IN DUBIO PRO REO
PERÍCIA
INDEFERIMENTO
DIREITO DE DEFESA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA
CÚMULO JURÍDICO DE PENAS
INDEMNIZAÇÃO
Sumário

Sumário (da responsabilidade do Relator):
1. O indeferimento de perícia, fundado na sua impertinência, inutilidade e ausência de relevância probatória (arts. 130.º e 340.º CPP), não viola o direito de defesa, sendo legítimo quando a diligência não contribui para a descoberta da verdade e visa apenas suprir inatividade probatória do arguido.
2. O princípio in dubio pro reo constitui corolário do contraditório efetivo e do direito de defesa, operando apenas quando, após o confronto dialético da prova e da contraprova, subsista dúvida racional sobre a ocorrência dos factos.
3. A falta de contraprova não gera dúvida razoável; esta apenas se forma quando exista prova contraditória ou inconclusiva. O arguido tem o direito de suscitar a dúvida através da contraprova, mas não o direito a que o tribunal duvide sem fundamento racional.
4. O art. 283.º, n.º 3, al. b) do Código de Processo Penal impõe que a acusação contenha uma descrição factual concreta e delimitada, em tempo, lugar e modo, dos factos imputados ao arguido, sob pena de violação dos princípios do contraditório e do processo equitativo.
5. A insuficiência ou vaguidão da descrição fáctica compromete a possibilidade de defesa efetiva, violando o direito constitucional do arguido ao contraditório e à presunção de inocência (art. 32.º, n.os 1 e 5, da CRP).
6. A incoerência anatómica ou semântica de um depoimento infantil não invalida a perceção consciente do abuso, sendo compatível com as limitações linguísticas próprias da idade e com os mecanismos psicológicos de trauma e evocação fragmentada.
7. O aparente afeto da vítima pelo agressor é fenómeno conhecido da psicologia forense, configurando um vínculo traumático ou expressão de síndrome de Estocolmo infantil, sem valor excludente da prática dos atos criminosos, mas sim revelador da intensidade do trauma.
8. O abuso sexual infantil produz danos neurológicos e emocionais profundos e duradouros, cientificamente comprovados, que afetam a saúde mental e física ao longo da vida, que impõem a agravação das exigências de prevenção geral e especial.
9. Na determinação da pena, o tribunal deve atender à gravidade objetiva e subjetiva dos factos, à idade das vítimas, à multiplicação de condutas e à ausência de arrependimento, ponderando as finalidades de proteção de bens jurídicos e de reintegração social (art. 40.º do CP).
10. A indemnização por danos morais deve ser fixada segundo os critérios dos arts. 496.º e 566.º do CC, tendo em conta a gravidade do sofrimento, o grau de culpa e a irreversibilidade do dano, assegurando uma compensação equitativa e afirmando o valor constitucional da dignidade humana.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa,

I. Relatório:
No Processo Comum n.º 226/23.9..., que correu termos no juízo Central Cível e Criminal de Angra do Heroísmo - Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, em que é arguido e recorrente AA, melhor identificado nos autos, foram interpostos pelo arguido dois recursos, um interlocutório, e outro do acórdão final.
Quanto ao recurso interlocutório interposto:
O arguido na sua contestação de ...-...-2024, para além do mais, requereu (transcrição) «(…) a realização de perícia médico sexual e urológica ao arguido, que se subordina aos seguintes quesitos:
1. Padece o doente de alguma doença do qual tenha resultado a disfunção erétil?
2. No caso concreto do arguido em que se concretiza essa disfunção?
3. Consegue o arguido obter uma ereção?
4. Em caso negativo, o quadro clínico apreciado pelos senhores peritos permitem a consumação de um ato de coito anal com uma menor de 7 anos?
5. Quais as dimensões do pénis do arguido:
a) Do comprimento penial?
b) Do perímetro penial?»
Por despacho de ...-...-2024, foi ordenado o contraditório ao Ministério Público quanto à requerida perícia, que a ...-...-2025 promoveu que não se opunha, apresentou quesitos, e sendo deferida que fosse também efetuada perícia às vítimas BB e CC.
E em audiência de julgamento, a ...-...-2025, o tribunal coletivo proferiu a seguinte decisão (transcrição):
«DESPACHO
Requereu o arguido a realização de perícia médico legal à sua função sexual para diagnóstico de disfunção erétil e incapacidade de ereção, por um lado, e para aferir as medidas do seu pénis, (deduz-se que para prova da impossibilidade de atos de cópula com introdução completa do seu órgão sexual no ânus de uma criança), por outro lado.
Ora, o ordenamento jurídico português proíbe diligências inúteis para a descoberta da verdade (art.º 340º, n.º 4, do CPP).
Assim, em referência à incapacidade de ereção, reportando-se os factos imputados ao arguido relativos, a atos de cópula anal ao verão de ..., ainda que na perícia se apurasse que atualmente o arguido padece de incapacidade de ereção, tal não demonstraria tal incapacidade à data daqueles factos (...), sendo certo que de acordo com o depoimento da companheira do arguido (DD), no período de união de facto compreendido entre ... e ... o arguido, pelo menos uma vez por semana, mantinha com a mesma atos sexuais de cópula vaginal e de cópula anal, o que infirma a alegada incapacidade de ereção do arguido em data anterior à coabitação com EE.
Em referência à medição do diâmetro e cumprimento do órgão sexual do arguido, constituindo facto notório que nos atos sexuais de cópula, seja vaginal seja anal, de pessoa adulta com criança de 7 anos nunca poderá haver penetração completa do órgão sexual masculino adulto no órgão sexual da criança, não se deslumbra qualquer utilidade na realização de perícia com o mencionado objeto.
Serve o exposto para concluir que a realização da perícia médico legal com o objeto definido pelo arguido tem natureza meramente dilatória, nada contribuindo para a descoberta da verdade material, em razão do que, nos termos do citado n.º 4 do art.º 340º, do CPP, se indefere a realização da mesma.
Consequentemente, tendo o Ministério Público condicionado a realização de perícia médico legal às menores/vítimas ao deferimento da perícia requerida pelo arguido, face ao despacho de indeferimento que antecede conclui-se ter ficado prejudicada a perícia às ofendidas.
Notifique.»
De seguida nessa mesma diligência, através do Il. Mandatário do Arguido, que pediu e lhe foi deferida a palavra (transcrição), «no seu uso requereu o seguinte:
- Uma vez que, a defesa do arguido, não se conforma com doutos despachos de V. Ex.ª que indefere a perícia requerida pelo arguido, interpõe o respetivo recurso para a relação de Lisboa o qual é ordinário e de subida com o recurso da decisão final, sendo a motivação do mesmo a apresentar nos termos legais, uma vez que foi objeto de interposição por declaração para ata
E, após, o arguido motivou o recurso por requerimento de ...-...-2025 nos seguintes termos:
Defende o arguido nas conclusões que (transcrição) «5.º-As respostas aos quesitos formulados eram essenciais para que o tribunal pudesse aquilatar da impossibilidade física de prática dos factos imputados ao arguido ora recorrente na douta acusação pública, e que suportavam a imputação ao arguido da prática de crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171.º n.º 1 e 177.º n.º 1 al. c) do Código Penal.
6.ª Jamais uma pessoa com problemas de ereção poderia, como se afirma no artigo 21.º da douta acusação pública “despiu-a da cintura para baixo e, segurando-a pela cintura, introduziu o seu pénis ereto no ânus de CC em movimentos de vai-e-vem durante cerca de 5 minutos. Tanto mais dada a posição em que uma criança de 7 anos se encontrava retratada no artigo 21.º da acusação “circunstâncias o arguido colocou CC em pé, com os pés em cima das grades de um portão, por forma a elevá-la ao seu tamanho e a facilitar a prática de coito anal.
7.ª Essas respostas exigiam a mediação de uma pessoa - o Perito – que através da sua perceção ou apreciação teria oportunidade de valorar, à luz dos seus especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, conhecimentos esses que, não fazendo parte da cultura geral e da experiência comum, se presumem não detidos pelo julgador.
8.ª A perícia, para perceção ou valoração de factos da causa carecidos de prova (por isso pertinente), só pode ser indeferida se a perceção e a apreciação desses factos não reclamar conhecimentos científicos, técnicos ou artísticos especiais sendo que, a reclamá-los, é aos peritos que cabe a pronúncia.
9.ª O requerimento de produção da prova pericial indeferido pelo douto despacho ora impugnado não encaixa em nenhuma das previsões das alíneas b) c) e d) do artigo 340.º, n.º 4 do CPP.
10.ª A diligência não é nem impertinente nem dilatória, pois só ela permite aquilatar da possibilidade física do arguido ora recorrente, em face de determinadas condições de saúde, de que o meritíssimo julgador não está em condições de percecionar, pois exigem conhecimentos técnicos especializados.
11.ª Assim, o perito surge como intermediário, útil, entre a fonte de prova e o tribunal por, para a plena apreensão da prova, haver necessidade de conhecimentos especializados. E sendo a prova pericial, sempre, de livre apreciação (cf. art. 127.º do CPP, juntamente com as restantes provas produzidas sobre os factos que dela são objeto, melhor habilitado ficará para formar a sua convicção e decidir a causa em conformidade com a verdade material, melhor alcançando a solução justa.
12.ª Não tendo sido extemporâneo o requerimento de perícia apresentado pelo arguido ora recorrente, pois foi feito na sua contestação/requerimento probatório, e mostrando-se ele essencial para a descoberta da verdade e a fixação dos factos que possam corroborar uma condenação ou fundamentar uma absolvição, cabe ordenar a realização da diligência com determinação o seu objeto, a não ser impertinente nem dilatória tal perícia, pelo que tem o procedimento pericial de prosseguir.
13.ª Daí que o douto despacho recorrido violou por erro de interpretação e aplicação as normas dos artigos 340.º, n.º 3 e 4 do CPP e o artigo 127.º do CPP.
14.ª A correta interpretação e aplicação das referidas normas impõem o deferimento do requerimento de realização de perícia médica legal requerida pelo arguido no seu requerimento probatório apresentado aquando da sua contestação (cf. Referência citius 6056758).»
O Ministério Público respondeu a ...-...-2025, no essencial concluindo o seguinte (transcrição):
«A perícia requerida pelo arguido é inútil por três motivos:
. Em primeiro lugar, porque os fatos os fatos ocorreram em ... e considerando que nos encontramos em ..., isto quer dizer que já decorreram mais de oito anos, não sendo possível saber através da perícia, se a situação que existe agora (se é que existe), era a mesma que existia naquelas datas, nem se a situação que existe agora é decorrente de doença/condição de que já padecia, ou, se do normal e natural envelhecimento.”
Portanto, o facto de o recorrente poder sofrer atualmente de tal condição, não significa que, como se verá infra do depoimento que transcrevemos, o arguido não conseguisse à data dos factos, ainda que poucas vezes, obter uma ereção.
Finalmente, porque conforme resulta das regras da experiência para praticar os fatos descritos não carece de obter uma ereção completa, nem o acórdão fala de penetrações completas.
. Em segundo lugar, o acórdão não deu comprovado que a penetração de CC tenha durado cinco minutos e como se apontou, o acórdão não fala de penetrações completas.
. Em terceiro lugar, porque a condição de que o arguido se pretende fazer valer é desmentida pela testemunha EE.
G) O recorrente considerava que bastava alegar padecer de disfunção eréctil e que com isso criava dúvida no julgador que o absolveria. Quem padece de disfunção erétil, via de regra, pelo menos, o que é expectável é que procure ajuda médica. Mas o recorrente não juntou qualquer comprovativo de consulta ou receita de medicamentos para o tratamento de tal disfunção. Também não arrolou médico que atestasse a disfunção sexual do recorrente ou, problema urológico. E não o fez, porque não foi assim que sucedeu…
H) A prova produzida em audiência de discussão em julgamento não deixa margem para dúvida de que o recorrente falta à verdade quando afirma sofrer de tal condição, ou pelo menos, que tal condição era permanente e que o impossibilitava de praticar os atos constantes da acusação.
I) Com efeito, a testemunha FF, companheira do arguido desde pelo menos ..., afirmou perentoriamente que mantinha relações sexuais com o recorrente numa média de pelo menos um dia por semana, no mínimo.
E quanto a isto, o recorrente nada disse, nada requereu ou rebateu.”
Cita depois p artigo 44.º do acórdão recorrido, onde se prova que o arguido manteve por um período aproximado de 19 anos, uma relação análoga à de cônjuges com GG, tia materna de CC e de HH (também ofendidas), com morada de residência muito próximas entre si, sitas na ...;
E no art. 45.º, onde se prova que “Entre ... e ..., AA (arguido) residia com a então companheira EE, progenitora de BB (ofendida), numa relação análoga à de cônjuges, com morada fixa na ..., entretanto terminada”, no “(…) depoimento da testemunha II, no sentido de que quando vivia em união de facto com o arguido manter com o mesmo relações sexuais de cópula completa vaginal e anal pelo menos uma vez por semana, foi ainda determinante na descredibilização da versão do arguido, no sentido de padecer de disfunção eréctil da qual resultaria a sua incapacidade para manter uma ereção necessária à prática de coito anal.»
E transcreve o Ministério Público na sua resposta ainda as passagens do depoimento, “para que não restem dúvidas, o depoimento de EE, onde abordou a vida sexual nesse período (desde ...) com o arguido, confirmando capacidade de pelo menos ter relações sexuais vaginais e anais pelo menos uma vez uma vez por semana, apesar de ter problemas de ereção, confirma que nos 4 anos de relação que mantinham relações de cópula completa, seja anal seja vaginal, pelo menos uma vez por semana.»
Pede, pois, o indeferimento do recurso interlocutório por acompanhar os fundamentos da decisão recorrida, de que é um ato inútil, e não existe qualquer violação do disposto nos n.ºs 3 e 4 do art. 340.º do CPP, ou do art. 127.º do mesmo diploma.
O recurso interlocutório foi admitido por despacho datado de ........2025, com subida nos próprios autos com o recurso da decisão final, e com efeito meramente devolutivo.
*
Quanto ao recurso do acórdão final também interposto pelo arguido AA, com alegações juntas a ...-...-2025:
O arguido foi julgado e condenado no dia ...-...-2025, nos termos seguintes termos (transcrição):
«Pelo exposto, julga-se a acusação parcialmente procedente, porque provada, e, em consequência, decide-se:
a) Condenar o arguido AA, pela prática de dois crimes de importunação sexual, p. e p. pelo artigo 170º do Código Penal, nas penas parcelares de 10 meses de prisão e 6 meses de prisão [ofendida HH];
b) Condenar o arguido AA, pela prática de 8 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171º, n.º 2, do Código Penal, nas penas parcelares de 4 anos de prisão, 4 anos de prisão, 4 anos de prisão, 4 anos de prisão, 4 anos de prisão, 4 anos de prisão, 4 anos de prisão e 4 anos de prisão [ofendida CC];
c) Condenar o arguido AA, pela prática de 3 crimes de abuso sexual de crianças agravada, p. e p. pelos artigos 171º, n.º 2, e 177º, n.º 1, al. b), do Código Penal, nas penas de 5 anos de prisão, 5 anos de prisão, e 5 anos de prisão [ofendida BB];
d) Condenar o arguido AA, pela prática de 1 crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos artigos 171º, n.º 1 e 177º, n.º 1, al. b), do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão [ofendida BB];
e) Em cúmulo jurídico das penas descritas em a) a d), condenar o arguido AA, na pena única de 20 anos de prisão;
f) Condenar o arguido AA por cada um dos crimes porque foi condenado melhor descritos nas alíneas b) a d), na sanção acessória de proibição do exercício de profissão, emprego, funções ou atividades públicas ou privadas, ainda que não remuneradas, cujo exercício envolva o contacto regular com crianças, por um período de 5 anos por cada crime, e em cúmulo jurídico na pena acessória única, prevista no artigo 69ºB, n.º 2, do Código Penal, de 20 anos;
g) Condenar o arguido AA por cada um dos crimes porque foi condenado melhor descritos nas alíneas b) a d), na sanção acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de 5 anos por cada crime, e em cúmulo jurídico na pena acessória única, prevista no artigo 69ºC, n.º 2, do Código Penal, de 20 anos;
h) Absolver o arguido dos demais crimes porque vinha acusado;
i) Condenar o demandado AA no pagamento de indemnização por danos não patrimoniais, à ofendida HH, no valor de 5.000,00€; à ofendida CC, no valor de 15.000,00€; e à ofendida BB, no valor de 15.000,00€, acrescidas de juros à taxa legal, desde a presente data ate efetivo integral pagamento;»
E conclui o arguido, no que aqui interessa, da seguinte forma (transcrição):
«3.ª O recorrente insurge-se contra os factos provados, descritos sob os números 5, 6, 7, 8, 9, 10, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 21, 25, 26, 27, 28, 29 e 30 da matéria de facto dada como provada pelo acórdão recorrido, na medida em que se traduzem na imputação de factos genéricos, vagos e conclusivos, sem localização no tempo. O acórdão recorrido “viola de forma contundente o princípio do contraditório e o princípio do processo equitativo, assegurados pelo artigo 32º nº1 e nº5 da Constituição da República Portuguesa, pelos artigos 61º nº1 alínea a) e o artigo 283º, nº3 alínea b), ambos do CPP e pelo artigo 3º nº 3 do CPC”.
4.ª A necessidade de concretização e especificação dos factos imputados ao arguido, com indicação das respetivas circunstâncias de tempo e de lugar decorre, desde logo, de serem asseguradas ao arguido todas as garantias de defesa por imperativo constitucional, cf. artigo 32º, nº 1 da CRP. Na verdade, o arguido só poderá efetivamente defender-se se puder contraditar as provas que sejam oferecidas contra ele e que o possam prejudicar. Para tanto, o arguido terá de conhecer, com o necessário rigor, os factos que lhe são imputados, descritos de forma a que não subsistam dúvidas no seu espírito sobre qual o “pedaço de vida” em discussão. Pois pior do que não poder defender-se é, à semelhança de um processo tipo kafkiano, não saber do que defender-se.
5.ª Efetivamente, utilizar, como se faz no facto n.º 5 da matéria dada como provada, uma localização no tempo tanto abrangente como indeterminada de “Em data não concretamente apurado, próxima do verão de ... e no verão de ...”, ou no artigo 6. “numa ocasião o arguido durante o transporte de HH a casa no seu veículo”, “noutras ocasiões, em número não concretamente apurado, mas não inferior a três vezes”, não permitem ao arguido defender-se da prática ou não das imputações factuais que lhe são feitas.
6.ª O mesmo se diga nos factos n.º 7 (“Também em data não concretamente apurada, mas posterior aos factos descritos em 6)”), no facto n.º 8(“Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas em 7)”, no facto n.º 9(“Ainda nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 7) “, no facto n.º 10 (“Em diferentes ocasiões, em data não concretamente apurada do verão de ...“), no facto n.º 14 (“Neste período temporal o arguido”, ), no facto n.º 15 (“Assim, no decurso das férias de verão do ano ... o arguido, em datas não concretamente apuradas, com periodicidade regular, não inferior a oito vezes, em dias distintos”), no facto n.º 16 (“ em pelo menos oito ocasiões “), no facto n.º 20 (“algumas vezes, “), no facto n.º 25 (“em data não concretamente apurada, no referido período temporal )”), no facto n.º 26(Noutro dia, num fim de semana em que BB visitou a sua progenitora), no facto n.º 27 (“Em outra ocasião, no mesmo período temporal”), no facto n.º 28 (“Em dia e mês não concretamente apurado”), no facto n.º 29 (“Entretanto JJ chamou BB para tomar banho”), no facto n.º 30 (Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 25) a 28), no facto n.º 32 e no facto n.º 33 da matéria dada como provada, em que as expressões transcritas e realçadas a negrito e itálico, representam uma verdadeira e completa negação da necessidade de concretização e especificação dos factos imputados ao arguido, com indicação das respetivas circunstâncias de tempo e de lugar, impedindo o arguido de se defender.
7.ª Na realidade poderia o arguido apresentar prova que não poderia naquele dia e naquela hora estar a praticar os factos que se lhe imputam, porque estava a trabalhar e a cumprir o seu horário de trabalho, porque nesse dia esteve com determinadas pessoas todo o dia, porque nesses dias não tinha o seu automóvel, pelo que jamais poderia ter praticado os factos que lhe são imputados.
8.ª Mas a verdade é que quer a acusação pública, quer o próprio o tribunal a quo, se desinteressou de indicar os dias e as horas da prática dos factos. Falam em períodos tão vastos como próximo do verão, numa ocasião, data não concretamente apurada, mas posterior aos factos 6, nas férias verão (três meses), próximo do verão e algumas vezes,
impossibilita o arguido de apresentar a defesa indicando factos que indicam o referido no parágrafo anterior.
9.ª O Tribunal violou por erro de interpretação e aplicação o disposto no artigo n.º 3, al. b), do artigo 283º do CPP.
10.ª A correta interpretação e aplicação do artigo n.º 3, al. b), do artigo 283º do CPP imporia que o tribunal a quo desse como nula a douta acusação pública e, por conseguinte, não incluísse, nos factos dados como provados o que consta nos factos dados como provados no acórdão recorrido com os n.º* 5, 6, 7, 8, 9, 10, 14, 15, 16, 20, 21, 25, 26, 27, 28, 29 e 30 e por estarem logica e fisicamente dependentes daqueles, os factos 17, 18, 19, e 21, dando-os como não escritos.
11.ª Se admitirmos, que o douto acórdão alvo do presente recurso, fez uma correta interpretação e aplicação da norma contida no artigo 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP, então esta norma não deveria ser aplicada pelo Tribunal a quo e por este Venerando Tribunal, porquanto violadora do disposto nas normas e nos princípios constitucionais que fundam o nosso ordenamento jurídico, o qual acolheu o princípio do processo justo e equitativo, que por imposição constitucional decorre dos artigos 20º, nº 4 e 32º, nº 1 e 5 da CRP, consubstanciado em princípios fundamentais do processo penal, como seja o contraditório, do acusatório e da igualdade de armas, consagrados no CPP e em instrumentos de direito internacional, cf. v.g. artigo 6º da CEDH, que fazem parte do direito português, cf. artigo 8º da CRP).
12.ª Ao não apreciar esta questão da inconstitucionalidade material da norma contida no artigo 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP, o acórdão recorrido encontra-se viciado pela nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), porquanto o tribunal não se pronunciou sobre a questão da recusa da aplicação do citado normativo em virtude da sua inconstitucionalidade material.
13.ª Julgamos que por erro de julgamento o tribunal não poderia ter dado como provados os factos 5., 6., 7., 8., 9., 10, 11., 12., 13., 13., 14., 15., 16., 17., 18., 19., 20., 21., 22, 23., 24., 25., 26.,27., 28., 29., 30., 31., 32., 33., 34., 35., 36., 37., 38. E 39 e 40. Da matéria de facto dada como provada pela decisão impugnada.
14.ª Ao dar como provados os factos 5 a 12, o tribunal utilizou como único elemento de prova as declarações da referida ofendida HH.
15.ª Na realidade, o tribunal perante a forma como esses factos se encontram relatados ou descritos, têm como únicas testemunhas a ofendida e o arguido, uma vez que os mesmos, segundo a versão aprovada pelo douto acórdão recorrido, terão acontecido aquando momentos em que o arguido e a ofendida se encontravam em veículos automóveis tripulados pelo arguido, e em que os seus únicos ocupantes são aquela mesma ofendida e arguido.
16.ª O arguido negou os factos que foram dados como provados, no seu depoimento que se encontra gravado, nos termos do disposto no artigo 364.º, n.º 2 e n.º 3 do CPP, através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Juízo, com início pelas com início às 10 horas e 59 minutos e termo pelas às 11 horas e 32 minutos do dia ... de ... de 2025, no ficheiro seguinte:
17.ª A ofendida HH, teve o seu depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 12 horas e 12 minutos e o seu termo pelas 13 horas e 03 minutos do dia ... de ... de 2025, no ficheiro seguinte:
18.º Se isso que a testemunha diz fosse verdade, como se compreendia que após uma primeira vez relatada em minuto 2:03 pudesse haver um novo pedido de boleia da ofendida relatado em minuto 04:50, tanto mais que a ofendida encarava os supostos toques do arguido como a deixando sentir “nojenta” (cf. Depoimento da mesma em minuto 13:27)
19.ª No seu depoimento primo das ofendidas, a testemunha KK, cujo depoimento foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 14 horas e 43 minutos e o seu termo pelas 15 horas e 21 minutos do dia ... de ... de 2025, no seguinte ficheiro:
resulta duas coisas: Um total desinteresse da mesma com a sorte das primas, o que não é compatível com o choque que disse ter tido ou, então, essa situação nunca ocorreu, o que é mais compaginável com as regras da experiência, pois qualquer pessoa normal (o bonus pater familiae) perante uma tal revelação.
20.ª Por outro lado, revela descrédito pela suposta opinião manifestada pela prima, em comparação com o comportamento que o arguido revelaria e que a testemunha carateriza em minuto 9:34 como “Sim, vivíamos pertinho uns dos outros. Quer estas meninas, quer o meu filho se davam muito bem com senhor AA. Apesar de não ser neto, o meu filho tratava-o como avô. E estas meninas e o meu filho iam muitas vezes juntos. O meu filho andava sempre com o senhor AA. Nós, família direta nunca nos apercebemos por nada disso.
21.ª Do depoimento da testemunha LL, que foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, tendo o seu início ocorreu pelas 15 horas e 21 minutos e o seu termo pelas 15 horas e 41 minutos do dia ... de ... de 2025, e que se encontra registado no seguinte ficheiro:
Resulta em minuto 11:19, de que tinha ido confrontar o arguido, o que torna completamente inverosímil que depois desta conversa o arguido tivesse voltado a cometer factos semelhantes com a filha do arguido.
22.ª Por outro lado no minuto 6:10 do seu depoimento o pai das ofendidas, testemunha LL confessa expressamente que jamais desconfiara do arguido, cujo depoimento, foi depoimento foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 15 horas e 21 minutos e o seu termo pelas 15 horas e 41 minutos., do dia .../.../2025, no ficheiro:
23.ª Por último, como bem referiu a senhora procuradora e a senhora doutora juíza aquando da inquirição da testemunha MM, cujo seu depoimento foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando se que o seu início ocorreu pelas 09 horas e 56 minutos e o seu termo pelas 10 horas e 28 minutos do dia ... de ... de 2025 no ficheiro seguinte:
Os agressores não escolhem filhos de pais que estão presentes e que sabem podem ser uma ameaça para o agressor.
24.ª Portanto, estes concretos elementos de prova que aqui deixamos indicados, colocam completamente em crise a versão da ofendida, quando confrontada com as regras da experiência:
e)
Não faz sentido que a ofendido depois de ter sido assediada uma primeira vez, sentindo-se nojenta, tenha ido procurar o arguido para ele lhe dar boleia;
f)
Do depoimento da testemunha KK resulta que o facto de não ter dado qualquer seguimento à alegada informação de assédio que lhe foi fornecida pela HH, o que demonstra que aquela não lhe foi transmitida, pois só revelaria um total descrédito com a informação o que não se compagina com o suposto trauma que a testemunha disse ter sentido;
g)
Por outro lado, estaria em total contradição com a constatação feita pela testemunha em minuto 9:34 do seu depoimento em que refere que “Sim, vivíamos pertinho uns dos outros. Quer estas meninas, quer o meu filho se davam muito bem com senhor AA. Apesar de não ser neto, o meu filho tratava-o como avô. E estas meninas e o meu filho iam muitas vezes juntos. O meu filho andava sempre com o senhor AA. Nós, família direta nunca nos apercebemos por nada disso.
h)
Por último, o confronto que o pai da ofendida HH, testemunha LL, fez ao arguido, nos serviços de desenvolvimento agrário do ..., dois ou três dias depois de saber isso e em que disse ao arguido “vais brincar com as tuas filhas, com as minhas não brincas mais” mostram á saciedade que pelo menos os últimos supostos toques e conversas do arguido para com a HH não ocorreram, pois como bem referiu a senhora procuradora e a senhora doutora juíza os abusadores sexuais não escolhem filhos de pais que estão presentes e que sabem podem ser uma ameaça para o agressor.
25.ª Violou assim o acórdão recorrido, por incorreta interpretação e aplicação do direito, designadamente do disposto no artigo 127.º do CPP., porquanto não conjugou o conjunto da prova produzida durante o julgamento com as regras da experiência e com as regras lógicas que devem basear um juízo de decisão sobre a matéria de facto.
26.ª O correto julgamento destes concretos pontos da matéria de facto (n.ºs 5-, 6, 7., 8., 9., 10, 11 e 12) dado como provada no acórdão recorrido, através da correta interpretação e aplicação do disposto no artigo 127.º do CPP, imporiam um sentido diverso nessa decisão, impondo que o tribunal os não considerasse como provados.
27.ª as concretas provas que impõem decisão diversa da adotada pelo douto acórdão recorrido no tocante aos factos 13-, 14., 15., 16., 17., 18, 19, 20 e 21 são, no tocante ao facto 13- o depoimento da ofendida CC, que foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, tendo o seu início pelas 14 horas e 10 minutos e o seu termo pelas 14 horas e 42 minuto do dia ... de ... de 2024, e que se encontra registado no seguinte ficheiro:
28.ª Estas declarações para memória futura da própria ofendida, que são as únicas que esta prestou em audiência, embora as mesmas não têm sido ouvidas no seu decurso, é a única prova presencial sobre os alegados factos imputados ao arguido.
29.ª De facto, nenhum outro depoimento da ofendida foi prestado, lido ou tido em conta neste julgamento.
30.ª Por extrato das suas declarações verificamos que a ofendida não consegue localizar no tempo o início ou fim das pretensas ações do arguido, pelo que é forçado o que se encontra fixado no facto n.º 14 e 15, de que estes terão ocorrido no verão de ....
31.ª Portanto, o concreto elemento de prova atrás transcrito mostra claramente que: o arguido não procurou criar ocasiões de se achar a sós com a criança e de abusar da sua ingenuidade e inexperiência, pois os supostos abusos também se verificavam na presença do menor NN, que assistia a tudo e por outro lado não fazia sentido nenhum fazer a ameaça narrada no ponto 19. Da matéria de facto dada como provada pela douta decisão recorrida, se afinal havia uma outra testemunha que poderia contar os mesmos factos que se procuravam ocultar com a alegada ameaça.
32.ª Esta declaração da ofendida retira todo o descrédito à verificação destes factos, pois como poderia um “agressor” praticar isto na presença de uma testemunha. Testemunha essa que o Tribunal não tratou de ouvir.
33.ª Também o arguido nega que tenha alguma vez estado sozinho com a CC no curral , como se pode ler no seu depoimento, que se encontra gravado, nos termos do disposto no artigo 364.º, n.º 2 e n.º 3 do CPP, através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Juízo, com início pelas com início às 10 horas e 59 minutos e termo pelas às 11 horas e 32 minutos do dia ... de ... de 2025, no ficheiro seguinte:
34.ª O facto da matéria dada como provada sob o n.º 16 está em total contradição com o único depoimento, prestado em declarações de memória futura, tido em conta no julgamento, embora não tivesse sido ouvido a respetiva gravação durante o julgamento.
35.ª Trata-se do depoimento da testemunha e ofendida CC, o qual foi prestado em sede de declarações para memória futura, , que foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, tendo o seu início pelas 14 horas e 10 minutos e o seu termo pelas 14 horas e 42 minuto do dia ... de ... de 2024, e que se encontra registado no seguinte ficheiro:
36.ª Neste depoimento, em momento algum a menor fala em pénis ereto e em movimentos de vai e vem.
Aliás tal seria fisicamente impossível. A menor tinha segundo a acusação apenas sete anos, o arguido é um homem com 1,86 metros de altura (cf. Ficha de identificação do arguido a folhas 30 dos autos).
37.ª Até, porque o arguido tem problemas de disfunção erétil que não foi possível o tribunal apurar pois se recusou fazer uma perícia urológica/sexológica ao arguido, e cujo indeferimento é objeto de recurso em separado a subir com este recurso.
38.ª Também em momento nenhum deste julgamento, se fez prova de que colocou CC em pé, com os pés em cima das grades de um portão, por forma a elevá-la ao seu tamanho e a facilitar a prática de coito anal.
39.ª Aliás, a ter ocorrido isso, como é que uma menina de sete anos não apresentaria marcas de um ato com essa violência, introdução de um pénis de um adulto em movimentos de vai vem no ânus de uma menor de sete anos.
40.ª Violou assim o acórdão recorrido, por incorreta interpretação e aplicação do direito, designadamente o disposto no artigo 127.º do CPP., porquanto não conjugou o conjunto da prova produzida durante o julgamento com as regras da experiência e com as regras lógicas que devem basear um juízo de decisão sobre a matéria de facto.
41.º O correto julgamento destes concretos pontos da matéria de facto (n.ºs 13-, 14., 15., 16., 17., 18, 19, 20 e 21) dado como provada no acórdão recorrido, através da correta interpretação e aplicação do disposto no artigo 127.º do CPP, imporiam um sentido diverso nessa decisão, impondo que o tribunal os não considerasse como provados.
42.ª os factos dados como provados pelo acórdão recorrido sob o n.º 24-, 25., 26., 27., 28., 29, 30, 31, 32 e 34. se baseiam apenas no depoimento prestado pela ofendida BB, não tendo sido feito, como também aconteceu relativamente à ofendida HH qualquer exame pericial.
43.ª O depoimento das testemunhas obtém crédito pela clareza, adequabilidade ao contexto em que se inserem e ás demais circunstâncias que rodeiam a prática da infração, quer nos seus antecedentes, como consequentes. O depoimento da ofendida BB foi prestado em sede de declarações para memória futura, e foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 13 horas e 41 minutos e o seu termo pelas 15 horas e 18 minutos do dia ... de ... de 2024, no ficheiro:
44.ª Ora o depoimento da testemunha encontra-se eivado de generalidades quanto às datas, à descrição dos factos de forma sempre repetitiva. A testemunha conta de forma confusa a situação descrita no minuto 07:25 a 8:46 do seu depoimento, em que diz que não foi apanhada pela mãe, mas narra factos que só uma pessoa diminuída intelectualmente não se apercebia do que estavam a fazer: Como não se aperceber se estava a colocar o dedo na vagina, o arguido tinha a mão junto da bexiga, etc., etc.
45.ª Mais forte ainda são as palavras da testemunha OO, cujo depoimento foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 16 horas e 18 minutos e o seu termo pelas 16 horas e 52 minutos, no seguinte ficheiro:
46.ª Esta senhora é psicóloga e responsável na instituição onde se encontra acolhida a ofendida e que afirmou nas declarações prestadas neste processo na PJ, a folhas 61 dos autos, declarações da testemunha prestada na Polícia Judiciária a .../.../2023, e que cuja leitura foi feita em julgamento aquando do seu julgamento, pondo em causa a total credibilidade do depoimento da ofendida.
47.ª Ao dar como provados os factos n.º 24-, 25., 26., 27., 28., 29, 30, 31, 32 e 34, violou assim o acórdão recorrido, por incorreta interpretação e aplicação do direito, designadamente o disposto no artigo 127.º do CPP., porquanto não conjugou o conjunto da prova produzida durante o julgamento com as regras da experiência e com as regras lógicas que devem basear um juízo de decisão sobre a matéria de facto.
48.ª O correto julgamento destes concretos pontos da matéria de facto (n.ºs 24-, 25, 26, 27, 28., 29, 30, 31, 32 e 34) dada como provada no acórdão recorrido, através da correta interpretação e aplicação do disposto no artigo 127.º do CPP, imporiam um sentido diverso nessa decisão, impondo que o tribunal os não considerasse como provados.
49.ª No presente processo, o arguido foi confrontado como uma acusação que se baseia no depoimento de três jovens, as quais narram factos que a terem ocorrido se deram na privacidade de um veículo automóvel ou de espaços privados em que apenas ofendido e arguido se encontram.
50.ª Como pode o arguido se defender da acusação que colocou a mão nas nádegas ou das mamas da ofendida, se a única prova se cingir a esse depoimento. Se o tribunal não fizer perícias às meninas BB e CC como pode dizer que houve os abusos comprováveis com lesões na vagina ou no ânus das mesmas.
51.ª O tribunal assumiu o princípio violador do artigo 127.º do CPP, tarifando como prova rainha neste tipo de ilícitos o depoimento das vítimas.
52.ª O tribunal perguntou ao arguido, mas que razão teriam as ofendidas para inventar estes factos? O arguido terá que provar a sua inocência só porque alguém relata como tendo sido praticados por ele determinados factos, praticados há mais de cinco anos num caso? este é querer inverter o ónus da prova e é colocar sobre os ombros do arguido uma prova impossível de fazer e, desta forma, viola-se de uma forma frontal o princípio da presunção da inocência do arguido consagrada no artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da crp.
53.ª Até porque os depoimentos do arguido, da própria ofendida e das testemunhas arroladas fazem suspeitar da veracidade das afirmações das ofendidas e dão alguma credibilidade aos factos que o arguido e as testemunhas narraram em Tribunal.
54.ª Não podemos concordar com as penas de prisão parcelares e a pena de prisão de vinte anos que em cumulo jurídico foi aplicada ao arguido, o que imporia pois a mesma mostra-se exagerada para a culpa e a ilicitude dos atos praticados pelo agente, que atenta um conjunto de circunstâncias que rodeiam a ação dos agentes e o seu comportamento anterior ou posterior aos factos, designadamente o fato do arguido ser um delinquente primário e bem inserido e bem estimado no meio social
55.ª Violou-se assim no douto acórdão por erro de interpretação e aplicação o artigo 71.º do Código Penal. A correta aplicação do artigo 71.º do Código Penal impõem a redução das referidas penas.
56.ª O presente recurso visa impugnar também a condenação a que o arguido foi sujeito no tocante ao pagamento de indemnização por danos não patrimoniais, à ofendida HH, no valor de 5.000,00€; à ofendida CC, no valor de 15.000,00€; e à ofendida BB, no valor de 15.000,00€, acrescidas de juros à taxa legal, desde a presente data ate efetivo integral pagamento, as quais devem ser anuladas as condenações do arguido na condenação dos referidos pedidos, pois o arguido não praticou quaisquer crimes.
57.ª Em alternativa, devem as referidas condenações ser tidas como exageradas, pois não se encontram adequados aos alegados danos imputados ao arguido e não têm em conta a modesta situação económica do arguido e o facto de o mesmo ter ajudado economicamente as ofendidas e seus pais ao longo dos tempos.
57.ª Violou assim a decisão recorrida os artigos 483.º e 496.º, 562.º e 563.º do Código Civil por erro na interpretação e aplicação das referidas normas. A correta interpretação e aplicação das referidas normas impõem a absolvição do arguido do PIC ou a redução a valores condizentes com os critérios legais e jurisprudenciais em vigor.
Termos em que deverá:
Conceder-se provimento ao presente recurso, substituindo-se a decisão recorrida por outra que considere procedente o presente recurso absolvendo-se o arguido da acusação contra si formulada, e das condenações em PIC
Em contra-alegações o Ministério Público, concluiu da seguinte forma (transcrição):
«A) Vem o presente recurso interposto do Acórdão proferido que aplicou, após cúmulo, a pena de vinte anos ao arguido AA.
B) O recorrente alega que as datas e locais onde os factos ocorreram não estão concretizados, certo é que ainda assim, se conseguiu sempre defender, o que fez no julgamento e já o tinha feito em sede de contestação, onde aliás não perdeu oportunidade para imputar a culpa dos fatos à jovem BB.
I) Desde logo, importa precisar que estaremos perante erro notório quando da leitura da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, se conclua que se deu como provado algo que não podia ter acontecido ou que se deu como não provado algo que não podia deixar de ter acontecido ou, ainda, quando se retira de um facto uma conclusão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
J) É o recorrente que está em erro e não o contrário.
K) A convicção do Tribunal recorrido foi a mais correta e a única aceitável, especialmente se tivermos em conta a fundamentação aduzida no Acórdão recorrido para a formação da sua convicção e para recusar credibilidade à versão do arguido, sendo que todos os elementos de prova foram ponderados e conjugados com as regras da lógica e da experiência.
L) “In casu”, o Tribunal a quo fundamentou devidamente os motivos pelos quais deu como provados os factos, não deixando sequer qualquer dúvida ao julgador sobre a sua verificação.
M) Não tem razão, o recorrente ao alegar, como alega, que foram incorretamente julgados os pontos da matéria de facto dada como provada do Acórdão ora em recurso. Pelo contrário, temos por líquido que da conjugação de todas as declarações e testemunhos produzidos em audiência de julgamento cruzados com as declarações prestadas em sede de memórias futuras, analisados exaustivamente, impunham que o Tribunal a quo, de acordo com as regras da lógica e da experiência, decidisse sem margem para dúvidas, como decidiu, que os factos provados eram os que como tal enunciou no seu Acórdão.
N) Olvida, porém, que “se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, foi uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, ela será inatacável, visto ter sido proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a usa livre convicção”.
O) Ademais, gozando o tribunal recorrido do privilégio da imediação das provas – algo de que não goza o tribunal de recurso – e assentando a convicção do julgador, em larga medida, no que tal imediação lhe permite apreender, nem sempre facilmente objetivável, parece-nos líquido que só se da apreciação da prova feita pelo tribunal superior resultar para este claramente ter havido violação dos critérios de apreciação da prova, designadamente dos enunciados no artigo 127.º do Código de Processo Penal, deve o tribunal superior modificar a matéria de facto dada como assente.
C) Assim, entendemos que não poderá proceder o recurso em apreço, entendendo-se que ponderou bem o Tribunal a prova produzida em sede de julgamento, pelo que dúvidas não restam sobre a prova segura e inequívoca dos factos imputados ao recorrente.
D) O recorrente teima em invocar a necessidade de uma perícia, indiferente à lonjura temporal decorrida entre a data da prática dos fatos e a presente data e às diferenças nas anatomias das menores à presente data e à data dos fatos e bem assim às próprias diferenças anatómicas do arguido àquela data e à data dos fatos, mas que a ser feita conduziria a coisa nenhuma e seria apenas um ato inútil.
E) O Tribunal não ocorreu em qualquer violação das garantias constitucionais de defesa, ou do disposto no artigo 283.º do Código de Processo Penal, nem sequer a sua interpretação é contrária à Constituição da República Portuguesa.
F) Concluindo-se desta forma, conclui-se também que inexiste omissão de pronúncia, o que equivale a dizer que o Acórdão não é nulo.
G) Quanto à medida da pena, analisando o Acórdão recorrido retira-se que foram ponderadas todas as circunstâncias que pesavam a favor (ausência de antecedentes) e contra o arguido, designadamente, a elevada ilicitude e a culpa, as elevadas necessidades de prevenção geral e especial e as consequências dos fatos praticados.
H) Tudo ponderado, o Tribunal “a quo” teve em consideração para a escolha e medida da penas parcelares e única aplicadas ao arguido todos os critérios referidos nos arts.40º, 70º e 71º, do Código Penal, conjugados com os factos que se provaram em audiência de julgamento, mostrando-se justa e adequada com a culpa do arguido e a sua ressocialização, a pena aplicada ao arguido por cada um dos crimes e também a pena que resultou do cúmulo efetuado, devendo manter-se nos precisos termos que constam do Douto Acórdão.
I) Afigura-se, face à factualidade cometida, que a medida da pena única nunca se poderá fixar em patamar inferior a 20 anos de prisão, sob pena de serem postas em causa as exigências de prevenção geral e especial, e de não satisfazer os fins de ressocialização das penas.
J) Assim, entendemos que não poderá proceder o recurso em apreço, entendendo-se que ponderou bem o Tribunal, a prova produzida em sede de julgamento, pelo que dúvidas não restam sobre a prova segura e inequívoca dos factos imputados ao recorrente.
K) Atento o exposto, deve manter-se o decidido
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O recurso foi admitido por despacho de ...-...-2025, tendo sido atribuído ao mesmo o efeito suspensivo, com subida imediata e nos próprios autos.
Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta elaborou parecer aderindo aos fundamentos da resposta ao recurso efetuado pelo MP da primeira instância, e nessa medida não foi cumprido o disposto no art. 417.º-2 do CPP.
No exame preliminar nada foi apreciado de irregular.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO
Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
E quanto ao modo de delimitar o objeto do recurso, de acordo com a AUJ fixada no Acórdão 7/95 do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série 1-A, de 28.12.1995), conclui a decisão que o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo, contudo, e é aqui que fixa o AUJ, também das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no n° 2 do artigo 410° do Código do Processo Penal.
II-a) Quanto ao recurso interlocutório:
Face a esta delimitação, das conclusões do arguido/recorrente resultam no essencial apenas uma questão a apreciar:
Saber se a decisão de ...-...-2025 que indeferiu a realização de perícia médico sexual e urológica ao arguido pedida pelo arguido na contestação de ...-...-2024, tendo em conta a fundamentação do mesmo, e supra transcrita, “violou por erro de interpretação e aplicação as normas dos artigos 340.º, n.º 3 e 4 do CPP e o artigo 127.º do CPP”, isto é, se face ao fundamentado no recurso tem razão o recorrente de que “a correta interpretação e aplicação das referidas normas impõem o deferimento do requerimento de realização de perícia médica legal requerida pelo arguido no seu requerimento probatório apresentado aquando da sua contestação”.
Vejamos:
Delimitando a questão do enquadramento legal, do deferimento e indeferimento de uma qualquer diligência de prova, designadamente de uma perícia, importa esclarecer o seguinte:
Dispõe o artigo 340.º do CPP, sobre a produção de prova na fase de julgamento, o seguinte (transcrição):
«Princípios gerais
1 - O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
2 - Se o tribunal considerar necessária a produção de meios de prova não constantes da acusação, da pronúncia ou da contestação, dá disso conhecimento, com a antecedência possível, aos sujeitos processuais e fá-lo constar da ata.
3 - Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 328.º, os requerimentos de prova são indeferidos por despacho quando a prova ou o respetivo meio forem legalmente inadmissíveis.
4 - Os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que:
a) (Revogada.)
b) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas;
c) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou
d) O requerimento tem finalidade meramente dilatória.»
Os poderes do juiz para indeferir ou deferir um requerimento de prova estão bem definidos nas palavras de Paulo Dá Mesquita (Comentário Judiciário do Código Processo Penal - Tomo IV, artigos 311.º a 398, 2023, pp. 411-438, § 11-16 e 40-67), onde faz a parametrização e ponderação que o julgador terá em conta, e que são, segundo o autor, a “necessidade probatória” para a descoberta da verdade material - onde “a materialidade tem como núcleo a relação entre a prova e os factos juridicamente relevantes para o concreto processo”-, e o “principio da relevância enquanto valor basilar do Direito Probatório com uma relação particularmente próxima com os princípios processuais como os da celeridade e da proibição de atos inúteis” – temos aqui o valor probatório reportando-se à aptidão da prova para estabelecer a proposição que se pretende provar ou coloca-la em causa”.
O recorrente insurge-se contra o despacho recorrido, em síntese, por considerar a realização da perícia essencial para o tribunal aquilatar a «(…) impossibilidade física de prática dos factos imputados ao arguido ora recorrente na douta acusação pública, e que suportavam a imputação ao arguido da prática de crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171.º n.º 1 e 177.º n.º 1 al. c) do Código Penal.», ou seja, essencial à demonstração da sua alegada disfunção eréctil.
Como se extrai da decisão recorrida, a decisão de indeferimento da diligência de prova e a consideração de «que a realização da perícia médico legal com o objeto definido pelo arguido tem natureza meramente dilatória, nada contribuindo para a descoberta da verdade material», funda-se, relativamente à alegada incapacidade de ereção, na falta de relevância da mesma já que os factos imputados ao arguido são relativos a atos de cópula anal que terão ocorrido no verão de ..., e ainda que a perícia apurasse que atualmente o arguido padece dessa incapacidade de ereção, tal não demonstraria tal incapacidade à data daqueles factos, em ....
Relativamente «à medição do diâmetro e cumprimento do órgão sexual do arguido» considerou o tribunal igualmente inútil a diligência porquanto é facto notório que nos atos sexuais de cópula, seja vaginal seja anal, de pessoa adulta com criança de 7 anos nunca poderá haver penetração completa do órgão sexual masculino adulto no órgão sexual da criança.
Vejamos:
Afigura-se incontornável, à luz dos conhecimentos científicos atuais, [e os fundamentos do recurso não o contestam], a validade do argumento constante da decisão recorrida de que a perícia médico-legal a realizar à data do julgamento não poderá confirmar ou infirmar qualquer disfunção eréctil de que o arguido pudesse padecer à data a que se reportam os factos, sendo, assim, inútil e portanto dilatória.
O mesmo ocorre relativamente à notoriedade de que «nos atos sexuais de cópula, seja vaginal seja anal, de pessoa adulta com criança de 7 anos nunca poderá haver penetração completa do órgão sexual masculino adulto no órgão sexual da criança», afigurando-se, assim, correta a consideração de irrelevância do apuramento do concreto diâmetro e cumprimento do órgão sexual do arguido.
E nessa medida nenhum juízo de censura pode este tribunal de recurso efetuar sobre a mesma, não se verificando a violação do art. 340.º-3-4 do CPP.
Não pode, pois, deixar de improceder o recurso interlocutório "sub judice".
***
II-b) Quanto ao recurso interposto pelo arguido do acórdão final:
Da delimitação que resulta das conclusões do arguido/recorrente, temos as seguintes questões a serem apreciadas:
a. Se os factos provados, descritos sob os números 5, 6, 7, 8, 9, 10, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 21, 25, 26, 27, 28, 29 e 30, e por estarem logica e fisicamente dependentes daqueles, os factos 17, 18, 19, e 21 da matéria de facto dada como provada, traduzem a imputação de factos genéricos, vagos e conclusivos, sem localização no tempo, violando o princípio do processo equitativo, assegurados pelo artigo 32º nº1 e nº5 da Constituição da República Portuguesa, pelos artigos 61º nº1 alínea a) e o artigo 283º-3-b), ambos do CPP e pelo artigo 3º nº 3 do CPC”, e desse modo devem ser dados como não escritos, ou assim não se entendendo, se tal interpretação está ferida de inconstitucionalidade material e o acórdão de nulidade por omissão de pronúncia sobre a recusa de aplicação do art. 283º, 3, b) do Código de Processo Penal [conclusões 1ª a 12ª];
b. Se ocorre erro de julgamento relativamente aos factos dados por provados sob os nºs 5 a 40, devendo os mesmos ser dados como não provados [conclusões 13ª a 53º,] e por via disso ser o arguido absolvido dos crimes pelos quais foi condenado;
c. Se ocorre violação do artigo 71º do CP, na fixação da medida das penas parcelares e única [conclusões 54º e 55ª];
d. Se deverá o arguido ser absolvido dos pedidos de indemnização covil em que foi condenado, por não ter praticado os crimes que lhe são imputados ou, em alternativa, se deverão tais montantes ser reduzidos [conclusões 56ª a 57ª]
*
Apreciando as questões colocadas pelo arguido, importa transcrever os fatos provados e a motivação do acórdão recorrido (transcrição):
«1. - HH nasceu em ... de ... de 2000 e CC nasceu em ... de ... de 2010, sendo ambas irmãs;
2. - GG é tia materna de CC e de HH e manteve com o arguido AA relação análoga à dos cônjuges, durante cerca de 19 anos, até ...-...-2020;
3. - Os dois agregados familiares residiam em habitações muito próximas, sitas na ..., freguesia de ... e concelho da ..., residindo as jovens no n.º 13-A, e GG e o arguido AA no n.º 13 C, sendo muito frequente o convívio dos elementos de ambos os agregados;
4. – O arguido conhecia as idades de HH e de CC;
5. – Em data não concretamente apurado, próxima do verão de ... e no verão de ..., quando HH tinha 14 anos de idade e frequentava a ..., na cidade da ..., o arguido AA deslocou-se no seu veículo ao estabelecimento de ensino de HH, com o intuito de voluntariar-se para transportar a mesma para casa, sem qualquer combinação prévia, com o propósito de criar ocasião de se achar a sós com aquela adolescente e agir com toda a liberdade sobre o seu corpo pueril, em ordem à satisfação dos seus impulsos libidinosos;
6. – Em concretização deste propósito, numa ocasião o arguido durante o transporte de HH a casa no seu veículo, dirigiu-lhe a expressão «vou-te levar à lua só com a língua»; noutras ocasiões, em número não concretamente apurado, mas não inferior a três vezes, também durante do transporte de HH a casa dirigindo-lhe a expressão «amo-te»;
7. – Também em data não concretamente apurada, mas posterior aos factos descritos em 6), durante o transporte da menor HH da casa desta à residência de uma amiga, no interior do seu veículo, ..., de cor vermelha, o arguido durante a condução fez deslizar a sua mão direita, sobre a perna esquerda da ofendida HH, da zona da coxa em direção à zona genital, apenas não conseguindo tocar na zona genital da ofendida, por esta ter afastado a mão do arguido;
8. - Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas em 7) o arguido colocou a sua mão direita sobre o peito da ofendida, que novamente afastou a mão do arguido;
9. - Ainda nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 7) o arguido dirigiu à ofendida HH as seguintes expressões «amo-te muito mais que o teu namorado» e «comigo é que vais ser feliz»;
10. - Em diferentes ocasiões, em data não concretamente apurada do verão de ..., o arguido sempre que encontrou oportunidade, na sua casa, apalpou as nádegas de HH;
11. – O arguido agiu da forma descrita, bem sabendo a idade da ofendida HH, aproveitando-se da relação de confiança e proximidade proporcionada por coabitar com a tia das menores, ao lado da casa do agregado familiar desta ofendida, com o propósito de satisfazer os seus impulsos libidinosos e desejos sexuais, aproveitando-se da ingenuidade da ofendida e constrangendo-a a contactos verbais e físicos de natureza sexual;
12. – Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
13. - No verão do ano ..., a menor CC, então de 7 anos de idade passava muito tempo em casa da sua tia PP e do arguido AA, a quem tratava por tio, chegando a almoçar com eles; 14. – Neste período temporal o arguido, com conhecimento da idade da ofendida, procurou criar ocasiões de se achar a sós com a criança e de abusar da sua ingenuidade e inexperiência, aproveitando-se da confiança que a menor depositava nele por o percecionar como seu tio e com ele conviver regularmente, para agir com toda a liberdade sobre o seu corpo pueril em ordem à satisfação dos seus impulsos libidinosos e desejos sexuais;
15. - Assim, no decurso das férias de verão do ano ... o arguido, em datas não concretamente apuradas, com periodicidade regular, não inferior a oito vezes, em dias distintos, aliciou a criança para, ao final da tarde, o acompanhar na alimentação dos animais no curral onde tinha porcos, galinhas e um cão, que ficava distanciado da casa do arguido;
16. - Aí, longe da vista de todos e com total domínio sobre o corpo da criança e aproveitando-se da sua inexperiência, ingenuidade e inocência, o arguido, em pelo menos oito ocasiões, colocou CC em pé, com os pés em cima das grades de um portão, por forma a elevá-la ao seu tamanho e a facilitar a prática de coito anal, após o que, despiu-a da cintura para baixo e, segurando-a pela cintura, introduziu o seu pénis ereto no ânus de CC em movimentos de vai-e-vem, sem utilizar preservativo;
17. – Em ato contínuo o arguido, com o pénis exposto, persuadia CC a tocar no seu pénis e a masturbá-lo, segurando o pénis do arguido com a mão, e efetuando movimentos de vai e vem, o que esta fez;
18. – Após o arguido distanciava-se da ofendida e continuava a masturbar-se até ejacular, o que fazia junto de uma valeta de escorrimento das águas para ejacular;
19. - Depois dos atos descritos, o arguido chegou a dizer a CC que se esta contasse o que lhe fazia, a menor iria para uma prisão para crianças, e ele seria preso, no que a criança acreditava;
20. - O arguido, algumas vezes, após a prática de tais factos, presenteou CC com plasticinas e “slimes";
21. – A menor CC não compreendia o que lhe estava a acontecer e chegou a perguntar ao arguido porque é que a escolheu para tais atos, ao que o arguido lhe respondeu que o fazia porque a CC era diferente;
22. - BB, nascida a ...-...-2010, no período compreendido entre ... e ... de ... de 2023, encontrava-se a residir na ..., com medida de promoção e proteção, mas passava os fins de semana (até à data da suspensão destas visitas), quinzenalmente, e as épocas de férias, com a sua mãe, de nome QQ, na residência desta;
24. - Foi nestas circunstâncias que o arguido AA, que já se havia decidido à prática dos factos, procurou e encontrou a ocasião de se achar a sós com a BB, à data com 12 e 13 anos, facto que era do perfeito conhecimento do arguido, e de abusar da ingenuidade e inexperiência para atuar sobre o seu corpo pueril em ordem à satisfação do seu desejo sexual e impulsos libidinosos;
25. – Assim, em data não concretamente apurada, no referido período temporal, estando o arguido AA deitado, a ver televisão no quarto de casal, e estando JJ a tomar banho, o arguido chamou BB para que se deitasse junto de si, o que a criança fez, e beijou-a na boca introduzindo a sua língua na boca da criança, passou a sua mão pelas regiões mamárias e genitais da criança, após o que deslizou a sua mão para dentro as cuecas da criança, introduzindo um dedo no canal vaginal de BB;
26. – Noutro dia, num fim de semana em que BB visitou a sua progenitora, no alpendre/marquise da casa identificada em 23), o arguido introduziu a sua língua na boca da criança, depois apalpou-a na região genital e também a apalpou na região mamária, após o que despiu as calças e as cuecas de BB e introduziu um dedo no canal vaginal de BB;
27. – Em outra ocasião, no mesmo período temporal, o arguido aproximou-se de BB, que estava na cozinha junto ao frigorifico, e beijou-a na boca, primeiro introduzindo a sua língua na boca da criança, depois apalpou-a na região genital e também a apalpou na região mamária, após o que deslizou a sua mão para dentro das cuecas da criança, até à região da bexiga, altura em que JJ se aproximou de ambos pelo que o arguido cessou com a sua conduta, não chegando a introduzir o seu dedo no canal vaginal da criança;
28. - Em dia e mês não concretamente apurado o arguido AA e BB estavam a prepara-se para sair, estando a mãe de BB, JJ, a tomar banho, altura em que o arguido, vestindo somente um robe, entrou no quarto de BB, onde esta se encontrava a ver televisão, chamou-a para junto de si, pelo que esta foi para junto do mesmo, o qual a virou de costas, a dobrou sobre si, lhe desceu as calças e as cuecas e encostou o seu pénis no ânus de BB, penetrando-a parcialmente;
29. - Entretanto JJ chamou BB para tomar banho, razão esta porque o arguido cessou a sua conduta e indo a BB tomar banho;
30. – Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 25) a 28) o arguido também pediu a BB que lhe fizesse "uma mamada" ao que esta sempre se negou;
31. - O arguido agiu sempre livre, voluntária e conscientemente;
32. - Tinha o propósito alcançado de, abusando da ingenuidade e inexperiência de CC e de BB, que bem sabia terem menos de 14 anos de idade, praticar os atos sexuais descritos por forma a conseguir a satisfação do seu desejo sexual e dos seus impulsos libidinosos;
33. - Quanto a HH, quis o arguido e conseguiu atuar sobre a mesma por meio de conversa pornográfica, bem como efetivamente quis e conseguiu tocá-la lascivamente nas coxas e no peito, bem como nas nádegas, igualmente para satisfação do seu desejo sexual e dos seus impulsos libidinosos;
34. - A sua conduta relativamente às ofendidas CC e BB foi tão mais censurável porquanto foi praticada sobre CC quando esta tinha somente 7 anos, encontrando-se no limiar da primeira infância, sem quaisquer recursos para compreender a gravidade do que o arguido lhe fazia e para se defender e foi praticada sobre BB no interior do seu domicílio familiar, em momento em que esta coabitava com o arguido e com a sua progenitora;
35. - Sabia o arguido que toda a sua descrita conduta era proibida e punida por lei;
Do pedido de indeminização cível:
36. – Em consequência da conduta do arguido a menor HH sentiu-se chocada e humilhada, passando a sentir nojo do toque masculino nas relações de intimidade, tendo necessitado para ultrapassar estes sentimentos de recorrer a apoio psicológico;
37. – Por sua vez, a menor CC, em consequência da conduta do arguido, sentiu tristeza, vergonha e humilhação, tendendo a isolar-se, revelando ainda dificuldade em enfrentar os seus pares e membros da comunidade escolar, após os crimes de que foi vítima se terem tornado do conhecimento da pequena comunidade onde está inserida tendo necessitado para ultrapassar estes sentimentos de recorrer a apoio psicológico;
38. – Por fim, a ofendida BB, em consequência da conduta do arguido, sentiu tristeza e vergonha alternados com manifestações de afeto e de procura do arguido, com quem estabeleceu relação afetiva;
39. – O arguido frequentou o sistema de ensino regular até concluir o 4º ano de escolaridade, tendo iniciado as primeiras experiências laborais por volta dos 13 anos de idade, permanecendo no setor privado até aos 40 anos de idade, altura em que passou a desenvolver atividade no setor público, na carreira geral de assistente operacional/cantoneiro de limpeza, com a remuneração base correspondente à sua posição e nível remuneratório da tabela remuneratória única, que apresenta próximo dos 800,00€ (oitocentos euros);
40. - Todavia, na sequência de um acidente durante o exercício das atividades profissionais, o membro superior esquerdo ficou afetado e, consequentemente, desde então (aproximadamente 9 anos) ficou impossibilitado de trabalhar, conseguindo, apesar disso garantir a própria subsistência e dos agregados familiares constituídos, pese embora com referência a uma economia modesta;
41. – A infância do arguido assentou em dinâmicas intrafamiliares globalmente positivas, pautadas por respeito e comunicação eficaz entre todos os elementos (progenitores e irmãos);
42. – O arguido auto percecionando-se como uma pessoa íntegra, honesta, trabalhadora e empática, traduzido no estilo de vida que sempre manteve e orientado para a família, para além da sua participação ativa na comunidade de inserção (festividades religiosas e outras), bem como membro da ...;
43. – O arguido contraiu matrimónio em ..., vindo a ocorrer o divórcio após aproximadamente 9 anos de casamento, e do qual nasceram duas filhas em comum, RR e SS, atualmente com 35 e 31 anos de idade respetivamente;
44. - O arguido manteve por um período aproximado de 19 anos, uma relação análoga à de cônjuges com GG, tia materna de CC e de HH (também ofendidas), com morada de residência muito próximas entre si, sitas na ...;
45. - Entre ... e ..., AA (arguido) residia com a então companheira EE, progenitora de BB (ofendida), numa relação análoga à de cônjuges, com morada fixa na ..., entretanto terminada;
46. – O arguido contextualiza as experiências sexuais e a satisfação dos seus desejos mais íntimos às relações de intimidade anteriormente descritas, traduzido em relações heterossexuais, adultas e consentidas, e que o próprio perceciona como normativas;
47. - No meio comunitário de inserção, por força do conhecimento da comunidade dos factos objeto do presente processo, a imagem do arguido está associada ao seu envolvimento em crimes sexuais graves, atendendo não só à idade das ofendidas, como também pela sua oportunidade (relação familiar com aquelas), pelo que a sua presença poderá despoletar sentimentos de rejeição e/ou hostilidade no referido meio;
48. - O arguido não tem antecedentes criminais.»
O acórdão recorrido fundamentou depois a matéria de fato nos seguintes termos (transcrição):
«MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
Para dar como provada a factualidade relativa à idade e data de nascimento das ofendidas HH, CC e BB, considerou-se o teor dos respetivos assentos de nascimento insertos a fls. 141, 137 e 135.
Em referência à demais matéria de facto provada, em obediência ao disposto no art. 127.º do Código de Processo Penal, nos termos do qual salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, tendo o julgador a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos submetidos a julgamento com base no juízo de que se fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, tal como ela foi exposta e adquirida representativamente no processo, o Tribunal, fazendo uma análise crítica e com recurso a juízos de experiência comum, formou a sua convicção com base no depoimento da testemunha HH e nas declarações para memória futura das ofendidas CC e BB, concatenadas no que respeita aos factos descritos em 5) , com o depoimento do primo da ofendida HH, a quem esta recorreu após ter sido alvo pela última vez das investidas sexuais do arguido, a testemunha KK, que corroborou a confidência desta ofendida e a comunicação do episódio ao pai desta ofendida, a testemunha LL. O depoimento da ofendida HH foi impressivo e rigoroso em referência aos atos libidinosos que o arguido a si dirigiu e também relativamente às circunstâncias em que se deu a relevação dos atos sexuais perpetrados pelo arguido AA na ofendida CC (na sequência da audição pela ofendida CC da conversa que HH manteve com a avó de ambas, na casa dos pais destas, em que relatava as investidas sexuais do arguido sobre si), não deixando margem para dúvidas sobre a sua veracidade. Na concretização dos atos sexuais dirigidos pelo arguido AA a CC, consideraram-se as declarações para memória futura desta ofendida (cf. fls. 269 a 269v.), que foi clara na descrição dos atos (coito anal, seguido de masturbação, seguido de ejaculação pelo arguido, sempre no curral dos animais, longe da vista), concatenadas com o teor do desenho por si elaborado (cf. ref.ª 5610145 de fls. 66), e auto de fls. 71 e segs. (ref.ª 5610145), tendo o tribunal considerado face ao normal período de férias do verão, situado entre finais do mês de ... e início de ..., ser seguro terem tais abusos ocorrido com periodicidade semanal, pelo menos durante dois meses/8 semanas (e não durante 17 vezes, conforme se refere na acusação). Em referência aos atos sexuais praticados na pessoa da menor BB, o tribunal firmou a sua convicção no teor das declarações prestadas pela mesma para memória futura (cf. fls. 282 a 282v.), das quais apenas é possível concretizar quatro condutas de abuso à menor pelo arguido (e não em 30 ocasiões diferentes conforme se refere no artigo 43º da acusação), declarações estas que foram em parte corroboradas pelas testemunhas TT, técnica da casa de acolhimento onde a BB reside, a quem a menor relatou os atos sexuais que a vitimaram praticados pelo arguido AA, e UU, jovem acolhida noutra valência da mesma casa de acolhimento residencial, primeira pessoa com quem a menor partilhou os abusos que a vitimaram. Os depoimentos destas testemunhas foram também importantes para prova do sofrimento que BB evidenciou aquando da revelação, bem como da afetação do livre desenvolvimento da personalidade desta ofendida (demonstrado na conduta perturbadora de procura do afeto e atenção do arguido, apesar dos abusos).
Em referência ao sofrimento e impacto dos abusos na pessoa da ofendida HH considerou-se o depoimento da mesma e do primo KK, sendo o sofrimento e vergonha vivenciados pela menor CC, bem como o impacto no dia a dia desta menor, que passou a isolar-se e a recusar ir à escola, atestados pela sua irmã, a testemunha HH, e pelo seu pai, a testemunha LL.
Considerou-se provada a relação de confiança existente entre a menor BB e o arguido, própria de uma relação filial, com base nas declarações do próprio arguido e no depoimento de EE, mãe da BB, relação de proximidade esta também manifestada no teor dos desenhos elaborados pela BB com os quais presenteou o arguido, onde se refere ao mesmo como «Papi», e bem assim na atitude ambivalente de BB de procurar do arguido junto do portão da casa de acolhimento residencial, onde este ficava à espera de EE, quando esta ia visitar a filha depois de terem sido suspensas as visitas da menor a sua casa, conforme atestado pela testemunha VV, técnica da CAR, com formação em psicologia, que inicialmente interpretou tal comportamento como sendo estranho, mas que posteriormente justificou na ligação afetiva efetivamente estabelecida entre a jovem BB e o arguido, num fenómeno análogo ao síndrome de Estocolmo, caracterizado por um estado psicológico de intimidação, violência ou abuso em que a vítima é submetida por seu agressor, gerador, ao invés de repulsa, de um laço emocional forte de amizade ou amor por ele.
As declarações de BB não resultaram infirmadas pelo depoimento de EE, este no sentido de ter tido a perceção de que era a BB que se insinuava ao arguido, por interpretamos tal depoimento e perceção num exercício da parentalidade repelo de fragilidades (a admitir o abandono de BB pela mãe à porta da casa de acolhimento residencial para ir viver noutra ilha com novo namorado), e também na incompreensão pela progenitora de BB da falta de maturidade de uma criança como BB e incapacidade associada à idade da mesma para prestar consentimento válido a práticas sexuais com um adulto, fragilidades que de resto resultam plasmadas na mensagem enviada por EE à filha e que consta de fls.229, na qual culpabiliza a filha pela privação da liberdade do arguido, na sequência do que deixou de a visitar na casa de acolhimento residencial.
O depoimento da testemunha II, no sentido de que quando vivia em união de facto com o arguido manter com o mesmo relações sexuais de cópula completa vaginal e anal pelo menos uma vez por semana, foi ainda determinante na descredibilização da versão do arguido, no sentido de padecer de disfunção eréctil da qual resultaria a sua incapacidade para manter uma ereção necessária à prática de coito anal.
Os factos atinentes às condições pessoais do arguido resultaram provados com base nas declarações prestadas pelo mesmo, em conjugação com o teor do relatório social de DGRSP remetido ao processo, e depoimentos das testemunhas WW e MM, respetivamente sobrinha e amigo do arguido, as quais revelaram conhecimento direto sobre o percurso de vida do arguido AA, pugnando pela sua idoneidade e impossibilidade de ter praticado os factos, convicção que alicerçam, no caso da sobrinha, no facto do tio nunca ter dirigido tais atos à sua pessoa, e no caso do amigo, no facto de não ter tido conhecimento da ocorrência de tais factos durante os anos em que teve convívio mais próximo com o arguido (e que situa após o divórcio do arguido), testemunhas que não souberam explicar como é que vítimas que não se relacionam (no caso da BB, por um lado, e de CC, por outro), relatam atos de abuso perpetrados com recurso ao mesmo «modus operandi» pela mesma pessoa, sem terem tido conhecimento prévio de tais abusos, percebendo-se do respetivo depoimento que estas testemunhas se recusam a aceitar ser o arguido capaz de tais atos, que consideram odiosos, devido aos laços de afeto, familiares e de amizade, conforme o caso, que os unem ao arguido.
A ausência de antecedentes criminais do arguido mostra-se certificada a fls. 140v.”
*
a. Carácter genérico, vago e conclusivo da factualidade dada por provada sob 5, 6, 7, 8, 9, 10, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 21, 25, 26, 27, 28, 29 e 30
Vejamos:
Como se extrai da fundamentação recursória, sustenta o recorrente/arguido que os factos descritos sob os números 5, 6, 7, 8, 9, 10, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 25, 26, 27, 28, 29 e 30 da matéria de facto dada como provada, constituem a imputação de factos genéricos, vagos e conclusivos, sem localização no tempo, pelo que deverão ser dados como não escritos, sob pena de violação dos princípios constitucionais do processo equitativo e do contraditório, assegurados pelo artigo 32º nº1 e nº5 da Constituição da República Portuguesa, pelos artigos 61º nº1 alínea a) e o artigo 283º, nº3 alínea b), ambos do CPP e pelo artigo 3º nº 3 do CPC, tendo o tribunal ocorrido em omissão de pronúncia ao não declarar a nulidade da acusação, com tal fundamento.
A problemática trazida à colação pelo arguido, convoca, preliminarmente, algumas considerações de natureza geral.
Cumpre ao tribunal oficiosamente aferir da verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança – a imputação de factos que consubstanciem ilícito penalmente relevante -.
Tal verificação convoca a análise dos “factos” em que assenta a condenação, cuja reapreciação é pedida por via de recurso, com vista a concluir se os mesmos estão suficientemente concretizados ou, pelo contrário, consubstanciam imputações genéricas insuscetíveis de suportar o seu enquadramento jurídico-penal.
A exigência de uma delimitação factual dos comportamentos que serão objeto de enquadramento jurídico-penal, decorrente da estrutura eminentemente acusatória do processo penal português [imposta pelo artigo 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa] e dos princípios da legalidade e tipicidade que o regem, surge logo em sede de acusação [que assume uma função delimitadora do objeto do processo, sendo este que delimita e fixa a amplitude dos poderes de cognição e decisão do tribunal (âmbito do caso julgado)], exigindo a lei, no artigo 283º, nº 3, al. b) do Código de Processo Penal, “A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” .
Tal exigência de narração dos factos, através da qual é assegurado o direito de contrariedade, pressuposto imprescindível de um efetivo direito de defesa [só alcançável por via do conhecimento, com precisão, do que se encontra acusado para que possa apresentar os seus meios de defesa], mantêm-se, obviamente, em sede de sentença que deverá especificar, nos termos do disposto no n.º 2 do citado art.º 374.º, os “factos provados e não provados”, que não deverá envolver o recurso a expressões genéricas, conclusivas ou de direito [mantendo plena validade no plano processual penal o entendimento sufragado no Ac. do STJ de 28/09/20171 a propósito da alteração introduzida no Código de Processo Civil de 2013:“Muito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria suscetível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos”.].
Como vem sendo afirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça, em jurisprudência consolidada2 que acompanhamos, as imputações genéricas sem qualquer especificação das condutas e circunstanciação das mesmas, nomeadamente no que concerne ao tempo, lugar e motivação, por não serem passíveis de um efetivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente, nem [acrescentamos] à aferição das demais condições de punibilidade, como a existência e tempestividade de queixa ou prescrição do procedimento criminal. Não integram, pois, o conceito de “facto”, juridicamente relevante, as imputações genéricas que não traduzem um “pedaço de vida”, um “agir humano”, minimamente balizado no tempo e no espaço que o permitam distinguir de outra qualquer conduta e que traduzam as circunstâncias relevantes para aferir da ilicitude, da culpa, da maior ou menor perigosidade da ação e do desvalor do resultado.
Concluindo, o quadro factual que recorta o crime pelo qual o agente há de ser julgado e, eventualmente, condenado, terá que corresponder a uma narração apta à individualização do comportamento/ato (que o distinga de outros idênticos) e à compreensão das concretas circunstâncias que habilitam o seu enquadramento criminal, por forma a permitir ao agente o exercício pleno do seu direito de defesa e contraditório e ao julgador o seguro enquadramento jurídico-penal e a correta e adequada fixação da sanção criminal.
É com os fatos que “o arguido fica a saber os fatos que lhe são imputados, começando a preparar a sua defesa e, de uma forma global, o contraditório (art. 32.º-5, parte final, da CRP), e que faz ou encontra uma delimitação, o do thema decidendum, onde “o objeto do processo fica, em princípio, fixado, devendo haver uma certa identidade entre a acusação e a sentença”, ou acórdão, com afirma o Conselheiro João Conde Correia (AAVV, Comentário Judiciário do Código Processo Penal - Tomo III, artigos 191.º a 310, 2025).
Ora, os factos representados na linguagem não são a realidade em si — essa pertence ao domínio da apresentação fenomenológica —, mas sim a sua reconstrução discursiva, mediada pela perceção, memória e linguagem de quem a descreve.
Tal reconstrução exige, todavia, um enquadramento tridimensional, compreendendo as coordenadas de espaço, tempo e ação, pois só assim a linguagem processual adquire valor representativo e cognoscível.
No processo penal, tal reconstrução deve obedecer a critérios de verificabilidade, precisão e comunicabilidade intersubjetiva, de modo a permitir que todos os sujeitos processuais — arguido, tribunal e Ministério Público — partilhem um mesmo referente factual.
A linguagem processual é, assim, o único veículo legítimo de representação da realidade em juízo, substituindo o facto empírico por uma sua imagem linguística que possa ser racionalmente analisada e contraditada.
Trata-se, em última instância, de um autêntico guião, que permite a todos os intervenientes “ver” o mesmo filme, isto é, reconstituir mentalmente o acontecimento histórico no processo interpretativo da acusação e dos factos provados na decisão final.
Sem essa narrativa comunicável e verificável, o processo penal perde a sua função cognoscitiva e degenera numa abstração formal, em que o arguido já não se defende de factos, mas de categorias — o que contraria frontalmente o princípio do contraditório e o direito a um processo equitativo, consagrados nos artigos 32.º e 20.º da Constituição e no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Ora, não há dúvida de que assiste razão ao arguido, em tese, quando invoca a que o contraditório se mostra pleno apenas quando as circunstâncias de tempo e espaço, e a ação concreta perpetrada pelo arguido e as vitimas (e o demais, nesse quadro pretérito de realidade), é totalmente descrita, assim como as verdadeiras motivações dos envolvidos, etc.
Mas esta foi a opção do legislador?
No que aqui interessa, é a seguinte a previsão legal do artigo 283.º-3-b) do CPP (transcrição):
«Acusação pelo Ministério Público
(…)
3 - A acusação contém, sob pena de nulidade:
(…)
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; (…).»
Podemos dizer sem rodeios que a expressão “se possível” traduz uma opção consciente do legislador por uma formulação flexível, que reconhece que nem sempre é possível determinar com precisão absoluta o lugar, o tempo ou a motivação dos factos.
Embora esta cláusula não desobrigue o tribunal e o Ministério Público de concretizar sempre que possível, admite graus de precisão diferenciados, conforme a natureza do crime, o tipo de prova disponível e a viabilidade epistemológica da reconstrução factual.
Assim cláusula “se possível”, constante do artigo 283.º-3-b) e 374.º-2 do CPP, deve ser interpretada à luz da viabilidade epistemológica da reconstrução factual, isto é, da possibilidade objetiva e cognitiva de reconstituir, com rigor, as coordenadas espácio-temporais e motivacionais dos factos em julgamento.
Tal viabilidade depende das condições concretas em que os eventos ocorreram, do tipo de crime, do tempo decorrido, da sucessividade ou continuidade das condutas, bem como da natureza e capacidade cognitiva das fontes de prova.
Com efeito, em certos contextos — como os crimes reiterados ou continuados, ou aqueles que envolvem vítimas particularmente vulneráveis, designadamente crianças —, a reconstrução exata do tempo, do lugar e da motivação de cada episódio ultrapassa os limites emocionais e cognitivos da memória humana, sem que tal implique dúvida razoável sobre a materialidade essencial dos factos, de que eles de fato ocorreram.
No caso concreto, tendo em conta que as vítimas eram crianças, à data dos fatos, uma situada no final da primeira infância, e outra no fim da primeira infância, é reconhecido pela psicologia do desenvolvimento que a perceção temporal e espacial nessas fases é ainda imperfeita, sendo comum que as crianças recordem a sequência emocional e a natureza dos eventos, mas não consigam situá-los com precisão cronológica ou geográfica.
A apreciação da prova testemunhal prestada por crianças deve ser efetuada à luz de uma perspetiva interdisciplinar, conjugando o direito processual penal, a psicologia do desenvolvimento e a epistemologia da memória.
É amplamente reconhecida esta realidade na literatura científica, como por exemplo António Damásio (O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano, 1995, pp. 179-211), no capitulo 8, “A Hipótese do Marcador Somático”, onde o cientista analisa o papel do hipocampo e do córtex pré-frontal na consolidação da memória episódica, relevante para demonstrar que a maturação neurobiológica necessária à ordenação temporal das experiências ocorre tardiamente na infância.
Também Bruce Lipton (A Biologia da Crença. O poder da consciência sobre a matéria e os milagres, 2022, pp. 105-138), explora a interação entre ambiente, emoção e formação de memórias, embora mais bio epigenético, o cientista reforça a ideia de que experiências precoces se codificam afetivamente sem estrutura temporal organizada.
O cientista sustenta esta evidência científica através da análise da medição das ondas cerebrais (LIPTON B., 2017), e também na obra anteriormente mencionada (LIPTON B. H., 2022), onde explica que o desenvolvimento humano é caracterizado por uma sequência cumulativa de padrões de ondas cerebrais que influenciam a perceção e a capacidade de consciência. Até aproximadamente os dois anos de idade, predominam as ondas Delta (0,5 – 4 Hz), relacionadas com um estado de absorção sensorial e ausência de diferenciação entre o eu e o ambiente; entre os dois e os seis anos, acrescentam-se as ondas Theta (4 – 8 Hz), associadas à imaginação e à aprendizagem subconsciente, durante a qual a criança assimila crenças e emoções sem capacidade de filtragem crítica; entre os seis, sete e os doze anos, emergem as ondas Alfa (8 – 12 Hz), que possibilitam a transição entre estados imaginativos e a realidade concreta, marcando o início da consciência reflexiva; a partir da adolescência, desenvolvem-se as ondas Beta (12 – 35 Hz), características da atenção focalizada, do pensamento analítico, da linguagem estruturada e da autonomia cognitiva; e, na idade adulta, podem surgir as ondas Gama (35 – 100 Hz), associadas a processos cognitivos de ordem superior, integração sincronizada de informação entre diferentes áreas cerebrais, estados de consciência elevada e momentos de insight criativo. Este processo cumulativo implica que, à medida que novas frequências emergem, as anteriores permanecem ativas, permitindo que a metaconsciência — a consciência de que se tem consciência — se desenvolva progressivamente a partir dos sete anos e se aprofunde continuamente ao longo da vida.
De fato, durante a primeira infância e ainda na segunda (a partir dos 6 anos até aos 12), o desenvolvimento do hipocampo e do córtex pré-frontal, responsáveis pela consolidação e ordenação temporal das memórias, encontra-se em maturação. Por isso, a criança tende a reconhecer e descrever acontecimentos com base em emoções ou marcos contextuais significativos (“quando estava com medo”, “quando ele me chamou para o quarto”, ou como disse BB, ou “a mãe chamou-me para tomar banho”, isto é, sem conseguir situá-los com rigor total no tempo (quando) ou no espaço (onde), e até o que sentiu, e as suas ações e as do agressor.
Esta limitação, expressa no âmbito da perceção espácio-temporal, não constitui inveracidade, mas antes uma restrição inerente à capacidade cognitiva, o que impõe ao julgador uma análise hermenêutica da prova adequada à idade e ao contexto vivencial da vítima.
Mesmo a terceira vítima, em fase de adolescência, embora já possua capacidade para pensar de modo abstrato, hipotético e dedutivo, representando o tempo e o espaço de forma linear e causal, ainda se depara com forte carga emocional — o córtex pré-frontal, responsável pelo controlo inibitório e pela coerência narrativa sob pressão, continua em maturação até aproximadamente aos 25 anos.
Ademais, os episódios sucessivos dificultam a retenção de memórias com precisão temporal e espacial, gerando interferência mnésica que se manifesta através de: perda de especificidade temporal ("não sei quando exatamente"); perda de especificidade espacial ("acho que foi ali, mas não tenho certeza"); fusão de episódios distintos em memórias compostas; ou conversão em conhecimento semântico generalizado ("acontecia sempre assim"). Esta vulnerabilidade a distorções pós-evento é ainda mais acentuada em crianças, uma vez que o cérebro, ao nascimento, representa apenas 23 a 25 por cento do volume que alcançará aproximadamente aos 25 anos de idade (MORIN, 2000).
Assim, a cláusula “se possível” do artigo 283.º-3-b) e 374.º- CPP reflete precisamente esta consciência epistemológica do legislador: em determinados contextos, como nos crimes sexuais ou de maus-tratos cometidos sobre crianças, a exigência de concretização precisa do tempo e do lugar dos factos ultrapassa a fiabilidade cognitiva da memória infantil.
Como refere o Conselheiro José Mouraz Lopes (AAVV, Comentário Judiciário do Código Processo Penal - Tomo IV, artigos 311.º a 398, 2023, pp. 766-777), exigem-se aqui “critérios de racionalidade numa estrutura tríptica”, a saber, suficiência, coerência e razoabilidade, que apenas se pode aferir em função de cada situação, sendo que as dos autos, estão profundamente condicionadas, como supra referido por dois elementos concretos: o facto de serem crianças as vítimas, duas delas entre a primeira e a segunda infância, e uma adolescente, a que acresce o fato também das ofensas serem múltiplas em diversos períodos, que igualmente, como supra fundamentado, limita os processos de menorização precisa espacial e temporal.
Tal compreensão interdisciplinar e a opção legal garante o equilíbrio entre o princípio da descoberta da verdade material (art. 340.º CPP) e o respeito pela natureza humana da prova, compatibilizando a exigência de fundamentação (art. 283.º-3-b) e 374.º-2 CPP) com os limites próprios de cada caso, e aferidos em função disso.
Em tais circunstâncias, consagra o legislador, a exigência de concretização deve ser temperada por critérios de razoabilidade e coerência probatória, bastando que a narrativa seja suficientemente determinada para garantir o contraditório, a defesa e o controlo da decisão, nos termos do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Concluindo, o advérbio ‘se possível’ exprime a ponderação do legislador entre o perfeito de completude descritiva e a exigência de uma decisão praticável e racional, compatível com a natureza humana da prova.
Transpondo as considerações expostas para o caso dos autos, verificamos, sem dificuldade, que os pontos identificados pelo arguido como correspondendo a imputações vagas, genéricas ou indeterminadas [as expressões do facto 5.º, “Em data não concretamente apurado, próxima do verão de ... e no verão de ...”, do 6.º, “numa ocasião o arguido durante o transporte de HH a casa no seu veículo”, “noutras ocasiões, em número não concretamente apurado, mas não inferior a três vezes”, do n.º 7, “Também em data não concretamente apurada, mas posterior aos factos descritos em 6)”, no facto n.º 8 “Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas em 7)”, no facto n.º 9 “Ainda nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 7)”, no facto n.º 10 “Em diferentes ocasiões, em data não concretamente apurada do verão de ...“, no facto n.º 14 “Neste período temporal o arguido”, no facto n.º 15 “Assim, no decurso das férias de verão do ano ... o arguido, em datas não concretamente apuradas, com periodicidade regular, não inferior a oito vezes, em dias distintos”, no facto n.º 16 “ em pelo menos oito ocasiões“, no facto n.º 20 “algumas vezes,“, no facto n.º 25 “em data não concretamente apurada, no referido período temporal”, no facto n.º 26 “Noutro dia, num fim de semana em que BB visitou a sua progenitora”, no facto n.º 27 “Em outra ocasião, no mesmo período temporal”, no facto n.º 28 “Em dia e mês não concretamente apurado”, no facto n.º 29 “Entretanto JJ chamou BB para tomar banho”, no facto n.º 30 “Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 25) a 28)”, no facto n.º 32 e no facto n.º 33 da matéria dada como provada] enquadram-se ainda, por força do supra exposto, dentro dos critérios de racionalidade e proporcionalidade enunciados, que permitem — e permitiram no caso concreto — uma interpretação teleológica e sistematicamente coerente da norma do artigo 374.º-2 do CPP, a qual deve ser lida em articulação com o artigo 283.º-3-b), relativo aos requisitos da acusação, mostrando-se suficientemente balizados no tempo e nos espaço.
Esta leitura conjugada impõe que a narração dos factos na sentença observe o mesmo grau de concretização e determinabilidade que legitima a acusação como peça delimitadora do thema decidendum, garantindo que o arguido compreende integralmente o objeto da imputação e pode exercer, de forma efetiva, o seu direito de defesa, o que se verifica no caso em apreciação.
Assim interpretada, a norma concretiza os princípios constitucionais do contraditório e da determinabilidade do objeto processual (arts. 32.º, n.ºs 1 e 5, e 205.º, n.º 1, CRP), assegurando que o julgamento decorre num processo equitativo e em igualdade de armas, como o fez nos fatos dados como provados.
Decai pelo exposto esta parte do recurso do arguido.
*
Invoca ainda o recorrente, subsidiariamente, a inconstitucionalidade material do artigo 283.º-3-b) do Código de Processo Penal, por violação dos princípios constitucionais do contraditório e do princípio do processo equitativo, e a nulidade do acórdão nos termos artigo 379.º, n.º 1, alínea c), porquanto o tribunal não se pronunciou sobre a questão da recusa da aplicação do citado normativo em virtude da sua inconstitucionalidade material.
O Ministério Público pronunciou-se e respondeu no essencial dizendo que não há qualquer violação dos princípios invocados.
Vejamos:
Dispõe o artigo 379.º-1-c)-2 do CPP o seguinte (transcrição):
Nulidade da sentença
1 - É nula a sentença:
(…)
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º
(…)”.
Antes de mais importa referir que o arguido não suscitou a questão na sua contestação, e também não identificou nas alegações de recurso onde o fez na 1.ª instância, estando o tribunal vinculado às conclusões e fundamentação subjacente, sendo que não se encontra identificado, onde e em que termos o fez, ou se o fez, a não ser agora nas alegações de recurso.
Não tendo sido suscitado na 1.º instância até à fase de julgamento, não vemos como se pode subsumir a situação "sub judice" a uma omissão de pronuncia da parte do tribunal de 1.ª instância, já que é pacífica a questão da constitucionalidade do artigo 283.º-3-b), apenas se colocando quando os fatos da acusação não preenchem em concreto os requisitos supra elencados de racionalidade, e em concreto se verifique assim que impede a defesa do arguido, o que já concluímos supra que no caso não ocorre.
O tribunal recorrido interpretou o normativo em questão em conformidade com os princípios constitucionais invocados, como já o dissemos, não padecendo o acórdão de qualquer nulidade por omissão de pronúncia, pois, não estando a norma em questão ferida de qualquer inconstitucionalidade material, não tem o tribunal que justificar a sua aplicação.
Tudo visto, também improcede nesta parte a pretensão do arguido.
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b) Se ocorre erro de julgamento relativamente aos factos dados por provados sob os nºs 5 a 40, devendo os mesmos ser dados como não provados [conclusões 13ª a 53º];
Como se extrai do recurso, o recorrente funda a sua pretensão de modificação da matéria de facto na errada valoração que o Tribunal recorrido fez da prova produzida, sustentando que a mesma se apresenta contrária às regras de experiência comum. Ora, tal alegação corresponde juridicamente à alegação de violação do princípio da livre apreciação da prova, princípio que, como decorre do artigo 127º do Código de Processo Civil, preside à apreciação da prova e do qual decorrem limitações ao controlo da decisão sobre a matéria de facto, em sede de recurso.
Este princípio impõe que a apreciação da prova se faça segundo as regras da experiência comum e em obediência à lógica. E se a convicção do Tribunal a quo se estribou nestes pressupostos, o Tribunal ad quem não pode sindicar ou sobrepor outra convicção.
Efetivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (artigo 127º do Código de Processo Penal) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente impercetível na gravação/transcrição [«é sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reações perante as objeções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc. (…) «E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de percepção das referidas reações que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância». «Existem aspetos comportamentais ou reações dos depoentes que apenas podem ser percecionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores» (Abrantes Geraldes in “Temas da Reforma do Processo Civil”, II volume, Livraria Almedina, 3ª edição, páginas 201 e 273)].
Da conjugação do regime legal vigente em matéria de apreciação e valoração da prova, consagrado no artigo 127.º do Cód. Proc. Penal, com as regras processuais previstas no art. 412º, nº 3 do CPP para a impugnação da matéria de facto, resulta que a tarefa do Tribunal de recurso, se reconduz a aferir se o Tribunal “a quo” apreciou e interpretou os meios de prova conforme os padrões e as regras da experiência comum (a regra da experiência expressa aquilo que normalmente acontece, é uma regra extraída de casos similares), não extraindo conclusões estranhas ou fora dos depoimentos, subsistindo sempre um plano de convencimento do Tribunal a quo, segundo a livre convicção do julgador que não cabe a este Tribunal de recurso reformular.
O poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação.
Com efeito, «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros»3.
Com as limitações que decorrem da falta de mediação e da impugnação parcelar dos factos, o Tribunal de recurso somente poderá alterar a decisão de facto quando se “imponha” (usando a expressão legal), ou seja, quando o processo decisório de reconstituição do acontecer histórico da 1.ª Instância se fundou fora da razoabilidade em juízos destituídos de lógica, ou distintos dos padrões da experiência comum.
Assim estabelecidos os limites da análise suscitada, e não se verificando nenhum dos vícios previstos no artigo 410º do CPP, cumpre proceder à análise da prova e da exposição motivacional do Tribunal recorrido e aferir da invocada violação do princípio da livre apreciação da prova, com fundamento na inobservância, por este, das regras da lógica e da experiência comum [juízos ou normas de comportamento social de natureza geral e abstrata decorrentes da observação empírica de factos anteriores semelhantes e que autorizam a apreciação de determinado comportamento com recurso à generalização, usando para o efeito um raciocínio indutivo que permite concluir que, em iguais circunstâncias, voltarão a ocorrer dessa forma4].
A situação fáctica submetida a julgamento reconduz-se a comportamentos abusivos, de cariz sexual por parte do arguido relativamente às menores HH [à qual se reportam os factos provados nºs 1 a 12, dos quais o recorrente impugna nos descritos sob os nº 5º a 12º], CC [à qual se reportam os factos provados 13 a 21, que o recorrente impugna na totalidade] e a BB [à qual se reportam os factos provados 22 a 38, igualmente impugnados na sua globalidade].
Quanto aos factos provados sob os nºs 5 a 12º, relativos a HH:
Alega o recorrente que do confronto do depoimento da HH, do seu primo KK e do pai da HH, a testemunha LL, resulta a descredibilização da versão da ofendida HH e a sua contrariedade com as regras da experiência comum por, na sua perspetiva:
- “não fazer sentido que esta depois de ter sido assediada uma primeira vez, sentindo-se nojenta, tenha ido procurar o arguido para ele lhe dar boleia;
- “o facto de o (KK) não ter dado seguimento à alegada informação de assédio que lhe foi fornecida pela HH, …demonstra que aquela não lhe foi transmitida, pois só revelaria um total descrédito com a informação o que não se compagina com o suposto trauma que a testemunha disse ter sentido”;
- estar em contradição com a afirmação da testemunha KK, no segmento em que refere “Sim vivíamos pertinho uns dos outros. Quer estas meninas, quer o meu filho se davam muito bem com senhor AA. Apesar de não ser neto, o meu filho tratava-o como avô. E estas meninas e o meu filho iam muitas vezes juntos. O meu filho andava sempre com o senhor AA. Nós, família direta nunca nos apercebemos por nada disso.”;
- O confronto que o pai da ofendida HH, testemunha LL, fez ao arguido, nos serviços de desenvolvimento agrário do ..., dois ou três dias depois de saber isso e em que disse ao arguido “vais brincar com as tuas filhas, com as minhas não brincas mais” mostram á saciedade que pelo menos os últimos supostos toques e conversas do arguido para com a HH não ocorreram, pois como bem referiu a senhora procuradora e a senhora doutora juíza os abusadores sexuais não escolhem filhos de pais que estão presentes e que sabem podem ser uma ameaça para o agressor.
Vejamos:
Sobre a factualidade em causa, o Tribunal recorrido motivou nos seguintes termos:
«(…) o Tribunal, fazendo uma análise crítica e com recurso a juízos de experiência comum, formou a sua convicção com base no depoimento da testemunha HH e nas declarações para memória futura das ofendidas CC e BB, concatenadas no que respeita aos factos descritos em 5) , com o depoimento do primo da ofendida HH, a quem esta recorreu após ter sido alvo pela última vez das investidas sexuais do arguido, a testemunha KK, que corroborou a confidência desta ofendida e a comunicação do episódio ao pai desta ofendida, a testemunha LL. O depoimento da ofendida HH foi impressivo e rigoroso em referência aos atos libidinosos que o arguido a si dirigiu e também relativamente às circunstâncias em que se deu a relevação dos atos sexuais perpetrados pelo arguido AA na ofendida CC (na sequência da audição pela ofendida CC da conversa que HH manteve com a avó de ambas, na casa dos pais destas, em que relatava as investidas sexuais do arguido sobre si), não deixando margem para dúvidas sobre a sua veracidade.».
Ouvidos os depoimentos em causa e a totalidade da prova, outra constatação não poderemos fazer senão a de que o tribunal recorrido, analisou critica e conjugadamente os diversos meios de prova, com recurso e em total compatibilidade e adequação com as regras de experiência comum, dando total credibilidade (e bem) ao depoimento da menor HH que, conforme expressa o tribunal na sua exposição motivacional, é rigoroso na descrição que faz dos vários comportamentos do arguido e respetivas circunstâncias espácio-temporais, em nada se mostrando contrariado ou sequer beliscado com os depoimentos das testemunhas KK [que deixou claro que não transmitiu de imediato a informação que lhe havia sido transmitida pela HH, justificando a razão pela qual não o fez, vindo apenas a fazê-lo junto do pai das menores, a testemunha LL, aquando do conhecimento dos factos que envolviam a menor CC] e LL que, em total compatibilidade com o depoimento da testemunha KK, relatou as circunstâncias em que tomou conhecimento dos factos relativos à sua filha HH e quem lhe contou [o KK].
Decorre igualmente do depoimento da menor HH existir uma justificação para ter pedido boleia ao arguido [no episódio descrito em 7 dos factos provados], depois da factualidade descrita no ponto 6 dos factos provados, quando refere que em determinado momento as “coisas estavam mais apaziguadas”.
Acresce que a falta de credibilidade que o recorrente atribui ao depoimento da menor, não constitui, só por si, fundamento válido para conduzir a uma modificação da matéria de facto, sendo necessário que a prova produzida, analisada à luz da lógica e das regras de experiência, imponha decisão diversa.
Contrariamente ao alegado pelo recorrente, nenhuma conclusão ou dedução do tribunal se apresenta desconforme às regras ditadas pela experiência comum e todas elas se contém dentro dos limites da prova produzida.
Por conseguinte, tendo em conta a clareza expositiva e pormenorizada do processo de convencimento do Tribunal a quo, dúvidas não subsistem de que o mesmo cumpriu, com rigor, a exigência constitucional de explicitação objetiva e motivada do processo da formação da sua convicção, fazendo menção expressa do acervo probatório (legal) em que assentou a sua convicção, e descreveu o processo lógico que a partir dele desenvolveu para proceder à valoração nos termos em que a efetuou, evidenciando-se que o mesmo está conforme às regras de experiência comum.
Conclui-se assim, sem necessidade de mais considerações, não ocorrer a alegada violação do disposto no artigo 127º do CPP, por contrariedade dos factos provados com as regras da lógica e da experiência comum.
Improcede, pois, este segmento da impugnação da matéria de facto.
Quanto aos factos 13 a 21, relativos à menor CC
Também relativamente a este complexo fáctico, o recorrente invoca violação do artigo 127º do CPP, por análise da prova contra as regras de experiência comum, pugnando pela sua modificação para não provada.
Argumenta para o efeito, em síntese, que do depoimento da menor não resulta terem os factos ocorrido no verão de ... [porquanto a mesma não o soube precisar]; decorrer do depoimento da menor que o arguido não procurou criar ocasiões a sós com a criança e de abusar da sua ingenuidade e inexperiência [porquanto de acordo com o depoimento daquela, havia um primo presente]; não fazer sentido a ameaça a que se refere o ponto 19, se havia outra testemunha que poderia contar os mesmos factos; invoca ainda o seu depoimento negando os factos e negando ter estado sozinho com a CC, bem como não resultar do depoimento da menor que o arguido tivesse o pénis ereto, que tenha feito movimentos de vai e vem, realçando a impossibilidade física de tal ocorrer dada a idade da menor; por fim, alega não ter sido feita prova de que tenha colocado a “CC em pé, com os pés em cima das grades de um portão, por forma a elevá-la ao seu tamanho e a facilitar a prática de coito anal”.
Vejamos:
Como decorre da exposição motivacional do tribunal a quo, a factualidade dada por provada nos pontos ora impugnados (em concreto nos segmentos relativamente aos quais o recorrente se insurge – o período temporal em que ocorreram os factos; a ausência de momentos a sós com a criança; a falta de sentido da ameaça a que alude o ponto 19º, face à presença do menor NN; que o pénis do arguido estivesse ereto; que tenha praticado coito anal com a menor e que tenha colocado a menor em cima das grades de um portão, por forma a elevá-la ao seu tamanho e assim facilitar a prática do mesmo -) assentou, essencialmente, nas declarações para memória futura, prestadas pela menor, conjugadas com o teor do desenho por si elaborado (cf. ref.ª 5610145 de fls. 66), em que a menor retrata o trajeto que fazia para o local onde os factos terão tido lugar e com o auto de reconhecimento do local de fls. 71 e segs. (ref.ª 5610145), que documenta, por fotografias, o espaço, e no âmbito do qual a menor explicitou as posições concretas em que os factos ocorreram, confirmando-as no seu depoimento.
Ouvidas as declarações da menor, constata-se ser verídica a alegação do recorrente de que a menor não situou os factos no Verão de ..., não usou a expressão coito anal, não confirmou como estava o pénis no momento da sua introdução no seu ânus (ereto ou não ereto), não fez referência a movimentos de vai e vem e não referiu que o arguido a colocou em pé, com os pés em cima das grades de um portão, por forma a elevá-la e a facilitar a prática do coito anal.
Referiu, sim, que nasceu em ... de ... de 2010, que os factos apenas ocorreram durante as férias de verão e que tinha 7/8 anos de idade. Descreveu igualmente, de forma espontânea [ainda que com o inerente embaraço de uma adolescente de 14 anos à data da prestação das declarações] que o arguido lhe baixava as calças, que ficava de costas para o arguido, agarrada ao portão, ele agarrava-a pela cintura e colocava o pénis no seu ânus. O seu corpo ia para a frente e voltava para trás para trás. Mais referiu que, seguidamente (sempre da mesma forma, nas várias situações) ele lhe pedia para lhe tocar no pénis, fazendo os gestos, o que esta fazia, exemplificando com os dedos fechados em círculo, em volta do pénis e puxando para cima e para baixo. Por fim esclarece que ele se afastava para uma zona do curral onde havia uma valeta e via sair um líquido branco do pénis.
Faz ainda referência à presença do menor NN em algumas das ocasiões em que ocorreram os factos em análise, embora o coloque numa zona dos currais distinta, ainda que com visibilidade sobre a menor e o arguido.
Preliminarmente à análise da existência ou não de erro de julgamento e fixação da respetiva extensão, cumpre referir que as testemunhas descrevem as respetivas perceções [o que a menor fez de forma espontânea e com recurso à linguagem possível na idade em que o faz], cabendo ao julgador, dotado de um conhecimento global da dinâmica dos acontecimentos e da prova, interpretar tal descrição factual em função do conhecimento que a testemunha revela, e concluir pela qualificação dos factos que lhe são relatados. As testemunhas não são preparadas para depor, devem descrever, com a sua natural linguagem, o que viram e sentiram [isto é, a percepção do que viram e sentiram]. Tratando-se de uma criança de 14 anos à data em que presta declarações, sem evidências de uma vida sexual ativa, cabe ao tribunal interpretar qual o significado fáctico a dar à descrição que fez, com recurso à linguagem que a mesma dispõe para descrever os acontecimentos.
A prova produzida (declarações da menor e elementos externos por esta confirmados – reconstituição do local onde decorreram os factos e respetiva dinâmica), analisada de forma crítica, objetiva e com a racionalidade imposta pelas regras de experiência comum, é bastante para concluir por um juízo de certeza judicial relativamente ao período temporal em que ocorreram [férias de verão de ..., tendo por premissa a idade referida pela testemunha menor e a data do seu nascimento], bem como todas as circunstâncias que rodearam os encontros, de cariz sexual, entre o arguido e a menor [procurando o arguido momentos a sós com a menor, tentando persuadir o primo da menor, NN, a não os acompanhar aos currais] e localização dos encontros. É igualmente plausível e compatível com as regras de experiência comum que, em algumas das ocasiões, estivesse por perto o menor NN e, ainda assim, o arguido verbalizasse a ameaça a que alude o ponto 19. Com efeito, o referido menor tem cerca de 4/5 anos a menos do que a menor, pelo que a sua capacidade de percepção e interpretação do que eventualmente poderia ver seria absolutamente diminuta, tal como o risco de contar algo sobre o que vira.
Por outro lado e como sabemos, a formação da convicção do Tribunal, pode não assentar exclusivamente em meios de prova diretos mas igualmente em processos lógicos assentes nas regras de experiência comum, que permitem deduzir de um facto conhecido ou outro desconhecido – presunção judicial5 [a prova por presunções constitui um meio de prova legalmente previsto no artigo 349º do Código Civil, traduzindo-se em “(…) ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido”, que não está afastada no âmbito do processo penal].
Como vem sendo afirmado, de forma sedimentada, pela jurisprudência, a estrutura lógica desta tipologia de presunção caracteriza-se pela conexão de factos através de um juízo de probabilidade que, por sua vez, se apoia na experiência, de maneira tal que a prova de um envolve a prova de outro. A presunção consiste, pois, em alcançar a prova de determinado facto (facto presumido), partindo de um ou outros factos básicos demonstrados por outros meios de prova, que por apresentarem uma ligação estreita com o facto presumido, permitem dar igualmente como probatoriamente demonstrado o facto presumido.
No caso em análise, como evidência a exposição motivacional, o Tribunal recorrido, com base na factualidade que considerou probatoriamente demonstrada, com recurso a prova direta, relativa à dinâmica dos factos relatada pela menor, nomeadamente a posição que descreve imediatamente antes da introdução do pénis no seu ânus [em pé, de costas para o arguido, agarrada ao portão, colocando-lhe o arguido as mãos na cintura e movendo o seu corpo para trás e para a frente], conjugada com dados objetivos como a diferença de estatura entre o arguido, que assume ter 1,86 metros de altura [igualmente comprovada nos autos, por via da ficha de identificação do mesmo, a que este faz referência na motivação recursória], concluiu, sem que tal mereça censura por parte deste tribunal de recurso, no ponto 16º dos factos provados, que “o arguido, em pelo menos oito ocasiões, colocou CC em pé, com os pés em cima das grades de um portão, por forma a elevá-la ao seu tamanho”.
Tal conclusão/inferência da prova é absolutamente plausível perante o acervo probatório produzido e conforme às regras de experiência comum.
Já não poderemos acompanhar, na sua plenitude, o juízo probatório firmado pelo tribunal a quo no segmento constante do ponto 16º dos factos provados, em que se dá por assente que a elevação do corpo da menor à sua altura se destinava a «facilitar a prática de coito anal» e que o arguido «introduziu o seu pénis ereto no ânus de CC», por duas ordens de razão:
- A primeira pela utilização indevida, em sede de factual, da expressão “coito anal”, na medida em que corresponde a um conceito médico-legal, erigido normativamente para traduzir a introdução total ou parcial do pénis no ânus, que deverá ser apreciado em sede de subsunção fáctico-jurídica;
- A segunda porque o acervo probatório, analisado à luz das regras de experiência comum, não autoriza que se dê como provado que o arguido introduziu o seu pénis ereto no ânus da menor, sem que se limite a extensão dessa introdução.
Quanto aos concretos atos praticados pelo arguido sobre o corpo da menor CC, é inequívoco que a prova produzida permite concluir que o arguido introduziu, em parte, o seu pénis ereto no ânus da menor, mas já não a sua totalidade, como a redação dada pelo Tribunal a quo inculca.
Com efeito, a diferença anatómica entre o órgão sexual do arguido, um homem adulto, relativamente ao ânus de uma criança de 7/8 anos de idade, inviabiliza qualquer introdução total no pénis no ânus da criança, sem que daí advenham consequências físicas para a menor, como dor, laceração, sangramento, que não são referenciadas pela mesma. A introdução anal que ultrapasse a zona da glande do pénis, necessariamente teria que gerar sangramento e dor, que a menor não confirma.
O acervo fáctico, analisado à luz das regras da experiência comum, permitem apenas concluir que o arguido introduzia parcialmente o seu órgão sexual no ânus da menor (ao nível da glande do pénis) para se estimular, efetuando movimentos de vai e vem, seguindo-se a masturbação pela menor, pelo próprio arguido e a posterior ejaculação fora do corpo da menor.
Em consequência do exposto, temos, necessariamente, que concluir que o juízo probatório firmado pelo julgador relativamente aos dois segmentos em análise não pode ser acompanhado por este Tribunal, por evidenciarem violação das regras de apreciação da prova consagradas no artigo 127º do Código de Processo Penal.
Impõe-se, assim, a modificação da matéria de facto nos termos do artigo 431º, al. b) do Código de Processo Penal por verificação do condicionalismo invocado no recurso [afronta às regras da experiência comum de que parte o juízo probatório formado quanto aos segmentos indicados, que fundamentam o afastamento da convicção que o Tribunal a quo].
A matéria de facto passará, por via da sua modificação, a ter a seguinte redação quanto ao ponto 16º dos factos provados:
«16. - Aí, longe da vista de todos e com total domínio sobre o corpo da criança e aproveitando-se da sua inexperiência, ingenuidade e inocência, o arguido, em pelo menos oito ocasiões, colocou CC em pé, com os pés em cima das grades de um portão, por forma a elevá-la ao seu tamanho e a facilitar a introdução do seu pénis no ânus desta, após o que, despiu-a da cintura para baixo e, segurando-a pela cintura, introduziu parcialmente na zona da glande o seu pénis ereto no ânus de CC em movimentos de vai-e-vem, sem utilizar preservativo;».
Em síntese final, julga-se improcedente a impugnação do recorrente quanto aos factos 13 a 21, relativos à menor CC, com exceção do facto 16º dos factos provados, que passará a ter a redação acima transcrita, consideram-se, nesta parte, parcialmente procedente a impugnação do recorrente.
Quanto aos factos 24 a 32 e 34, relativos à menor BB
O recorrente/arguido impugna, igualmente, este acervo fáctico dado por provado nos pontos 24 a 32 e 34, com fundamento na falta de credibilidade do depoimento da menor BB e na contrariedade do mesmo com as regras de experiência comum, alegando, em síntese, que o depoimento está eivado de generalidades quanto às datas e à descrição dos factos, que qualifica de repetitiva, e ainda não fazer sentido que uma criança sujeita aos abusos dados como provados, continuasse a tentar dirigir-se ao portão da instituição onde se encontra para o ver, manifestado contentamento em vê-lo, como resulta do depoimento da testemunha XX, apesar das advertências de que lhe foram feitas de que não o deveria fazer.
O tribunal a quo motivou o respetivo acervo fáctico, nos seguintes termos:
«Em referência aos atos sexuais praticados na pessoa da menor BB, o tribunal firmou a sua convicção no teor das declarações prestadas pela mesma para memória futura (cf. fls. 282 a 282v.), das quais apenas é possível concretizar quatro condutas de abuso à menor pelo arguido (e não em 30 ocasiões diferentes conforme se refere no artigo 43º da acusação), declarações estas que foram em parte corroboradas pelas testemunhas TT, técnica da casa de acolhimento onde a BB reside, a quem a menor relatou os atos sexuais que a vitimaram praticados pelo arguido AA, e UU, jovem acolhida noutra valência da mesma casa de acolhimento residencial, primeira pessoa com quem a menor partilhou os abusos que a vitimaram. Os depoimentos destas testemunhas foram também importantes para prova do sofrimento que BB evidenciou aquando da revelação, bem como da afetação do livre desenvolvimento da personalidade desta ofendida (demonstrado na conduta perturbadora de procura do afeto e atenção do arguido, apesar dos abusos).
Carecem de fundamento as objeções que o recorrente coloca relativamente à de credibilidade do depoimento (à sua falta, mais precisamente) por conter generalidades quanto às datas em que ocorreram os factos, à forma repetitiva como a menor os descreve e à sua aparente contradição com atitudes de afeto que a menor continuou a manifestar face ao arguido mesmo após a verbalização, perante terceiros, dos abusos de que foi alvo por parte daquele.
O quadro fáctico, que se mostra incontroverso, mostra-nos que estamos perante uma menor, BB, que tinha à data da prática dos fatos 12, 13 anos, estava institucionalizada, e vinhas aos fins de semana a casa, de 15 em 15 dias, onde vivia o arguido, companheiro da mãe. Trata-se de uma menor institucionalizada pela 1ª vez aos 6 anos de idade, e naturalmente, carente de afeto, circunstância facilitadora da relação de proximidade e afeto que veio a desenvolver com o arguido nos momentos em que a mesma vinha a casa de 15 em 15 dias passar o fim de semana. Ninguém olvida as dificuldades de concretização de datas neste tipo de contexto vivencial, pelo que é natural e consentâneo com as regras de experiência comum, que a menor não as consiga concretizar, bem como a existência de sentimentos de ambivalência da menor entre o afeto que tinha para com o arguido e os abusos de que era alvo por parte deste.
É do senso comum, facto que seguramente não foi ignorado pelo tribunal recorrido, que algumas vítimas — sobretudo menores sujeitas a abusos em contexto familiar — manifestam atitudes de aparente simpatia, proximidade ou até afeto em relação ao agressor, o que, à primeira vista, poderia ser interpretado como contradição ou indício de falta de coerência no relato.
Todavia, tal fenómeno é amplamente reconhecido pela psicologia do trauma e pela psiquiatria infantil, sendo identificado por diversos autores como “vínculo traumático” ou “síndrome de acomodação ao abuso sexual”, ou do conhecido “síndrome de Estocolmo em contexto de abuso prolongado”, pois a criança, dependente emocional e materialmente do adulto, não dispõe de recursos cognitivos para integrar a dualidade ameaça/proteção, e o sistema límbico — responsável pela gestão das emoções — procura preservar o vínculo como forma de minimizar o perigo, mesmo que esse vínculo inclua o agressor.
Pode-se dizer que nestes casos a criança “não escolhe o abuso, mas escolhe sobreviver a ele”, e para tanto desenvolve uma estratégia de acomodação emocional que lhe permite suportar a situação sem colapso psíquico.
Esta ambiguidade afetiva da vítima não afasta a credibilidade do relato, sendo perfeitamente compatível com a interiorização do medo, com o condicionamento psicológico e com os mecanismos de autopreservação da criança.
Assim, o tribunal de 1.ª instância, entendeu, e bem, que a eventual demonstração de afeto da vítima pelo arguido não enfraquece o seu relato dos abusos, antes o contextualiza, dizemos nós, revelando o impacto emocional e relacional típico deste tipo de violência sexual sobre menores, que conjugam a confusão afetiva com o medo e a necessidade de manter uma aparência de normalidade, pelo que também nada há aqui a censura na decisão recorrida.
A menor identifica no seu depoimento, com clareza, quatro episódios de abusos de natureza sexual do arguido para com ela, que descreve com pormenor e relativo rigor, que posteriormente descreve a uma amiga da instituição e posteriormente à técnica da instituição, ambas ouvidas em depoimento no julgamento, que se apresenta consentâneo com as declarações da menor e com as regras de experiência comum.
Por conseguinte, carece de fundamento a alegação de que o depoimento da menor foi valorizado fora das regras de experiência comum, bem como a prova que o tribunal considerou para formar o seu juízo probatório, relativamente aos pontos fácticos impugnados.
Improcede, pois, a impugnação do recorrente relativamente aos factos em análise, ornando-se definitiva a prova firmada pela 1ª instância.
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Pese embora o arguido recorrente tenha declarado impugnar os pontos 39 e 40 dos factos provados, atinentes às sus condições pessoais, certo é que não motivou tal impugnação, pelo que se impõe rejeitar a mesma por falta de cumprimento do ónus de impugnação.
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Sem reflexo nas conclusões de recurso, alega o recorrente na respetiva motivação, sob o ponto VIII, a violação da garantia constitucional de acesso a um processo equitativo, previsto no artigo 32º da CRP, alegando, em síntese, que ao impedir a realização de perícias às menores, este ficou impossibilitado de exercer o seu direito de defesa.
Vejamos:
Não obstante o arguido não ter levado tal temática às conclusões de recurso, como se impunha, para que vinculasse este tribunal de recurso à respetiva apreciação, não deixaremos de analisar a questão, evitando reações de omissão de pronúncia.
A questão da constitucionalidade por violação de acesso a um processo equitativo, por referência ao artigo 32º da CRP, invocada pelo recorrente no ponto VIII da motivação, mais não é do que o repristinar de uma questão já apreciação em sede de recurso interlocutório – o indeferimento da perícia requerida.
O acesso a um processo justo e equitativo, com garantia constitucional, não equivale ao deferimento de todas as diligências de prova do arguido e de outro sujeito processual. No caso em análise, considerou o tribunal recorrido e, igualmente o tribunal de recurso, estarmos perante uma diligência não essencial e até inútil para a descoberta da verdade matéria, pelas razões a propósito aduzidas.
Por conseguinte, impõe-se concluir pela inverificação de qualquer inconstitucionalidade, por falta de acesso a um processo justo e equitativo, como sustenta o recorrente.
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c) Medida das penas parcelares e única aplicadas ao arguido e respetiva excessividade:
Previamente à análise da adequação e proporcionalidade das penas parcelares e única aplicada ao arguido, impõe-se consignar que, não obstante a alteração da matéria de facto no ponto 16º dos factos provados, permanece incólume a subsunção fáctico-jurídica efetuada pelo tribunal, porquanto a restrição do nível de penetração anal da menor CC (para parcial), continua a integrar o conceito de coito anal [neste sentido v. Ac. do TRL de 10.09.2020, proferido no processo 948/18.6T9LSB.L1, desta 9ª secção, relatado pela aqui 1ª adjunta, publicado em www.dgsi.pt.].
Insurge-se ainda o recorrente contra as penas parcelares e pena única fixada, pugnando pela respetiva redução. Alega para o efeito serem as mesmas desadequadas face à culpa e ilicitude dos factos, bem como ao facto se o arguido ser primário e ser estimado no meio social.
Vejamos.
A aplicação da pena visa a proteção dos bens jurídicos violados (prevenção geral positiva) e a reintegração do agente na sociedade (ressocialização), não podendo a medida concreta da pena exceder a culpa do agente (artigo 40º do Código Penal), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem contra e a favor do agente (nº 2 do artigo 72º do Código Penal).
O tribunal recorrido condenou o arguido, na pena única de 20 anos de prisão [em resultado do cúmulo jurídico das penas parcelares de: a) 10 meses de prisão e 6 meses de prisão, pela prática de dois crimes de importunação sexual, p. e p. pelo artigo 170º do Código Penal na pessoa da ofendida HH; b) de 4 anos de prisão, 4 anos de prisão, 4 anos de prisão, 4 anos de prisão, 4 anos de prisão, 4 anos de prisão, 4 anos de prisão e 4 anos de prisão, pela prática de 8 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171º, n.º 2, do Código Penal, na pessoa de CC; c) nas penas de 5 anos de prisão, 5 anos de prisão, e 5 anos de prisão, pela prática de 3 crimes de abuso sexual de crianças agravada, p. e p. pelos artigos 171º, n.ºs 2, e 177º, n.º 1, al. b), do Código Penal, na pessoa de BB; e d) na pena de 2 anos de prisão, pela prática de 1 crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos artigos 171º, n.ºs 1 e 177º, n.º 1, al. b), do Código Penal, na pessoa de BB], com base na seguinte argumentação (transcrição parcial):
«quanto aos dois crimes de importunação sexual agravada que vitimaram a ofendida HH, considera-se que o grau de culpa do arguido e de ilicitude dos factos são medianos, o mesmo já não sucedendo relativamente aos abusos perpetrados pelo arguido na pessoa da ofendida CC, através da prática de factos objetivamente graves (coito anal seguidos de ato masturbatório do arguido), que comprometeram o livre desenvolvimento da personalidade da menor CC, incluindo, naturalmente, na sua esfera sexual, os quais merecem um juízo elevado de culpa e assumem elevada ilicitude, porque dirigidos a menor 7 anos de idade, que não compreendeu sequer o que lhe estava a acontecer, reiterados no tempo (pelo menos em 8 ocasiões). Relativamente à menor BB, considera-se a culpa do arguido e a ilicitude da sua atuação acima da média, em virtude da natureza dos atos (linguado, introdução vaginal, e numa ocasião coito anal) e sua reiteração (pelo menos em 4 ocasiões). O arguido não reconheceu os factos integradores dos ilícitos criminais, não tendo demonstrado arrependimento nem vontade de assunção de responsabilidade pelo sucedido ou feito algo no sentido de reparar o mal da sua conduta (circunstâncias que, pela positiva, poderiam concorrer a favor do mesmo). A favor do arguido milita apenas a sua satisfatória integração social e a ausência de antecedentes criminais. Na componente subjetiva da ilicitude, há ainda a considerar o dolo que foi direto, em qualquer dos casos.
As necessidades de prevenção geral são muito elevadas, atento o grande alarme social e sentimentos de «asco», indignação e de intranquilidade que os crimes sexuais a vitimar crianças e adolescentes provocam na comunidade, sendo também elevadas as exigências de prevenção especial, apesar do arguido não ter antecedentes criminais, ao que se considera a natureza compulsiva dos abusos sexuais de crianças explicativo, por exemplo, do comportamento predatório do arguido, que quando não conseguiu levar avante atos libidinosos sexuais em relação à menor HH de 14 anos, passados cerca de 2 anos, voltou-se para a irmã daquela, uma criança de 7 anos de idade, e quando deixou de ter acesso a esta criança, por força do termo da união de facto com a tia da vítima CC, dirigiu a satisfação da sua lasciva sexual à filha da nova companheira de 12/13 anos de idade, aquando dos convívios quinzenais da criança com a mãe.».
Convocando os factos provados relevantes para a aferição da adequação e proporcionalidade das penas parcelares [e única] concretamente fixadas [que objetivamente apenas se situam um pouco acima da metade da moldura abstrata aplicável relativamente à ofendida HH, um ano acima do mínimo legal no caso da ofendida CC e 2 anos acima do mínimo legal relativamente à ofendida BB, pela prática de 3 crimes p. e p. pelo art. 171, nº 2 e 177º, n.º 1, al. b), do Código Penal, e 6 meses acima do mínimo legal pela prática de 1 crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos artigos 171º, n.ºs 1 e 177º, n.º 1, al. b), do Código Penal, na pessoa de BB do CP], não poderemos deixar de validar o juízo de ponderação que, através da conjugação dos vários valores e princípios que concorrem na operação de determinação concreta das penas, o Tribunal recorrido efetuou, exceto relativamente à ofendida CC em que se verifica, por força da alteração do ponto 16º dos factos provados, uma diminuição da ilicitude (desvalor da ação e do resultado), bem como da culpa, considerando-se adequado e proporcional fixar em 3,6 anos a pena de prisão por cada um dos 8 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171º, n.º 2, do Código Penal, em que o mesmo incorreu.
Estamos perante um quadro fáctico de elevada ilicitude, que apenas é atenuada pela falta de evidência de lesões físicas graves, mas que não obscura os evidentes danos psicológicos nas menores, que persistem e perdurarão.
O mesmo se diga relativamente ao grau de culpa que, como corretamente foi afirmado pelo Tribunal a quo, se apresenta muito elevado [elevada reprovabilidade e censurabilidade ético-jurídicas das condutas], evidenciando uma personalidade mal formada, aproveitando-se de um grau de confiança junto das menores para alcançar a satisfação dos seus ímpetos libidinosos,, que exige superior reação penal.
Foram igualmente ponderadas e valoradas nas medidas das penas, as circunstâncias que militam a favor do arguido [inexistência de antecedentes criminais e adequada inserção social e familiar].
Concluindo, analisada a globalidade da factualidade provada relativa às condutas ilícitas, a sua perduração no tempo, bem como os factos pessoais provados e ausência de antecedentes criminais, conjugada com as necessidades de prevenção especial e geral que o caso requer, adequadamente balizadas no acórdão recorrido, conclui-se ser adequada a fixação de uma pena única de 17 anos de prisão.
d) Impugnação das condenações nos pic´s por não ter praticados os fatos e, assim não sendo, pelos valores indemnizatórios pelos danos morais serem exagerados face às condições económicas do arguido
A pretensão de absolvição, deduzida pelo recorrente, da condenação nos pedidos de indemnização civil assenta, em primeira linha, no não cometimento por este dos ilícitos pelos quais foi condenado e, em alternativa, na consideração de que o quantitativo das mesmas é exagerado, face aos danos e à situação económica deste.
Conclui pela violação, pela decisão recorrida, dos os artigos 483.º e 496.º, 562.º e 563.º do Código Civil por erro na interpretação e aplicação das referidas normas.
Vejamos:
Estando confirmada a prática dos fatos, a primeira parte da questão aqui colocada pelo arguido, fica sem interesse.
Quanto ao quantum indemnizatório, veja-se:
A indemnização por danos não patrimoniais, também designados danos morais, encontra o seu fundamento jurídico nos artigos 483.º, 496.º e 562.º a 566.º do Código Civil, e visa compensar os lesados pela violação de bens imateriais da personalidade humana — como a dignidade, a integridade física e psíquica, a liberdade sexual, a honra e o bem-estar emocional.
Dispõe o artigo 496.º, n.º 1, que:
«Na fixação da indemnização deve o tribunal atender aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito
E o n.º 3 do mesmo artigo remete a fixação do quantum indemnizatório para os critérios de equidade, considerando as circunstâncias do caso e a situação económica do lesante e do lesado.
A doutrina e a jurisprudência têm vindo a consolidar um conjunto de critérios orientadores, como a gravidade objetiva e subjetiva do dano, aferida pela intensidade do sofrimento físico ou moral, pela duração e pelas repercussões na vida pessoal, relacional e afetiva das vítimas; a irreversibilidade ou persistência do dano, nomeadamente quando se trate de traumas psíquicos permanentes, como nos casos de abusos sexuais de menores, em que a lesão se projeta por toda a vida adulta; a natureza dos bens jurídicos violados, sendo de maior relevância os que tocam a dignidade da pessoa humana e a autodeterminação sexual, como aqui corre; a culpa do agente, o grau de dolo ou de perversidade e o contexto de domínio ou manipulação da vítima; e ainda a necessidade de compensação simbólica e pedagógica, tendo em vista não apenas reparar o sofrimento da vítima, mas também reafirmar o valor jurídico-constitucional da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP).
Ora, o caso dos autos, com três crianças envolvidas, sendo uma de apenas 6/7 anos, em múltiplos crimes sexuais, duas das crianças, as mais novas, com penetração anal, ainda que parcial, considerando os danos presentes e futuros que estas crianças vão ter de conviver, como supra fundamentado, as quantias arbitradas a título de anos morais a serem desadequadas é por defeito.
Com efeito a tipologia de danos que ocorrem e perduram na vida destas vítimas são incomensuráveis e diversa índole [sentimentos de vergonha, culpa, humilhação, dificuldades de desenvolver uma sexualidade harmoniosa].
Pelo exposto, nada há a censurar neste segmento decisório.
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III – DISPOSTIVO
Por tudo o exposto, acordam os Juízes desta Secção Criminal:
1. Nem negar provimento ao recurso interlocutório interposto pelo arguido;
2. Julgar parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto, alterando a redação do ponto 16º dos factos provados, que passa a ter a seguinte redação:
«16. - Aí, longe da vista de todos e com total domínio sobre o corpo da criança e aproveitando-se da sua inexperiência, ingenuidade e inocência, o arguido, em pelo menos oito ocasiões, colocou CC em pé, com os pés em cima das grades de um portão, por forma a elevá-la ao seu tamanho e a facilitar a introdução do seu pénis no ânus desta, após o que, despiu-a da cintura para baixo e, segurando-a pela cintura, introduziu parcialmente na zona da glande o seu pénis ereto no ânus de CC em movimentos de vai-e-vem, sem utilizar preservativo»
3. Reduzir as penas parcelares de prisão aplicada ao arguido pela prática de 8 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171º, n.º 2, do Código Penal, sobre a menor CC, para 3 anos e seis meses, por cada um dos crimes;
4. Reduzir a pena única aplicada, condenando o arguido na pena única de 17 anos de prisão;
5. Confirmar, no mais, o acórdão recorrido;
6. Sem custas.

Lisboa, 20 de novembro de 2025
(Texto elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator)
Joaquim Manuel da Silva
Cristina Luísa da Encarnação Santana
Ana Paula Guedes

Doutrina citada:
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DAMÁSIO, A. (1995). O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano (14ª ed.). Lisboa: Europa-América.
FIGUEIREDO DIAS, J. d. (1974). Direito Processual Penal. Coimbra Editora.
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M. SIMA SANTOS, J. SIMA SANTOS, & LEAL-HENRIQUES, e. M. (2023). Noções de Processo Penal. Lisboa: Rei dos Livros.
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SANTOS, S., & HENRIQUES, L. (1996). Recursos em Processo Penal (3.ª ed.). Lisboa: Rei dos Livros.
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1. Juíza Conselheira Fernanda Isabel Pereira, proc. nº809/10.7TBLMG.C1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
2. V. entre outros, Acs. de 17.01.2007 (processo 3644/06-3ª secção), de 24.01.2007 (processo 3647/06 – 3ª secção, de 02.04.2008 (processo 07P4197) e ainda Ac. Relação de Évora de 01.10.2013 (processo 948/11.7 PBSTR.E1) e Ac. Relação do Porto de 13.11.2019 (processo 109/19.7 GAARC.P1), todos publicados in www.dgsi.pt;
3. Cf. neste sentido, Ac. do STJ de 15-12-2005, Proc. nº 05P2951 e Ac. do STJ de 9-03-2006, Proc. nº 06P461, disponíveis em www.dgsi.pt.
4. Vide a propósito Ac. do TRE, de 21.01.2020, processo nº 4604/15.9 T9STB.E1, publicado in www.dgsi.pt.
5. Veja-se por todos o Acórdão do S. T.J de 17.3.2004 in www.dgsi.pt