* DECISÃO INSTRUTÓRIA (DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA)
*
Vem o arguido AA requerer a abertura da instrução, inconformado que se mostra com a acusação particular deduzida pelo assistente BB1, não acompanhada pelo Ministério Público2, que lhe imputa a prática, em autoria material, de um crime de difamação com publicidade e calúnia, p. e p. pelos arts. 180º/ 1 e 183º/ 1/ a) e 2, ambos do Código Penal (CP), pugnando pela prolação de despacho de não pronúncia3.
Declarada aberta a instrução4, teve lugar o debate instrutório com respeito pelas formalidades legais5.
O Tribunal é o competente.
Inexistem nulidades, ilegitimidades, exceções ou quaisquer questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer.
* §1. A presente instrução, no que ao caso interessa, visa comprovar judicialmente a dedução da acusação particular pelo assistente, em ordem a submeter a causa a julgamento [art. 286º/ 1 e 287º/ 1/ a), ambos do Código de Processo Penal (CPP)]. §2. A acusação particular assenta numa entrevista concedida pelo arguido à RTP Açores, exibida no Telejornal Açores do dia ........2023, intitulada por “Críticas Saúde”, versando, de entre o mais, sobre o funcionamento do ...6, sendo que, à data, o assistente integrava, como vogal, o respetivo conselho de administração. Está concretamente em causa o segmento da entrevista em que o arguido afirma que foi levada a efeito «uma contratação de uma comissária política, porque nem sequer foi contratada com concurso público, para gerir toda a área de oncologia, tendo acabado de se formar na área da radioncologia; sem experiência absolutamente nenhuma de gestão. Excelentes qualidades técnicas, reconhecidas pelos seus pares, mas na forma como foi contratada, nas funções que lhe foram atribuídas, as consequências eram previsíveis e estão à vista: o mau ambiente, os bloqueios na ligação, que eu diria exemplar que sempre existiu desde o início entre os cuidados hospitalares e a clínica de radioncologia DD (…) isso foi seriamente prejudicado», declaração esta que visa(va) o assistente (a par dos restantes membros da administração) enquanto responsável pela (dita) contratação. §3. A declaração contém, em si mesma, a imputação de um facto, qual seja a contratação, pelo (conselho de administração do) Hospital de uma médica (Srª Drª CC) para gerir o serviço de oncologia à margem de qualquer concurso público. Tudo o mais, incluindo a motivação da contratação, reconduz-se a juízos de opinião (contextualizados nas demais considerações tecidas pelo arguido ao longo da entrevista). §4. Ora, quanto ao sobredito facto, o arguido defende no RAI, plausivelmente conforme a documentação que junta sob o nº 37, que, na sua perspetiva, a admissão da visada desprovida de procedimento de contratação pública é verdadeira: independentemente do lançamento do concurso público de finais de ... que possa ter havido nos moldes narrados pelo assistente na acusação, o Hospital, em data anterior, na sua divulgada newsletter de ..., comunicou publicamente a contratação da Srª Drª CC no dia ... mês para as funções de radioncologia, em razão do que a afirmação, pelo arguido, de ausência de concurso público para o efeito, não se me afigura leviana e não sustentável (quanto muito, terá havido uma omissão ou incompletude no sentido de se ter tratado de uma contratação inicialmente daquele jaez). De resto, muito antes, em ........2021, o arguido terá enviado uma exposição ao então diretor clínico do Hospital através de correio eletrónico, com conhecimento ao conselho de administração, na qual se referiu, de entre o mais, à (sua convicção da) circunstância de a dita Srª Drª não ter sido contratada ao abrigo de procedimento de contratação pública, mas sim nomeada por aquele conselho8 (relativamente ao que não há notícia de qualquer reação por parte do conselho de administração e/ ou de qualquer um dos seus membros), quadro este que, aliado ao supra exposto, aponta precisamente para a séria convicção, pelo arguido, da veracidade da declaração prestada e, como tal, pautada pela boa fé subjetiva, circunstancialismo este que, desde logo, seria conducente à não punibilidade da conduta (art. 180º/ 2/ b) do CP). §5. Mas mesmo que assim não se entendesse, e aqui, também, quanto aos juízos de opinião, considero que o arguido não excedeu os limites da licitude da liberdade de expressão. §6. Com efeito, como é por todos sabido, mas nunca é demais sublinhá-lo, a liberdade de expressão é não só um bem individual, mas também um valor coletivo numa sociedade democrática, constituindo, aliás, um instrumento de medição do grau de democraticidade de um Estado, tratando-se de “um dos pilares fundamentais de toda a sociedade democrática, uma das condições primordiais do seu progresso e da realização individual”9. A liberdade de expressão mostra-se expressamente consagrada, enquanto direito fundamental latu sensu, no plano supranacional, tal como a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art. 10º) e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (art. 11º), e constitucional (art. 37º). No confronto com outros direitos, mormente e no que ao caso releva, o direito à honra – principal “adversário” daquela –, e sobremaneira relevante neste domínio, a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH)10 tem vindo a defender, ao longo dos anos, que somente são aceitáveis restrições ou penalizações à liberdade de expressão quando correspondam a uma necessidade social imperiosa numa sociedade democrática, portanto, por razões particularmente ponderosas. Ademais, para o TEDH, por um lado, a liberdade de expressão (naquela perspetiva de fundação essencial de uma sociedade democrática, plural e modernamente tolerante), abrange não só as informações e opiniões inofensivas, indiferentes ou neutras, ou socialmente acolhidas de forma favorável ou pacíficas, mas também e sobretudo aquelas de matriz polémica que ofendem, chocam ou perturbam11; por outro lado, qualquer restrição àquela liberdade deve sempre ser vista como uma exceção, necessariamente fundamentada, necessária e proporcional à finalidade legítima prosseguida nessa compressão, apreciada num juízo de pertinência e justificação, pelo que, no balanceamento entre os direitos em conflito, apenas se deve restringir a liberdade de expressão nas situações em que os direitos de personalidade sejam verdadeiramente postos em causa e de forma significativa “evitando que a invocação da sua ofensa possa surgir antes como forma de restringir a liberdade de crítica dos cidadãos e a discussão ampla e aberta das questões de interesse público” (Ac. TRE de 23.01.201812), precisamente porque a CEDH, na “ponderação de valores”, faz uma clara opção normativa «na definição da maior relevância do valor “liberdade de expressão” sobre o valor “honra”» (Ac. TRE de 01.07.201413). §7. Tendo presente este pano de fundo, e regressando ao caso dos autos, a vexata quaestio deve, então, ser colocada da seguinte forma: assistindo ao arguido a liberdade de expressão, e dela tendo feito uso (enquanto exercício de um direito – regra), justificar-se-á, à luz de uma necessidade social imperiosa, restringir a sua licitude, em prol da defesa do direito ao bom nome (lado individual) e reputação (lado social) do assistente, enquanto direito fundamental de personalidade, em termos de integrar a conduta na tipicidade do crime imputado, porque lesiva da honra e consideração do mesmo, a coberto do disposto, desde logo, nos arts. 18º/ 2, 26º/ 1, 37º/ 1 e 3, todos da Constituição da República Portuguesa (relembre-se que o bem jurídico protegido com a incriminação tem o seu horizonte de referência na Lei fundamental), e 180º/ 1, 182º e 183º/ 1/ a) e 2, todos do CP? §8. A resposta é negativa por seis ordens de razão:
(i) o arguido jamais se refere à pessoa do assistente, seu nome e/ ou cargo ao longo da entrevista;
(ii) a entrevista ao arguido tem lugar no âmbito de uma peça televisiva versando sobre críticas à saúde, destinada ao público em geral, nela figurando na qualidade de médico e fundador do serviço de oncologia do Hospital, pelo que a sua opinião se dirige à realização de um interesse público no âmbito do serviço de comunicação social;
(iii) o arguido não tece nenhum juízo de valor individualmente ou sobre a pessoa do assistente, dirigindo antes a sua crítica às escolhas do conselho de administração enquanto órgão colegial, mormente quanto à forma de contratação, às competências da visada para o cargo e ao correlativo negativo impacto no serviço (não significando o epíteto qualificativo desta como “comissária política” que os membros daquele conselho tenham sido comitentes políticos);
(iv) nada é ostensivamente insultuoso (não há recurso a obscenidade, palavrões ou tabuísmos), nem se evidencia qualquer intenção de rebaixar, escarnecer ou humilhar ou, sequer, de ofender a honra e a dignidade do assistente;
(v) a imputação de facto mostra-se sustentada em documentação oficial produzida pelo Hospital (mas mesmo que assim não fosse, o TEDH tem vindo a aceitar, de forma consensual, o inerente risco da inevitabilidade de erros ou incorreções desde que não firam, em intenso grau, a essencialidade do direito em conflito), não vislumbrando má fé por parte do arguido; e, por fim,
(vi) as declarações não se afastaram do temário (por hipótese aludindo a outra exógena matéria de índole pessoal e/ ou profissional relacionada com o assistente), nem surgem de forma desnecessária e/ ou descontextualizada. §9. Assim sendo, em suma, entendo que a imputada conduta não preenche, sequer, os elementos típicos do ilícito criminal em causa, por se situar dentro dos limites do exercício da liberdade de expressão – não se tratando de uma causa de exclusão da ilicitude, mas sim do exercício de um direito a jusante da tipicidade normativa e que afasta esta –, compressora, neste domínio, do (também supranacional e constitucionalmente assegurado) direito à honra e ao bom nome, sob o crivo da proporcionalidade e da intensidade da correspondente ofensa, em razão do que, não integrando o campo de proteção penal do bem jurídico que o ilícito criminal imputado visa proteger, consubstancia um comportamento atípico. §10. Impõe-se, pois, a não pronúncia do arguido (art. 308º/ 1 do CPP), havendo lugar à responsabilidade tributária da assistente pelas custas do processo (art. 515º/ 1/ a) do CPP).
*
Em face do exposto, não pronuncio o arguido AA pelos factos e qualificação jurídica constantes da acusação particular.
Custas a cargo do assistente BB, fixando a taxa de justiça em 2,5UC e levando-se em linha de conta o montante já liquidado pelo mesmo nos autos.
Notifique.
III – FUNDAMENTOS DO RECURSO E RESPECTIVA APRECISÃO Questões a decidir no recurso:
Constitui jurisprudência assente que o objecto do recurso, que circunscreve os poderes de cognição do tribunal de recurso, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º, 412.º e 417.º, todos do Código de Processo Penal), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal14, os quais devem resultar directamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito), ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).15
Assim, é colocada à apreciação deste tribunal a seguinte questão:
• Da existência de indícios suficientes para pronunciar o arguido pela prática, em autoria material, de um crime de difamação com publicidade e calúnia, p. e p. pelos arts. 180º n.º 1 e 183ºn.º 1/ a) e 2, ambos do Código Penal (CP).
Vejamos:
O arguido foi acusado pelo assistente (acusação não acompanhada pelo Ministério Público) pelos crime previsto e punido pelos artigos 180.º, n.º 1, 183.º, n.º 1 alínea a) e n.º 2, todos do Código Penal e que, na sequência da abertura de instrução, não foi pronunciado.
Cotejemos, então da existência de indícios suficientes da sua pratica pelo arguido, dissecando os elementos probatórios colhidos no inquérito e na instrução, não, sem antes, discorrermos relativamente ao que se deve entender por indícios suficientes.
Estatui o artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, «a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento».
De acordo com o artigo 308.º, n.º 1 do mesmo diploma, «se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia».
Por sua vez, o artigo 283.º, n.º 2 refere que «consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança».
Assim, sendo este o entendimento legal em que deve assentar a prolação de despacho de pronúncia ou de não pronúncia, do mesmo resulta que o despacho de pronúncia só deve ser proferido se se puder formular um juízo de probabilidade de aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança.
Não se exigindo um juízo de certeza quanto à condenação, no entanto é pressuposto que a prova existente em inquérito ou na instrução apontem, se mantida e contraditoriamente comprovada em audiência, para uma probabilidade quase certa de condenação.
A definição legal do que são indícios suficientes integra-se na orientação perfilhada pela doutrina e jurisprudência que era seguida no domínio de vigência do Código de Processo Penal de 1929, onde se realça, entre outras fórmulas, a de LUÍS OSÓRIO que referia: “devem considerar- se indícios suficientes aqueles que fazem nascer em quem os aprecia a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado”. Cfr. Comentário ao Código de Processo Penal Português, vol. IV, pág. 441.
O Dr. JORGE NORONHA E SILVEIRA observa que na resposta à questão do que seja a possibilidade razoável de condenação podem distinguir-se, na doutrina e jurisprudência, três correntes fundamentais:
- uma primeira solução afirma que basta uma mera possibilidade, ainda que mínima, de futura condenação em julgamento;
- numa segunda resposta possível, é necessário uma maior probabilidade de condenação do que de absolvição;
- e uma terceira via defende ser necessária uma possibilidade particularmente forte de futura condenação.
Depois de esclarecer que certos autores advogam esta terceira interpretação da suficiência de indícios como forte possibilidade de condenação, sem verdadeiramente a autonomizar da segunda interpretação referida, adota a terceira posição, mas com o sentido de que para a acusação, como para a pronúncia, se exige a mesma exigência de prova e de convicção probatória requerida pelo julgamento final, atendendo, designadamente, ao facto de naquelas primeiras fases processuais já se encontrarem recolhidas todas as provas da acusação e de o princípio da presunção da inocência vigorar para todo o processo penal (Cfr. Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, pág. 161).
No dizer do Prof. GERMANO MARQUES DA SILVA, nesta fase processual a lei «… não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final.» Ou seja, «Na pronúncia o juiz não julga a causa; verifica se se justifica que com as provas recolhidas no inquérito e na instrução o arguido seja submetido a julgamento para ser julgado pelos factos da acusação.». Cfr. “Curso de Processo Penal” , Editorial Verbo, 1994, vol. III , páginas 179 a 182.
Conforme ensinava Prof. FIGUEIREDO DIAS, ainda na vigência do Código de Processo Penal de 1929, na interpretação do conceito normativo indícios suficientes, considerar que «… os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.». Cfr. “Direito Processual Penal”, 1.º Vol. Coimbra Editora, 1974, pág. 133.
O Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 439/02, após considerar que o princípio in dubio pro reo não deve ser excluído da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia, decidiu «julgar inconstitucionais os artigos 286.º, n.º 1, 298.º, e 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por violação do artigo 32º, nº 2, da Constituição, interpretados no sentido de que a valoração da prova indiciária que subjaz ao despacho de pronúncia se bastar com a formulação de um juízo segundo o qual não deve haver pronúncia se da submissão do arguido a julgamento resultar um ato manifestamente inútil.». In, www.tribunalconstitucional.pt.
No Acórdão da Relação do Porto de 19/12/2023 proc. 133/21.0PAVCD.P1 relatora PAULA NAERCIA ROCHA foi sumariado que: “I - Na instrução pretende-se apurar a existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança”. II - São indícios suficientes os vestígios, sinais, suspeitas, presunções, indicações que, logicamente relacionados e conjugados, criam a convicção que, mantendo-se em julgamento, o arguido virá a ser condenado. É o que exige o art.º 283.º, n.º 2, aplicável por força do disposto no art.º 308.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, quando estipula que “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”. III - Portanto, os indícios são suficientes quando permitem a formação de um juízo de probabilidade sobre a culpabilidade do arguido, com a produção da convicção de que ele poderá vir a ser condenado.” in www.dgsi.pt
Pelo Tribunal da Relação de Coimbra de Coimbra, no Acórdão de 23 de maio de 2018, processo 80/16.7GBFVN.C1 relator ORLANDO GONÇALVES foi colhido o entendimento de que: I - As provas recolhidas nas fases preliminares do processo penal não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas, tão só, da decisão processual no que respeita à prossecução do processo até à fase de julgamento. II - O juízo de probabilidade razoável de condenação enunciado no n.º 2 do art. 283.º do CPP, aplicável à pronúncia ou não pronúncia, não equivale ao juízo de certeza exigido ao Juiz na condenação. III - Os indícios são suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição. IV - O Juiz de Instrução, aquando da prolação do despacho de pronúncia ou não pronúncia, deve ter presente na valoração da prova o princípio in dubio pro reo.” in www.dgsi.pt
No Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07/01/2025 processo 1490/21.39LRS.L1-5 relatora Ana Cristina Cardoso: I - A instrução consubstancia uma fase de controlo da fase anterior do processo (o inquérito), onde foi proferida a decisão de acusar ou de arquivar, com o objetivo de apurar se tal decisão deve ser mantida ou não, se se comprova ou não. II - No despacho de pronúncia ou de não pronúncia o juiz não julga a causa: apenas verifica se se justifica que, com as provas recolhidas no inquérito e na instrução, o arguido seja submetido a julgamento pelos factos da acusação ou do requerimento de abertura da instrução. A lei só admite a submissão a julgamento desde que a prova dos autos resulte uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força dela, uma pena ou uma medida de segurança. in www.dgsi.pt
Também no Acórdão da Relação de Lisboa de 22/10/2024 processo 105/20.1T9PTS.L2-5 relatora ALDA TOMÉ CASIMIRO foi exarado o seguinte entendimento “Já se defendeu que para que os indícios fossem considerados suficientes bastaria a mera possibilidade de futura condenação em julgamento e também já se defendeu que os indícios só são suficientes se deles resultar uma forte ou séria possibilidade de condenação em julgamento, exigindo-se uma “possibilidade particularmente qualificada” ou uma “probabilidade elevada” de condenação. Todavia, hoje a jurisprudência é unânime em afirmar que a posição mais acertada é uma posição intermédia entre aquelas duas, denominada “teoria da probabilidade dominante”, e que é a que tem mais apoio na letra da lei. De acordo com esta tese, os indícios são suficientes para acusar ou pronunciar alguém sempre que, num juízo de prognose, se conclua que é mais provável a sua futura condenação do que a sua absolvição.(…)”. Pelo que os indícios serão suficientes sempre que, por via deles, o Juiz de instrução chegue a um juízo de prognose em que a condenação do arguido é mais provável do que a absolvição, caso em que deve proferir despacho de pronúncia.”
Assim, na posição maioritária acolhida na jurisprudência, o juízo sobre a suficiência dos indícios deverá passar pela probabilidade dominante/elevada, a qual se traduz num juízo de prognose não só da condenação ser mais provável que a absolvição, mas ainda que em julgamento será ultrapassada a barreira do in dubio pro reo.
Foi imputada ao arguido pelo assistente na acusação particular a prática, em autoria material, de um crime de difamação com publicidade e calúnia, p. e p. pelos arts. 180º n.º 1 e 183ºn.º 1 al. a) e 2, ambos do Código Penal (CP) pelas palavras proferidas pelo arguido, numa entrevista no telejornal Açores, da RTP Play do dia ... de ... de 2023 pelas 20:00h, na qual, além do mais, refere ter sido levada a efeito «uma contratação de uma comissária política, porque nem sequer foi contratada com concurso público, para gerir toda a área de oncologia, tendo acabado de se formar na área da radioncologia; sem experiência absolutamente nenhuma de gestão. Excelentes qualidades técnicas, reconhecidas pelos seus pares, mas na forma como foi contratada, nas funções que lhe foram atribuídas, as consequências eram previsíveis e estão à vista: o mau ambiente, os bloqueios na ligação, que eu diria exemplar que sempre existiu desde o início entre os cuidados hospitalares e a clínica de radioncologia DD (…) isso foi seriamente prejudicado»
Estipula o artigo 180.º, do Código Penal relativo ao crime de difamação que «1 - Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias. 2 - A conduta não é punível quando: a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira. 3 - Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 2 do artigo 31.º, o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar. 4 - A boa fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.»
Já no artigo 183.º, (publicidade e calúnia) do mesmo diploma legal prevê-se que se no caso do crime de difamação: «1 – (…) a) A ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação; ou, b) Tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação; as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo. 2 - Se o crime for cometido através de meio de comunicação social, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa não inferior a 120 dias.»
Por sua vez, quando a vítima do crime seja um funcionário público no exercício das suas funções ou por causa delas a pena é elevada de metade nos seus limites mínimo e máximo, nos termos dos artigos 184.º (Agravação) e 132.º, n.º 2, alínea l), do referido Código.
Em termos sistemáticos, o presente normativo legal, encontra-se integrado no Título I, relativo aos crimes contra as pessoas, e dentro deste, no Capítulo VI, relativo aos crimes contra a honra.
Para que o tipo de ilícito de difamação seja cometido é necessário ao nível dos elementos objectivos do tipo que:
a. Alguém se dirija a terceiro sem a presença do ofendido;
b. Impute a esse ofendido mesmo sob a forma de suspeita, um facto ou formule sobre ele um juízo, ou reproduza uma tal imputação ou juízo;
c. Ofensivo da sua honra ou consideração.
Entende-se por facto o acontecimento ou situação pertencente ao passado ou ao presente susceptível de prova, e por juízo de valor toda a afirmação contendo uma apreciação sobre o carácter do ofendido que não esteja inscrita em factos.
A delimitação tem importantes consequências práticas pois que as afirmações que contêm um juízo de valor impedem a aplicação da causa de justificação (exceptio veritatis) do n.º2 do art.º 180.º, do CP. Sendo que quando coexistem numa mesma afirmação factos e juízos de valor, ou estes se ocultem por detrás de factos prevalece, para efeitos de qualificação jurídica, a componente fáctica da afirmação (Cfr. Augusto Silva Dias, Alguns Aspectos do Crime de Difamação e de Injúrias, A.A.F.D.L, 1989 ).
No que concerne à natureza do tipo de ilícito de difamação, para uns trata-se de um crime de dano, para outros um crime de perigo, e dentro desta categoria, um crime de perigo abstracto-concreto (veja-se Augusto Silva Dias, obra citada e AJ Oliveira Mendes, O direito à Honra e a Sua Tutela Penal, pág. 44 e ss.).
Tendo em consideração que a lei distingue entre juízos de valor desonrosos e imputações de factos desonrosos, é imprescindível, para uma melhor compreensão do fenómeno, fazer a distinção entre facto e juízo.
A referida distinção também será importante para os casos em que a noção e facto são um ponto essencial para a exclusão do ilícito (imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar, nº 3 do artigo 180.º do CP).
A difamação consiste na imputação a alguém, levada a terceiros e na ausência do visado, de facto ou de juízo que encerre em si uma reprovação ético-social por serem ofensivos da honra e consideração do ofendido, enquanto pretensão de respeito que decorre da dignidade da pessoa humana e pretensão ao reconhecimento dessa dignidade por parte dos outros, quer no período moral, intelectual, sexual, familiar, profissional ou político (aqui seguimos de perto o Acórdão da Relação de Guimarães de 05/03/2018, in www. dgsi.pt).
Tendo em consideração que a lei distingue entre juízos de valor desonrosos e imputações de factos desonrosos, é imprescindível, para uma melhor compreensão do fenómeno, fazer a distinção entre facto e juízo.
Facto é aquilo que é ou acontece – a sua existência é incontestável, e tem um tempo e espaço precisos e determináveis. É o acontecimento da vida real cuja revelação atinge a honra do seu protagonista. Um facto pode ser comunicado sob a forma de uma suspeita e sob a forma de uma preposição incompleta sobre a realidade, omitindo-se a parte da realidade favorável ao visado. A imputação de factos desonrosos não é ilícita quando é verdadeira e prossegue interesses legítimos.
Por seu lado, o juízo deve ser entendido relativamente ao grau de consecução dessa ideia, coisa ou facto. É um raciocínio cuja revelação atinge a honra da pessoa, podendo ser formulado de modo afirmativo, negativo ou dubitativo. Um juízo de valor não é ilícito quando resulta do exercício da liberdade de expressão, da liberdade de imprensa e da liberdade de criação artística.
Ao nível do tipo subjectivo do ilícito de difamação, é pacífico na jurisprudência e na doutrina não ser necessário que o agente tenha procedido com animus injuriandi vel diffamandi ou dolo específico, bastando o dolo genérico traduzido na consciência de que as expressões utilizadas são de molde a produzirem ofensa da honra e consideração da pessoa visada, podendo revestir qualquer das modalidades do dolo previstas no art.º 14.º, do CP, bastando a consciência da genérica perigosidade da conduta ou do meio da acção previstos nas normas incriminadoras respectivas e que o agente saiba que está a atribuir um facto, ou a formular um juízo de valor cujo significado é ofensivo da honra ou consideração alheias o que conhece, e o queira fazer, traduzindo-se na vontade livre de praticar o acto com a consciência de que as expressões utilizadas ofendem a honra e consideração alheias, ou pelo menos são aptas a causar aquela ofensa, e que tal acto é proibido por lei. (neste sentido Ac. do TRL proferido em 11/04/2024 processo 7971/20.9T8LSB-9 relator JORGE ROSAS DE CASTRO in www.dgsi.pt).
Trata-se de um crime comum, sendo que o bem jurídico protegido por este normativo é a honra e a consideração social, bem este que constitui um direito fundamental consagrado no artigo 26.°, n.º1, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
A Constituição da República Portuguesa estabelece logo no seu art. 1º que a República Portuguesa baseia-se na dignidade da pessoa humana.
Consignou o legislador Constitucional, no art. 26º, nº 1,da CRP que «A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.»
O direito ao bom-nome e reputação “consiste essencialmente no direito a não ser ofendido ou lesado na sua honra, dignidade ou consideração social mediante imputação feita por outrem, bem como no direito a defender-se dessa ofensa e a obter a competente reparação”16.
Também para a lei ordinária a personalidade moral, o bom-nome e consideração social das pessoas, são valores tutelados, conforme resulta dos artigos 180.º a 184.º, do CP, 70º e 484º do Código Civil.
No art.º 70º, do Código Civil, a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral. E independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida (Cfr. nºs 1 e 2).
Já no art.º 484º, do Código Civil, estatuiu-se que quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom-nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados. Ao proteger-se o bom-nome de qualquer pessoa, está-se a tutelar um dos elementos essenciais da dignidade humana, a qual é inata a todos os seres humanos: a sua honra.
Em sentido lato, a honra abrange o bom nome e reputação, enquanto síntese do apreço social pelas qualidades determinantes da unicidade de cada indivíduo e pelos demais valores pessoais adquiridos pelo indivíduo no plano moral, intelectual, sexual, familiar, profissional ou político, engloba o simples decoro, como projecção dos valores comportamentais do indivíduo no que se prende ao trato social, e envolve o crédito pessoal, como projecção social das aptidões e capacidades económicas desenvolvidas por cada homem17.
Por conseguinte, pode dizer-se que o direito à honra, enquanto bem jurídico a proteger, é uma das mais importantes concretizações da tutela dos direitos de personalidade. “A honra é a dignidade pessoal pertencente à pessoa enquanto tal, e reconhecida na comunidade em que se insere e em que coabita e convive com as outras pessoa. A perda ou lesão da honra – a desonra – resulta, ao nível pessoal, subjectivo, na perda e no respeito que a pessoa tem por si própria. (…) A honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale, e que a consideração é aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal forma que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa ao desprezo público”18.
Daqui se extrai a honra interna ou subjectiva, resultante do auto-reconhecimento e da auto-avaliação, em que o homem se coloca perante si mesmo como objecto de percepção e valoração.
O direito ao bom-nome e reputação consiste essencialmente no direito a não ser ofendido ou lesado na sua honra, dignidade ou consideração social mediante imputação feita por outrem, bem como no direito a defender-se dessa ofensa e a obter a competente reparação. Neste sentido, este direito constitui um limite para outros direitos (designadamente, a liberdade de informação e de imprensa).” – cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª Edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. pág. 181.
No dizer de Rabindrath Capelo de Sousa, a honra “abrange desde logo a projecção do valor da dignidade humana, que é inata, ofertada pela natureza igualmente para todos os seres humanos, insusceptível de ser perdida por qualquer homem em qualquer circunstância… Em sentido amplo inclui também o bom nome e reputação, enquanto sínteses do apreço social pelas qualidades determinantes da unicidade de cada indivíduo no plano moral, intelectual, sexual, familiar, profissional ou político” -O Direito Geral da Personalidade, pp. 303-304 apud acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-05-2002, relator Ferreira Ramos, CJ (STJ), II, pág. 65.
A personalidade e com ela a honra, acabam por criar no homem uma certa e determinada imagem, a qual se reflecte perante os outros homens e mesmo perante a sociedade em geral. A esta chamamos a honra externa ou objectiva e traduz-se no respeito e consideração que cada pessoa merece ou de que goza na comunidade19.
O art. 16º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa estipula que “Os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional”, acrescentando o n.º 2 que os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, significando este princípio que “no caso de polissemia ou plurissignificação de uma norma constitucional de direitos fundamentais, deve dar-se preferência aquele sentido que permita uma interpretação conforme à Declaração Universal, devendo recorrer-se ao sentido desses conceitos na Declaração Universal, salvo se esse sentido for contra constituionem.” – cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, pág. 138.
O art. 12º da Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe que “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei.”
Posto isto, há que reconhecer a existência, na esfera pessoal do ofendido/assistente dos autos, do direito subjectivo e objectivo à honra interna e externa, o direito ao bom nome, reputação e à imagem e consideração social e profissional, valores que se inscrevem no âmbito dos direitos de personalidade. Confrontam-se amiúde o direito à imagem, ao nome, à honra e reputação e o direito à liberdade de expressão.
Também este último direito encontra protecção constitucional e internacional, a que o Estado português está vinculado por força do art.º 8º, da C.R.P.
Dispõe-se o art. 19º, da Declaração Universal dos Direitos Humanos que «Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e da procurar, receber e difundir, sem considerações de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão».
A Convenção Europeia dos Direitos do Humanos, prevê no seu art. 10º, que « (n.º 1) Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem consideração de fronteiras. (n.º 2) O exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas na lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde e da moral, a protecção da honra e dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial»20.
Na lei interna, encontramos o direito à liberdade de expressão no art. 37º da CRP, sob a epígrafe de Liberdade de expressão e informação que dispõe que: “1.– Todos têm direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações. 2.– O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura. 3.– As infrações cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respetivamente da competência dos Tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos da lei. 4.– A todas as pessoas, singulares ou coletivas, é assegurado, em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e de retificação, bem como o direito a indemnização pelos danos sofridos.”
O direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento pela palavra pode entrar em rota de colisão com a pretensão individual e constitucionalmente consagrada de cada cidadão não ser depreciado aos olhos da comunidade. É que a liberdade de expressão não é um direito absoluto, e deve ser compatibilizada nomeadamente com o direito à honra, que assume relevância idêntica na hierarquia dos direitos que têm tutela constitucional, questão esta que nos reconduz à problemática da conflitualidade entre direitos fundamentais.
A previsão de limites ao direito de expressão decorre do nº 3 do art. 37º da C.R.P., no qual se estabelece a submissão das infracções cometidas no exercício dos direitos de expressão e informação aos princípios gerais de direito criminal, atribuindo-se a competência para a sua apreciação aos tribunais judiciais. Essas infracções traduzem-se na violação de outros direitos ou interesses com garantia constitucional, como o direito ao bom-nome e reputação, reconhecido no nº 1 do art. 26º da C.R.P., com o qual o direito de expressão não raras vezes conflitua.
É claro que, nem todo o comportamento incorrecto de um indivíduo merece tutela penal, como é normal, entre os membros de uma comunidade há um certo grau de conflitualidade e animosidade, ocorrendo situações em que os cidadãos se podem expressar de forma deselegante ou indelicada, só devendo o direito intervir nas situações em que é atingido o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade humana.
A Doutrina Constitucional convoca, quando se está perante conflitos de direitos constitucionais de igual intensidade ou idêntica valência normativa, como o são os em causa nos autos, as linhas metódicas e argumentativas de ajuizarmos segundo um princípio de concordância prática e da ponderação dos direitos e interesses em causa (neste sentido José de Faria Costa, O Círculo e a Conferência: em redor do Direito penal da Comunicação, pág. 13 e ss.).
Refere Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 4ª ed., p. 496, que “a solução destes casos de conflito não é tarefa fácil, recorrendo muitas vezes a doutrina e jurisprudência ao “critério da ponderação de bens”, ao “princípio da concordância prática”, à “análise do âmbito material da norma” e ao “princípio da proporcionalidade”.
No seu Acórdão nº 81/84, D.R., II Série, de 31-01-1985, do Tribunal Constitucional, Relator: Conselheiro MESSIAS BENTO, considerou que: “a liberdade de expressão ¯ como, de resto, os demais direitos fundamentais ¯ não é um direito absoluto, nem ilimitado. Desde logo, a proteção constitucional de um tal direito não abrange todas as situações, formas ou modos pensáveis do seu exercício. Tem, antes, limites imanentes. O seu domínio de proteção para ali onde ele possa pôr em causa o conteúdo essencial de outro direito ou atingir intoleravelmente a moral social ou os valores e princípios fundamentais da ordem constitucional. (...) Depois, movendo-se num contexto social e tendo, por isso, que conviver com os direitos de outros titulares, há de ele sofrer as limitações impostas pela necessidade de realização destes. E, então, em caso de colisão ou conflito com outros direitos ¯ designadamente com aqueles que se acham também diretamente vinculados à dignidade da pessoa humana [v.g. o direito à integridade moral (artigo 25º, nº 1) e o direito ao bom nome e reputação e à reserva da intimidade da vida privada e familiar (artigo 26º, nº 1)]¯, haverá que limitar-se em termos de deixar que esses outros direitos encontrem também formas de realização”.
No seu Acórdão nº 67/99, de 3.2.99, relator PAULO MOTA PINTO, acessível em www.tribunalconstitucional.pt, o Tribunal Constitucional reiterou que: “ (…) a liberdade de expressão e a liberdade de informação – que, como a liberdade de imprensa, se encontram numa “relação intrinsecamente conflitual” com certos bens jurídicos pessoais (…) não podem deixar de conhecer restrições para tutela da inviolabilidade pessoal, e, em particular, de bens pessoais como a honra e intimidade da vida privada”. Entre os outros direitos constitucionalmente protegidos e que atuam como limites imediatos à liberdade de imprensa estão, de facto, a integridade moral e física das pessoas (Artigo 25º, nº1, da Constituição) e os direitos ao desenvolvimento da personalidade, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à reserva da intimidade da vida privada e familiar (Artigo 26º, nº1, da Constituição).
Em jeito de resumo de Jónatas Machado, ”Liberdade de Expressão, Interesse Público e Figuras Públicas e Equiparadas”, ensina que: «(…) o TEDH tem vindo a enfatizar de forma consistente a centralidade do direito à liberdade de expressão, imprensa e radiodifusão, consagrado no artigo 10º do CEDH, enquanto elemento conformador e estruturante de uma sociedade democrática, com inevitáveis limitações para os direitos de personalidade, especialmente de figuras públicas. O TEDH tem sustentando que a imprensa desempenha um papel eminente numa sociedade democrática. Se é verdade que isso não significa que ela tem direito de ultrapassar certos limites, nomeadamente respeitantes à proteção da reputação ou de outros direitos, também é verdade que lhe incumbe comunicar, no respeito dos seus deveres e das suas responsabilidades, informações e ideias sobre todas as questões de interesse geral. Acresce que, no entender do TEDH, essa função difusora de informações e ideias não pode ser separada do direito dos cidadãos de as receberem. A imprensa deve poder desempenhar a sua função de “cão de guarda” do Estado de direito democrático. (…) tem-se verificado uma nítida dessintonia entre o entendimento dos tribunais nacionais e o do TEDH, que tende a afirmar o seu direito de supervisão europeia e a reduzir a margem de apreciação dos Estados, apontando claramente para uma interpretação dos direitos de personalidade de uma forma restritiva, que não comprometa o papel central da liberdade de expressão, de informação e de imprensa numa sociedade democrática.» in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, V. 85 (...), p. 80.
Em sucessivos acórdãos incidindo sobre aplicação do art.º 10.º, da CEDH, o TEDH tem sublinhado a necessidade de se proceder a uma valoração do conteúdo e sentido das expressões em causa, inserindo-as no contexto em que surgiram, considerando que mesmo os juízos de valor susceptíveis de reunirem apenas um conteúdo ofensivo, podem merecer a proteção da liberdade de expressão, desde que sejam dotados de uma base factual mínima e de uma explicação objectivamente compreensível de crítica sobre realidades objectivas em assuntos de interesse público ou em debate de natureza política.
O TEDH tem asseverado, repetidamente, a título de exemplos, nos seguintes Acórdãos:
- Acórdão Oberschlick contra Áustria, de 1.7.97: «A liberdade de expressão vale não somente para as “informações” ou “ideias” favoráveis, inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que ofendem, chocam ou inquietam. Esses princípios assumem particular importância no domínio da imprensa. Se ela não deve ultrapassar os limites em vista, nomeadamente, da reputação de outrem, incumbe-lhe, contudo, transmitir informações e ideias sobre questões políticas bem como sobre outros temas de interesse geral. Os limites da crítica admissível são mais largos quando é visado um político, agindo na sua qualidade de personalidade pública, do que quando é visado um simples particular. O homem político expõe-se inevitável e inconscientemente a um controlo atento das suas ações e gestos, quer pelos jornalistas quer pelos cidadãos, e deve revelar uma maior tolerância, sobretudo quando produz declarações públicas que se possam prestar à crítica.» «(…) a liberdade do jornalista compreende também a possibilidade de recurso a uma certa dose de exagero ou até mesmo de provocação. O direito à liberdade de expressão, consagrado no artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e uma das condições primordiais do seu progresso e do direito de manifestação de cada um. A liberdade de expressão vale não somente para as “informações” ou “ideias” favoráveis, inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que ofendem, chocam ou inquietam. Assim o recomendam o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura, sem os quais não há “sociedade democrática”. (…) (sublinhado nosso).
-Acórdão Lopes Gomes da Silva contra Portugal, de 28.9.2000. Exige-se uma interpretação restritiva das exceções ou condicionamentos à liberdade de expressão previstos no nº2 do art. 10º da Convenção. A ingerência litigiosa que configure um condicionamento deve corresponder a uma necessidade social imperiosa e ser proporcional ao objetivo legítimo pretendido.»
Também nos Acórdão seguintes: - Gouveia Gomes Fernandes and Freitas e Costa v. Portugal (no. 1529/08) na qual o TEDH considerou que foi violado o direito à liberdade de expressão, tendo condenado o Estado Português num caso em que dois advogados foram condenados pelos tribunais portugueses por difamação na sequência de terem realizado comentários na imprensa alegando o envolvimento de um juiz em corrupção, os quais foram considerados como ofensivos da honra de um juiz. - Cornelia Popa v. Romania (no. 17437/03) o TEDH considerou que se estava perante a violação do direito à liberdade de expressão num caso em os tribunais romenos condenaram uma jornalista por ter publicado um artigo em que criticava a conduta profissional de um juiz. - Veiga Cardoso V. Portugal (no. 48979/19), na qual EE, pai no âmbito de um processo do Tribunal de Família e Menores, se referiu ao procurador do processo como «isto é um enxovalho, aquilo não é um tribunal não é nada, aquele procurador, (…) é um indivíduo que bebe uns copos ou sei lá, não abre a boca.», e por isso foi condenado por difamação agravada, tendo o TEDH considerado que mais uma vez, o Estado Português desrespeitou o artigo 10.º da CEDH, pois que no seu entender, tais palavras foram proferidas em reação à implementação de visitas supervisionadas da sua filha, constituíram uma forma de desabafo, uma crítica ao aspeto profissional do desempenho do procurador e à sua falta de ação perante aquele processo.
-Igualmente nos acórdão do já referido aresto proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 11/04/2024 processo 7971/20.9T8LSB-9 relator JORGE ROSAS DE CASTRO in www.dgsi.pt e, porque pertinente, se reproduz nesta parte: “(…) importa sempre atentar ao circunstancialismo da situação concreta, em todas as suas valências [Acs. do TEDH Von Hannover v. Germany (no. 2) (GC), nºs. 40660/08 e 60641/08, de 7/12/2012, §§ 104-107, e Axel Springer AG v. Germany, nº 39954/08, de 7/02/2012, §§ 85-88), Couderc and Hachette Filipacchi Associés v. France [GC], nº 40454/07, de 10/11/2015, §§ 90-93, e Perinçek v. Switzerland (GC), nº 27510/08, de 15/10/2015, § 198]. Continuando a olhar para a jurisprudência de Estrasburgo, é patente com efeito a importância nela reconhecida à liberdade de expressão, e importa perceber o contexto e os termos em que uma tal importância é afirmada com essa ordem de grandeza, a partir de alguns pontos de apoio: - a liberdade de expressão é apontada como um dos fundamentos essenciais de qualquer sociedade democrática e uma das condições primordiais para a sua promoção e para o desenvolvimento de cada indivíduo, sendo que são marcas fulcrais de qualquer sociedade democrática as ideias de pluralismo, tolerância e espírito de abertura…; - …e dentro da liberdade de expressão ganha particular realce o desempenho de quem observa, acompanha e vigia a coisa pública, os chamados «public watchdogs», como sejam a imprensa (Ac. do TEDH Barthold v. Germany, nº 8734/79, de 25/03/1985, § 58); os bloggers e outros utilizadores de redes sociais (Ac. do TEDH Falzon v. Malta, nº 45791/13, de 20/03/2018, § 57); e organizações não governamentais (Ac. do TEDH Association Burestop 55 and Others v. France, nºs 56176/18 e cinco outros, de 1/07/2021, § 88); ou o papel de quem participa no debate político ou de outros assuntos de interesse público (Ac. do TEDH Castells v. Spain, nº 11798/85, de 23/04/1992, §§ 42-43); - dada a importância da liberdade de expressão, as limitações previstas no art.º 10º, nº 2 da CEDH devem ser interpretadas em termos estritos, devendo a «necessidade» de cada uma de tais limitações ser estabelecida de forma convincente (Acs. do TEDH Lingens v. Austria, nº 9815/82, de 8/07/1986, § 41, e Nilsen et Johnsen v. Norway [GC], no 23118/93, § 43), tanto mais que, acrescente-se, uma condenação nesta área pode produzir um efeito dissuasor («chilling effect») sobre a prática daquela liberdade, o que é particularmente delicado em assuntos de interesse público (Acs. do TEDH Karsai v. Hungary, nº 5380/07, de 1/12/2009, § 36 e Magyar Jeti Zrt v. Hungary, nº 11257/16, de 4/12/2018, § 83).(…) Como recentemente sintetizado nesta matéria pelo TEDH, sempre que estejam em causa questões de interesse público, a CEDH garante uma proteção alargada da liberdade de expressão, e o contrário ocorre quando se esteja diante discursos ou práticas de violência, ódio, xenofobia ou outras formas de intolerância (Ac. do TEDH Zearguido BBour21v. France, nº 63539/19, de 20/12/2022, § 49).” (sublinhado nosso)
Progressivamente, o Supremo Tribunal de Justiça foi assumindo os parâmetros valorativos adotados pelo TEDH, sendo exemplo disso os seguintes acórdãos todos em www.dgsi.pt :
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6.9.2016, Relator JOSÉ RAINHO, 60/09: «I.-A Constituição da República Portuguesa não estabelece qualquer hierarquia entre o direito ao bom nome e reputação, e o direito à liberdade de expressão e informação, nomeadamente através da imprensa. Quando em colisão, devem tais direitos considerar-se como princípios suscetíveis de ponderação ou balanceamento nos casos concretos, afastando-se qualquer ideia de supra ou infravaloração abstrata. II.-De acordo com a orientação estabelecida pelo TEDH e que os tribunais nacionais terão que seguir, as condicionantes à liberdade de expressão e de imprensa devem ser objeto de uma interpretação restritiva e a sua necessidade deve ser estabelecida de forma convincente.»
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.7.2017, Relator LOPES DO REGO, 1405/07: «Ocorrendo conflito entre os direitos fundamentais individuais – à honra, ao bom nome e reputação - e a liberdade de imprensa, não deve conferir-se aprioristicamente e em abstrato precedência a qualquer deles, impondo-se a formulação de um juízo de concordância prática que valore adequadamente as circunstâncias do caso e pondere a interpretação feita, de modo qualificado, acerca da norma do art.. 10º da CEDH pelo TEDH - órgão que, nos termos da CEDH, está especificamente vocacionado para uma interpretação qualificada e controlo da aplicação dos preceitos de Direito Internacional convencional que a integram e que vigoram na ordem interna e vinculam o Estado Português - e tendo ainda necessariamente em conta a dimensão objetiva e institucional subjacente à liberdade de imprensa, em que o bem ou valor jurídico que, aqui, é constitucionalmente protegido se reporta, em última análise, à formação de uma opinião pública robusta, sem a qual se não concebe o correto funcionamento da democracia.» Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.12.2020, Relatora Fátima Gomes, 24555/17: «II.- Nos casos em que haja necessidade de ponderar se a liberdade de expressão ofende o direito ao bom nome de uma pessoa, legitimando a reprovação da ordem jurídica, importa um balanceamento concreto (não podendo aferir-se em abstrato). III.- Neste sentido, a mais recente orientação jurisprudencial do STJ tem entendido ser de exigir um juízo de prognose sobre a hipotética decisão que o TEDH adotaria se o caso lhe tivesse sido submetido, no sentido de se verificar se é de admitir como muito provável que, se a questão viesse a ser colocada ao TEDH, tal órgão jurisdicional entenderia que os artigos em causa extravasariam os limites toleráveis do exercício da liberdade de expressão e informação.» Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-04-2009 - Proc. n.º 104/02.5TACTB - A.S1 - 5.ª Secção Relator RODRIGUES DA COSTA, em recurso de revisão na sequência de decisão do TEDH: I - O recorrente foi condenado pela prática de um crime de difamação, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 10 ou 66 dias de prisão subsidiária, sendo certo que, com base no mesmo quadro factual, o TEDH concluiu que a condenação do requerente “resultaria num entrave substancial da liberdade de que devem beneficiar os investigadores no âmbito do seu trabalho científico”, pelo que, no caso concreto, foi violado o art.º 10.º da CEDH, assim sendo condenado Portugal, na sua qualidade de subscritor dessa Convenção - Ac. de 27-03-2008. II- Esta decisão, proferida por uma instância internacional e que vincula o Estado Português, está frontalmente em oposição com a decisão condenatória proferida pelos Tribunais portugueses. III - O TEDH, na esteira, aliás, de jurisprudência abundante, onde se contam várias decisões condenando o Estado Português, considerou que, estando em causa a liberdade de expressão em matéria científica e portanto, em matéria de relevante interesse público, a liberdade de expressão goza de uma ampla latitude, só se justificando uma ingerência restritiva do Estado, mesmo por meio dos tribunais, desde que a restrição constitua uma providência necessária, numa sociedade democrática, entre outros objectivos, para garantir a protecção da honra ou dos direitos de outrem, em conformidade com o n.º 2 do art. 10.º da Convenção, sendo que essa excepção tem de corresponder a uma “necessidade social imperiosa”. IV - No caso sub judice, o TEDH teve como não verificada essa condição, afirmando a primazia da liberdade de expressão, considerando que a condenação do requerente não representou um meio razoavelmente proporcional, com vista ao cumprimento do objectivo legítimo visado, tendo em conta o interesse da sociedade democrática em assegurar e manter a liberdade de expressão. V - Verifica-se inconciliabilidade de decisões e, mais do que isso, oposição de julgados, visto que, enquanto que os Tribunais portugueses consideraram violado o direito à honra da assistente e condenaram o recorrente com esse fundamento, o TEDH considerou que aquela violação se continha dentro dos limites do art. 10.º da Convenção, sendo a sua condenação desproporcionada e não justificada como meio de defesa do direito à honra, em face do direito à liberdade de expressão. VI - A CEDH foi acolhida pela CRP (art. 16.º) e o Estado Português ratificou-a pela Lei 65/78, de 13-10; tendo sido depositada em 09-11-1978, entrou em vigor nessa data, passando a vincular o Estado Português; assim sendo e dada a inconciliabilidade de decisões, há fundamento para a pretendida revisão de sentença.
- Acórdão do STJ de 31/01/2017 Processo: 1454/09.5TVLSB.L1.S1 Relator: ROQUE NOGUEIRA: I - A liberdade de expressão e a honra conformam dois direitos fundamentais, que, dada a sua relevância, mereceram a consagração constitucional. II – Trata-se de direitos pertencentes à categoria dos direitos, liberdades e garantias pessoais, pelo que lhes é aplicável o seu regime específico, designadamente o previsto no nº2, do art.18º, da CRP. III - O citado nº2 deu, assim, expressa guarida constitucional ao princípio da proporcionalidade, também chamado princípio da proibição do excesso. IV - À luz da Constituição, a liberdade de expressão e a honra têm o mesmo valor jurídico, inviabilizando-se qualquer princípio de hierarquia abstracta entre si. V - Importa, assim, recorrer ao princípio da concordância prática ou da harmonização. VI - Todavia, revelando-se impossível alcançar uma solução de harmonização, para se obter uma solução justa para a colisão de direitos haverá que proceder a uma ponderação de bens, seguindo-se uma metodologia de balanceamento adaptada à especificidade do caso. VII - Razão pela qual a resolução do conflito não poderá deixar de assumir uma natureza concreta, esgotando-se em cada caso que resolve. VIII - A resolução concreta do conflito entre a liberdade de expressão e a honra das figuras públicas, no contexto jurídico europeu, onde nos inserimos, decorre sob a influência do paradigma jurisprudencial europeu dos direitos humanos. IX - O TEDH, interpretando e aplicando a CEDH, tem defendido e desenvolvido uma doutrina de protecção reforçada da liberdade de expressão, designadamente quando o visado pelas imputações de factos e pelas formulações de juízos de valor desonrosos é uma figura pública e está em causa uma questão de interesse político ou público em geral. X - Perante uma orientação jurisprudencial estabilizada junto do TEDH, como acontece em casos como o dos autos, os tribunais portugueses não poderão deixar de se influenciar pelo paradigma europeu dos direitos humanos. XI - Em sede de ponderação dos interesses em causa e seguindo-se uma metodologia de balanceamento adaptada à especificidade do caso, é de concluir ser a liberdade de expressão que, no caso concreto, carece de maior protecção. XII - Sendo que, no caso, atenta a matéria de facto apurada, o exercício da liberdade de expressão se conteve dentro dos limites que se devem ter por admissíveis numa sociedade democrática hodierna, aberta e plural, atentos os aludidos critérios de ponderação e o referido princípio da proporcionalidade, o que exclui a ilicitude da lesão da honra dos recorrentes.(…)
Os Tribunais da Relação também têm vindo a adoptar os parâmetros valorativos adotados pelo TEDH, sendo caso disso os seguintes arestos:
-Acórdão do Tribunal da Relação de Évora 2013-05-28 (Processo nº 552/09.0GCSTB.E1), Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA, cujo sumário é o seguinte: I - A análise do artigo 180º (Difamação) do Código Penal português só pode fazer-se (e está dependente da leitura que se faça) à luz prevalecente do artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. II - A interpretação do equilíbrio entre liberdade de expressão e defesa da honra deve orientar-se para uma interpretação restritiva da defesa da honra e maximizadora da liberdade de expressão, realidade que é a expressa na ordem jurídica enformada pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem, como o é a portuguesa. III - Este sentido de análise normativo – artigo 180.º do Código Penal - restritivo da honra e expansivo da liberdade de expressão tem outras manifestações de cariz mais actual, a tendência para a extinção do tipo penal “difamação”, já assumida na vertente “media” ou jornalística, através da Resolução 1003 (1993) sobre ética em jornalismo, da Recomendação 1589 (2003) sobre liberdade de expressão nos media na Europa, retomadas pela Resolução 1535 (2007) sobre ameaças à liberdade de expressão de jornalistas e Resolução 1577 (2007), para a descriminalização da difamação (“Towards decriminalisation of defamation”). IV - Este movimento teve, recentemente, um acréscimo de autoridade através da publicação do “Coroners and Justice Act (2009) ”, que na sua parte 2ª, capítulo 3, Secção 73 aboliu a difamação (“libel”) na “commom law”. V - Pretende-se evitar os efeitos nefastos da existência de um vasto tipo penal de “difamação” que provoque o conhecido efeito de arrefecimento de condutas (“chilling effect”), surgindo as ameaças de prossecução por difamação como uma “particularmente insidiosa forma de intimidação”[Resolução CE 1577 (2007)], que tem sido utilizada na sociedade portuguesa de forma abundante, seja por pessoas, seja por empresas e organismos públicos ou privados, como forma de calar a oposição, impedir o exercício de direitos e impor formas mais ou menos subtis de censura ou de dominância. VI - Estes não são argumentos de interpretação do direito positivado em Portugal, mas são alertas confirmatórios no sentido da compreensão de uma interpretação restritiva do tipo penal “difamação” contido no artigo 180º do Código Penal à luz do artigo 10º da Convenção. VII - Essa interpretação restritiva da defesa da honra e maximizadora da liberdade de expressão deve manter-se na área comercial e concorrencial. [1]. -Acórdão da Relação do Porto 04-11-2020 2294/17.3T9VFR.P1 Relatora LILIANA DE PÁRIS DIAS: I - A ofensa à honra no crime de difamação pode ser perpetrada através da imputação de factos ou da formulação de juízos. II - Quando se trate da imputação de factos, ainda que sob a forma de suspeita, a conduta não é punível caso se verifiquem os pressupostos de exclusão de punibilidade do artigo 180º nº 2 do CP. III - Já quando se trate da formulação de juízos, a exclusão da ilicitude não está regulada nesse preceito mas sim na norma geral do artigo 31º do CP. IV - Tanto o direito à liberdade de expressão como o direito à honra têm consagração constitucional (art.ºs 37º e 26º da CRP), sendo que nenhum se pode afirmar de forma absoluta sobre o outro. V - Verificado que seja um conflito entre tais direitos, deverá procurar-se uma solução que passará pela realização óptima de cada um deles, harmonizando-os segundo um princípio de concordância prática, para o que se deverá atender aos dados do caso concreto, usando-os segundo critérios de proporcionalidade, razoabilidade e adequação. VI - Necessária se tornará a compressão do direito á honra para salvaguarda da liberdade de expressão, no qual se inclui o direito à crítica objectiva, que se vem traduzindo, na prática jurisprudencial, na exigência da verificação de ataques à honra ou reputação social com certo nível de gravidade, pois só nestas circunstâncias uma eventual condenação, com base na violação desse direito, não poderá ser considerada uma interferência ilegítima no direito de liberdade de expressão, consagrado no art.º 10º, § 1º, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. VII – O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem vem indicando as características básicas que definem uma sociedade democrática e o papel que nela desempenha a liberdade de expressão, não se cansando de repetir, que o regime democrático é o único compatível com o sistema instituído pela Convenção Europeia. VIII - Características básicas de um qualquer regime democrático estão as noções de pluralismo, de tolerância e de espírito de abertura. IX – O Tribunal Europeu tem sustentado consistentemente que a liberdade de expressão está no coração de um regime democrático, sendo muito liberal na protecção da liberdade de expressão, particularmente no domínio político, e isso, mesmo que a linguagem empregue seja objectivamente ofensiva e até algo provocatória, ou ainda que se trate de ideias que choquem ou perturbem. X - Como adverte Manuel da Costa Andrade, o exercício do direito de crítica tende a provocar situações de conflito potencial com bens jurídicos como a honra e cuja relevância jurídico-penal está à partida excluída por razões de atipicidade. Tal vale, designadamente para os juízos de apreciação e valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc., ou sobre prestações conseguidas no domínio do desporto e do espectáculo. XI - Segundo o entendimento hoje dominante, na medida em que não se ultrapassa o âmbito da crítica objectiva, isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores ou criadores – os juízos de valor caem já fora da tipicidade de incriminações como a Difamação. A atipicidade afasta, sem mais e em definitivo, a responsabilidade criminal do crítico, não havendo, por isso, lugar à busca da cobertura de uma qualquer dirimente da ilicitude. XII - Para além disso, devem ainda considerar-se atípicos os juízos de facto feitos no contexto de uma valoração crítica objectiva, pressuposta a prova da verdade, como sucederá com a denúncia de que um trabalho de investigação assenta em plágio; ou a afirmação de um crítico desportivo que atribui a prestação de um atleta ao facto de ele actuar sob a influência de estimulantes proibidos pelos regulamentos. XIII - Contudo, e como adverte Manuel da Costa Andrade, já não poderão considerar-se atípicos os juízos que, no extremo oposto, atingem a honra e consideração pessoal, perdendo todo e qualquer ponto de conexão com a prestação ou obra que, em princípio, legitimaria a crítica objectiva.
-Acórdão da Relação do Porto de 17/01/2024 Relator JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO processo 6148/19.5T9PRT.P2 onde foi exarado, além do mais, que: “De nada vale apregoar a retórica da mais ampla liberdade de expressão e critica num Estado de Direito, mormente em relação ao exercício dos cargos políticos, convocando a propósito a moderna jurisprudência dos nossos tribunais [5] e do TEDH [6] em torno do artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos [7] ali onde, na verdade, a cada caso, acaba por imperar a intolerância da critica relativa a essa mesma atividade ou ao funcionamento das instituições, por muito dura – ou mesmo infundada – que seja. Os princípios desenvolvidos pelo TEDH na área de crítica, especialmente a que incide sobre a política, e a distinção entre factos e opiniões foram reafirmados em muitos outros julgamentos, designadamente em Dalban v. Roménia (28/09/1999 (GC), Lopes Gomes da Silva v. Portugal (28/09/2000, §35) e Oberschlick v. Áustria (No. 2) (01/07/1997), enfatizando essa jurisprudência que, pese embora as opiniões constituam pontos de vista ou avaliações pessoais de um evento ou situação - e, por isso, insuscetíveis de serem comprovadas como verdadeiras ou falsas - os factos subjacentes, sobre os quais a opinião ou o juízo de valor assentam, podem ser comprovados como verdadeiros ou falsos. Consequentemente – a par de informações ou de dados objetivos que possam ser verificados - as opiniões, críticas ou especulações (que não podem ser submetidas à "prova da verdade") estão igualmente protegidas pelo art. 10º da CEDH; além disso, julgamentos de valor, em particular aqueles expressos no campo político, gozam de uma proteção especial, enquanto exigência do pluralismo de opiniões, cruciais numa sociedade democrática. Neste sentido, a Jurisprudência do TEDH tem considerado que a liberdade de expressão admite e impõe a aceitação, com alguns limites, de expressões ou outras manifestações que criticam, chocam, ofendem, exageram ou distorcem a realidade. Do mesmo modo que o TEDH tem sublinhado a necessidade de ponderar o sentido das expressões, integrando-as no contexto em que surgiram (…). Mais tem sido considerado pelo TEDH que os políticos e outras figuras públicas, com cargos públicos ou incumbidos de funções públicas, pela sua exposição, pela discutibilidade das suas ideias e até pelo controle a que devem ser sujeitos, quer pela comunicação social, quer pelo cidadão comum, devem ser mais tolerantes a críticas do que os particulares, sendo admissível um maior grau de intensidade das críticas. O TEDH não parte da tutela da honra para aquilatar da concordância prática da mesma com a liberdade de expressão e opinião, mas parte da liberdade de expressão e situa a honra como um fundamento para uma possível restrição à mesma. De acordo com a jurisprudência do TEDH, na resolução do confronto entre estes valores fundamentais, deve partir-se da prevalência da liberdade de expressão, enquanto pilar da sociedade democrática, situando-se a honra num segundo momento da aplicação da lei.
-Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09/10/2019, processo: 4161/16.9T9LSB-3, Relator JOÃO LEE FERREIRA, que sumariou o seguinte: I–A concordância prática do direito à integridade moral, ao bom-nome e à reputação, por um lado, com o direito de cada um exprimir e divulgar livremente o seu pensamento através da palavra, da imagem ou qualquer outro meio, por outro, tem de se afirmar, não apenas pela interpretação e aplicação das normas constitucionais e legais internas, mas também pela aplicação das normas que integram as convenções internacionais a que Portugal está obrigado, com particular realce para a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), tal como vêm sendo interpretadas e aplicadas pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH). II–Em sucessivos acórdãos incidindo sobre aplicação do artigo 10º da Convenção, o TEDH consolidou jurisprudência segundo a qual “a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais das sociedades democráticas, e uma das condições primordiais do seu progresso e desenvolvimento”, enfatizando-se que o direito à liberdade de expressão vale para as ideias ou informações consideradas favoravelmente pelo conjunto da sociedade ou que sejam inofensivas ou indiferentes mas também para as que ferem, chocam ou inquietam, pelo que, em consequência, a possibilidade de admitir excepções à liberdade de expressão deve ser entendida sob interpretação restritiva e deve corresponder a uma imperiosa necessidade social. III–O TEDH tem sublinhado a necessidade de se proceder a uma valoração do conteúdo ou sentido das expressões em causa, integrando-as no contexto em que surgiram , considerando que mesmo os juízos de valor susceptíveis de reunirem indiscutivelmente apenas um conteúdo ofensivo, podem afinal merecer a protecção da liberdade de expressão, desde que sejam dotados de uma base factual mínima e de uma explicação objectivamente compreensível de crítica sobre realidades objectivas em assunto de interesse público ou em debate de natureza política. No campo restrito das comunicações sobre factos, ou seja, sobre acontecimentos da vida real, o Tribunal tem entendido que a protecção pela liberdade de expressão depende da veracidade desses mesmo factos ou, no limite, da ocorrência de fundamento bastante para que o agente, agindo de boa fé e com a informação disponível, acreditasse na veracidade desses mesmos factos. (sublinhado nosso)
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14/09/2021 processo 8777/21.3T8LSB.L1-7 Relator LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, cujo sumário é o seguinte: I.–A liberdade de expressão não é um direito absoluto, tendo limites imanentes, devendo ser objecto de restrições para tutela de direitos de personalidade em que incluem o direito à honra, à imagem e à reserva da vida privada e familiar. II.–A doutrina e a jurisprudência têm enunciado várias teses e metodologias quanto à articulação possível entre a liberdade de expressão, por um lado, e o direito à honra e à imagem, por outro, designadamente: critério da ponderação de bens; critério do âmbito material da norma; critério do princípio da proporcionalidade; critério da concordância prática; critério da restrição de direitos prima facie pela existência de outros direitos prima facie. III.–Segundo o TEDH, pode haver interesse legítimo na partilha de informações, mesmo que impliquem alguma devassa da privacidade ou intimidade de alguém, relativas a questões de saúde pública, administração da justiça, cumprimento das obrigações fiscais, criminalidade, protecção ambiental ou desporto. IV.–Segundo o TEDH, a liberdade de expressão abrange, com alguns limites, expressões ou outras manifestações que criticam, chocam, ofendem, exageram ou distorcem a realidade, sendo que os políticos e outras figuras públicas, quer pela sua exposição, quer pela discutibilidade das ideias que professam, quer ainda pelo controle a que devem ser sujeitos, seja pela comunicação social, seja pelo cidadão comum – quanto à comunicação social, o Tribunal vem reiterando mesmo a expressão “cão de guarda” - devem ser mais tolerantes a críticas do que os particulares, devendo ser, concomitantemente, admissível maior grau de intensidade destas. V.–No que tange à conjugação de tais direitos fundamentais, o STJ entende actualmente ser de exigir um juízo de prognose sobre a hipotética decisão que o TEDH adoptaria se o caso lhe tivesse sido submetido, no sentido de se verificar se é de admitir como muito provável que, se a questão viesse a ser colocada ao TEDH, tal órgão jurisdicional entenderia que a concreta afirmação/imputação extravasaria os limites toleráveis do exercício da liberdade de expressão e informação.(…)” (destaque sublinhado nossos).
-Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-10-2022 proc. 2364/18.0T9CBR.C2 Relator Pedro Lima: I-A liberdade de expressão deve dar guarida a um excesso linguístico, é para isso que serve, e de todo o modo a ofensa relevante nos termos do art. 180.º, n.º 1, do CP, não pode sê-lo porque o visado assim subjectivamente a sinta, mas apenas se objectivamente for apta a como tal haver-se. II – Agressividade e firmeza de discurso, tanto mais quando a matéria é de interesse público (e porventura até identitária para os contendentes), têm de aceitar-se e serão mesmo desejáveis, enquanto marca de água de um genuíno debate, com liberdade de expressão, a qual por seu lado tolera até rudeza ou mesmo alguma grosseria; o que já não implica é contemporização com ataques pessoais que, resultando na lesão significativa da honra dos visados, afinal desbordem, em qualquer compreensão social aceitável, do adequado àquela expressão e debate de ideias, à crítica de posições, acções ou objectivos. III – As expressões dirigidas, através de uma rede social, pela arguida à assistente, no âmbito de um divulgado, pela segunda (médica ...), processo de esterilização de animais domésticos: “isto é matar”; “são assassinas”; “uma assassina”; “isto são maus tratos”; “isto é matar bebés”; “esta gente é louca e cruel para os animais”; “esterilizar bebés de dias é matá-los”, revelam, à luz do que ficou dito, um manifesto excesso hiperbólico, incorporado na querela sobre aqueles procedimentos veterinários da assistente e da crítica, bem ou mal fundada tecnicamente, conta ela movida, e assim escudada pela liberdade de expressão. IV – O mesmo critério apreciativo não pode ser feito em relação à locução “gente de merda”, também inscrita no mesmo acto comunicacional, porquanto essa formulação linguística consagra, de modo incontornável, um directo e imediato juízo de valor fortemente depreciativo sobre a própria pessoa da assistente, sem outro propósito senão rebaixá-la e enxovalhá-la; por isso, é idónea ao preenchimento do tipo objectivo do crime de difamação. V – Por seu turno, as frases divulgadas por outra arguida, visando também a mesma assistente: “esterilizar [sic] uma bebé com poucos dias de vida?, isto lembra o tempo dos nazistas” e “isto é macabro e desumano (…)”, pese embora o patente azedume da linguagem e até, sob o ponto de vista das representações dominantes, um certo mau gosto no assimilar de uma gata de tenra idade a uma “bebé”, estão amplamente cobertas pela liberdade de expressão, não podendo, deste modo, considerar-se como ofensivas da honra da assistente, sob pena de com isso ser afirmado um constrangimento à crítica (chilling effect), resultando em limitação excessiva da liberdade de expressão da arguida, com a inerente violação dos arts. 10.º, n.º 2, da CEDH, e 37.º, n.º 1, da CRP. VI – Mesmo tendo em conta o extremado mau gosto e até a natureza provocatória da comparação entre esterilizar gatos na clínica ... e a singular tragédia humana do extermínio de pessoas pelo regime nazi, a frase concreta evidencia inequivocamente não ser mais do que um excesso de linguajar. A recorrente não imputa à assistente o extermínio de pessoas ao jeito nazi, nem mesmo lhe chama nazi; segundo qualquer leitor o apreende, o sentido claro da frase, em si mesma e sobretudo no contexto, é o da recorrente manifestar o entendimento (mal ou bem, mas livremente assim entende) que esterilizar gatos de tenra idade, nos modos em que a assistente o faz e publicitou fazê-lo, equivale a exterminá-los. (sublinhado nosso)
-No Ac. do TRL de 06/02/2025 no proc. 271/22.1PBSCR.L1-9: IV- O direito ao bom nome e reputação e o direito à liberdade de expressão e de informação são ambos direitos constitucionalmente protegidos, respectivamente, nos art.ºs 26.º, n.º1 e 37.º, da Constituição da República Portuguesa (CRP), que devem ser compatibilizados, não estabelecendo a CRP qualquer hierarquia entre eles, nem deve ser conferida aprioristicamente e em abstracto a precedência de qualquer um dele, importando, em caso de conflito, um balanceamento concreto e não abstracto. V- O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tem vindo a enfatizar de forma consistente, a centralidade do direito à liberdade de expressão consagrado no art.º 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) como elemento conformador e estruturante de uma sociedade democrática e uma das condições primordiais do seu progresso e do direito à manifestação de cada um, devendo, as limitações previstas no art.º 10.º, n.º2 da CEDH, serem interpretadas em termos restritos, nomeadamente em assuntos de interesse público, como o são os ligados à saúde e à assistência médica. VI- Na compatibilização desses direitos fundamentais deve ter-se em conta a mais recente orientação do Supremo Tribunal de Justiça e dos Tribunais da Relação, devendo exigir-se um juízo de prognose sobre a hipotética decisão que o TEDH adoptaria se o caso lhe tivesse sido submetido, no sentido de se verificar se é de admitir como muito provável que, se a questão viesse a ser colocada ao TEDH, tal órgão jurisdicional entenderia que a concreta afirmação/imputação extravasaria os limites toleráveis do exercício da liberdade de expressão e informação. VII- No caso dos autos está em causa uma entrevista a um Jornal dada pelas arguidas, em que é imputada ao assistente, médico de profissão, actuação negligente em determinado acto praticado a um familiar das arguidas no exercício da sua profissão. VIII- Tratando-se critica dirigida à actividade profissional e não à pessoa do visado, estando as arguidas seriamente convictas da imputação e critica, considerando o contexto, o interesse público do assunto, chamando à colação o critérios da ponderação dos bens em causa, o princípio da concordância prática, o âmbito de protecção das normas pertinentes, o princípio da proporcionalidade e o juízo de prognose sobre a hipotética decisão que o TEDH adoptaria se o caso lhe tivesse sido submetido, concluímos que as arguidas actuaram a coberto do exercício do direito à liberdade de expressão e critica, não extravasando os limites desse exercício, não sendo a sua conduta passível de responsabilidade penal nem civil.
-Acórdão do TRL de 08-05-2025 proc. 240/22.1T9HRT.L1-9 ROSA MARIA CARDOSO SARAIVA, transcrevendo-se parte do sumário: VIII. O direito à honra e o direito à liberdade de expressão estão identicamente garantidos na Constituição Portuguesa (respectivamente nos artigos 26º, 1 e 2 e 37º) em relação de paridade. IX. O TEDH, em aplicação da CEDH, vigente no Direito nacional, tem vindo a dar prevalência ao direito à liberdade de expressão, quando em conflito com o direito à honra, justamente por reconhecer o papel fundamental da liberdade de crítica na construção de uma sociedade livre, pluralista e autenticamente democrática. X. As pessoas públicas estão sujeitas ao escrutínio das condutas que assumem no domínio da sua vida, sendo certo que essa exposição tem tendência a amplificar-se quando ocorre uma qualquer situação de conflitualidade. XI. Não viola o direito à honra de um cidadão. conjunturalmente a exercer um cargo público de nomeação política, a mensagem enviada para uma instituição escolar e para o seu núcleo familiar próximo, onde se alude à suspeita que o visado tenha usado eventual influência para que houvesse sido aberta vaga escolar para o seu filho. XII. Tal conduta consubstanciada na aludida imputação corresponde ao exercício do direito de crítica a uma pessoa pública, não se afirmando como dotada das características que pudessem atingir o núcleo essencial conexo à dignidade da pessoa humana, não revestindo a carga ofensiva que a faça alcançar o patamar da tipicidade e justifique a atribuição de dignidade penal. XIV. Ora, a absolvição do crime pelo qual a recorrente foi condenada – na medida em que representa a inexistência de facto típico ilícito em que se fundamente a condenação civil – importa necessariamente o mesmo efeito no que respeita ao segmento civil (isto, não obstante, a decisão não ser recorrível de um ponto de vista estritamente cível, como no caso dos autos). (sublinhado nosso)
Após esta incursão pela jurisprudência do TEDH e Nacional e tendo em mente o explanado, volvendo, de novo, ao caso dos autos, a acusação particular do assistente BB, assenta, de facto, numa entrevista concedida pelo arguido AA, à RTP Açores, exibida no Telejornal Açores do dia ........2023, intitulada por “Críticas Saúde”, versando, de entre o mais, sobre o funcionamento do ... (Hospital X), concretamente o segmento da entrevista em que o arguido afirma que foi levada a efeito «uma contratação de uma comissária política, porque nem sequer foi contratada com concurso público, para gerir toda a área de oncologia, tendo acabado de se formar na área da radioncologia; sem experiência absolutamente nenhuma de gestão. Excelentes qualidades técnicas, reconhecidas pelos seus pares, mas na forma como foi contratada, nas funções que lhe foram atribuídas, as consequências eram previsíveis e estão à vista: o mau ambiente, os bloqueios na ligação, que eu diria exemplar que sempre existiu desde o início entre os cuidados hospitalares e a clínica de radioncologia DD (…).
Entendeu o Exmo. JIC, por um lado, que:
“§3. A declaração contém, em si mesma, a imputação de um facto, qual seja a contratação, pelo (conselho de administração do) Hospital de uma médica (Srª Drª CC) para gerir o serviço de oncologia à margem de qualquer concurso público. Tudo o mais, incluindo a motivação da contratação, reconduz-se a juízos de opinião (contextualizados nas demais considerações tecidas pelo arguido ao longo da entrevista).
§4. Ora, quanto ao sobredito facto, o arguido defende no RAI, plausivelmente conforme a documentação que junta sob o nº 322, que, na sua perspetiva, a admissão da visada desprovida de procedimento de contratação pública é verdadeira: independentemente do lançamento do concurso público de finais de ... que possa ter havido nos moldes narrados pelo assistente na acusação, o Hospital, em data anterior, na sua divulgada newsletter de ..., comunicou publicamente a contratação da Srª Drª CC no dia ... mês para as funções de radioncologia, em razão do que a afirmação, pelo arguido, de ausência de concurso público para o efeito, não se me afigura leviana e não sustentável (quanto muito, terá havido uma omissão ou incompletude no sentido de se ter tratado de uma contratação inicialmente daquele jaez). De resto, muito antes, em ........2021, o arguido terá enviado uma exposição ao então diretor clínico do Hospital através de correio eletrónico, com conhecimento ao conselho de administração, na qual se referiu, de entre o mais, à (sua convicção da) circunstância de a dita Srª Drª não ter sido contratada ao abrigo de procedimento de contratação pública, mas sim nomeada por aquele conselho23 (relativamente ao que não há notícia de qualquer reação por parte do conselho de administração e/ ou de qualquer um dos seus membros), quadro este que, aliado ao supra exposto, aponta precisamente para a séria convicção, pelo arguido, da veracidade da declaração prestada e, como tal, pautada pela boa fé subjetiva, circunstancialismo este que, desde logo, seria conducente à não punibilidade da conduta (art. 180º/ 2/ b) do CP).”
Tal como afirmado pelo JIC o arguido defende no RAI, que, na sua perspetiva, a admissão da Exma. Médica especialista em radioncologia, desprovida de procedimento de contratação pública é verdadeira.
De facto decorre da Nota Informativa do Hospital X datada de .../.../2021, de fls. 121-124, em particular de fls. 123 que “No dia ... o Hospital X procedeu à contratação da Dra. CC para as funções de ..., colmatando assim uma lacuna sentida, pois não havia nenhum especialista nos nossos quadros. Como especialista oncológica, tem um caracter eminentemente clínico, com responsabilidades em todas as vertentes da prestação de cuidados ao doente oncológico, tem participação na avaliação inicial, no diagnóstico, estadiamento, tratamento, seguimento, ensino, investigação científica, sendo parte integrante de equipas médicas disciplinares, envolvendo equipas pluriprofissionais dedicadas, complexas e exigentes. A Especialidade desenvolve a sua ação no âmbito da ..., partilhando com outras especialidades ligadas ao tratamento do dente oncológico, a responsabilidade e o desafio inerente ao tratamento multidisciplinar e integral do cancro. As suas tarefas incluirão a actividade clínica assistencial na discussão, validação e optimização das terapêuticas propostas pelas equipas multidisciplinares; Actividade clínica na área na área da radioncologia paliativa, Realização de auditorias que devem abordar, não apenas, as referenciações inter-hospitalares e para outros, como também as doas diferentes níveis de cuidados, especificamente dos cuidados primários para os cuidados hospitalares. Análises de indicadores de produção; Análise de indicadores de Qualidade e Eficiência: Tratamentos radicais vs paliativos. Tempo de espera para 1.º Tratamento. Admissões pós-CGMDT. Tratamentos complexos vs simples. Satisfação dos doentes/retorno de informação; e realização do projecto “Sobrevivente Oncológico na ...”.
Conforme decorre do doc.1 junto a fls. 109, (não datado) com a acusação particular, foi publicado na Bolsa de emprego público dos Açores concurso público para Carreira Especial Médica-Área Hospitalar-Radioncologia, CIT por tempo indeterminado no âmbito do Código do Trabalho, oferta n.º 859/....
No dia ... de ... de 2021 foi publicado Aviso de recrutamento para preenchimento de um posto de trabalho na categoria de assistente de radioncologia da carreia médica da área hospitalar, constando do ponto 1 do Aviso que: “Nos termos do estabelecido na clausula 6.ª do Anexo III do Acordo Colectivo de Trabalho n.º 8/... de ... celebrado entre o ...…)o ... e o ... (…) adiante designado ACT conjugado com o artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 176/... de 04 de Agosto(…) torna-se público que, por despacho autorizado de Sua Excelência o Senhor Secretario Regional das Finanças, Planeamento e Administração Pública dos Açores de ... de ... de 2021, se encontra aberto o procedimento de recrutamento para o preenchimento de um posto de trabalho na categoria de assistente de radioncologia da carreira médica da área hospitalar para o ..., em contrato individual de trabalho por tempo indeterminado, celebrado nos termos do Código do Trabalho.” E do ponto 7.-“caraterização do posto de trabalho-O posto de trabalho apresentado a concurso corresponde ao conteúdo funcional estabelecido no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 176/... de ... e da Clausula 10.ª do ACT.” (sublinhado nosso).
Em .../.../2021 o arguido, enquanto Responsável pela ..., havia enviado uma exposição junta como doc. 2 com o RAI de fls. 118, endereçada, ao Dr. FF, Director Clínico do ... entre outros do Presidente do Conselho de Administração, Vogais do Conselho de Administração, onde, além do mais, no seu ponto 4. “ainda em relação à ..., não posso deixar de relevar, pela negativa, a exclusão da Directora Clínica da Radioncologia dos Açores – GG, Médica de referência da ... que participou em todos os trabalhos das anteriores comissões, desde o início das suas funções em .... E mais lamento que V. Exa. Não tenha tido o cuidado de informar a referida Colega, ainda antes da Divulgação da Nota Interna que a substituía pela Médica Radioncologista que o ... E no 8. “nomeação (e não contratação, porque a tal, segund penso, exigiria previsão de vaga e abertura de concurso público) de Médica Especialista em radioncologia, depois de parecer favorável do responsável pela Unidade. Ainda mais grave foi divulgado o conjunto de atribuições desta Médica Radioncologista através de “Newslewtter” n.º ... de ... de 2021, atribuições que em grande parte são surpreendentes e inaceitáveis, por colidirem com funções de diversos responsáveis por Serviços e Unidades, definidas por legislação própria. Recordo também, que as “news Letters” são divulgadas nas redes sociais, constituindo uma forma de propaganda que tem como objectivo secundário fazer passar para segundo plano a atenção dos membros do Conselho de Administração para as consequências de diversas medidas prejudiciais ao funcionamento da Instituição.”
Resulta da data aposta na nota informativa (.../.../2021) e da data da publicitação do aviso ... de ... de 2021 que a Dra. CC iniciou funções efectivamente em data muito anterior à publicação do avido de concurso.
É a própria Médica especialista contratada a confirmar, na inquirição de .../.../2024 que o procedimento concursal ocorreu em ... e que “ É médica especialista de radioncologia no Hospital X desde ... de ... de 2021”.
Alega o assistente, e, bem assim, a referida Médica especialista no seu depoimento, que a referida especialista Médica foi contratada ao abrigo da legislação covid, porém nenhum documento junto aos autos o comprova.
Ademais, as funções anunciadas na nota informativa são mais próprias de quem chefia um serviço, claramente muito mais abrangentes do que as relativas ao posto de trabalho na categoria de assistente de radioncologia a que se reporta o Aviso de recrutamento. Além disso, não está junto aos autos o Contrato Individual de Trabalho (CIT) que terá sido celebrado pelo Hospital X com a referida médica especialista.
Assim, concorda-se com o referido pelo JIC que o arguido tinha fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira. “(…)a afirmação, pelo arguido, de ausência de concurso público para o efeito, não se me afigura leviana e não sustentável. De resto, muito antes, em ........2021, o arguido terá enviado uma exposição ao então diretor clínico do Hospital através de correio eletrónico, com conhecimento ao conselho de administração, na qual se referiu, de entre o mais, à (sua convicção da) circunstância de a dita Srª Drª não ter sido contratada ao abrigo de procedimento de contratação pública, mas sim nomeada por aquele conselho24(relativamente ao que não há notícia de qualquer reação por parte do conselho de administração e/ ou de qualquer um dos seus membros), quadro este que, aliado ao supra exposto, aponta precisamente para a séria convicção, pelo arguido, da veracidade da declaração prestada e, como tal, pautada pela boa fé subjetiva, circunstancialismo este que, desde logo, seria conducente à não punibilidade da conduta (art. 180º/ 2/ b) do CP).”
Mesmo que assim não fosse, continua o Exmo. JIC explanando o seu raciocínio que: §5. Mas mesmo que assim não se entendesse, e aqui, também, quanto aos juízos de opinião, considero que o arguido não excedeu os limites da licitude da liberdade de expressão.(…) §7. Tendo presente este pano de fundo, e regressando ao caso dos autos, a vexata quaestio deve, então, ser colocada da seguinte forma: assistindo ao arguido a liberdade de expressão, e dela tendo feito uso (enquanto exercício de um direito – regra), justificar-se-á, à luz de uma necessidade social imperiosa, restringir a sua licitude, em prol da defesa do direito ao bom nome (lado individual) e reputação (lado social) do assistente, enquanto direito fundamental de personalidade, em termos de integrar a conduta na tipicidade do crime imputado, porque lesiva da honra e consideração do mesmo, a coberto do disposto, desde logo, nos arts. 18º/ 2, 26º/ 1, 37º/ 1 e 3, todos da Constituição da República Portuguesa (relembre-se que o bem jurídico protegido com a incriminação tem o seu horizonte de referência na Lei fundamental), e 180º/ 1, 182º e 183º/ 1/ a) e 2, todos do CP? §8. A resposta é negativa por seis ordens de razão:
(i) o arguido jamais se refere à pessoa do assistente, seu nome e/ ou cargo ao longo da entrevista;
(ii) a entrevista ao arguido tem lugar no âmbito de uma peça televisiva versando sobre críticas à saúde, destinada ao público em geral, nela figurando na qualidade de médico e fundador do serviço de oncologia do Hospital, pelo que a sua opinião se dirige à realização de um interesse público no âmbito do serviço de comunicação social;
(iii) o arguido não tece nenhum juízo de valor individualmente ou sobre a pessoa do assistente, dirigindo antes a sua crítica às escolhas do conselho de administração enquanto órgão colegial, mormente quanto à forma de contratação, às competências da visada para o cargo e ao correlativo negativo impacto no serviço (não significando o epíteto qualificativo desta como “comissária política” que os membros daquele conselho tenham sido comitentes políticos);
(iv) nada é ostensivamente insultuoso (não há recurso a obscenidade, palavrões ou tabuísmos), nem se evidencia qualquer intenção de rebaixar, escarnecer ou humilhar ou, sequer, de ofender a honra e a dignidade do assistente;
(v) a imputação de facto mostra-se sustentada em documentação oficial produzida pelo Hospital (mas mesmo que assim não fosse, o TEDH tem vindo a aceitar, de forma consensual, o inerente risco da inevitabilidade de erros ou incorreções desde que não firam, em intenso grau, a essencialidade do direito em conflito), não vislumbrando má fé por parte do arguido; e, por fim,
(vi) as declarações não se afastaram do temário (por hipótese aludindo a outra exógena matéria de índole pessoal e/ ou profissional relacionada com o assistente), nem surgem de forma desnecessária e/ ou descontextualizada. §9. Assim sendo, em suma, entendo que a imputada conduta não preenche, sequer, os elementos típicos do ilícito criminal em causa, por se situar dentro dos limites do exercício da liberdade de expressão – não se tratando de uma causa de exclusão da ilicitude, mas sim do exercício de um direito a jusante da tipicidade normativa e que afasta esta –, compressora, neste domínio, do (também supranacional e constitucionalmente assegurado) direito à honra e ao bom nome, sob o crivo da proporcionalidade e da intensidade da correspondente ofensa, em razão do que, não integrando o campo de proteção penal do bem jurídico que o ilícito criminal imputado visa proteger, consubstancia um comportamento atípico.”
É verdade que o arguido jamais se refere à pessoa do assistente, seu nome e/ou cargo ao longo da entrevista, nem ao Conselho de Administração do HDES, ainda que se subentenda, da globalidade da entrevista, que a crítica se reporta a política de gestão do Conselho de Administração sendo que, à data, o assistente integrava o Conselho de Administração do Hospital.
Porém, tal não é suficiente para concluirmos que o conteúdo da entrevista extravasa a liberdade de expressão e crítica.
Com efeito, como supra referido, tudo aponta precisamente para a séria convicção, pelo arguido, da veracidade da declaração prestada relativamente à forma de contratação da Médica Especialista em causa e, como tal, pautada pela boa fé subjetiva.
Por outro lado, teremos ainda que atentar no contexto em que a entrevista é realizada, porquanto a mesma foi exibida no telejornal Açores, das 20.000h, programa transmitido pela RTP Açores, operador de serviço público de rádio e televisão de Portugal, no âmbito de uma reportagem com o título “críticas Saúde”, que versou sobre o funcionamento do Serviço Regional de Saúde e também sobre o Hospital X, versando sobre o estado em que se encontrava o Serviço Regional de Saúde e também o Conselho de Administração do HDES, tendo o arguido sido entrevistado na qualidade de médico fundador do serviço de oncologia no Hospital X, o que é admitido pelo assistente. Dúvidas não há do interesse jornalístico e do interesse público no tema que se relaciona com a saúde, discutido frequentemente na comunicação social e que interessa ao cidadão, sem dúvida, que a sua opinião/crítica se dirige à realização de um interesse público no âmbito do serviço de comunicação social, tanto mais que lhe era reconhecido mérito, que lhe valeu a homenagem no ....
Não pode ser desconsiderado o facto de o conteúdo da entrevista ser muito mais do que o excerto supra referido, que não deve ser descontextualizado, tendo ademais, ao arguido sido perguntado sobre o estado do serviço regional de saúde que o preocupava, tendo o arguido referido que “tem havido escolhas francamente inadequadas e que era desaconselhadas, mas alguns remendos que têm sido feitos, nomeadamente no ..., aquilo que… que nos parece é que são remendos que não foram… respeitadas estas condicionantes e, portanto é uma tarefa muito complicada para a Senhora Presidente, a quem desejo as maiores felicidades, mais ainda porque nem todo o Conselho de Administração foi da sua escolha, por aquilo que é público”. Falando de seguida do problema do tabaco no aumento de problemas oncológicos e dos governantes mais preocupados no retorno eleitoral, salientando-se que o referido excerto da entrevista, considerado ofensivo, corresponde a resposta à pergunta do jornalista “AA critica ainda a escolha da médica que foi chefiar o serviço de radioncologia, criado por HH antes de sair da administração do .... Diz que se tratou da contratação de uma comissária política” sem qualquer experiência de gestão e que teve como consequência o fim da ligação exemplar entre o hospital e a clinica de radioncologia”.
Saliente-se ainda que a resposta é mais abrangente do que o referido segmento: «Nós temos no mundo vários generais sem tropas. É o que acontece com a radioncologia no Hospital X. Aquilo que aconteceu no Hospital X, e foi também um dos motivos que me levou a ter crises de saúde, foi uma contratação de uma comissária política, porque nem sequer foi contratada com concurso público, para gerir toda a área de oncologia, tendo acabado de se formar na área da radioncologia; sem experiência absolutamente nenhuma de gestão. Excelentes qualidades técnicas, reconhecidas pelos seus pares, mas na forma como foi contratada, nas funções que lhe foram atribuídas, as consequências eram previsíveis e estão à vista: o mau ambiente, os bloqueios na ligação, que eu diria exemplar que sempre existiu desde o início entre os cuidados hospitalares e a clínica de radioncologia II, com uma equipa de radioncologistas extremamente experiente, de elevadíssima qualidade técnica e humana e que estava a fazer um trabalho exemplar ao nosso lado no dia a dia, e isso foi seriamente prejudicado”. (…)
Ora, neste excerto denota-se que o arguido tem uma opinião crítica sobre a política de gestão do serviço de radioncologia implementada pelo Hospital X e seu Conselho de Administração, discordando do fim da ligação entre o Hospital X e a ..., e de quem foi escolhido para gerir o esse serviço. O designar de “comissária política” pode muito bem ser interpretado no sentido de que a médica escolhida é uma pessoa que segue a linha da política de gestão implementada pelo Conselho de Administração do HDES, e não uma contratação com base em “favores” ou “cunhas” ou objectivos de partidos políticos, como refere o assistente no ponto 57.º da acusação, sem contudo demonstrar indiciariamente, dizeres que efectivamente não constam do conteúdo da entrevista nem apenas do termo “comissária política” se pode inferir.
Concordando-se com o dito pelo JIC “O arguido não tece nenhum juízo de valor individualmente ou sobre a pessoa do assistente, dirigindo antes a sua crítica às escolhas do conselho de administração enquanto órgão colegial, mormente quanto à forma de contratação, às competências da visada para o cargo e ao correlativo negativo impacto no serviço (não significando o epíteto qualificativo desta como “comissária política” que os membros daquele conselho tenham sido comitentes políticos)”.
Do conteúdo da entrevista não se evidência qualquer intenção de rebaixar, escarnecer ou humilhar ou, sequer, de ofender a honra e a dignidade do assistente não se reportando à actuação do assistente enquanto pessoa e cidadão, nem à sua esfera pessoal.
Como decorre dos acórdão supra citados (nomeadamente da Relação do Porto de 17/01/2024 Relator JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO nº 6148/19.5T9PRT.P2, da Relação de Lisboa de 09/10/2019, processo: 4161/16.9T9LSB-3, Relator JOÃO LEE FERREIRA e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-10-2022 proc. 2364/18.0T9CBR.C2 Relator Pedro Lima) o TEDH tem vindo a aceitar, de forma consensual, o inerente risco da inevitabilidade de erros ou incorreções desde que não firam, em intenso grau, a essencialidade do direito em conflito, não vislumbrando má fé por parte do arguido, nem as imputações e expressões surgem de forma descontextualizadas, mas sim em resposta a pergunta/comentário realizado pelo jornalista que interrogava o arguido.
Na verdade, em geral no que respeita à crítica da actividade profissional a condição essencial da legitimidade do juízo de valor, que, em certa medida subjaz à expressão “comissária política” é dirigida a realizações ou prestações do Conselho de Administração do HDES e reflexamente dos seus administradores, e não ao visado em si mesmo, como pessoa, não consubstanciando um ataque pessoal gratuito (Cfr. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 6.ª edição actualizada pág. 842).
A crítica formulada à atuação Conselho de Administração do Hospital não é ilícita, no cotejo das posições jurisprudenciais supra, quer do TEDH, quer do STJ, quer das Relações.
Seguindo as linhas do STJ fazendo um juízo de prognose sobre a hipotética decisão que o TEDH adoptaria se o caso lhe tivesse sido submetido, é de admitir como muito provável que, se a questão viesse a ser colocada ao TEDH, tal órgão jurisdicional entenderia que as concretas afirmações/imputação não extravasaria os limites toleráveis do exercício da liberdade de expressão informação e crítica.
Ademais, cidadãos que exercem cargos públicos, estão sujeitos à crítica, quer das coletividades pela satisfação de cujos interesses devem pautar o exercício das respetivas funções, quer dos titulares de entidades que tutelem interesses conflituantes ou não. As pessoas que ocupam lugares de relevância política ou altos cargos na administração pública estão sujeitas a figurar como alvos de mais e de mais intensas críticas que os demais cidadãos, provenham elas de seus pares ou não. Em democracia, a tutela da honra pessoal e reputação dos políticos é, por isso, também menos intensa que a dos cidadãos em geral, contribuindo para um debate de interesse geral. (neste sentido Acórdãos do TEDH nos casos OBERSCHLICK CONTRA ÁUSTRIA, de 1/7/97, no CASO DE MORICE V. FRANÇA de 23/04/2015, ROLAND DUMAS C. FRANÇA, de 15 de julho de 2010, E GOUVEIA GOMES FERNANDES E FREITAS E COSTA C. PORTUGAL, de 29 de março de 2011, KARSAI V. HUNGARY, nº 5380/07, de 1/12/2009, § 36 e MAGYAR JETI ZRT V. HUNGARY, nº 11257/16, de 4/12/2018, § 83), CASO ALMEIDA ARROJA v. PORTUGAL de19 Março 2024, entre outros na jurisprudência nacional os Acórdãos da Relação do Porto de 04-11-2020 2294/17.3T9VFR.P1 e da Relação de Lisboa de 11/04/2024 processo 7971/20.9T8LSB-9 supra referidos).
Integrando as imputações no contexto em que surgiram estando, dotados de uma base factual mínima e de uma explicação objectivamente compreensível de crítica sobre realidades objectivas, não se podendo olvidar que, chamando à colação o critérios da ponderação dos bens em causa, o princípio da concordância prática, do âmbito de protecção das normas pertinentes já chamadas à colação supra e o princípio da proporcionalidade, considerámos que o arguido actuou a coberto do exercício do direito à liberdade de expressão e crítica, que deve prevalecer (neste sentido os referidos acórdãos do STJ de 31/01/2017 Processo: 1454/09.5TVLSB.L1.S1 e do TRL de 06/02/2025 no proc. 271/22.1PBSCR.L1-9, de 14/09/2021 no processo 8777/21.3T8LSB.L1-7 e de 08-05-2025 no proc. 240/22.1T9HRT.L1-9 e Acórdão TRP de 04-11-2020 proc. 2294/17.3T9VFR.P1) .
À luz da supra citada legislação e jurisprudência interna e externa pertinentes concorda-se inteiramente com despacho de não pronúncia proferido pelo Tribunal recorrido por a conduta do arguido não preenche, sequer, os elementos típicos do ilícito criminal em causa.
Outra posição penalmente sancionatória constituiria, ademais, uma ingerência inadmissível no exercício do direito à critica e à liberdade de expressão, nomeadamente traduzindo restrições ao discurso político ou ao debate sobre questões de interesse público, como o são as ligadas à saúde e às políticas a ela inerentes, dando peso desproporcional aos direitos à reputação e à honra, em contraste com o direito à liberdade de expressão e à crítica, excederia a margem de apreciação que é reconhecida aos tribunais no que respeita às limitações aos debates de interesse público, e, uma condenação penal nesta área redundaria num "efeito dissuasor" num “efeito de arrefecimento de condutas” de que fala a chilling effect doctrine, e num tipo de intimidação, como forma de calar os opositores, adversários, concorrentes etc. sobre a prática daquela liberdade de expressão e crítica, o que é particularmente delicado em assuntos de interesse público por ser necessária em uma sociedade livre, pluralista e autenticamente democrática (vejam-se a título de exemplo na jurisprudência do TEDH o recente Ac. Costa Figueiredo c/ Portugal, nº 6928/19 (§ 15), de 14/10/2025; ou o Ac. Saraiva c/ Portugal, nº 37466/21 (§ 19), de 19/05/2023 e ou o Ac. Morice c/ França (GC), nº 29369/10 (§§ 175-6), de 23/04/2015, ou o Ac. ALMEIDA ARROJA v. PORTUGAL de 19 Março 2024 nos seguinteslinks:https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22001245244%22]}https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22001-228402%22]}https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22001-154265%22]}https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22001-231606%22]} e na jurisprudência nacional, entre outros, os Acórdão do TRE 2013-05-28 (Processo nº 552/09.0GCSTB.E1, o Acórdão do TRL de 12-10-2022 proc. 2364/18.0T9CBR.C2, o Acórdão TRP 04-11-2020 2294/17.3T9VFR.P1 e o Acórdão do TRL de 11/04/2024 processo 7971/20.9T8LSB-9 relator supra referidos).
Assim, bem andou, o Exmo. JIC de Ponta Delgada em não pronunciar o arguido face à inexistência de indícios suficientes que permitam submeter aquele a julgamento, porquanto, no juízo de prognose que fazemos, a ser submetido a julgamento é mais provável a sua absolvição do que a sua condenação, e nem seria, em julgamento, ultrapassada a barreira do in dubio pro reo.
Assim, o recurso terá que ser julgado não provido.
IV – DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, em:
Negar provimento ao recurso interposto pelo Assistente BB, confirmando a decisão recorrida de não pronúncia do arguido AA.
*
Vai o recorrente/assistente condenado nas custas do recurso, fixando-se em 3 UCs a taxa de justiça devida – artigo 515º, n.º1, al. b) do Código de Processo Penal, e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro).
Notifique.
*
Lisboa, 20 de Novembro de 2025
(Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários)
Maria de Fátima R. Marques Bessa
Joaquim Manuel da Silva
Eduardo de Sousa Paiva
_______________________________________________________
1. Acusação de 11.11.2024, sob a refª 5991135, a fls. 81 e ss. do suporte físico dos autos,
2. Despacho de 17.11.2024, sob a refª ..., a fls. 106-106v. do suporte físico dos autos
3. Requerimento para abertura da instrução (RAI) de 05.12.2024, sob a refª 6033280, a fls. 111 e ss. do suporte físico dos autos.
4. Despacho de 20.01.2025, sob a refª 58548192, a fls. 129 do suporte físico dos autos.
5. Ata de 19.03.2025, sob a refª 59032684, a fls. 136 e ss. do suporte físico dos autos
6. Doravante indicado apenas por “Hospital” por melhor facilidade de exposição.
7. Fls. 121-124, em particular fls. 123.
8. Cfr. documentos nºs 1 e 2 juntos com o RAI, a fls. 117-120, em especial os pontos 4. in fine e 8 da exposição.
9. Vide o (notável) Ac. STJ de 13.01.2005, relatado pelo Senhor Juiz Conselheiro Moitinho de Almeida, integralmente disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/9b22404371036b6d802573e200323d10?OpenDocument,recuperando a afirmação do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) no Ac. de 07.12.1976, caso Handyside v. United Kingdom (caso nº 5493/72), disponível em https://globalfreedomofexpression.columbia.edu/cases/handyside-v-uk/: (…) Freedom of expression constitutes one of the essential foundations of [a democratic] society, one of the basic conditions for its progress and for the development of every man (…)”].
10. Conforme bem refere o Senhor Juiz Conselheiro Henriques Gaspar, in “A influência da CEDH no diálogo interjurisdicional”, Revista JULGAR nº 7, janeiro/ abril de 2009, Coimbra Editora: “(…) A interpretação pelo TEDH de normas convencionais deve ser considerada como integrando a própria CEDH (…). Os juízes nacionais estão, assim, vinculados à CEDH e em diálogo e cooperação com o TEDH. Vinculados porque, sobretudo em sistema monista, como é o português (artigo 8.º da Constituição), a CEDH, ratificada e publicada, constitui direito interno que deve, como tal, ser interpretada e aplicada, primando, nos termos constitucionais, sobre a lei interna. E vinculados também porque, ao interpretarem e aplicarem a CEDH (…) devem considerar as referências metodológicas e interpretativas do TEDH, enquanto instância própria de regulação convencional (…)”.
11. Vide, a título de exemplo, o Ac. TEDH de 28.09.2000, caso Vicente Jorge Silva v. Portugal (caso nº o 37698/97), disponível em https://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/caso_lopes_gomes_da_silva_c_portugal_queixa_37698-97.pdf e o Ac. TEDH de 26.04.2007, caso Colaço Mestre e SIC v. Portugal (casos nºs 11182/03 e 11319/03), disponível em https://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/caso_colaco_mestre_sic_queixas_11182-03_e_11319-03.pdf.
12. Processo nº 80-16.7GGBJA.E1, relatado pelo então Senhor Juiz Desembargador António Latas, integralmente disponível em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/16.7ggbja.e1-2018-116287394.
13. Processo nº 53/11.6TAEZ.E2, relatado pelo Senhor Juiz Desembargador João Gomes de Sousa, integralmente disponível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/-/27AB9AD145AB9DBB80257DE10056FEF8.
14. Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, Diário da República – I Série, de 28/12/1995.
15. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29/01/2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, da 5.ª Secção.
16. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª Edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 466.
17. Rabindranah Capelo de Sousa, O Direito Geral da Personalidade, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, p. 301 a 304.
18. Beleza dos Santos, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 92, p. 164. Também, Acórdão do STJ, de 30.10.2003, Proc. N.º 03P3369, Relator Simas Santos, inwww.dgsi.pt.
19. Cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2ª Edição, Coimbra, Almedina, 2003, p. 60.
20.Também o Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos, dispõe no art. 19º, que: (nº 1) «Ninguém pode ser inquietado pelas suas opiniões»; (nº 2) «Toda e qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão; este direito compreende a liberdade de procurar, receber e expandir informações e ideias de toda a espécie, sem consideração de fronteiras, sob a forma oral ou escrita, impressa ou artística, ou por qualquer outro meio à sua escolha»; (nº 3) «O exercício das liberdades previstas no parágrafo 2 do presente artigo comporta deveres de responsabilidade especiais. Pode, em consequência, ser submetido a certas restrições, que devem, todavia, ser expressamente fixadas na lei e que são necessárias: a) Ao respeito dos direitos ou da reputação de outrem; b) À salvaguarda da segurança nacional, da ordem pública, da saúde e da moralidade públicas».
21. Procede-se à correcção de lapso no nome do acórdão que é «Zemmour v. France» como se pode verificar no seguinte endereço: https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22001-221837%22]}
22. Fls. 121-124, em particular fls. 123.
23. Cfr. documentos nºs 1 e 2 juntos com o RAI, a fls. 117-120, em especial os pontos 4. in fine e 8 da exposição.
24. Cfr. documentos nºs 1 e 2 juntos com o RAI, a fls. 117-120, em especial os pontos 4. in fine e 8 da exposição.