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AUDIÊNCIA
TRIBUNAL DE RECURSO
REQUERIMENTO
REQUISITOS
Sumário
Sumário (da responsabilidade do Relator): I. Tendo os recorrentes requerido a realização da audiência «para que seja analisada a matéria dos vícios do artº 410º do Código de Processo Penal e as nulidades do acórdão» é manifesto que, com tal singela indicação, não deram cumprimento ao ónus de especificação, dos pontos da motivação, que sobre os mesmos legalmente impende. II. Não tendo o legislador, a respeito, previsto a possibilidade de aperfeiçoamento, ao invés do que se verifica a propósito da deficiente formulação de conclusões (conforme art. 417º, n.º 3 do C.P.P.), é de concluir que o incumprimento de tal ónus conflui na não realização da audiência e no julgamento do recurso em conferência. III. A respeito da conformidade de tal interpretação com os princípios fundamentais ínsitos na Constituição da República Portuguesa, o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 163/2011, já se pronunciou no sentido de que: «(…) a interpretação normativa do n.º 5 do artigo 411º do CPP, segundo a qual “o recorrente que pretenda ver o seu recurso de decisão que conheça a final do objecto do processo, apreciado em audiência no Tribunal da Relação deve requerê-lo aquando da interposição do recurso e indicar quais os pontos da motivação de recurso que pretende ver debatidos, sob pena de indeferimento da sua pretensão” não é contrária à Constituição, seja por violação do direito de assistência por advogado (artigo 32º, n.º 3, da CRP), seja por violação do direito de recurso penal (artigo 32º, n.º 1, da CRP), seja por violação de quaisquer outros princípios ou normas constitucionais, designadamente dos princípios do Estado de Direito (artigo 2º, da CRP), da proporcionalidade (artigo 18º, n.º 2, da CRP) ou do direito ao contraditório em processo penal (artigo 32º, n.º 1, da CRP)».
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
1. Os arguidos AA, BB e CC requereram que os recursos pelos mesmos interpostos fossem julgados em audiência «para que seja analisada a matéria dos vícios do artº 410º do Código de Processo Penal e as nulidades do acórdão».
2. Por despacho da ora relatora, proferido em ... de ... de 2025, foi indeferida a requerida audiência.
3. A arguida AA reclamou para a conferência do predito despacho nos seguintes termos: «Em primeiro lugar dir-se-á que do douto despacho reclamado não se alcança se o indeferimento decorre do incumprimento da norma tout court ou se esse incumprimento se deve a defeito ou a excesso. De facto, dispõe o artº 411º nº 5 do Código de Processo Penal que: No requerimento de interposição de recurso o recorrente pode requerer que se realize audiência, especificando os pontos da motivação do recurso que pretende ver debatidos. A motivação é, por definição, mais abrangente que as conclusões do recurso, uma vez que estas últimas são um resumo da motivação. Assim sendo, ao requerer a audiência a fim de que seja analisada a matéria dos vícios do artº 410º do Código de Processo Penal e as nulidades do acórdão, o recorrente está, obviamente, a especificar os pontos da motivação que pretende ver debatidos e ao mesmo tempo das conclusões. Tal conclusão apenas poderia ser incorrecta se o recorrente tivesse colocado nas conclusões matéria que não tinha sido alvo de apreciação na motivação, mas assim não aconteceu. Mas, ainda que assim não fosse, o facto de não se especificar no requerimento de interposição de recurso os pontos da motivação que pretende ver debatidos não é causa de indeferimento do requerido. De facto, nos termos do disposto no artº 412º nº1 do CPP o recorrente deve terminar a motivação do recurso pela apresentação de conclusões em que o recorrente resume as razões do seu pedido. Tais conclusões como é jurisprudência assente fixam o objecto do recurso, sendo certo que “(...) havendo questões discutidas na motivação, mas não resumidas nas conclusões, elas não integram o objecto do recurso e, por isso, não podem ser conhecidas pelo tribunal de recurso” - Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 1ª edição, Lisboa 2007, pag. 1136. Ora, nos termos do disposto no artº 411º nº5 do CPP no requerimento de interposição de recurso o recorrente pode requerer que se realize audiência, especificando os pontos da motivação do recurso que pretende que sejam debatidos. Quer isto dizer que seguindo uma interpretação literal do disposto no artº411 do nº5 do CPP, no requerimento de interposição de recurso, o recorrente pode requerer que na audiência se discutam questões que não constem das conclusões, mas na motivação e, como tal, não façam parte do objecto do recurso, porquanto nessa norma se alude a pontos da motivação do recurso e não às conclusões apresentadas. Ou seja, seguindo-se tal interpretação literal o objecto de audiência pode ser mais alargado que o objecto do recurso. Tal entendimento não pode, como é evidente, ser sufragado, a menos que o recorrente tenha suscitado uma qualquer questão na motivação que não conste das conclusões e que seja matéria do conhecimento do oficioso do tribunal de recurso, designadamente os vícios constantes do artº 410º do CPP. Assim, na audiência apenas se poderão discutir questões colocadas nas conclusões do recurso. Neste sentido, acompanhando Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, 2ª edição, 2000, tomo III, pag. 362 pode-se dizer que “A audiência de julgamento do recurso tem sido muito criticada por magistrados e advogados, considerando-a inútil, mas trata-se de incompreensão do sistema, agravada pela má prática frequente. Frequentemente se confunde a função da motivação com a das alegações, mas são diferentes. A audiência não se destina a repetir o conteúdo da motivação; esse já foi analisado pelo Tribunal. Também não se destina a alterar o âmbito do recurso já fixado pelas conclusões da motivação do recurso, mas essencialmente a analisar as questões que o Tribunal entende merecerem exame especial. (…) Com dizer-se que as alegações se destinam essencialmente a analisar as questões que o Tribunal entende merecerem exame especial não se significa a sua limitação; as alegações podem abarcar todas as questões suscitadas no recurso e que constituem o seu objecto. Questão é apenas a da sua utilidade quando se limitam a repetir o que já foi escrito na motivação ou na resposta à motivação, mas mesmo a repetição pode ser útil, dependendo muito da forma como se repete.” – sublinhado nosso. E isto é assim, como diz Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª edição actualizada, pag. 1141, porquanto o direito de requerer que o recurso seja julgado em audiência “é um direito discricionário do recorrente: nem o recorrido se pode opor ao pedido, nem o tribunal de recurso pode negar a pretensão do recorrente. Este é um direito vinculado, cujo exercício é controlado pelo relator no exame preliminar, com reclamação para a conferência (artº 417º nº7 al. b) e nº8).” Deve, assim, concluir-se, independentemente de não ser sequer o caso da recorrente, que se a recorrente nada diz relativamente “aos pontos da motivação do recurso que pretende ver debatidos”, se deve entender que este pretende ver debatidos em audiência as questões suscitadas nas conclusões de recurso, porquanto esse é o objecto do recurso e deve ser o objecto da audiência. E tal “objecto da audiência” apenas pode ser alargado pelo relator no momento a que alude o artº 423º nº1 do CPP, tendo em conta as questões que o tribunal de recurso pode conhecer. Importante é, aqui, a manifestação de vontade do recorrente no sentido de pretender a audiência. Só esta interpretação é condizente com os princípios estruturantes do processo penal e responde, ainda que apenas parcialmente, à dificuldade de interpretação aludida por Germano Marques da Silva in “Sobre recursos em processo penal” constante do livro “A reforma do sistema penal de 2007 - Garantias e eficácia”, no âmbito do programa de formação avançada Justiça XXI, pag. 55. Com efeito, diz o citado autor que uma das dificuldades de interpretação do artº 411º nº 5 do CPP “(...) respeita à necessidade de especificar logo no requerimento os pontos da motivação do recurso que o requerente pretende ver debatidos.” E continua: “É claro que são as conclusões do recorrente que delimitam o âmbito do recurso e por isso que a especificação dos pontos se deva fazer por referência à motivação do recurso, mas segundo cremos, essa delimitação nada tem que ver com a discussão do respectivo conteúdo, cuja conveniência não pode ser reservada apenas ao recorrente. Parece-nos, aliás, que o requerimento para a realização da audiência, sendo essa a opção do legislador, deveria ser remetido para requerimento posterior, depois de apresentada a resposta ao recurso. Só então, recorrente e recorrido poderão ajuizar com mais informação da conveniência da audiência. Não foi, porém, essa a opção do legislador, embora sem justificação, mesmo em termos de celeridade.” Balizado o objecto do recurso através das suas conclusões, balizado se encontra, por consequência o objecto da audiência de recurso, tal como o objecto do processo baliza o objecto da audiência em 1ª instância. Como supra se disse, o Relator, por um lado, pode sempre seleccionar as questões que merecem exame especial de entre aquelas suscitadas pelo recorrente nas conclusões do recurso e até aditar outras. Por outro lado, o disposto no artº 423º nº1 do CPP não se destina, nem nunca se destinou a restringir o objecto da audiência, destina-se a que o Relator explicite quais as questões a merecerem exame especial, o que não afasta o debate em audiência de quaisquer outras. Assim, a falta de especificação dos pontos da motivação que o recorrente pretende ver debatidos não constitui fundamento de indeferimento do requerimento do recorrente para que o recurso seja julgado em audiência, nem o artº 411º nº5 ou o artº 419º nº3 do Código de Processo Penal o afirmam. Acresce que, o Tribunal não pode basear o entendimento de que o recurso deve ser julgado em conferência na al. c) do nº3 do artº 419º do Código de Processo Penal. De facto, aí se diz – tão-só – que o recurso é julgado em conferência quando não tiver sido requerida a realização da audiência. Ora, a realização da audiência foi requerida. Não se diga também que o que aqui se defende é que basta o requerimento para afastar esse normativo. Nestas últimas situações a lei é clara no sentido de o julgamento do recurso ser efectuado em conferência (cfr. o nº3 do artº 419º do CPP), no entanto na al. c) do nº3 do artº 419º do CPP, diz-se que o recurso é julgado em conferência quando não seja requerida a realização da audiência, omitindo-se qualquer referência à realização do julgamento em conferência como sanção para a omissão da especificação dos pontos da motivação que o recorrente pretende ver debatidos no requerimento de interposição do recurso. Mas, ainda que assim não se entendesse, sempre o recorrente havia de ser notificado para aperfeiçoar o seu requerimento especificando quais os pontos do recurso que queria ver debatidos em audiência. Neste sentido, Vinício Ribeiro, in Código de Processo Penal – Notas e Comentários, 3ª edição, Quid Juris Editora, pag. 991 “O julgamento em audiência pressupõe requerimento expresso nesse sentido, com especificação dos pontos que pretende ver debatidos. A falta de tal especificação poderá levar o relator a convidar, à semelhança do que se prevê no nº3 do artº 417º, o recorrente a fazê-lo”. Dir-se-á, ainda, de acordo com Germano Marques da Silva, in “Reforma do Sistema Penal de 2007 – Garantias e Eficácia”, fls. 55/56 que “o requerimento para realização da audiência (…) deveria ser remetido para momento posterior, depois de apresentada a resposta ao recurso, dado que “Só então, recorrente e recorrido poderão ajuizar com mais informação da conveniência da audiência.” Com efeito, pode o recorrente entender que a sua motivação de recurso constitui peça bastante e elucidativa da sua razão e, após a apresentação da(s) resposta(s) ao recurso, verificar da conveniência na realização da audiência por forma a que, em alegações, chamar a atenção do tribunal para algum aspecto que lhe possa escapar (cfr. neste sentido Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal anotado, 16ª edição, pag.921). Acresce que, várias foram as autorizadas vozes que se levantaram contra a alteração legal em causa. Simas Santos defende que a presente alteração no sistema de recursos constitui um rude golpe para a oralidade enquanto o elemento relevante na construção dos recursos - cfr. Simas Santos, revisão de Processo Penal: os recursos, in Que futuro para o Direito Processual Penal? – Simpósio em homenagem a Jorge Figueiredo Dias. Isto porque “no programa assumido pelo Legislador do Código e expresso no Preambulo do diploma que o aprovou, o recurso penal foi concebido como uma via moderna de impugnação, de «estrutura acusatória, com a consequente exigência de uma audiência onde seja respeitada a máxima da oralidade». “E na exposição de motivos respeitante à Revisão de 1988 continuava-se a referir a manutenção da oralidade nos recursos, na crença de que os poderes de iniciativa do Tribunal e os princípios do acusatório e do contraditório só podem razoavelmente efectivar-se, nesta fase, em audiência; bem como a manutenção da autonomia entre a motivação (formatada, destinada a definir e fundamentar o objecto do recurso, com vista ao seu recebimento) e alegações (destinadas à justificação e à discussão do mérito recurso). Oralidade em audiência a que se refere o Tribunal Constitucional, no sentido da conformidade Constitucional da «revista alargada»: «há acrescentar ainda que, no recurso de revista alargada (…), sendo, também ele, de estrutura acusatória, há lugar a uma audiência; e, nesta, pode haver alegações orais» cfr. ob. cit. página 181. Acrescenta ainda Simas Santos na sua exposição que: “No já referido relatório do GPLP era proposta a inversão da regra (oralidade) passava a ser a excepção (requerida). Escrevemos a propósito que a «compreensão de que as finalidades do efectivo funcionamento da oralidade nas audiências penais, não nos devem afastar desse princípio que o próprio relatório reconhece que é apontado pelo direito comparado e pelos compromissos assumidos pelo Estado Português. A solução de substituir a regra da oralidade pela excepção: alegações escritas, não partiu da análise da forma como decorrem as audiências e procura antes responder aprioristicamente a essa dificuldade. Pode-se agir sobre a qualidade da intervenção oral e pode-se, perante a falta quase sistemática dos advogados às audiências, tomar um de dois caminhos: cominação de desistência no caso de segunda falta do advogado, ou dispensa das alegações orais, prosseguindo o processo imediatamente para decisão em conferência». Mas nunca se procurou agir sobre aquelas regras, permitindo o prolongar e aprofundar das dificuldades. Empobrece-se assim a oralidade que, de regra no julgamento dos recursos, passa a excepção, passando as alegações orais a actos processuais supérfluos e a audiência no tribunal de recurso a um direito renunciável, invocação dogmaticamente anódina pois já antes o era e não obstante a regra era a da oralidade. Mas, do mesmo passo, mesmo no caso em que há audiência com alegações orais o seu objectivo é mudado, numa mudança não explicada e que não se compreende imediatamente.” (…) Por outro lado, inverte-se a relação regra (oralidade) versus excepção (alegações escritas): mas também se extinguem as alegações escritas, apelidadas agora de «pura repetição das motivações», quando anteriormente, como se viu, se afirmava a «manutenção da autonomia entre motivação (formatada, destinada a definir e fundamentar o objecto do recurso, com vista ao seu recebimento) e alegações (destinadas à justificação e a discussão do mérito do recurso)». Deve notar-se que estas alterações alargam o espaço de tramitação unitária dos recursos nas Relações e no STJ, aproximando-os, reforçando uma das linhas de orientação do Código. De todo o modo, a audiência oral, uma trave mestra dos recursos no Código sai ferida deste confronto.” Também Germano Marques da Silva levantou dúvidas quanto à alteração legal em causa, sendo que António Henriques Gaspar no Seminário final sobre as garantias e eficácia no quadro da nova reforma penal -publicado in “A reforma do Sistema Penal de 2007 - Garantias e eficácia, pag. 153 termina a sua intervenção dizendo que “o modelo de julgamento do recurso, em que a audiência passa de regra a excepção, pode ser considerado como um retrocesso na modernidade dos sistemas comparados, e a alteração não está assumida como resultado de uma reflexão fundada.” Pelo exposto, não se pode cortar cerce um direito do recorrente que tantas dúvidas tem levantado quanto à sua legalidade pela doutrina e jurisprudência mais avisadas. Assim, o arguido tem direito a ser julgado em audiência no Tribunal da Relação e a ser representado por advogado nessa fase processual que não se cinge, nem se pode cingir a um mero trabalho sobre papéis, como se dizia já no preâmbulo do Código de Processo Penal. Com efeito, na sua redação originária, o Código de Processo Penal de 1987 estabelecia a regra da realização dos recursos em audiência, realizando os princípios da oralidade e da imediação (artigos 421.º e seguintes do CPP, na sua redação originária). No preâmbulo, o legislador marcava a distinção face ao direito anterior, sublinhando que «[c]om o mesmo propósito de emprestar ao recurso maior consistência, procura contrariar-se a tendência para fazer dele um labor meramente rotineiro executado sobre papéis, convertendo-o num conhecimento autêntico de problemas e conflitos reais, mediatizado pela intervenção motivada de pessoas. Por isso se submetem os recursos ao princípio geral - aliás jurídico-constitucionalmente imposto! - da estrutura acusatória, com a consequente exigência de uma audiência onde seja respeitada a máxima da oralidade». Assim, o legislador entendia a realização de uma audiência na fase de recurso como concretização da imposição constitucional da estrutura acusatória do processo. Esta regra foi depois mitigada através das alterações introduzidas ao CPP pela Lei n.º 59/98, de 25 de agosto. Permitiu-se ao recorrente requerer que, «havendo lugar a alegações, elas sejam produzidas por escrito» (n.º 4 do artigo 411.º do CPP, na redação da Lei n.º 59/98). Isto é, mantinha-se o princípio da oralidade da audiência, embora, quando o recorrente o requeresse, o recurso pudesse ser julgado em conferência (se fosse o único recorrente) ou em audiência com os demais, mas sem alegação oral. A intenção subjacente a tal modificação encontrar-se-ia nas dificuldades oriundas da praxis judiciária, porquanto a realização da audiência era, muitas vezes, posta em causa pela falta de presença efetiva dos intervenientes processuais, a implicar a substituição dos advogados constituídos por defensores oficiosos (cfr. Figueiredo Dias, “Para uma reforma global do processo penal português. Da sua necessidade e de algumas orientações fundamentais”, Direito Processual Penal. Estudos, Gestlegal, 2024, p. 127). Todavia, o legislador não deixava a opção exclusivamente nos poderes do recorrente: nos termos do n.º 5 do artigo 417.º do CPP (na redação da Lei n.º 59/98), a realização do recurso em conferência (sem realização de audiência) apenas tinha lugar se «não houver oposição do recorrido»; assim exigindo, pelo menos tacitamente, um acordo de todos os sujeitos processuais. A reforma de 2007 modificou este modelo, consagrando a regra do julgamento do recurso em conferência, salvo se o recorrente requerer a realização de audiência. Deste modo, determinou-se a realização da audiência apenas mediante expresso pedido do recorrente. Uma vez requerida a realização da audiência pelo recorrente, «nem o recorrido se pode opor ao pedido, nem o tribunal de recurso pode negar a pretensão do recorrente» (Helena Morão e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, vol. II, 5.ª edição, Universidade Católica Editora, p. 674), tratando-se de um direito estritamente vinculado. Reafirmando a importância da audiência nos tribunais superiores, o Tribunal Constitucional, no seu recente acórdão nº 644/2025 de 10/7/25 decidiu Julgar inconstitucional, por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição, a norma do n.º 5 do artigo 411.º do Código de Processo Penal segundo a qual apenas o recorrente pode requerer a realização da audiência, não sendo tal faculdade atribuída aos sujeitos afetados pela interposição do recurso, ainda que estes sejam arguidos. De facto, a defesa do arguido, nos dizeres de Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. I, 4ª edição, 2000, pag. 308 e 309 pode ser pessoal ou técnica; “aquela é a que é exercida pessoalmente pelo arguido, esta através ou com a assistência de defensor.” Na actuação do defensor costuma distinguir-se também os actos de assistência dos actos de representação. A distinção não é muito clara. Parece-nos, porém, que a fronteira se estabelece entre os actos que o arguido tem de praticar pessoalmente e relativamente aos quais o defensor apenas o auxilia, o assiste, e os que são por lei reservados ao defensor, por uma parte, e aqueles outros em que o acto pode ser praticado pelo arguido ou pelo defensor, em sua substituição, por outra parte. Nestes, nos actos de representação, o defensor substitui-se ao arguido, manifestando uma vontade que aquele pertence e, por isso, o arguido pode retirar-lhes eficácia, nos termos do artº 63º nº2 do Código de Processo Penal.” Aliás, deve sublinhar-se que o caminho que se trilha é o de passar a existir audiência oral em todos os processos, veja-se neste sentido o artº 681º do Código de Processo Civil e antes dele o artº 727º-A, introduzido pelo DL 303/07 de 24 de Agosto, tendo em conta que o Código de Processo Civil é legislação subsidiária para todos os processos, designadamente o laboral, o administrativo e o penal. Ainda que assim não fosse de entender é manifestamente desproporcional e exagerado indeferir a realização de audiência quando se indicaram os vícios que se pretendem discutir. De qualquer das formas, deve entender-se que a interpretação que se extraia do disposto no artº 411º nº5 do CPP no sentido de que não satisfaz a especificação aí requerida a indicação como objecto da audiência a enumeração de alguns dos vícios assacados ao acórdão nas conclusões do recurso, não podendo ou devendo o requerido ser alvo de despacho de aperfeiçoamento, deve ser julgada inconstitucional por violação do princípio da estrutura acusatória e do acesso aos Tribunais (artºs 20º nº1 e 4 e 32º nº1, 5 e 6 da Constituição)».
4. A Procuradoria Europeia pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação.
5. A reclamante AA apresentou, em ... de ... de 2025, requerimento com o seguinte teor: «Nos dois últimos parágrafos do requerimento de reclamação para a conferência apresentado, disse-se: Ainda que assim não fosse de entender é manifestamente desproporcional e exagerado indeferir a realização de audiência quando se indicaram os vícios que se pretendem discutir. De qualquer das formas, deve entender-se que a interpretação que se extraia do disposto no artº 411º nº5 do CPP no sentido de que não satisfaz a especificação aí requerida a indicação como objecto da audiência a enumeração de alguns dos vícios assacados ao acórdão nas conclusões do recurso, não podendo ou devendo o requerido ser alvo de despacho de aperfeiçoamento, deve ser julgada inconstitucional por violação do princípio da estrutura acusatória e do acesso aos Tribunais (artºs 20º nº1 e 4 e 32º nº1, 5 e 6 da Constituição). Ou seja, a Requerente invocou claramente a violação do princípio da proporcionalidade, mas na frase seguinte não concretizou tal alegação. Daí que se deva ter por corrigido o lapso de escrita ocorrido, no sentido de ter como escrito no último parágrafo do requerimento de reclamação para a conferência, o seguinte: De qualquer das formas, deve entender-se que a interpretação que se extraia do disposto no artº 411º nº5 do CPP no sentido de que não satisfaz a especificação aí requerida a indicação como objecto da audiência a enumeração de alguns dos vícios assacados ao acórdão nas conclusões do recurso, não podendo ou devendo o requerido ser alvo de despacho de aperfeiçoamento, deve ser julgada inconstitucional por violação do princípio da estrutura acusatória, do acesso aos Tribunais e da proporcionalidade (artºs 18º nº2, 20º nº1 e 4 e 32º nº1, 5 e 6 da Constituição)». Termos em que se requer a correcção do lapso de escrita supra analisado, ficando a constar no último parágrafo do requerimento a redacção supra indicada».
6. A Procuradoria Europeia é de parecer que «não se tratando de erro de cálculo ou de escrita nem de correção de vício puramente formal (cfr. art. 146º do Código de Processo Civil), a correção requerida não tem permissão legal».
7. Colhidos os vistos foram os autos à conferência.
* Da questão prévia da rectificação da reclamação
Anteriormente à vigência do Código Civil de 1966 tanto a doutrina como a jurisprudência consideravam que o artigo 665º do Código Civil de 1867, na medida em que permitia a rectificação do erro de escrita na declaração negocial, sem atribuir outras consequências além dessa rectificação, continha um princípio geral de direito, já que teria aplicação em todos os casos em que a expressão material externa não correspondesse, por lapso, ao pensamento do declarante. A única exigência, era a de que o erro fosse manifesto.
Quando o erro material ou de escrita se verificasse em decisões, autos judiciais ou nos articulados era unânime que a rectificação se pudesse fazer a todo o tempo.
Com a entrada em vigor do Código Civil de 1966, o entendimento que era pacífico face ao disposto no artigo 665º do Código de Seabra, passa a ser feito a partir do referido no artigo 249º.
Dispõe este artigo «O simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à rectificação desta».
A doutrina e a jurisprudência têm entendido que o artigo 249º do Código Civil, enuncia um princípio geral, aplicável em todos os casos em que a declaração de vontade contenha um lapso ostensivo que há-de resultar do próprio contexto da declaração, ou advir das circunstâncias que a acompanham, podendo, por isso, aperceber-se deles o declaratário.
O princípio contido no artigo 249º do Código Civil, será, assim, aplicável a todos os actos judiciais ou das partes.
Por outro lado, atento o disposto no artigo 380º do C.P.P., é possível ao juiz, apesar do seu poder jurisdicional se esgotar, em princípio, com a prolação de uma decisão (despacho ou sentença), rectificar erros materiais e esclarecer dúvidas.
Tal norma consagra um princípio geral de rectificação de actos, aplicáveis aos actos dos sujeitos processuais.
Aliás nem se compreenderia que outro fosse o regime, visto que é o próprio artigo 295º do Código Civil, que manda aplicar as disposições referentes aos negócios jurídicos, aos outros actos jurídicos que não o sejam, na medida em que a analogia das situações o justifique. Ora tanto os actos dos sujeitos processuais como os do juiz, são actos jurídicos, que por definição só são concebíveis como produtos da vontade do sujeito que os pratica. In casu, compulsada integralmente a reclamação apresentada, concede-se que, tal qual aduz a reclamante, está em crise um manifesto lapso de escrita.
Assim, defere-se a requerida rectificação, determinando-se que fique a constar a seguinte redacção do último parágrafo da petição de reclamação para a conferência: «De qualquer das formas, deve entender-se que a interpretação que se extraia do disposto no artº 411º nº5 do CPP no sentido de que não satisfaz a especificação aí requerida a indicação como objecto da audiência a enumeração de alguns dos vícios assacados ao acórdão nas conclusões do recurso, não podendo ou devendo o requerido ser alvo de despacho de aperfeiçoamento, deve ser julgada inconstitucional por violação do princípio da estrutura acusatória, do acesso aos Tribunais e da proporcionalidade (artºs 18º nº2, 20º nº1 e 4 e 32º nº1, 5 e 6 da Constituição)».
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II. FUNDAMENTAÇÃO
1. O despacho sob reclamação é do seguinte teor: «Os arguidos AA, BB e CC requerem que os recursos sejam julgados em audiência «para que seja analisada a matéria dos vícios do artº 410º do Código de Processo Penal e as nulidades do acórdão». Vejamos. Nos termos do art. 411º, n.º 5 do C.P.P.: «No requerimento de interposição de recurso o recorrente pode requerer que se realize audiência, especificando os pontos da motivação do recurso que pretende ver debatidos» A actual redacção do citado normativo foi, como é sabido, introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto que, na parte atinente à realização de audiência nos recursos, alterou o arquétipo vigente com o almejo de agilização da respectiva tramitação. Com efeito, até então, a realização de audiência era a regra e as excepções estavam expressamente elencadas na lei. Com a alteração introduzida, a realização da audiência passou a ser facultativa, subordinada a requerimento expresso e dependente da especificação a efectuar pelo requerente. Isto é, nomeadamente, «impôs ao requerente que especificasse, que fizesse uma escolha e que a comunicasse ao tribunal e aos restantes intervenientes processuais, sobre qual a matéria que pretenderia debater nessa Audiência; isto é, impôs ao recorrente que entendesse dever requerer a realização desse acto, que assinalasse, adiantada e especificadamente, quais os pontos concretos da motivação que queria aí ver debatidos»1 É que, imperando agora os princípios da economia e da celeridade processuais, a realização da audiência pressupõe a incidência sobre pontos controversos e concretos, cujo cabal esclarecimento aconselhe (ou imponha) a discussão oral, perante o tribunal de recurso. Ademais, só perante tal especificação será possível ao Tribunal e aos sujeitos processuais procederem, por um lado, à preparação da audiência e, por outro, à condução da mesma, nos termos prevenidos no art. 423º do C.P.P. Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29 de Novembro de 2023, processo n.º 836/20.6PBMTS.P1, in www.dgsi.pt. «I - O pedido de realização de audiência em Processo Penal não constitui um direito processual potestativo, mas um direito sujeito a um ónus. II - Assim, se quiser que a audiência tenha lugar, o recorrente tem de o requerer com a interposição do recurso, sujeito ao ónus de especificação das questões, levadas às conclusões, que pretende ver debatidas. III - Especificar, significa indicar, com a necessária concretização, quais as questões suscitadas que se pretende ver debatidas. IV - Na falta dessa especificação não há audiência e o recurso é julgado em conferência, não se tratando de uma sanção, mas de uma consequência do incumprimento daquele ónus». Volvendo ao caso, é manifesto que os acima mencionados recorrentes não procederam à indicação dos pontos da motivação, nem a qualquer especificação. Assim, e não tendo o legislador, a respeito, previsto a possibilidade de aperfeiçoamento, ao invés do que se verifica a propósito da deficiente formulação de conclusões (conforme art. 417º, n.º 3 do C.P.P.), é de concluir que o incumprimento de tal ónus conflui na não realização da audiência e no julgamento dos recursos em conferência.2 A respeito da conformidade de tal interpretação com os princípios fundamentais ínsitos na Constituição da República Portuguesa, o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 163/2011, já se pronunciou no sentido de que: «(…) a interpretação normativa do n.º 5 do artigo 411º do CPP, segundo a qual “o recorrente que pretenda ver o seu recurso de decisão que conheça a final do objecto do processo, apreciado em audiência no Tribunal da Relação deve requerê-lo aquando da interposição do recurso e indicar quais os pontos da motivação de recurso que pretende ver debatidos, sob pena de indeferimento da sua pretensão” não é contrária à Constituição, seja por violação do direito de assistência por advogado (artigo 32º, n.º 3, da CRP), seja por violação do direito de recurso penal (artigo 32º, n.º 1, da CRP), seja por violação de quaisquer outros princípios ou normas constitucionais, designadamente dos princípios do Estado de Direito (artigo 2º, da CRP), da proporcionalidade (artigo 18º, n.º 2, da CRP) ou do direito ao contraditório em processo penal (artigo 32º, n.º 1, da CRP)». Termos em que se indefere a requerida, pelos arguidos AA, BB e CC, realização de audiência. Notifique».
2. Com as alterações introduzidas ao C.P.P. pela Lei n.º 48/2007, de 29/8, no que ao paradigma dos recursos respeita, o legislador eivado do objectivo de racionalizar o funcionamento dos tribunais superiores, maxime promovendo uma maior intervenção dos juízes que os compõem a título singular, determinou um funcionamento dos tribunais de recurso em trinómio - decisões da competência do relator, em conferência e em audiência - e sem que se verifique uma qualquer relação hierárquica entre estes níveis de decisão (entre si diferenciados e independentes).
Assim sendo, e no que concerne à possibilidade de reclamação para a conferência das decisões do relator, dir-se-á que, por natureza e definição, assumindo-se tal procedimento como meio de controlo da legalidade da decisão proferida, imporá um argumentário concretamente dirigido à decisão prolatada.
No caso, como resulta da reclamação apresentada, a arguida aduz, em suma, que: i. ao requerer a audiência a fim de que seja analisada a matéria dos vícios do art. 410º do Código de Processo Penal e as nulidades do acórdão, o recorrente está a especificar os pontos da motivação que pretende ver debatidos e ao mesmo tempo das conclusões; ii. o facto de não se especificar no requerimento de interposição de recurso os pontos da motivação que pretende ver debatidos não é causa de indeferimento do requerido; iii. a falta de especificação dos pontos da motivação que o recorrente pretende ver debatidos não constitui fundamento de indeferimento do requerimento do recorrente para que o recurso seja julgado em audiência, nem o artº 411º nº 5 ou o artº 419º nº 3 do Código de Processo Penal o afirmam; iv. ainda que assim não se entendesse, o recorrente tinha de ser notificado para aperfeiçoar o seu requerimento especificando quais os pontos do recurso que queria ver debatidos em audiência; v. é manifestamente desproporcional e exagerado indeferir a realização de audiência quando se indicaram os vícios que se pretendem discutir; vi. a interpretação que se extraia do disposto no artº 411º nº 5 do CPP no sentido de que não satisfaz a especificação aí requerida a indicação como objecto da audiência a enumeração de alguns dos vícios assacados ao acórdão nas conclusões do recurso, não podendo ou devendo o requerido ser alvo de despacho de aperfeiçoamento, deve ser julgada inconstitucional por violação do princípio da estrutura acusatória, do acesso aos Tribunais e da proporcionalidade (artºs 18º nº2, 20º nº1 e 4 e 32º nº1, 5 e 6 da Constituição).
Afigura-se, todavia, que sem razão.
Com efeito, «O atual regime de tendencial encerramento da fase de alegações das partes com o termo do prazo para resposta ao recurso resultou de duas opções centrais da revisão empreendida pela L 48/2007: (1) a realização de audiência na fase de recurso passou a estar dependente de (1.1) pedido do recorrente ao abrigo do art. 411./5 caso em que as alegações orais têm como objeto apenas os pontos da motivação de recurso previamente indicados pelo requerente ou sobre o recursos em matéria de facto, ou (1.2) decisão judicial do tribunal que julga o recurso (requerida por uma parte ou oficiosa) determinando a realização desse ato para renovação de prova (arts. 412.°/3/c), 413.º/4, 417.°/7/c)/8, 419.°/3/c), 421.º/1/2, 422.°/1/2 e 423.°/2/3 e 430.º/1/2); (2) eliminação da subfase de alegações escritas perante o tribunal ad quem anteriormente prevista para os casos em que havia renúncia operativa à realização de audiência na fase de recurso».3
E, na verdade, «O prosseguimento do processo para a subfase da audiência, sobre que dispõe o art. 421.º, pressupõe que o recurso não deva sido decidido de forma sumária (art. 417.º) e nem deva ser julgado em conferência (arts. 417.º/9 e 419.º/3), o que por sua vez postula que o recorrente tenha requerido a realização de audiência ou que haja lugar à renovação da prova (arts. 419.º/3/c) e 430.º). Formalmente, o deferimento do pedido de audiência pressupõe que o recorrente cumpra o ónus de especificação dos pontos da motivação que pretende ver ali debatidos [acs. RL 8.2.2017 (ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA) e 24.6.2020 (AUGUSTO LOURENÇO)], não havendo lugar a convite ao aperfeiçoamento [ac. TC 163/2011 e, novamente, ac. RL 24.6.2020 (AUGUSTO LOURENÇO)]»4.
Ora, volvendo à situação em crise, tendo a recorrente requerido a realização da audiência «para que seja analisada a matéria dos vícios do artº 410º do Código de Processo Penal e as nulidades do acórdão» é manifesto que, com tal singela indicação, não deu cumprimento ao ónus de especificação, dos pontos da motivação, que sobre a mesma legalmente impende.
Ademais, reiterando o já explanado no despacho reclamado, não tendo o legislador, a respeito, previsto a possibilidade de aperfeiçoamento, ao invés do que se verifica a propósito da deficiente formulação de conclusões (conforme art. 417º, n.º 3 do C.P.P.), é de concluir que o incumprimento de tal ónus conflui na não realização da audiência e no julgamento dos recursos em conferência.
A respeito da conformidade de tal interpretação com os princípios fundamentais ínsitos na Constituição da República Portuguesa, o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 163/2011, já se pronunciou no sentido de que: «(…) a interpretação normativa do n.º 5 do artigo 411º do CPP, segundo a qual “o recorrente que pretenda ver o seu recurso de decisão que conheça a final do objecto do processo, apreciado em audiência no Tribunal da Relação deve requerê-lo aquando da interposição do recurso e indicar quais os pontos da motivação de recurso que pretende ver debatidos, sob pena de indeferimento da sua pretensão” não é contrária à Constituição, seja por violação do direito de assistência por advogado (artigo 32º, n.º 3, da CRP), seja por violação do direito de recurso penal (artigo 32º, n.º 1, da CRP), seja por violação de quaisquer outros princípios ou normas constitucionais, designadamente dos princípios do Estado de Direito (artigo 2º, da CRP), da proporcionalidade (artigo 18º, n.º 2, da CRP) ou do direito ao contraditório em processo penal (artigo 32º, n.º 1, da CRP)».
«Importará também ter presente a alternativa estabelecida no artigo 419/3 c) do CPP, de onde decorre que há dois casos em que (de forma teleologicamente fundada) a realização da audiência tem plena justificação: (i) quando haja necessidade de o arguido estar presente para prestar declarações ou simplesmente (por via destas) exercer o seu direito de defesa, ou (ii) quando tiver sido (ou dever ser) produzida prova no TR.
Tanto ocorreu, p. ex., no caso Moreira Ferreira contra Portugal (acórdão do TEDH de 5 de Junho de 2011, publicado, para além de na página HUDOC do TEDH, também no «TEDH – Jurisprudência seleccionada», PGR e INCM, 2012, pp. 95-194). Já no caso Constatinescu v. Romenia (decisão de 27 de Junho de 2000, consultável na dita página), o TEDH assinala, significativamente (§ 53) que, quando o tribunal de recurso é chamado a conhecer de facto e de direito e tem de emitir um juízo sobre a culpa ou inocência do acusado, não o pode fazer em sede de fair trial sem a prova «dada em pessoa», pelo acusado, caso este negue a prática dos factos imputados.
Um outro possível caso de audiência necessariamente levada no TR pode resultar da circunstância de o arguido, absolvido em 1.ª instância, vir a ser condenado no TR, contexto em que a jurisprudência fixada no AUJ nº 4/2016 e a (eventual) inviabilidade de um recurso para o STJ podem condicionar a possibilidade de defesa do arguido quanto à culpabilidade e quanto à escolha e medida da pena – figura-se que é o próprio STJ, naquele AUJ, que consente ponderar a produção de prova nos TR, apelando (implicitamente) à necessidade de audição do arguido, em audiência, antes que seja proferida uma decisão condenatória.
Daí que a audiência não possa ser arredada do regime de recursos no CPP, à semelhança do que ocorreu no CPC (artigo 662/2, redacção da Lei 41/2013): porque pode ter um conteúdo útil no âmbito da produção de prova no tribunal de recurso.
Mas não é o caso.
No caso, em que o TR, inelutavelmente, afasta a produção de prova, sobrando o pretexto de realização de audiência no TR apenas para discussão da matéria de direito, ademais quando (…) é o próprio recorrente que, neste âmbito, deixa de respeitar o princípio do pedido e deixa de cumprir o dever de lealdade que lhe incumbe observar para com o Tribunal na preparação da audiência no ponto em que observar o ónus de especificação cominado no artigo 411/5 do CPP, não fará sentido (processual), que se entenda a omissão da oralidade daí decorrente como uma infracção aos direitos de defesa do arguido, que antes exprimiu, na minuta da motivação do recurso, as razões do seu dissentimento relativamente à decisão de 1.ª instância, recorrida»5.
Ante todo o exposto, impõe-se, pois, a improcedência da reclamação.
III. DISPOSITIVO
Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:
a) Negar provimento à reclamação apresentada pela arguida AA;
b) Condenar a reclamante no pagamento de taxa de justiça que se fixa em 3 UC, nos termos da tabela III anexa ao R.C.P.
Notifique.
Lisboa, 20 de Novembro de 2025
Ana Marisa Arnêdo
Ivo Nelson Caires B. Rosa
Jorge Rosas de Castro (vencido, conforme declaração que junta)
Voto vencido
A audiência no tribunal de recurso é um direito que se encontra estabelecido e cuja atuação concreta depende apenas da verificação de dois requisitos, contidos no art. 411º, nº 5 do CPP: (i) que o/a recorrente solicite a sua realização no requerimento de interposição de recurso; (ii) e que nesse requerimento especifique os pontos da motivação do recurso que pretende ver aí debatidos.
No caso concreto, a Reclamante requereu a audiência no momento próprio, o que não está em discussão; e do meu ponto de vista especificou suficientemente, nesse requerimento, os pontos da motivação do recurso que pretende ver debatidos. É certo que essa especificação não foi pormenorizada; mas tinha que o ser?
O que a Reclamante pretenderia ver discutido em audiência eram dois «pontos»: as nulidades invocadas do acórdão recorrido e os vícios deste mesmo acórdão que suscitou no quadro do art. 410º do CPP.
Ora, olhando a motivação do recurso que apresenta, aí se encontra na verdade um «ponto» (nº 2), subordinado ao título «contradição insanável entre os factos e entre os factos e a fundamentação», que cabe na previsão do art. 410º, nº 2, alínea b) do CPP; um outro «ponto» (nº 3), subordinado ao título «insuficiência para a decisão da matéria de facto», que cabe na previsão do art. 410º, nº 2, alínea a) do CPP; e, por fim, ainda um outro «ponto» (nº 4), subordinado ao título «nulidade do acórdão por falta de enumeração de factos», que pode caber na previsão do art. 379º, nº 1, alínea a) do CPP. Sendo que, acrescente-se, todos esses «pontos» encontram ainda expressão nas conclusões do recurso e nessa medida integram plenamente o objeto do mesmo.
Creio que o «dever de especificação» prescrito no art. 411º, nº 5 do CPP é suficientemente cumprido quando, olhando o requerimento da audiência no contexto em que a declaração é feita, isto é, no contexto do recurso interposto, conseguimos perceber, sem qualquer esforço interpretativo, o que pretende o/a recorrente ver discutido em tal audiência.
Tratando-se de um requerimento que enuncia os assuntos a discutir, e estando estes assuntos logo adiante, na mesma peça, explanados desenvolvidamente, não vejo qual seja o problema de ler o requerimento da audiência de forma integrada com o que aí figura.
Nestas circunstâncias, a posição que fez vencimento não tem, salvo melhor opinião, sentido operativo útil, podendo até induzir os sujeitos processuais a uma prolixidade em boa verdade jurídico-materialmente desnecessária.
Olhando o recurso interposto e o requerimento da audiência, não me ocorre nenhuma dúvida quanto ao que a Reclamante pretendia discutir na audiência. Nessa medida, teria deferido a sua realização.
Jorge Rosas de Castro
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1. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10/11/2021, processo n.º 9668/18.0P8LSB.L2-3, in www.dgsi.pt.
2. Neste sentido, para além dos já citados, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 8/2/2017, processo n.º 577/14.3TAALM.L1 e de 24/6/2020, processo n.º 31402/07.7TDLSB.L1-3, in www.dgsi.pt.
3. Paulo Dá Mesquita, Comentário Judiciário do Código do Processo Penal, Tomo V, p. 211/212.
4. Pedro Soares de Albergaria, Comentário Judiciário do Código do Processo Penal, Tomo V, p. 267.
5. Declaração de voto proferida no Acórdão do S.T.J. de 15/7/2021, processo n.º 147/13.3JELSB.L2.S1, in www.dgsi.pt.