JUIZ DE INSTRUÇÃO
INQUÉRITO
NULIDADES
Sumário

Sumário (da responsabilidade da Relatora):
I. O Juiz de Instrução Criminal tem uma actuação que compreende a salvaguarda do Estado de Direito, sendo o mesmo tido como o juiz dos direitos, liberdades e garantias (e aqui temos de entender, não só do arguido, mas de todos que recorrem ao processo penal, nomeadamente, do assistente).
II. O JIC tem competência para o conhecimento de invocadas nulidades insanáveis ocorridas no inquérito, suscitadas pelo assistente após o arquivamento desse inquérito e sem necessidade de este requerer a abertura de instrução, sob pena de violação do direito constitucional de acesso ao direito e aos tribunais.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 9ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
I.1. Por decisão proferida em .../.../2025, em relação à assistente AA, foi decidido não conhecer do requerimento da mesma a suscitar nulidades do inquérito que foi declarado encerrado e arquivado.
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I.2. Recurso da decisão
A assistente interpôs recurso da decisão, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição total das mesmas):
“A) O presente recurso vem interposto do despacho da Senhora Juiz de Instrução Criminal proferido em ........2025, que indeferiu a arguição de nulidade apresentada pela Assistente,
B) Por tal despacho recorrido a Senhora Juiz recorrida considerou, salvo o devido respeito, erradamente, que o JIC não dispõe de competência para apreciar tal nulidade, a qual, segundo refere, “poder-se-ia colocar a nível de intervenção hierárquica”.
C) A Assistente apresentou queixa contra BB, por factos que indiciam, em abstrato, a prática dos crimes de furto e de injúrias.
D) O Ministério Público proferiu despacho de arquivamento sem promover qualquer diligência de inquérito, limitando-se a desvalorizar os factos denunciados, tendo entendido não estarem preenchidos os tipos legais dos crimes invocados.
E) Notificada de tal despacho, a Assistente, ora Alegante, arguiu a nulidade do mesmo, com fundamento na omissão absoluta de inquérito (artigo 119.º, alínea d), do Código de Processo Penal), e na omissão da notificação para deduzir acusação particular quanto ao crime de injúrias (artigo 285.º, n.º 1, do C.P. Penal).
F) O Ministério Público, pronunciou-se quanto a tal arguição de nulidade, que considerou inexistente, sugerindo ser da competência do superior hierárquico a verificação das mesmas.
G) Também a Senhora Juiz recorrida acompanhou essa pronúncia do MP, tendo indeferido a arguição de nulidade por considerar que a mesma não se enquadra nas competências legalmente atribuídas ao juiz de instrução, mas na competência do superior hierárquico.
H) No entanto, o artigo 123.º, n.º 1, do CPP determina que as nulidades devem ser conhecidas oficiosamente logo que detetadas, e essa prerrogativa abrange o Juiz de Instrução Criminal, a quem compete garantir o respeito pelas regras fundamentais do processo, designadamente no âmbito do controlo da legalidade dos atos do Ministério Público.
I) Resulta, pois, do regime conjugado dos artigos 123.º, 268.º e 269.º do C.P.Penal que o juiz de instrução tem legitimidade e dever de pronúncia sobre nulidades insanáveis, independentemente de requerimento da Assistente ou do Ministério Público.
J) Ora, a queixa apresentada pela assistente descreve factos que, em abstrato, integram um crime de furto e um crime de injúrias, com identificação de suspeita (... do prédio), testemunhas (funcionários da transportadora) e elementos objetivos (entrega da encomenda a pessoa diversa da destinatária).
K) Para o Ministério Público, a participação da Assistente, na PSP, pese embora o seu teor, resumiu-se aos crimes de Ameaça e de Injúrias, tendo o Senhor Procurador, com o devido respeito, erradamente, ignorado, por completo, o crime de furto, para além, de não ter realizado uma única diligência de prova.
L) Ora, não obstante os factos denunciados pela ora Alegante, os quais, em abstrato, configuram um crime de furto, o Senhor Procurador não ouviu CC e DD, funcionários da empresa transportadora identificados pela Denunciada na queixa apresentada, bem como a Assistente, ora Alegante, para esclarecer qualquer questão que achasse pertinente e devida para a descoberta da verdade.
M) Para além disso, tendo a participação sido apresentada contra pessoa determinada, cabia ao Ministério Público ouvir a Denunciada e ouvi-la e constituí-la como Arguida no processo.
N) Atento o atrás exposto, estamos perante a omissão absoluta de inquérito, o que determina a nulidade do inquérito, prevista na alínea d) do artigo 119º do C.P.Penal, por insuficiência do mesmo, uma vez que não foram praticados atos legalmente obrigatórios, para além de não terem sido realizadas quaisquer diligências essenciais para a descoberta da verdade.
O) Comete a nulidade insanável de falta de inquérito, prevista na al. d) do artigo 119º do C.P.Penal, o despacho de arquivamento do Ministério Público proferido nos termos do artigo 277 do C. P. Penal, que não tenha sido precedido da realização das necessárias diligências de investigação.
P) Neste sentido, veja-se Acórdão supra citado do Tribunal da Relação de Lisboa de ...-...-2019, publicado em www.dgsi.
Q) No caso dos autos, embora não seja manifesto do teor da queixa apresentada pela Assistente que a conduta que esta imputa a BB não constitua crime (nomeadamente, de furto e injúria), o Ministério Público não procedeu a qualquer das diligências a que se reporta o nº 1 do artigo 262 do Código de Processo Penal, tendo em vista apurar, por exemplo, a quem foi efetivamente entregue a encomenda.
R) Tal omissão por parte do Ministério Público traduz-se na falta de inquérito e consubstancia a nulidade referida na al. d) do artigo 119 do Código do Processo Penal, por referência ainda ao disposto no n.º 2 do artigo 262º do C. P. Penal.
S) Acresce que, a Assistente denunciou que BB disse: “Está aqui a ... e a senhora, que queria roubar a encomenda”.
T) Tais factos consubstanciam, em abstrato, a verificação de um crime de injúrias.
U) Nos termos do artigo 50º, nº 1, do C. P. Penal, quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular.
V) Dispõe o artigo 285º, nº 1, do C. P. Penal, que findo o inquérito, quando o procedimento depender de acusação particular, como é o caso dos autos - crime de injúrias, p. e p. nos artigos 181º e, 188º do C. Penal-, o Ministério Público notifica a Assistente para que esta deduza, em 10 dias, querendo, Acusação Particular.
W) Resulta dos autos que o Ministério Público não notificou a Assistente para deduzir, querendo, Acusação Particular.
X) Tal omissão da notificação da Assistente é correspondente a uma falta de promoção processual, que constitui nulidade, atento o disposto no artigo 119º, alínea b), do Código de Processo Penal, porque, sem a notificação da Assistente para este fim e a consequente dedução da Acusação, o processo não atinge a sua finalidade principal,
Y) Sendo, por isso, nulo. Nulidade que também se arguiu para todos os efeitos legais.
Z) Nesta conformidade, tendo o despacho recorrido desconsiderado as competências do juiz de instrução enquanto garante da legalidade e violado princípios estruturantes do processo penal, designadamente, o disposto nos artigos 118.º, 119.º, 123.º, 262.º, 277.º e 285.º do Código de Processo Penal, deve o mesmo ser revogado, sendo substituído por outro que:
- Reconheça a nulidade insanável do despacho de arquivamento por omissão de diligências de inquérito;
- Declare a nulidade por omissão de notificação da assistente para deduzir acusação particular;
- Determine o reenvio dos autos ao Ministério Público para realização das diligências de inquérito mínimas essenciais e para que seja sanada a omissão de notificação da assistente.
Nestes termos, e nos mais de Direito, requer-se a V. Exas. se dignem admitir e julgar procedente o presente recurso, revogando o despacho recorrido, por violação do disposto nos artigos 118.º, 119.º, 123.º, 262.º, 277.º e 285.º do Código de Processo Penal.
Assim julgando, no sentido propugnado pela ora Alegante, farão V. Exas. a habitual JUSTIÇA!”.
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I.3. Resposta do Ministério Público
O Ministério Público, na resposta ao recurso, pronunciou-se pela sua improcedência, da seguinte forma (transcrição total):
“1. O que está em causa no presente recurso é apenas a questão da legitimidade da Mm.a Juiz de Instrução para conhecer de invocadas nulidades.
2. Nos termos do art.° 268.° do Código de Processo Penal mostram-se previstas as competências que são exclusivamente atribuídas ao juiz de instrução e, nos termos do disposto no artigo 269.° do mesmo diploma legal, encontram-se previstos os atos a ordenar ou autorizar pelo Juiz de Instrução, sendo que em nenhuma das citadas normas legais se enquadra o requerido pela ofendida pelo que não detém competência o juiz de instrução para o efeito
3. O art.° 123.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, invocado pela recorrente. reporta-se às meras irregularidades e prescreve que "1. Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do ato a que se refere e dos termos subsequentes que possa afetar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado."
4. E não o conteúdo que a recorrente afirma conter, em termos de determinar que as nulidades devem ser conhecidas oficiosamente logo que detetadas, incluindo o Juiz de Instrução.
5. As nulidades do inquérito são suscitadas perante o titular do mesmo, ou em sede de intervenção hierárquica, ou mediante requerimento de abertura de instrução, fase processual adequada para que o juiz de Instrução se pronuncie sobre o bem ou mal fundado da acusação ou do arquivamento. 6. Não pode pretender-se, por inexistência de previsão legal, é que o Juiz de Instrução tem competência para dirigir o inquérito, pronunciando-se fora da fase processual eventual da instrução sobre as nulidades do inquérito.
7. Razão pela qual entendemos que bem andou a Mm.a Juiz de Instrução, já que a recorrente não requereu abertura de instrução e não assiste à Juiz de Instrução senão a prática dos atis previstos nos art.°s 268.° e 269.° do Código de Processo Penal, sendo que este último artigo prevê expressamente os atos que, durante o inquérito, compete exclusivamente ao juiz de instrução ordenar ou autorizar (perícias do n.° 3 do art.° 154.° do CPP, exames do art.° 172.°, n.° 2, buscas domiciliárias do art.° 177.°, apreensões de correspondência, interceção, gravação ou registo de conversações ou comunicações e quaisquer outros atos que a lei expressamente fizer depender da ordem ou autorização do juiz de instrução).
8. Nada disso se verifica no caso.
Assim, em conclusão, e com o muito Douto Suprimento de V. Exas. deve o Recurso interposto pela assistente improceder e, em conformidade, manter-se o Douto Despacho recorrido.”.
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I.4. Parecer do Ministério Público
Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer no sentido de improcedência do recurso.
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I.5. Resposta ao parecer
Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), tendo a assistente apresentado resposta ao parecer do Ministério Público, mantendo, em suma, as alegações de recurso.
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I.6. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
II.1. Objecto do recurso
É consabido e decorre de Jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça, que é pelas conclusões apresentadas pelo recorrente que se delimita o objecto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de questões oficiosas (cfr. o art. 410º do CPP).
Assim, da análise das conclusões do recorrente verifica-se que a questão a apreciar e decidir é a de saber se o JIC tem competência para o conhecimento de nulidades suscitadas pela assistente, após o arquivamento do inquérito.
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II.2. Decisão recorrida (que se transcreve na parte atinente ao recurso)
“Veio a ofendida arguir a nulidade do despacho de arquivamento por omissão de inquérito, nos termos dos artigos 119.º, als. b) e d) e 118.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, bem como a arguição de nulidade insanável por omissão da notificação da assistente para os termos e efeitos do artigo 285.º do Código de Processo Penal.
Prevê o artigo 268.º do Código de Processo Penal as competências que são exclusivamente atribuídas ao juiz de instrução. Por sua vez, o artigo 269.º do mesmo diploma legal, prevê que actos competem, em exclusivo, ao juiz de instrução ordenar ou autorizar.
Pois bem, a questão suscitada poder-se-ia colocar a nível de intervenção hierárquica, nos termos e para os efeitos dispostos no artigo 278.º do Código de Processo Penal, sendo certo que em nenhuma das citadas normas legais se enquadra o requerido pela ofendida pelo que não detém competência o juiz de instrução para o efeito.
Nestes termos, nada haverá a determinar quanto ao mesmo.”.
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II.3. Apreciação do recurso
II.3.1. Da competência do JIC para o conhecimento de nulidades suscitadas pela assistente, após o arquivamento do inquérito
O tribunal a quo entendeu não ser de conhecer das nulidades suscitadas pela assistente, por considerar que não cabe no âmbito das competências do JIC e uma vez que a questão podia ter sido colocada ao nível da intervenção hierárquica.
Entende a recorrente que estamos perante nulidades insanáveis e que compete ao JIC o seu conhecimento.
Analisemos as normas legais que poderão estar em causa.
No que diz respeito à competência do juiz de instrução, prescreve o art. 17º do CPP que compete ao juiz de instrução proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento, nos termos prescritos no CPP.
O art. 268º do CPP prevê os actos a praticar pelo juiz de instrução:
“1 - Durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução:
a) Proceder ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido;
b) Proceder à aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção da prevista no artigo 196.º, a qual pode ser aplicada pelo Ministério Público;
c) Proceder a buscas e apreensões em escritório de advogado, consultório médico ou estabelecimento bancário, nos termos do n.º 5 do artigo 177.º, do n.º 1 do artigo 180.º e do artigo 181.º;
d) Tomar conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo da correspondência apreendida, nos termos do n.º 3 do artigo 179.º;
e) Declarar a perda a favor do Estado de bens apreendidos, com expressa menção das disposições legais aplicadas, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos artigos 277.º, 280.º e 282.º;
f) Praticar quaisquer outros actos que a lei expressamente reservar ao juiz de instrução.
2 - O juiz pratica os actos referidos no número anterior a requerimento do Ministério Público, da autoridade de polícia criminal em caso de urgência ou de perigo na demora, do arguido ou do assistente.
3 - O requerimento, quando proveniente do Ministério Público ou de autoridade de polícia criminal, não está sujeito a quaisquer formalidades.
4 - Nos casos referidos nos números anteriores, o juiz decide, no prazo máximo de vinte e quatro horas, com base na informação que, conjuntamente com o requerimento, lhe for prestada, dispensando a apresentação dos autos sempre que a não considerar imprescindível.”
Por sua vez, o art. 269º do CPP prevê os actos a ordenar ou autorizar pelo juiz de instrução:
“1 - Durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução ordenar ou autorizar:
a) A efetivação de perícias, nos termos do n.º 3 do artigo 154.º;
b) A efectivação de exames, nos termos do n.º 2 do artigo 172.º;
c) Buscas domiciliárias, nos termos e com os limites do artigo 177.º;
d) Apreensões de correspondência, nos termos do n.º 1 do artigo 179.º;
e) Intercepção, gravação ou registo de conversações ou comunicações, nos termos dos artigos 187.º e 189.º;
f) A prática de quaisquer outros actos que a lei expressamente fizer depender de ordem ou autorização do juiz de instrução.
2 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo anterior.”
Como se verifica destes preceitos legais, a enumeração dos actos a praticar pelo JIC não é taxativa, deixando em aberto a consideração de outros actos previstos no CPP, como por exemplo, a admissão do assistente (art. 68º do CPP), as declarações para memória futura (art. 271º do CPP) e a suspensão provisória do processo (art. 281º do CPP), como também de outros actos, correspondentes à função jurisdicional, a praticar até ao envio do processo para julgamento (porque aí, essa função de análise e decisão, já pertencerá ao juiz do julgamento). Também em termos de conhecimento das nulidades, a lei não afasta o seu conhecimento pelo JIC (cfr., por exemplo, os arts. 119º e 122º, n.º 3, do CPP) e, mal se compreenderia que o juiz do julgamento delas pudesse conhecer, nomeadamente quando recebe os autos para eventual marcação de julgamento e, no caso de arquivamento do inquérito, essas nulidades não pudessem ser conhecidas pelo juiz de instrução criminal, quando arguidas pelo assistente, fora do formalismo da abertura de instrução.
Mas outros preceitos podemos entender que balizam e ao mesmo tempo reclamam a intervenção do Juiz de Instrução Criminal, porque a sua actuação compreende a salvaguarda do Estado de Direito, sendo o mesmo tido como o juiz dos direitos, liberdades e garantias1 (e aqui temos de entender, não só do arguido, mas de todos que recorrem ao processo penal).
O art. 202º do Constituição da República Portuguesa, relativo à função jurisdicional, estatui que os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo (n.º 1), sendo que, na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados (n.º 2), tendo os tribunais, no exercício das suas funções, direito à coadjuvação das outras autoridades (n.º 3), podendo a lei institucionalizar instrumentos e formas de composição não jurisdicional de conflitos (n.º 4).
Acresce que, relativamente às garantias de processo criminal, prescreve o art. 32º da CRP que:
“1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
2. Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.
3. O arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória.
4. Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais.
5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
6. A lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento.
7. O ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei.
8. São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
9. Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.
10. Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.”.
Por outro lado, nos termos do artigo 20º da CRP (Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva):
“1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.
3. A lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça.
4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.
5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.”.
Extrai-se destas normas, nomeadamente e no que ao caso concreto interessa, que o ofendido tem direito a intervir no processo, a todos sendo garantido o direito de acesso aos tribunais e ao recurso (o que resulta também das normas do processo penal).
A todos é garantido o chamado ‘direito ao juiz’, o direito a que a sua causa seja apreciada e decidida (com susceptibilidade de recurso nos termos estipulados por lei), constituindo, ainda, garantia constitucional, o direito à integridade pessoal (art. 25º da CRP), onde se inclui a integridade moral das pessoas2 (consagrado no Título II da CRP, quanto aos direitos, liberdades e garantias).
No caso concreto, a recorrente invoca a existência de nulidades insanáveis, seja pela falta de inquérito e diligências necessárias e omissão total de pronúncia em relação a um dos crimes (de furto), seja pela falta de notificação para deduzir acusação particular (quanto ao alegado crime de injúria) – arts. 48º; 119º; 262º; 277º; 285º, do CPP.
No caso sub judice, compulsado o inquérito, verifica-se que além da queixa apresentada pela ofendida, mais nenhum acto (entenda-se de prova/investigação) foi praticado nos autos de inquérito.
É do seguinte teor a queixa apresentada:
“Por data e hora acima mencionado, compareceu neste departamento policial, AA (Lesado/Ofendido), a informar que a ... do seu prédio, ficou com a sua encomenda.
A mesma informou, que no dia ... de ... de 2024, estaria previsto receber uma encomenda da ..., que seria entregue pela a empresa de transportador, ....
AA, por não se encontrar em casa, o ..., CC, funcionário da empresa da transportadora, entregou a encomenda a, BB (Suspeita), ... do prédio, pelas 10H02, informação essa que foi fornecida pelo funcionário, DD, da loja que se situa na Av. ... Lisboa .
Por a mesma, ter conhecimento que a sua encomenda já teria sido entregue, ao chegar ao prédio, visualizou um saco que se fazia parecer da sua encomenda, dirigiu-se de imediato a encomenda com intuito de saber se era a sua encomenda, porem foi surpreendida, por BB, onde a mesma tirou-lhe das mãos e afirmou que para não tocar na encomenda e que não seria para a mesma.
AA, questionou a mesma, se não poderia visualizar a etiqueta, porém, BB, com um tom hostil, que não e, de imediato abriu a porta da sua residência, colocando a mesma no interior.
Por a mesma ter algumas desavenças, com a ..., decidiu por bem de todos, ir ter com a ... do condomínio, EE, que reside no 6º B, para confirmar a situação.
Deparando se com tal situação, EE, e AA, dirigiram-se de imediato, ao andar da ..., que se situa no R/C, para questionar, BB, se a encomenda que se encontrava ali, pertencia a, AA.
BB, ao abrir a porta do prédio, encontrava-se a falar ao telemóvel, e proferiu a seguinte frase: "Está aqui a ... e a senhora, que queria roubar a encomenda", de seguida, com um comportamento agressivo, respondeu que a encomenda não pertencia a, AA, e não a mostrava, e não tem que mostrar, porém o marido de, BB ao se deparar com tal cenário, afirmou que a encomenda seria do 1º A, a quem já teria sido entregue.
BB, ainda proferiu a seguinte frase: "A ... e tu quando morreres, ides no mesmo caixote".
A ameaça proferida causou intimidação a vitima, provocando-lhe medo, inquietação.
Por no edifício existir sistema de videovigilância, foi solicitado a preservação das imagens, conforme notificação se apensa.
Importa salientar que durante a elaboração do expediente, AA, foi contactada pelo ..., CC, através do numero de telemóvel ..., onde o mesmo afirmou outra versão do acontecido, sendo que tinha deixado a encomenda na porta do 2º C, por não estar lá ninguém e, não teria deixado com a ..., destorcendo a primeira versão do mesmo e, que iria fazer uma espera na residência da mesma, para resolver a situação, porem de imediato, AA, afirmou que o mesmo deveria ir embora.
Face ao exposto, em virtude de desejar procedimento criminal, foi notificada nos termos dos artigos 75º, 76º e 77º e 247º, do Código de Processo Penal e Lei n.º 34/2004, de ..., bem como lhe foi atribuído o Estatuto de Vítima e respetivo comprovativo, conforme documentos em anexo.
Para os efeitos tidos por convenientes lavrou-se o presente documento, Auto de Denúncia , que foi integralmente lido e revisto e vai devidamente assinado pelo denunciante e pelo autuante.”.
A seguir à queixa, sem a realização de quaisquer diligências, o Digno Magistrado do Ministério Público proferiu o seguinte despacho de arquivamento:
“*
Declaro encerrado o inquérito – art.º 276.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (doravante CPP)
*
Prazo de prescrição: ........2029 (meramente indicativo). Registe na capa e no citius
*
Nos presentes autos estão em causa factos de que se queixou AA contra BB, por esta, no contexto de uma evidente desavença entre ambas – a primeira reside no prédio em que a segunda é ... -, lhe ter recusado visualizar o pacote de uma encomenda que na verdade não lhe era destinada, mas a outro
morador do prédio.
Tal ocorreu a ........2024, pelas 16h30, sendo que a denunciada terá dito à denunciante e à ... do condomínio – esta não se queixou sequer – que quando morrerem vão no mesmo caixão.
Tal afirmação não traduz a prática de qualquer crime de Ameaça p. e p. pelo art.º 153.º, n.º 1, do Código Penal e, portanto, também não integra a prática de um crime de Ameaça agravada, por se tratar de ameaça de morte, que na verdade não trata.
A afirmação traduz apenas que serão, no entender da denunciada, pessoas da mesma qualidade, nada mais. Não estamos perante uma ameaça futura e incondicional com a prática de qualquer crime contra a vida, a integridade física, a liberdade ou outro dos bens jurídicos elencados no citado n.º 1 do art.º 153.º.
A expressão dita ao telefone “Está aqui a ... e a senhora que queria roubar a encomenda” é meramente deselegante e traduz uma forma popular de afirmar que a denunciante
quereria levar consigo a encomenda e que a denunciada não o deixou por não lhe ser destinada.
Não integra, pois, a prática de qualquer crime contra a honra ou consideração da visada.
Não sendo os factos crime impõe-se proceder ao arquivamento do inquérito – art.º 277.º, n.º 1, do CPP.
Pelo exposto, por ausência de crimes, determino o arquivamento do inquérito – art.º 277.º, n.º 1, do CPP.
*
Notifique a Ilustre Advogada para o email profissional, solicitando que, igualmente, informe, em prazo não superior a 5 dias, se mantém a pretensão de requerer a intervenção como Assistente.
Notifique a denunciante por via postal registada com PR.
*
P. e R. – art.º 94.º, n.º 2, do CPP
*
Lisboa., d.e.s. (data eletrónica supra)”.
De seguida, a ofendida apresentou requerimento a suscitar ao JIC a questão da existência de nulidades insanáveis.
Após notificação da ofendida, pelo MP, para que esclarecesse se pretendia requerer a abertura de instrução e resposta negativa da mesma, o Digno Magistrado do MP proferiu a .../.../2025 o seguinte despacho (anterior à remessa para o JIC, que proferiu o despacho sob recurso):
“Fls. 24-28verso e 34:
Indefere-se a requerida arguição de nulidade do inquérito, porquanto, na ausência de qualquer crime – fundamento do arquivamento – o Ministério Público está legalmente impedido de realizar diligências de investigação – art.º 262.º, n.º 1, à contrário, do Código de Processo Penal.
A requerente teve a possibilidade de, querendo, requerer abertura de instrução ou, se assim o pretender e estiver em tempo, pode suscitar a intervenção hierárquica.
Pelo exposto, mantém-se o arquivamento.
Notifique.
*
Fls. 13-16: atenta a requerida intervenção como assistente, apresente os autos à/ao Mm.ª/ºJuiz de Instrução. Nada a opor.
*
P. e R. – art.º 94.º, n.º 2, do CPP
*
Lisboa., d.e.s. (data eletrónica supra)”.
Assente esta tramitação, o que importa a este tribunal decidir, é se cabe ou não ao JIC pronunciar-se sobre a questão das nulidades suscitadas (não nos cabendo conhecer da existência dessas nulidades, por não ter havido, ainda, decisão de qualquer juiz sobre essa matéria). Não podemos, no entanto, deixar de referir que, tendo em consideração o alegado, a análise do tribunal recorrido terá de ser com base em eventuais nulidades insanáveis, face ao invocado crime de furto e à necessidade de investigação e eventual recolha de indícios em relação ao mesmo e devido, por outro lado, à invocada ausência de notificação da assistente para deduzir acusação particular, não obstante o MP poder não a acompanhar3.
Não obstante o nosso processo penal ter estrutura acusatória, sendo o MP uma magistratura independente, o certo é que, muito embora qualquer nulidade pudesse ter sido suprida pelo detentor do inquérito, o problema que se coloca é quando o mesmo entende que não existe qualquer nulidade e, arquivando o inquérito, importa saber quais são os meios de defesa, no caso, do assistente, uma vez que não pode recorrer de tal despacho.
Pode reclamar, é certo, para o superior hierárquico (art. 278º4 do CPP, intervenção hierárquica), mas não existe na lei qualquer sentido preclusivo desse meio e sempre restaria a mesma questão, no caso de ser mantido o despacho de arquivamento, como poderia o assistente reagir.
E será obrigado a requerer a abertura de instrução?
Para aquilatarmos de tal possibilidade/obrigatoriedade, há que atentar nos fins e objectivos da instrução.
Nos termos do art. 286º do CPP (finalidade e âmbito da instrução), a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (n.º 1), tendo carácter facultativo (n.º 2) e não havendo lugar à mesma nas formas de processo especiais (n.º 3).
Por seu turno, o art. 287º do CPP, quando ao requerimento para abertura da instrução, prevê o seguinte:
“1 - A abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento:
a) Pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação; ou
b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
2 - O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º, não podendo ser indicadas mais de 20 testemunhas.
3 - O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
4 - No despacho de abertura de instrução o juiz nomeia defensor ao arguido que não tenha advogado constituído nem defensor nomeado.
5 - O despacho de abertura de instrução é notificado ao Ministério Público, ao assistente, ao arguido e ao seu defensor.
6 - É aplicável o disposto no n.º 14 do artigo 113.º”.
Com tal projecção legal, mostra-se duvidoso o recurso pela assistente ao requerimento de abertura de instrução, quando no fundo só pretende arguir nulidades insanáveis e quando o fim da instrução consiste, ou em confirmar a dedução de acusação ou a decisão de arquivamento do inquérito (286º, n.º 1, do CPP) e, in casu, a assistente pretende ‘apenas’ que se conheça das nulidades invocadas, pois não pretende que se confirme o arquivamento do inquérito (quer o oposto), nem que se confirme uma acusação, inexistente e para a qual nem sequer possui (ainda e eventualmente) elementos (art. 287º, n.º 1, al. b), do CPP), pois não foi realizada qualquer investigação.
Perante este quadro legal e factual, não nos parece que a assistente possa ficar sem a possibilidade de ver a questão que suscitou ser analisada por um juiz (pelo juiz de instrução criminal – que pode fiscalizar os actos que contendam com direitos, liberdades e garantias constitucionais –, uma vez que o processo não foi enviado para julgamento e não se aplica o art. 311º5 do CPP), sob pena de violação do direito constitucional de acesso ao direito e aos tribunais.
Como decorre do Ac. da RL de 24/09/2015, processo n.º 208/13.9TELSB-B.L1-9, in www.dgsi.pt, quando aborda a questão da intervenção do juiz de instrução criminal, ainda que o inquérito não esteja findo, mas quando estão em causa os direitos, liberdades e garantias constitucionais, mesmo em relação a um suspeito (que não ainda arguido), não se trata obviamente de pôr em causa a autonomia do Ministério Público, mas antes de salvaguardar direitos dos cidadãos. Depois da incursão legislativa que se faz em tal acórdão, pode ler-se:
“Da leitura destes preceitos e da norma que atribui a competência ao juiz de instrução já citada, parece concluir-se que o legislador não estabeleceu um numerus clausus no que respeita às competências do juiz de instrução, nomeadamente no que respeita à sua intervenção no inquérito. Se o legislador tivesse pretendido que a intervenção do juiz de instrução se cingisse apenas aos casos expressamente previstos na lei, não teria lançado mão de normas em branco em matéria de competência mesmo, ainda que de forma ambígua, nas normas em que especificadamente a consagra como são os artigos 268º e 269º do Código de Processo Penal.
É tendo na base esta opção legislativa, a qual se compreende dado o melindre das matérias em causa, que o legislador, em matéria de apreciação de nulidades cometidas em sede de inquérito, parece apontar para uma competência do juiz de instrução, em tudo que se prenda com direitos liberdades e garantias.
Esta mesma percepção pode ser retirada das disposições do Código de Processo Penal em matéria de nulidades. Na verdade, ainda que o legislador não diga expressamente a quem compete apreciar as nulidades cometidas em sede de inquérito, o mesmo, no inciso 122º nº 3 do Código de Processo Penal, relativo aos efeitos da declaração de nulidade, estatui que, “Ao declarar a nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela”. Em todo o articulado referente às nulidades, com excepção deste preceito, nunca se faz qualquer referência à competência do juiz ou do Ministério Público, nem se distinguem as várias fases do processo criminal, para além do que resulta da tipificação das várias nulidades expressamente cominadas.
Significa isto que a competência para apreciar as nulidades cometidas em sede de inquérito é do Ministério Público ou, pelo contrário, é do juiz de instrução, atenta a referência ao juiz no que respeita aos efeitos de declaração de nulidade?
A questão é controversa na doutrina e na jurisprudência.
Na doutrina, o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, defende a tese de que a competência para apreciação das nulidades em sede de Inquérito é do Ministério Público considerando que, “(…) Durante o inquérito o MP e o juiz de instrução têm ambos competência para declarar um acto processual inexistente, nulo ou irregular ou uma prova proibida. Esta solução é imposta pela conjugação de dois princípios estruturantes do processo penal: o princípio da legalidade e o princípio da estrutura acusatória do processo penal (…) Contudo, esta concorrência concorrente tem limites e eles resultam da estrutura acusatória do processo penal. Esta estrutura implica uma separação orgânica e funcional entre as duas magistraturas que se verifica mesmo na fase de inquérito. Assim, durante o inquérito, o juiz de instrução só pode conhecer da ilegalidade dos actos da sua competência e o magistrado do MP só pode conhecer da ilegalidade de actos da sua competência, nestes se incluindo actos investigatórios”.[10] No mesmo sentido Paulo Dá Mesquita, o qual considera que, “ (…) a metodologia funcional da Constituição da República Portuguesa não acolheu tal conceito material de jurisdição. Portanto ao MP compete conhecer e apreciar as nulidades em fase de Inquérito, (…) contudo esta decisão do MP, sendo definitiva na sequência procedimental do Inquérito, não vincula o órgão judicial que tiver de intervir nas subsequentes fases processuais (…) o MP detém um poder de cognoscibilidade que, contudo, não forma caso decidido, (…) existindo ainda um poder judicial de controlo dessas invalidades, em sede de incidentes judiciais em que se revelem os actos inválidos ou no decurso de fases dirigidas judicialmente”.[11][12]
Em sentido oposto vai a opinião de João Conde Correia o qual, ainda que entenda que o Ministério Público pode repara as invalidades cometidas por si próprio na fase de Inquérito, defende que “(…) o Ministério Público não tem competência para declarar a invalidade, atento o carácter materialmente judicial da declaração de invalidade. Desde logo porque as decisões do MP não estão protegidas pela força de caso julgado e delas não é possível recorrer”[13][14].
Esta mesma divergência de posições também se verifica ao nível jurisprudencial.
No sentido de que a competência é do Ministério Público podem consultar-se os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 26/02/2014, Proc. 9585/11.5TDPRT.P1; de 15/2/2012, Proc. 36/09.6TAVNH.P1 e de 2/11/2015, Proc. 0541293, acórdão da Relação de Guimarães de 20/09/2010, Proc. 89/09.7GCGMR.G1; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24/05/2011, Proc. 1566/08.2TACSC.L1.5[15].
Em sentido oposto de que a competência é do juiz de instrução podem consultar-se, acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 07.02.1996, CJ, XXI, I, 51; do Tribunal da Relação do Porto de 30.05.2001, CJ, XXVI, III, 241; do Tribunal da Relação de Évora de 02.07.1996, CJ, XXI, IV, 296 e do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-09-2008, Proc. 1640/06.0TAAVR-C.C1[16].
(…)
Tendo em atenção esta perspectiva, a argumentação expendida em alguma doutrina e jurisprudência citadas, segundo as quais, mesmo conhecendo o Ministério Público das invalidades, sempre haverá um controlo judicial das mesmas, seja ao nível de incidentes judiciais, seja nas fases jurisdicionalizadas do processo, não nos parece que seja a que melhor se adequa aos princípios do processo penal. Nesta tese teríamos que aguardar alguma intervenção incidental do juiz de instrução ou que o processo passasse para a fase de instrução, para a ser apreciada jurisdicionalmente a alegada violação do direito de defesa. Inexistindo tal intervenção a apreciação jurisdicional nunca se verificaria.
Com o devido respeito não nos parece que esta solução mereça acolhimento. Em questões de alegada violação de direitos liberdades e garantias, a intervenção jurisdicional impõe-se, no imediato, independentemente da fase processual em que a mesma ocorra, assim se garantindo a tutela jurisdicional consagrada no texto constitucional e materializando o “direito ao juiz” que a mesma comporta.
Perfilhando nós a corrente doutrinal e jurisprudencial que confere ao juiz de instrução competência para apreciar as invalidades cometidas em inquérito sempre que contendam com direitos liberdades e garantias, tanto mais que as normas constitucionais são de aplicação directa (artigo 18º Constituição da República Portuguesa), não pode, no caso em apreço, o juiz de instrução deixar de apreciar o requerimento apresentado pelo recorrente.
Esta solução em nada contende com a circunstância de a direcção do Inquérito ser da competência do Ministério Público, nem coloca em crise o princípio do acusatório que rege o processo criminal.
(…)
O princípio do acusatório não implica, nem exige estanquicidade nas várias fases do processo no que respeita à intervenção dos vários órgãos com competência em sede processo criminal. O que exige, por força do julgamento justo e equitativo que resulta das várias normas constitucionais em matéria de processo criminal e de direitos liberdades e garantias, é que a apreciação de todas as questões em que os mesmos estejam em causa, seja feita por um órgão jurisdicional, neste caso o juiz de instrução, atenta as suas garantias de independência e imparcialidade.”.
Refira-se, em síntese, que o próprio enquadramento das nulidades sugere o seu conhecimento pelo juiz (art. 122º, n.º 3, do CPP6), sendo que em relação às nulidades dependentes de arguição refere-se mesmo à possibilidade do seu conhecimento, no caso de não haver instrução e após o encerramento do inquérito (art. 120º, n.º 3, al. c), do CPP)7.
Em suma, não vemos óbice a que o juiz de instrução criminal conheça do requerimento da assistente a arguir nulidades insanáveis, após o arquivamento do inquérito e por causa dele, antes se entende que só com essa reacção pode assegurar os seus direitos e ver a sua pretensão conhecida, seja ela deferida ou indeferida, mas sempre com possibilidade de recurso sobre a decisão, o que não aconteceria com o despacho do Ministério Público.
Procede, pois, o recurso interposto pela assistente, no sentido de o juiz de instrução criminal ser competente para apreciar o requerimento apresentado.
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III- DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a 9ª Secção deste Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso da assistente AA e AA e, em consequência, revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que conheça das nulidades invocadas.
Sem custas.
Notifique.
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Lisboa, 20/11/2025
(Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários)
Paula Cristina Borges Gonçalves
Ivo Nelson Caires B. Rosa
Marlene Fortuna
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1. Acórdão da RL de 07/12/2016, processo n.º 333/14.9TELSB-F.L1-3, in www.dgsi.pt, onde se pode ler: “1.Ainda que o MP seja quem dirige o Inquérito, o JIC é o Juiz dos Direitos Liberdades e Garantias. 2.Sempre que lhe pareça estarem a ser postos em causa Direitos, Liberdades ou Garantias, é da competência do JIC pronunciar-se sobre tal questão mesmo que a matéria em causa, seja o da competência do MP.”
2. Que se pode entender como invocado na queixa apresentada pela assistente.
3. Veja-se, neste sentido, da existência de nulidades insanáveis, os seguintes Acs.:
- da RL de 30/05/2019, processo n.º 1584/18.2T9SNT.L1-9, in www.dgsi.pt, onde se confirmou uma decisão do JIC que conheceu da nulidade insanável quanto ao encerramento do inquérito:
“I-Se o Ministério Público profere despacho de arquivamento sem proceder a qualquer diligência no âmbito do inquérito ignorando um patamar minimo de investigação face aos factos denunciados, comete a nulidade insanável de falta de inquérito prevista no art. 119.°, aI. d), do CPP;
II-O que efectivamente interessa saber, é , se a denúncia, tal como é apresentada, tem alguma potencialidade para configurar um crime. Se de forma evidente e conclusiva não houver crime, nem deve ser aberto inquérito. Mas se houver indicios ou suspeitas, mesmo ténues que sejam, tem que haver inquérito, procedendo-se pelo menos à inquirição do arguido/suspeito, antes de eventualmente o Ministério Público decidir arquivar o inquérito;
III-Tendo sido totalmente omitido o inquérito num caso em que a lei determina a sua obrigatoriedade, estamos perante uma nulidade insanável, de conhecimento oficioso, a que alude o art. 119.°, aI. d), do Código de Processo Penal (cf. ainda o art. 118°, n.° 1, do mesmo código).”.
- da RP de 18/12/2028, processo n.º 720/16.8T9VFR.P1, in APMJ - Associação Portuguesa de Mulheres Juristas:
“I – Não tendo o Ministério Público emitido pronúncia relativamente aos crimes de natureza pública e semi-pública denunciados pela assistente, não obstante se ter considerado não se enquadrarem os mesmos nos crimes de violência doméstica, o despacho de arquivamento padece da nulidade insanável a que se reporta o artigo 119, al. b) do Código de Processo Penal.
II – Constitui a mesma nulidade insanável a falta de notificação à assistente nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 285º, nº 1, do Código de Processo Penal, no que ao crime de natureza particular se refere. (…)”.
4. “1 - No prazo de 20 dias a contar da data em que a abertura de instrução já não puder ser requerida, o imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público pode, por sua iniciativa ou a requerimento do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, determinar que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam, indicando, neste caso, as diligências a efectuar e o prazo para o seu cumprimento.
2 - O assistente e o denunciante com a faculdade de se constituir assistente podem, se optarem por não requerer a abertura da instrução, suscitar a intervenção hierárquica, ao abrigo do número anterior, no prazo previsto para aquele requerimento.”
5. Artigo 311.º
Saneamento do processo
1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respectivamente.
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.
6. E não art. 123º do CPP, como certamente por lapso a recorrente refere.
7. E o conhecimento das nulidades, no caso de encerramento do inquérito, pelo juiz de instrução (veja-se, nesta parte e nesse sentido, também o Ac. da RG, de 25/02/2025, processo n.º 338/23.9GAAMR-A.G1, in www.dgsi.pt, onde se refere na sua fundamentação: “Sendo que, relativamente a nulidades dependentes de arguição que respeitem ao inquérito, finda esta fase processual, elas podem ainda ser invocadas até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito, já competindo então ao juiz de instrução delas conhecer (cf. artigo 120.º, nº 3, al. c), do Código de Processo Penal).”.